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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.22 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v22n1p351-367 

ARTIGO
PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

 

Centro de aprendizagem e desenvolvimento: estudo de caso interdisciplinar em aba

 

 

Priscila BenitezI; Isis AlbuquerqueI; Nathalia V. ManoniI; Ana Flávia RibeiroII; Ricardo M. BondioliI

IUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, Brasil
IIUniversidade de Franca (UNIFRAN), Franca, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O transtorno do espectro autista (TEA) acomete as diferentes áreas do desenvolvimento. A aplicação da Análise do Comportamento Aplicada (ABA) por diferentes profissionais tem demonstrado resultados promissores. O objetivo foi descrever um estudo de caso interdisciplinar delineado nos princípios analítico-comportamentais, a partir de uma intervenção aplicada com uma criança com TEA. O procedimento envolveu cinco fases: avaliação do repertório da criança com TEA, reunião interdisciplinar, aplicação do currículo, formação dos pais e novamente reunião interdisciplinar. Os resultados apresentam os dados de avaliação da criança com TEA, a organização do currículo e uma análise do estudo de caso, a partir do entrelaçamento de contingências comportamentais. Cada profissional da equipe, em sua área de atuação, colaborou para a construção, aplicação e análise do currículo de ensino estruturado, individualizado e diversificado, o que gerou reflexões, ainda que embrionárias, sobre esse tipo de organização de intervenção, envolvendo os profissionais, pais e a criança com TEA.

Palavras chave: autismo; Análise do Comportamento Aplicada; currículo; desenvolvimento; equipe interdisciplinar.


 

 

1. Introdução

O transtorno do espectro autista (TEA) como transtorno do neurodesenvolvimento apresenta as seguintes características definidoras: dificuldade na comunicação social recíproca e presença de interesses restritos e estereotipados (American Psychiatry Association [APA], 2013). O desenvolvimento idiossincrático desencadeado pelo TEA provoca alterações específicas na sequência e na qualidade do desenvolvimento, o que dificulta o estabelecimento de intervenções profissionais eficazes. Por causa da ausência de linguagem ou do déficit nela e por conta das dificuldades relacionadas ao comportamento social, os alunos com TEA são considerados pelos professores uma demanda desafiadora para aplicar as atividades pedagógicas no contexto da sala de aula comum (Rodrigues, Moreira, & Lerner, 2012).

O TEA, como um transtorno que acomete as diferentes áreas do desenvolvimento, requer uma programação detalhada para o ensino de diferentes comportamentos que integram o desenvolvimento (Bagaiolo et al., 2017; Carvalho, Paula, Teixeira, Zaqueu, & D'Antino, 2013; Higbee, 2012). Isso significa que o trabalho conjunto entre diferentes profissionais favorece a abrangência de conhecimento nesse âmbito de investigação (Velloso et al., 2011), sobretudo quando apresentam uma atuação interdisciplinar relacionada à avaliação e definição dos programas de ensino que serão trabalhados em cada área do desenvolvimento. Ademais, é fundamental ressaltar o direito do aluno com TEA ao atendimento multiprofissional, conforme descrito no artigo 2°, parágrafo 3°, da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA (Brasil, 2012), promulgada pela Lei n. 12.764. Tal atendimento ao ser conduzido em uma perspectiva interdisciplinar favorece o trabalho colaborativo intensivo (Curtis et al., 2006). O envolvimento de diferentes profissionais, incluindo professores regulares e especiais, especialistas em diferentes áreas (psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia, entre outras) favorece o processo inclusivo dos estudantes público-alvo da educação especial (Smith, 2008), principalmente aqueles com TEA, e, além disso, cria a oportunidade para envolver um conjunto de contingências comportamentais entrelaçadas como uma prática cultural (Glenn, 1988).

