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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.22 no.1 São Paulo jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v22n1p316-331 

ARTIGO
PSICOLOGIA SOCIAL

 

Poetizando após os sessenta: uma experiência sobre o envelhecer

 

 

Camila Maria ChiquettoI; Claudia StellaII

IUnimed Jundiaí, Jundiaí, SP, Brasil
IIUniversity of British Columbia (UBC), Vancouver, BC, Canadá

Correspondência

 

 


RESUMO

A estigmatização do envelhecimento reduzindo-o às perdas se dá tanto pela desnaturalização do fenômeno quanto pela influência do ideário cultural sobre o envelhecimento que desconsideram seus aspectos subjetivos. O objetivo deste artigo é apresentar uma pesquisa participante em uma oficina de poesias, verificando se a leitura e a produção poéticas auxiliam na produção de novos sentidos sobre o envelhecer. Dos materiais produzidos nas oficinas, bem como dos relatos descritivos dos encontros, emergiram as seguintes categorias de análise: a oficina como espaço de apropriação, convívio e reflexão das participantes; sociedade e possibilidade de uma postura ativa no envelhecimento; a apropriação do corpo no envelhecer: vivências e críticas ao modelo estético; memória: recordações e significados. Como resultado, a oficina de poesias possibilitou um espaço de criação, partilha e reconhecimento social, de retomada de memórias e de reflexões acerca dos estigmas.

Palavras chave: envelhecimento; psicologia do desenvolvimento; saúde mental; idosos; poesia.


 

 

1. Introdução

O envelhecer é intrínseco ao percurso do desenvolvimento humano e vivenciado de forma singular por cada sujeito. Em função das melhores condições de vida, observa-se o aumento da população idosa nas últimas décadas, tanto no Brasil quanto nos países desenvolvidos, o que convoca diferentes disciplinas a pensar sobre estratégias para melhorar a qualidade de vida e a funcionalidade nessa fase do desenvolvimento (Araújo, Ribeiro, & Paúl, 2016; Ribeiro, 2015).

A estigmatização do envelhecimento, baseada na cronologia da idade e nas perdas da força física, produtiva e do espaço relacional, contribui para práticas de isolamento, assim como pode interferir na autopercepção dos sujeitos acerca do próprio envelhecimento. Essa visão estereotipada criou entre os próprios estudiosos da gerontologia dois grupos distintos: o que difundia o envelhecer como período de perdas e aquele que trazia a nova concepção de um envelhecimento ativo (Cunha, 2018; Ribeiro, 2015).

O surgimento da perspectiva lifespan modificou esse cenário, trazendo uma concepção de desenvolvimento contínuo da infância à velhice, de cunho multidimensional, integrando ganhos e perdas, fatores normativos e não normativos, assim como a influência da história na coorte. Desse modo, destaca-se a coinfluência entre os fatores biológicos e socioculturais no processo de envelhecimento (Ribeiro, 2015).

Em contraposição à estigmatização do envelhecimento resultante dos processos de perdas, as abordagens do envelhecimento saudável e envelhecimento ativo ganham espaço na Europa. A primeira enfoca a promoção de comportamentos saudáveis e a redução dos fatores de risco, com a finalidade de manter a capacidade funcional do sujeito, enquanto a segunda viabiliza as oportunidades nos âmbitos da saúde, participação e segurança para um envelhecimento com mais qualidade (Araújo et al., 2016).

Já o conceito de envelhecimento bem-sucedido, desenvolvido por Rowe & Kahn (1987 como citado em Araújo et al., 2016; Ribeiro, 2015), propõe a presença de três aspectos: o baixo índice de doença e incapacidade, a funcionalidade física e cognitiva elevada, e o envolvimento ativo com a vida.