Esse trabalho conjunto é essencial para a elaboração de currículos individua lizados que atendam às necessidades específicas de cada aluno com TEA, baseados na proposição de procedimentos sistemáticos e graduais de ensino de habilidades pré-verbais e verbais, que identificam as variáveis controladoras dos comportamentos específicos e ensinam classes de comportamentos socialmente relevantes (por exemplo, uso funcional da linguagem, em detrimento de comportamentos agressivos) a partir da aplicabilidade dos princípios analítico-comportamentais (Cooper, Heron, & Heward, 2007). Nesse contexto, é possível identificar as habilidades que precisam ser ensinadas e aquelas que poderiam ser minimizadas do repertório de cada pessoa com TEA, a partir do trabalho conjunto entre diferentes profissionais.

No caso dos indivíduos com TEA, a adoção da Análise do Comportamento Aplicada (Applied Behavior Analysis - ABA) por diferentes profissionais tem demonstrado resultados promissores no tratamento desse público-alvo, por causa do uso de procedimentos derivados de princípios comportamentais comprovados cientificamente (Cooper et al., 2007). Uma aplicação comportamental analítica, certamente, emprega os princípios do comportamento, visando ao ensino de comportamentos específicos, e avalia a ocorrência de possíveis modificações comportamentais, com a função de verificar se tais modificações foram oriundas ou não da aplicação planejada. O termo "aplicada", por sua vez, se refere ao ensino de comportamentos socialmente relevantes, de acordo com a comunidade verbal em que o aluno está inserido (Baer, Wolf, & Risley, 1968).

Existem evidências crescentes de que intervenções comportamentais intensivas precoces catalisam o desenvolvimento intelectual e verbal de crianças com TEA, com resultados bastante promissores com crianças abaixo de 3 anos de idade (Cooper et al., 2007; Maurice, Green, & Luce, 1996). As intervenções comportamentais intensivas são documentadas na literatura desde a década de 1980 como intervenções eficazes para o tratamento de alunos com TEA, no sentido de ensinar diferentes comportamentos específicos que integram as distintas áreas do desenvolvimento infantil. Isso significa uma agenda de 15 a 40 horas semanais, no mínimo, por dois anos consecutivos, no modelo de estimulação individualizada, ou seja, um profissional para uma criança com TEA (Gomes, Souza, Silveira, & Oliveira, 2017; Lovaas, 1987).

Para que a intervenção em ABA replique os dados científicos de eficácia, certos princípios devem ser contemplados, tais como início precoce da intervenção, intervenção intensiva (frequência de aplicação das sessões), sistemática, com foco na generalização e em objetivos individualizados, participação e capacitação dos pais e intervenção concentrada nos domínios sociais e comunicativos (Cooper et al., 2007; Maurice et al., 1996). Mesmo nos casos em que não seja possível a intervenção comportamental intensiva e precoce, podem-se identificar os ganhos comportamentais com a aplicação comportamental analítica envolvendo alunos com TEA, por meio da redução dos excessos comportamentais. Para tanto, devem-se propor novas oportunidades de ensino de comportamentos específicos, de modo a propiciar melhor qualidade de vida a esse público e aos cuidadores dele (Brasiliense, Flores, Barros, & Souza, 2018; Campbell, 2003; Gomes et al., 2017; Guimarães et al., 2018).

Uma das recomendações fornecidas pelo Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos (National Research Council, 2001) se refere à intensidade de carga horária. Tal carga deve ser similar à carga escolar regular, com aproximadamente 25 horas de atendimento semanais. Além disso, a programação individualizada do ensino, muitas vezes, prevê o atendimento individual ou em grupos reduzidos de alunos com currículos personalizados.

Para a realização de tal intervenção, existe a necessidade de uma equipe de diferentes profissionais, com um mesmo objetivo e conhecimento em ABA, para realizar a avaliação, programação, aplicação e análise dos currículos de ensino e em número suficiente para aplicar tal procedimento. Ainda assim, para que sejam garantidas melhores condições à intervenção, com o cumprimento de horas mínimas e objetivo de generalização do ensino, têm sido elaboradas e implementadas diferentes estratégias, de forma a envolver outros agentes educacionais, além do analista do comportamento, a destacar: a instrumentalização de pais e professores como agentes aplicadores e multiplicadores. O estudo de Guimarães et al. (2018) avaliou uma capacitação destinada aos cuidadores de crianças com TEA, composta por um conjunto de procedimentos de ensino (videomodelação, instrução escrita e role-play com feedback imediato), visando minimizar comportamentos inadequados de crianças com TEA, a partir de um delineamento de linha de base múltipla. Como resultado, a capacitação foi considerada eficaz por causa do número de sessões necessárias para alcançar o critério de aprendizagem, pelo cuidador, em cada etapa de ensino proposta. O estudo de Gomes et al. (2017), por sua vez, avaliou o efeito de intervenção comportamental intensiva aplicada por cuidadores e profissionais, com carga horária em torno de 15 horas semanais. Foram aplicados instrumentos de avaliação antes e depois do término da intervenção. Os dados do pós-teste foram analisados individualmente e identificaram resultados importantes para o desenvolvimento infantil de cada aluno com TEA.

Considerando a variabilidade comportamental do TEA (APA, 2013), a necessidade de garantir o direito ao atendimento multiprofissional (Brasil, 2012), por meio do envolvimento de diferentes profissionais na proposição de intervenções que favoreçam maior qualidade de vida ao aluno com TEA e a eficácia dos procedimentos de ensino provenientes dos princípios analítico-comportamentais com essa demanda, o objetivo deste relato de experiência profissional foi descrever um estudo de caso interdisciplinar delineado nos princípios analítico-comportamentais, a partir de uma intervenção aplicada com uma criança com TEA.

 

2. Método

2.1 Participantes

Compuseram a equipe interdisciplinar os seguintes profissionais: três psicólogos - dos quais um com formação em pedagogia e doutorado e outro com especialização em psicopedagogia -, um terapeuta ocupacional com mestrado e uma fonoaudióloga com formação em psicopedagogia. Embora cada profissional tivesse uma formação acadêmica diferenciada, todos apresentavam conhecimento em ABA, o que permitiu a programação, aplicação e análise conjunta dos currículos a partir das prioridades de ensino da criança participante do estudo. A análise do caso investigado no presente trabalho foi referente a um menino de 3 anos de idade com diagnóstico médico de TEA.

2.2 Procedimento geral do estudo de caso

A intervenção foi programada semanalmente durante a reunião dos profissionais. É fundamental explicar que o estudo de caso interdisciplinar foi estruturado e descrito em cinco fases. Em um primeiro momento, a equipe se reuniu para realização da avaliação do repertório inicial da criança, com aplicação de dois instrumentos (fase 1). Na sequência, foi realizada a reunião para análise dos dados da avaliação e planejamento do currículo personalizado para a criança-alvo do estudo (fase 2), e, simultaneamente à aplicação do currículo pelos profissionais supracitados (fase 3), ocorreu a formação dos pais (fase 4). Por último, realizou-se, uma vez por semana, durante a implantação do estudo de caso, a reunião interdisciplinar para análise do currículo personalizado da criança-alvo (fase 5).

2.2.1 Fase 1: Avaliação do repertório inicial da criança (linha de base)

O primeiro passo foi a aplicação de uma avaliação sistematizada, com o objetivo de obter uma linha de base para cada comportamento-alvo que se pretendia ensinar. Aplicaram-se dois instrumentos:

• Verbal Behavior Milestones Assessment and Placement Program - VB-MAPP (Sundberg, 2008): para avaliar diferentes competências verbais e sociais, no sentido de obter dados que identificassem o repertório inicial de desempenho em diferentes tarefas da criança-alvo e permitisse o rastreamento das habilidades adquiridas e um modelo para o planejamento curricular.

• Inventário Portage Operacionalizado (IPO): para avaliar as cinco áreas do desenvolvimento: linguagem, cognição, socialização, autocuidados e desenvolvimento motor (Williams & Aiello, 2001).

2.2.2 Fase 2: Reunião interdisciplinar de planejamento dos currículos personalizados para criança-alvo do estudo com TEA

Essa reunião teve como objetivo o encontro dos cinco profissionais para análise dos dados obtidos com a aplicação das duas avaliações citadas na fase 1, para programação dos currículos personalizados para a criança. O conjunto de dados obtidos com a avaliação permitiu a discussão do desempenho inicial da criança e a programação do currículo personalizado e individualizado de ensino. A intervenção contemplou as cinco áreas de desenvolvimento: habilidades de prontidão (anteriores às tarefas cognitivas), linguagem, socialização, autocuidados e motor. Assim, a criança foi exposta a um programa de ensino que contemplou sua necessidade individual, de acordo com os dados identificados na avaliação.