Estudos e práticas realizados com idosos têm evidenciado uma transição para uma representação positiva do envelhecimento. Em estudo sobre os significados da velhice e do bem-estar subjetivo em idosos, destacou-se uma avaliação de satisfação positiva de forma que, além da saúde física, a importância do bem-estar psicológico e das relações interpessoais familiares e sociais ganhou destaque como um dos indicativos de envelhecimento saudável e feliz. Devem-se, portanto, avaliar os múltiplos fatores envolvidos na qualificação do envelhecimento (Mantovani, Lucca, & Neri, 2016).

Em intervenções para promover a qualidade de vida da população idosa, a psicologia em conjunto com as demais áreas das ciências humanas e da saúde tem utilizado recursos intermediadores, como poesias, cartas, objetos e fotografias, nos processos de desenvolvimento e reconhecimento de potencialidades relacionais, cognitivas e afetivas, assim como de ressignificação de memórias (Melo & Domingues, 2012; Gil & Tardivo, 2011; Amodeo, Netto, & Paz, 2010).

A utilização de recursos literários é de grande valia na compreensão de si mesmo e do outro por meio da relação que se forma entre palavra, realidade e fantasia. A literatura tem na poesia sua forma mais peculiar, pois exige do leitor uma apreensão entre intelectualidade e afeto. Além disso, a imagem poética se forma da combinação de palavras por sonoridade, sintaxe, significação e ritmo, o que permite a apreensão de diversos significados a cada leitura (Amodeo et al., 2010; Goldstein, 2006).

Dessa capacidade de apreensão contínua de novos sentidos, a poesia auxilia na criação subjetiva, pois "assim como o poeta cria uma nova forma ao escrever um poema, a leitura deste dispara processos de criação e recomposição naquele que lê, como efeitos desta mistura entre o corpo da poesia e o corpo do leitor" (Melo & Domingues, 2012, p. 73).

Assim, o objetivo deste artigo é apresentar uma pesquisa-ação realizada em um grupo de leitura e criação de poesias com idosos, verificando se a leitura e a produção poéticas auxiliam na produção de novos sentidos sobre o envelhecer, bem como na reflexão que os idosos têm dessa fase do desenvolvimento e de suas ramificações estéticas, sociais e culturais.

 

2. Método

Esta pesquisa é fruto de um trabalho de conclusão de curso intitulado Poetizando após os sessenta: uma experiência grupal de criação subjetiva. A pesquisadora foi também coordenadora participante da oficina, utilizando a leitura de poesias como instrumento mediador das expressões e reflexões, assim como da criação e partilha poética por parte das participantes, configurando-se como pesquisa-ação (Gori, 2006).

2.1 Participantes

Participaram do presente estudo dez mulheres usuárias de um Núcleo de Convivência de Idosos (NCI), localizado na região oeste da capital paulista. A idade variou de 60 a 86 anos. Os nomes das participantes foram substituídos para preservação da identidade e garantia do sigilo das informações. Todas assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

2.2 Instrumentos

Optou-se pela poesia porque ela requer do participante um exercício intelectual e afetivo próprio das manifestações artísticas. Ademais, pode levar à criação de novas percepções, significações e ao rompimento com representações consolidadas (Amodeo et al., 2010). A seguir, apresenta-se a relação das poesias e dos recursos poéticos utilizados em cada encontro, e os nomes com asterisco indicam poesias de autoria das participantes:

• Oficina 1: "A idade de ser feliz" (Mário Quintana); "O mar e o rochedo" (*Beatriz).

• Oficina 2: "Me deixa ficar velha" (Mirian Goldenberg); "Tempo" (*Catarina); "Natal" (*Cecília); "Ser avó" (*Cecília); "Fica, Senhor, comigo!" (Gióia Júnior).

• Oficina 3: Produção poética; "Pássaro" (*Cecília); "Ensinamento" (Adélia Prado).

• Oficina 4: Produção poética; "Para ser grande, sê inteiro" (Ricardo Reis).

• Oficina 5: "Esperança", "Emergência" e "Os poemas" (Mário Quintana - todos).

• Oficina 6: Produção poética; "Soneto de Fidelidade" (Vinícius de Moraes).

• Oficina 7: "A idade de ser feliz" (Mário Quintana).