2.2.3 Fase 3: Aplicação do currículo pelos profissionais

As sessões de aplicação do currículo pela equipe de profissionais ocorreram com diferentes cargas horárias. A família decidiu a carga horária de permanência da criança na intervenção, o que significou 20 horas de atendimento semanal. Todavia, foi acordado que os pais deveriam aplicar os currículos na residência deles, de modo a garantir uma carga horária mínima de intervenção semanal de 30 horas semanais.

Cada sessão de aplicação contemplava o ensino das habilidades das diferentes áreas de desenvolvimento que foram selecionadas pela equipe para compor o currículo da criança. Desse modo, a sessão não tinha um propósito multidisciplinar, em que um profissional seria responsável por uma única área específica do desenvolvimento, mas uma perspectiva de atuação interdisciplinar, em que eram selecionados programas de ensino de várias áreas, para possibilitar que na mesma sessão a criança pudesse aprender diversas habilidades de distintas áreas do desenvolvimento.

Os materiais utilizados foram: protocolos de registro de cada um dos currículos aplicados, lápis, folhas em branco, livros, computador, diversos jogos lúdicos (memória, dominó, massinha, materiais de pintura etc.), entre outros necessários para determinadas tarefas dos currículos.

2.2.4 Fase 4: Formação dos pais

A fase 4 ocorreu concomitantemente à fase 3. Essa fase teve como objetivo inserir os pais da criança nas rotinas de atendimento, para que as atividades também fossem aplicadas em sua residência, de modo a garantir a carga horária mínima de atendimento. Ao final da aplicação do currículo, os pais eram instruídos a preencher um formulário que continha as instruções para aplicação da sessão, além de dois campos nos quais deveriam assinalar S (sim), se a criança realizasse a atividade corretamente e sem ajuda, e N (não), para respostas incorretas. Diante de um N, os pais eram instruídos a ajudar a criança.

2.2.5 Fase 5: Reunião interdisciplinar para análise do currículo personalizado

Semanalmente, os cinco profissionais realizavam a reunião interdisciplinar para analisar os dados e replanejar, quando necessário, o currículo personalizado da criança-alvo. Ainda que todos os profissionais aplicassem o mesmo currículo de ensino elaborado com os princípios analítico-comportamentais, as contribuições individuais ocorreram durante a reunião semanal (fase 5). Nessa fase, discutiram cada desempenho da criança, e, a partir das contribuições das diferentes áreas de trabalho, foi possível elaborar um currículo amplo que atendesse às necessidades específicas da criança-alvo.

A análise dos resultados obtidos com a aplicação semanal do currículo envolveu três tomadas de decisão: 1. aumento da dificuldade da habilidade ensinada, quando a criança atingia o critério de aprendizagem, 2. diminuição da dificuldade, no caso de desempenho nulo, e 3. continuidade da mesma dificuldade, diante de muita variabilidade de respostas. Essa estrutura de análise dos resultados permitiu a tomada de decisões semanal para o currículo de cada criança, visando ao ritmo individual de aprendizagem nas diferentes áreas do desenvolvimento.

2.3 Análise dos dados

Os dados foram analisados de maneira descritiva, de modo a especificar cada etapa do estudo de caso interdisciplinar proposto, assim como a partir da elaboração do currículo delineado pela equipe, por meio da escolha de cada programa de ensino proposto, de acordo com os resultados da avaliação.

 

3. Resultados e discussão da experiência profissional

O alvo da análise dos dados foi o modelo de estudo de caso interdisciplinar fundamentado nos princípios analítico-comportamentais. Considerando a variabilidade comportamental do diagnóstico do TEA (APA, 2013) e o direito do público com esse transtorno ao atendimento multiprofissional (Brasil, 2012), justifica-se o envolvimento de diferentes profissionais, a partir de uma mesma perspectiva de atuação, seguindo os princípios analítico-comportamentais.

A primeira fase do estudo de caso se referiu à aplicação de duas avaliações pela equipe de profissionais supracitados. A aplicação e análise dos dados do VB-MAPP (Sundberg, 2008) e do IPO (Williams & Aiello, 2001) foi o primeiro passo da intervenção e tema principal da primeira reunião interdisciplinar. Os resultados da avaliação da criança-alvo no VB-MAPP são apresentados na Figura 3.1.

 

 

A Figura 3.1 mostra os comportamentos verbais avaliados pelo VB-MAPP Nível 1, que corresponde às habilidades esperadas para crianças sem deficiência ou transtornos com idade entre zero e 18 meses. Os comportamentos verbais avaliados no primeiro nível do VBMAPP (0-18 meses) são: mando (antecedente: operação estabelecedora; resposta: vocal ou gestual; consequência: reforçador específico), tato (antecedente: não verbal; resposta: vocal ou gestual; consequência: reforçador social) e ecoico (antecedente: verbal (em geral, auditivo); resposta: vocal ou gestual (topograficamente idêntica ao antecedente); consequência: reforçador social) (Catania, 1999). Um exemplo do operante mando poderia ser descrito quando o estudante está com sede, por conta da privação de água, e, como consequência, recebe a água por solicitá-la (reforçador específico). O tato, por sua vez, pode ser exemplificado quando a criança nomeia um objeto na presença de tal objeto. E o ecoico envolve a imitação de um estímulo vocal, imediatamente após a solicitação do estímulo antecedente. A criança-alvo deste estudo apresentava comportamentos verbais de mando, tato e ecoico correspondentes à faixa etária entre 0 e 18 meses de idade. Esses dados foram fundamentais para a definição dos programas de ensino de habilidades de prontidão, tais como seguir instruções, ensinar a manutenção do contato visual quando chamado pelo nome, imitar expressões faciais e com uso de blocos com formas e cores diferentes.

No IPO, nas áreas de socialização, de desenvolvimento motor e de autocuidados, a criança apresentou comportamentos compatíveis com a faixa etária de 1 a 2 anos, enquanto nas áreas de cognição e de linguagem, com a faixa etária de 0 a 1 ano. Após a análise dos resultados do nível 1 do VBMAPP e do IPO, o currículo da criança-alvo foi elaborado considerando quais aspectos do desenvolvimento ela deveria aprender e quais estratégias seriam utilizadas para promoção de tal ensino, assim como a escolha adequada dos reforçadores que seriam utilizados durante a aplicação do currículo. Durante a reunião da equipe, foi decidido pelos profissionais que as tarefas típicas de cognição seriam aplicadas após a obtenção de maior desempenho nas tarefas de prontidão.

A prioridade identificada pela equipe foi o ensino de habilidades de prontidão e imitações, pois são requisitos fundamentais para o aprendizado de diversos comportamentos, sobretudo pelo fato de a imitação ser considerada um comportamento de ordem superior (Catania, 1999). Por causa da importância dessas habilidades, elas foram ensinadas não apenas nos programas de imitação e habilidades de prontidão, mas também nos programas de habilidades motoras, autocuidados, habilidades sociais e linguagem. Mediante tais dados, durante a reunião interdisciplinar (fase 2 do procedimento), para a elaboração do currículo, foi delineado o currículo para a criança-alvo (Tabela 3.1) com base nos pressupostos de Higbee (2012) e Maurice et al. (1996).

 

 

A imitação é uma habilidade aplicada nos programas de ensino referentes à linguagem (ecoico), à socialização (imitar o brincar com objetos) e ao desenvolvimento motor (imitar traços no papel). Ao imitar, a criança adquire repertório para responder às diferentes demandas do ambiente. A imitação generalizada, como uma classe de respostas diferencialmente reforçada, é considerada um comportamento de ordem superior (Catania, 1999). A programação dessa variedade de imitações envolvendo diferentes áreas do desenvolvimento foi resultado de um planejamento semanal em equipe. Cada profissional, em sua área de atuação, colaborou para a construção de um currículo de ensino estruturado, individualizado e diversificado.