2.3 Procedimentos

A presente pesquisa foi realizada após aprovação pelo processo Ciep n° T013/05/15 da Comissão Interna de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

As oficinas foram realizadas em sete encontros semanais, de uma hora e meia de duração. Cada encontro teve início com a leitura de uma poesia que serviria de instrumento mediador para as reflexões, os diálogos e as criações do grupo. Às participantes que desejassem, foi aberto espaço para a criação de poesias, assim como a leitura destas para o grupo. Aquelas que produziram alguma criação poética fora da oficina puderam levá-la ao encontro para que fosse lida e partilhada com as demais participantes.

Os encontros foram registrados posteriormente em relatório descritivo. Tanto no primeiro quanto no sétimo encontro, propôs-se uma oficina com o tema "sentidos do envelhecer". Com base no relato das participantes, fez-se uma análise sobre as implicações da oficina de poesias em suas vivências.

Posteriormente, os relatos das participantes foram submetidos a uma análise de conteúdo, de acordo com as categorias temáticas que emergiram das discussões e reflexões sobre as poesias trabalhadas (Bardin, 2003).

 

3. Resultados e discussão

3.1 A oficina como espaço de apropriação, convívio e reflexão das participantes

Quando se analisa a dinâmica de funcionamento da oficina de poesias, percebe-se que ela se tornou um espaço que foi apropriado pelas participantes com a mínima intervenção da pesquisadora. De acordo com os princípios metodológicos da pesquisa-ação, as participantes protagonizaram as oficinas sugerindo atividades, trazendo textos e poesias de autoria própria, assim como abrindo espaço para que todas participassem com suas formas singulares.

Dinâmica semelhante foi identificada por Lourenço e Massi (2016) que realizaram grupos operativos com tarefa voltada à construção da escrita, o que possibilitou interações sociais entre os idosos marcadas pelo respeito à fala de outrem, pela postura ativa e pela manifestação de vozes desejantes por meio da autoria. Utilizando-se da escrita, os idosos puderam traçar novos posicionamentos subjetivos ante o envelhecer, em busca de mais qualidade e sentido.

Estabeleceu-se uma dinâmica grupal de partilha, reflexão e resolução de problemas sobre as vivências trazidas. As experiências apresentadas por uma participante mobilizavam conteúdos semelhantes em outra, assim como suscitavam o acolhimento por parte daquelas que escutavam. Segundo Bosi (2003, p. 85): "O narrador tira o que narra da própria experiência e transforma em experiência dos que o escutam". Dessa forma, o olhar do sujeito se volta para si ao escutar o que vem do outro, em um processo de ressonância e transformação (Melo & Domingues, 2012). Por exemplo, após Joana partilhar questões que envolviam sua filha, Beatriz contou uma vivência semelhante, que vem superando pela escrita:

Graça: Que bom que você pode escrever. Imagina o que você faria se não tivesse a escrita?

Beatriz: Pois é. O mar é o caminho, mas tem tormentas. Com a escrita estou me aproximando mais da minha filha.

Atentas às falas que surgiam, as participantes refletiam entre si sobre os sentidos do envelhecer rompendo os estigmas das limitações e da improdutividade, utilizando-se das próprias manifestações poéticas como dispositivos de apoio para reflexão.

Quando Catarina apresentou dificuldades para entender a poesia "Ensinamento", de Adélia Prado, as demais participantes se dispuseram prontamente a auxiliá-la, procurando exemplos próprios:

Cecília: O amor está nas pequenas coisas. Por exemplo, apesar de ter carro, meu marido ia trabalhar a pé. Quando chovia, eu me preocupava e ia ao encontro dele de guarda-chuva. Isso é amor como na poesia.