Após a construção do currículo e a elaboração dos programas de ensino, as respostas da criança-alvo foram registradas e analisadas semanalmente pela equipe interdisciplinar. Quando a criança-alvo atingia o critério de aprendizagem, a equipe elaborava novos programas que eram introduzidos no currículo. Quando os registros da criança-alvo demonstravam que ela estava demorando para atingir o critério de aprendizagem, o que significou três sessões consecutivas de desempenho nulo ou inferior a 30% de acertos, a equipe analisava quais fatores poderiam estar contribuindo para a não aquisição do comportamento ensinado e realizava os ajustes necessários no programa de ensino. A dinâmica da análise semanal do currículo e das respostas da criança permitiu um ensino mais rápido e efetivo.

Além dos benefícios para o aprendizado e desenvolvimento da criança, as reuniões de equipe possibilitaram aos profissionais aprimoramento das habilidades técnicas, teóricas e de intervenção, o que aumentou a efetividade da elaboração dos programas de ensino. Nas reuniões semanais, também foram elaborados os programas de ensino que seriam aplicados pelos familiares da criança-alvo. Os programas selecionados visaram à manutenção e generalização das habilidades aprendidas, além do fortalecimento do vínculo familiares-criança. Os familiares foram orientados e formados para a aplicação dos programas de ensino durante as sessões de intervenção da criança e entregavam, semanalmente, à equipe interdisciplinar as respostas dos programas aplicados por eles. Essas respostas também eram analisadas na reunião semanal da equipe.

A organização e atuação de uma equipe no modelo interdisciplinar favorecem o trabalho colaborativo intensivo (Curtis et al., 2006), com o propósito de valorizar as diferentes experiências plurais de cada profissional. Comumente, uma equipe multidisciplinar organiza seu trabalho de maneira que valoriza a área de atuação do profissional e a área de aplicação do currículo, o que significa que geralmente a fonoaudióloga se torna responsável pelo programa de linguagem, a terapeuta ocupacional pelo programa motor e de autocuidados, a psicóloga pelo programa de habilidades socais e a pedagoga pelas tarefas cognitivas, sobretudo acadêmicas. Essa lógica na equipe interdisciplinar pode ser superada, uma vez que, independentemente da formação profissional que cada integrante da equipe apresenta, ele pode contribuir e aplicar programas de ensino que envolvem tarefas de diferentes áreas do desenvolvimento, a despeito daquela específica de sua área de atuação. Tal atuação interdisciplinar pode ser considerada como uma prática cultural que envolve um conjunto de contingências comportamentais entrelaçadas (Glenn, 1988).

Exemplos disso envolvem o comportamento dos profissionais que programam o currículo de ensino, o comportamento da criança que responde aos programas de ensino, o comportamento dos pais de garantir condições em suas residências para continuidade do ensino, em situação natural e tantos outros comportamentos promissores que determinam a aprendizagem da criança-alvo do estudo. Dessa maneira, é possível entender o comportamento de cada agente educacional nesse contexto, mantido por contingências individuais, que somadas umas às outras constituem a prática cultural mencionada por Glenn (1988) (Martone & Todorov, 2007; Naves & Vasconcelos, 2008).

Desse modo, podem-se compreender as contingências entrelaçadas presentes na aplicação do estudo de caso, desde o comportamento dos profissionais da equipe interdisciplinar na programação do currículo de ensino, de avaliação e dos critérios de aprendizagem; o comportamento do profissional e dos pais durante aplicação das sessões; até o comportamento da criança para realizar as sessões, conforme ilustrado na Figura 3.2.

 

 

Espera-se que a inserção dos familiares tenha sido valiosa do ponto de vista aplicado para ambos, profissionais e criança. De maneira geral, os pais aplicaram as atividades propostas na residência deles e apresentavam semanalmente suas dúvidas sobre a maneira correta para aplicação do currículo e, principalmente, sobre a escolha do reforçador adequado durante a realização das tarefas. Nesse contexto, é possível corroborar os dados da literatura sobre a importância de criar condições de ensino, em situação natural, envolvendo os pais das crianças com TEA (Gomes et al., 2017; Guimarães et al., 2018).