3.2 Sociedade e possibilidade de uma postura ativa no envelhecimento

Durante as oficinas, foi observada a necessidade que as participantes tinham de aprender sobre poesia e, principalmente, de mostrar suas criações. As atividades no próprio NCI, os cuidados com os familiares e a casa eram destacados pelas idosas como uma evidência de postura ativa, diferentemente do ideário cultural da inatividade no envelhecimento. Ao contar sua história, Maria evidencia sua capacidade produtiva mesmo deixando a profissão de caminhoneira:

Maria: Tem gente que fala que eu deveria escrever um livro. Eu já viajei tanto por esse país. Conheço o Brasil inteiro até as fronteiras da Venezuela... Colômbia. Então, eu já vi muitas coisas nessas estradas. Elas estavam falando de organização, já organizei um evento para diversas crianças, algumas sem pais, e outras com pais ausentes. Enchemos cinco ônibus para levá-las ao parque, com doces, pipoca. [...] Fui até chamada aqui no Parque da Água Branca para falar do evento! Nem sei falar, mas fui lá [risos]. Ficaram impressionados como consegui fazer. [...] A gente vê muita coisa e não pode falar. Então, pelo menos, temos que fazer algo.

Para essa categoria de análise, a teoria de Erikson (1998) sobre os estágios do desenvolvimento subsidiará a presente reflexão. Apesar de grande parte das participantes estar no oitavo estágio do conflito dinâmico "integridade versus desesperança", notamos que aspectos pertinentes à fase anterior da "generatividade versus estagnação" ainda se fazem presentes.

De acordo com o mesmo autor, na oitava etapa ocorre uma revisão retrospectiva, na qual o sujeito pode avaliar suas experiências e o quanto viveu com satisfação. De forma oposta, o polo distônico do "desespero" faz o indivíduo lamentar o que se perdeu. Diante da finitude, o tempo parece limitado para se viver o que não pôde ser vivido até então. Assim, a sabedoria surge como a virtude para equilibrar os sentidos das experiências vividas e/ou da frustração pelas oportunidades perdidas, somados ao tempo que parece se esvair (Lima & Coelho, 2011). Como exemplo de integridade emocional, destacamos a fala de Cecília:

Cecília: Quando eu fiz 60 anos eu parei para escrever minha linha do tempo. Coloquei tudo o que eu havia feito, só faltou colocar os 50 anos com meu marido. Na época, meu filho perguntou: "Mãe, o que a senhora fez até os sessenta?", e eu respondi: "Amei vocês!" [risos]. Não é? Amei tudo e todos!

Cecília retoma sua história numa linha do tempo e a expressa positivamente como "amor". Vale salientar como essa participante gostava de mostrar suas inúmeras poesias, contar que depois de viúva entrou para a faculdade da terceira idade, assim como mostrava as fotos dos quitutes que preparava para os netos.

Segundo Erikson (1998), mesmo com a redução de energia, a geratividade do estágio anterior, voltada ao compromisso familiar, ao cuidado e à produção, pode se fazer presente durante a velhice na função de avós, assim como pode atuar como uma defesa contra o desespero da oitava etapa, mantendo-os longe da sensação de inutilidade e frustração pelos erros, mas ativos em suas relações sociais. No entanto, a geratividade na velhice possui suas peculiaridades: além do cuidado com filhos e netos, envolve o olhar para fora de si, mas ao mesmo tempo para dentro de si, utilizando-se de seus recursos para o desenvolvimento da sabedoria (Lima & Coelho, 2011).

Ao longo das oficinas, as participantes puderam conhecer novas poesias, criar as próprias e mostrá-las às demais. Voltaram-se para suas vidas e histórias, partilhando no grupo suas produções, de forma a conhecerem umas as outras. For-maram-se vínculos por similaridade de acontecimentos, empatia, escuta e encorajamento. De acordo com Lima e Coelho (2011), atividades como essas que visam à produtividade e à criatividade fazem os idosos se sentirem vivos.

Apesar das situações que colocam o idoso em uma posição social desfavorável, Blessmann (2004) pontua uma mudança de paradigma perante o lugar social do sujeito em envelhecimento. Segundo o autor, com o aumento da expectativa de vida e das taxas de sobrevida, surge uma nova imagem do idoso que tem suas potencialidades reconhecidas, em detrimento do ócio. O papel social do idoso como sujeito da geratividade vem surgindo pela marca da atividade e do vínculo na participação social.