O modelo de intervenção interdisciplinar, delineado conforme os princípios analítico-comportamentais, possibilitou a elaboração e aplicação de um currículo de ensino mais efetivo à criança com TEA, assim como o aperfeiçoamento técnico e teórico dos profissionais que compunham a equipe, de modo a criar condições para o envolvimento dos pais, criando oportunidades para garantir a generalização da aprendizagem.

 

4. Conclusões

O presente trabalho como relato de experiência profissional teve como finalidade descrever um estudo de caso interdisciplinar delineado nos princípios analítico-comportamentais, a partir de uma intervenção aplicada em uma criança com TEA. De maneira geral, os dados apresentados na Tabela 3.1 ilustraram uma possibilidade de construção conjunta do currículo de ensino da criança-alvo do estudo entre diferentes profissionais das áreas de psicologia, pedagogia, terapia ocupacional e fonoaudiologia, tendo como eixo transversal da equipe os conhecimentos em Análise do Comportamento. Além da programação do currículo, a partir da aplicação de duas avaliações, a análise dos dados, a construção e aplicação do currículo e a análise semanal dos dados criaram condições para uma atuação interdisciplinar dos profissionais em parceria com os pais da criança com TEA, como multiplicadores do ensino, em situação natural. A lógica de organização do estudo de caso pode ser discutida à luz das contingências comportamentais entrelaçadas como prática cultural (Glenn, 1988; Martone & Todorov, 2007; Naves & Vasconcelos, 2008).

Outro ponto a ser destacado refere-se à formação em Análise do Comportamento dos diferentes profissionais envolvidos nesse processo. A Análise do Comportamento como uma ciência do comportamento (Cooper et al., 2007) transversal perpassa os diferentes campos de atuação profissional, seguindo os mesmos princípios do comportamento.

As tomadas de decisões referentes à organização e aplicação do currículo de ensino tiveram como ponto de partida a análise dos operantes verbais, entendendo a imitação como comportamento de ordem superior (Catania, 1999), que serve como base para a aprendizagem de outros operantes mais complexos. Assim, foi possível programar um currículo em pequenos passos, respeitando o ritmo individual de aprendizagem da criança com TEA.

Certas limitações e sugestões para estudos futuros podem ser identificadas, tais como a ampliação do número de crianças com TEA a serem atendidas pelos profissionais, o envolvimento de outros profissionais, como educadores especiais, fisioterapeutas e médicos, a comparação do desempenho dos profissionais envolvidos em uma perspectiva multidisciplinar e interdisciplinar, a sistematização dos resultados de aprendizagem no local em que os profissionais atuam, assim como na residência, a avaliação do comportamento de cada profissional, para garantir uma aplicação mais padronizada e consistente ao longo da implementação da intervenção, entre outros pontos.

Espera-se que a reflexão proposta sobre a organização de uma intervenção interdisciplinar para atendimento de crianças com TEA possa criar condições para envolvimento de outros agentes educacionais, além dos pais e profissionais da equipe, de modo a atingir os diferentes espaços de ocupação da criança, como escola, parque, entre outros. O trabalho conjunto e entrelaçado gerou reflexões, ainda que embrionárias, sobre a preocupação da atuação interdisciplinar de profissionais, assim como a elaboração, aplicação e análise de um currículo de ensino, delineado de acordo com os princípios analítico-comportamentais, para uma criança com TEA, a partir do envolvimento dos seus pais na residência deles.

 

Referências

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Correspondência:
Priscila Benitez
Rua Fuad Jorge Goraieb, 256, Jardim Pinheiros
São José do Rio Preto, SP, Brasil. CEP 15091-340
E-mail: pribenitez@yahoo.com.br

Submissão: 28/08/2018
Aceite: 16/07/2019

Nota dos autores
Priscila Benitez, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Isis Albuquerque, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Nathalia V. Manoni, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); Ana Flávia Ribeiro, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade de Franca (Unifran); Ricardo M. Bondioli, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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