As participantes da oficina mostram que estão integradas a essa nova posição social do idoso, mas não descartam o enfrentamento do estigma ainda existente. Após ouvir a poesia "A idade de ser feliz", de Mário Quintana, Cecília e Beatriz respondem aos que se identificam com o polo distônico do desespero e da estagnação:

Cecília: Tem gente que reclama da vida, diz que não pode fazer nada por isso... aquilo... que está velho. Ou só fica aqui [imita alguém mexendo no celular]. As pessoas só pensam nisso! O que preocupa não é a catarata da vista, mas a da alma!

Beatriz: Apesar da idade colocar algumas dificuldades, temos o hoje!

3.3 A apropriação do corpo no envelhecer: vivências e críticas ao modelo estético

Na nossa sociedade em que o corpo é valorizado como mercadoria obediente aos padrões midiáticos da beleza atrelada à juventude, a velhice pode ser vivida pelo sujeito como um estereótipo negativo ou como um momento de ressignificação da própria identidade com a reafirmação dos ganhos nessa fase do desenvolvimento.

A questão do corpo e do envelhecimento foi trazida de forma recorrente ao grupo por diferentes participantes. Inclusive, foi a temática central da oficina em que Beatriz compartilhou a matéria "Me deixa ficar velha!", de Mirian Goldenberg, publicado na Folha de S.Paulo, em 14 de julho de 2015. As participantes evidenciaram críticas às normativas do que é socialmente esperado para a corporeidade do velho:

Catarina: Essa cobrança não vem de indivíduo para indivíduo: tem interesses econômicos e capitalistas envolvidos. Tem a indústria da cosmética... a farmacêutica. É interesse monetário. [...] Querem colocar defeito para as coisas próprias de cada idade. É uma constante massificação!

Na sociedade brasileira, o corpo ganha a condição de capital físico e simbólico no mercado da beleza ideal (Goldenberg, 2011). Soma-se a esse cenário o fato de estarmos na era da tecnologia da informação, na qual surgem redes de produção e controle do desejo no sujeito consumidor (Blessmann, 2004).

Conforme a fala crítica de Catarina, a lógica do consumo desconsidera a singularidade do sujeito que envelhece, assim como suprime as vicissitudes dessa fase do desenvolvimento que, além de incluir mudanças e/ou perdas biopsicossociais, insere ganhos emocionais e cognitivos (Jorge, 2005).

Segundo Blessman (2004), o corpo caracteriza a presença do homem no mundo. Assim, as mudanças vividas no corpo em envelhecimento refletem novas formas de atuação em seus limites e desafios. Por sua vez, a imagem corporal e o sentido que lhe é dado impulsionam o sujeito como ser de desejo numa experiência que pode ser de satisfação.

Cecília: Temos que envelhecer sem apodrecer! Eu me sinto bem com a idade que tenho. Pra mim, eu carrego todas as idades: já fui criança, adolescente, adulta... não é porque sou velha que tenho que ser triste! Uma vez fiquei me olhando: varizes, rugas... manchas...! Fiz até uma poesia para mim mesma! [risos]. Eu me sinto bem como sou!

Parece que Cecília se apropriou da nova identidade, apesar das dificuldades e dos estigmas que enfrenta. De acordo com Jorge (2005), apesar das ambivalências entre ganhos e perdas pertinentes à velhice, o grau de satisfação também depende da qualidade das vivências pregressas e da maneira como o sujeito se in-sere no mundo externo: o modo de se relacionar com o futuro e se projetar nele.

No entanto, conforme as participantes, ainda existe uma ambivalência no que tange a assuntos pertinentes ao corpo e ao envelhecer. Embora pareça existir uma integração com a nova identificação corporal, há a presença dos estereótipos que postulam quais posturas são permitidas às idosas. É o caso de Francisca que se surpreendeu durante uma viagem ao Rio de Janeiro: "senhoras, como eu, usam biquíni tranquilamente" (sic). Assim, as políticas públicas voltadas ao convívio de idosos e à difusão de um envelhecimento ativo contribuem inclusive para o cuidado de si (Franco & Barros, 2011):

Beatriz: Convivência social ajuda muito na aparência! O convívio aqui, por exemplo. Veja, a gente se cuida mais... Vem mais arrumadinha para um encontro como esse nosso.

Apesar do estigma difundido do velho como improdutivo, limitado e doente, Goldenberg (2011) destacou que quanto mais avançava a idade de suas entrevistadas, mais aspectos positivos eram levantados acerca do envelhecer: o desejo próprio sobressaiu aos padrões culturais, que colocam o idoso num papel negativo. Podemos pensar que o novo lugar social dos idosos, somado às políticas públicas voltadas a eles, tem contribuído para a criação de vínculos sociais saudáveis que interferem na própria significação e cuidado do corpo.

3.4 Memória: recordações e significados

O uso da poesia como instrumento mediador afetivo-simbólico colaborou para a recordação de experiências e para a apreensão de novos sentidos dentro da dinâmica grupal.

Observou-se o desencadeamento de reminiscências, as quais consistem no processo de recordação de vivências passadas significativas. As participantes puderam ocupar seus lugares subjetivos dentro de suas narrativas de vida, por meio da análise da memória autobiográfica, com o resgate de sensações e a integração de novos sentidos a experiências passadas, relativas à infância, às relações afetivas familiares e ao trabalho (Gonçalves, Albuquerque, & Martín, 2008).

As oficinas tinham início com a leitura de algum poema trazido pela pesquisadora ou pelas participantes, assim como com a exposição das criações literárias que pautavam a reflexão sobre lembranças e significados.

Durante uma atividade na qual as integrantes puderam escolher uma palavra para escrever livremente sobre o que quisessem, várias memórias surgiram, e a escrita foi utilizada como meio de expressão:

- Palavra: brincadeira (Cecília)

Hoje, eu, Cecília, tenho 86 anos. Mas lembro muito bem da minha infância querida.

Todas as noites [eu] saía para frente da minha casa para encontrar minhas amiguinhas e aí ficávamos jogando peteca, bola atrás e de passar anel até que minha mãe [não] deixava mais ficar, eu sempre queria mais. Nunca terminei os jogos por minha vontade. E assim no outro dia nos encontrávamos e começava tudo de novo.

- Palavra: pai (Beatriz)

Querido pai, quando eu era criança, olhava para você e te achava tão forte e tão distante. Você não gostava de contato físico, nem carinhos - você achava que isso tirava sua autoridade de pai e se afastava a cada oportunidade. Queria muito abraçá-lo e sentia muita falta: não entendia o porquê. Só que-ria beijar seu rosto. Isso só pude fazê-lo numa noite de Natal, quando eu já estava com 35 anos de idade. Ficamos emocionados porque foi tão de repente, nem você esperava. Nos abraçamos sem dizer nada, beijei seu rosto, você aceitou. Foi uma vitória para mim, uma barreira ultrapassada. Senti naquele momento que o amor filial triunfou finalmente.

A memória articula o presente e o passado por um desejo de explicação que o sujeito emprega ao integrar suas experiências na busca de dar sentido à sua história. Assim, quando evoca recordações e imagens, o sujeito revive e atualiza o conteúdo da experiência (Bosi, 2003, 2013).

Em seus estudos sobre tempo e memória, Bosi (2003) destaca a existência de marcos sucessivos que se concentram nas significações biográficas da memória. Assim, enquanto Beatriz recorda os tempos difíceis da guerra, Cecília faz menção ao mesmo período como a época em que namorou seu falecido marido:

Beatriz: Esses dias, me lembrei do meu pai escutando o rádio e dizendo para a gente: "A guerra acabou!".

Cecília: Foi em 1945! Eu namorava nessa época... Eu lembro!

Beatriz: Eu era criança! Lembro que a minha mãe colocava panos escuros na janela para não vermos os aviões. Tem gente que não gosta de lembrar essas coisas [...].

Os objetos biográficos também carregam as vicissitudes do tempo. Segundo Bosi (2003, p. 26), "as coisas que envelhecem conosco nos dão a pacífica sensação de continuidade". Em uma das oficinas, Cecília mostrou sorridente um caderno de recordações, no qual guardava todos os seus bilhetes e cartas. No mesmo encontro, Beatriz confessou ter uma "gaveta da saudade" que abria em momentos íntimos consigo mesma para elaborar a dor da perda.

Por meio de objetos e lembranças, a memória tece uma linha que liga o presente e o passado à consciência (Bosi, 2013). Na partilha grupal, o sujeito dá vida e sentido àquilo que permanecia oculto.

 

4. Considerações finais

Levando em conta os resultados obtidos, observamos que a oficina de poesias possibilitou um espaço de criação, partilha e reconhecimento social. Memórias de momentos importantes, reflexões acerca dos estigmas, a própria criação e escuta poéticas puderam levar as idosas a pensar sobre sua trajetória de vida, as possibilidades existentes no agora, assim como repensar o lugar social de idosas que lhes é dado culturalmente, em busca de uma significação própria circunscrita à história de cada participante.

O vínculo grupal teve um papel muito importante nos processos reflexivos e na própria condução da oficina. O grupo assumiu a posição ativa que as participantes pareciam ter na vida cotidiana: davam sugestões, levantavam questões e as solucionavam entre si, assim como respeitavam as diferentes formas de pensamento e expressão.

O uso da linguagem poética favoreceu a expressão das singularidades existentes no grupo. Uma mesma poesia ou palavra possibilitava o acesso àquilo que era próprio da história de vida de cada participante e suscitava uma trama de histórias que se complementavam.

A poesia convidou as idosas para o plano da criação e da espontaneidade, servindo como mediadora das reflexões grupais. Segundo Alfredo Bosi (2013, p. 43), "na poesia lírica, a expressão da subjetividade é tecida de imagens escavadas no subconsciente e salvas no esquecimento. São as puras lembranças despojadas de todo convencionalismo". Assim, o ideário cultural estigmatizante é deixado de lado, em detrimento daquilo que é singular em cada sujeito.

Dentre as limitações, pode-se citar a dificuldade de ter um número estável de participantes presentes nas oficinas para uma experiência grupal mais diversificada, que permitisse descobrir as demais extensões desse recurso. Outra sugestão para novas pesquisas seria a utilização de um gravador para o registro fiel das interações e dos conteúdos expressos ou até mesmo a presença de alguém responsável apenas pelo registro dos encontros.

Para além das limitações, constatou-se que a oficina de poesias no NCI contribuiu para a criação de uma subjetividade menos afetada pelos estigmas sociais e mais próxima de uma espontaneidade criativa. Poetizar após os sessenta possibilitou a consolidação de vínculos e a participação social, importantes na construção de um envelhecimento saudável.

Por meio da análise e discussão desenvolvida no presente estudo, podemos verificar a aplicabilidade da oficina de poesias em diferentes contextos que se preocupem com a qualidade de vida dos idosos e a importância do empoderamento desses cidadãos. A oficina pode ser usada como dispositivo na produção de novas habilidades e subjetividades, pois, segundo a participante Beatriz, a poesia está além dos livros e das análises formais: "a poesia está dentro da gente".

 

Referências

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Correspondência:
Camila Maria Chiquetto
Rua Santiago, 26, Vila Helena
Jundiaí, SP, Brasil. CEP 13206701
E-mail: camilachiquetto@gmail.com

Submissão: 18/06/2018
Aceite: 23/10/2019

Nota dos autores
Camila Maria Chiquetto, Serviço de Atenção Domiciliar, Unimed Jundiaí; Claudia Stella, Child Studies Lab – Psychology, University of British Columbia (UBC).

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