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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.22 no.2 São Paulo May/Aug. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v22n2p39-59 

ARTIGOS
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

 

Tradução, adaptação e evidências de validade de conteúdo do Schema Mode Inventory

 

 

Fabíola R. MatosI; Joaquim Carlos RossiniII; Renata F. F. LopesII; Jodi Dee H. F. do AmaralII

IUniversidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Vitória, ES, Brasil
IIUniversidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A validade de conteúdo representa a extensão com que cada item de um instrumento comprova o fenômeno de interesse e sua dimensão dentro daquilo que se propõe a investigar. Os objetivos desta pesquisa foram realizar a tradução e apresentar as evidências de validade de conteúdo do instrumento Schema Mode Inventory - versão reduzida, iniciando assim sua adaptação cultural. Para isso, participaram oito especialistas da área da Terapia do Esquema, que responderam a dois instrumentos: um que investiga o Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC) e outro que realiza a Análise de Concordância Kappa. Os resultados indicaram que, considerando o viés semântico, grande parte do instrumento mede o que sugere medir, possuindo então evidências de validade de conteúdo para o contexto brasileiro (CVC: de 0,56 a 0,99; Kappa médio geral: 0,74).

Palavras-chave: medidas; psicometria; Terapia Cognitiva; Terapia do Esquema; Schema Mode Inventory.


 

 

1. Introdução

Instrumentos subsidiados teoricamente e respaldados por evidências empíricas são indispensáveis no processo de avaliação psicológica quando esta envolve testes, escalas, inventários ou questionários (Gonçalves, Oliveira, & Silva, 2018). A elaboração de instrumentos de medidas auxilia no fornecimento e na operacionalização de domínios psicológicos e, consequentemente, na testagem de hipóteses e teorias (Freires, Silva, Monteiro, Loureto, & Gouveia, 2017; Primi, 2010). Nesse mesmo contexto, focalizar parâmetros psicométricos das medidas psicológicas é de extrema relevância, visto que tornam um instrumento confiável, expondo suas evidências de validade e precisão (Hutz, Bandeira, & Trentini, 2015; Lerman & Haythornthwaite, 2018).

As escalas e os testes que são oriundos de outras culturas frequentemente têm como base conceitos, normas, expectativas e formatos presentes nos países de origem (Cassepp-Borges, Balbinotti, & Teodoro, 2010; Coster & Mancini, 2015). Para a adaptação de instrumentos psicológicos de uma cultura para outra, é necessário haver técnicas específicas de procedimentos de tradução e evidências de validade de conteúdo (Cassepp-Borges et al., 2010).

A validade de conteúdo representa a extensão com que cada item da medida comprova o fenômeno de interesse e a dimensão dentro daquilo que se propõe a investigar (Medeiros et al., 2015). Tal validação ocorre na adaptação de um instrumento de outra origem linguística e cultural, e é composta pelas etapas de tradução, tradução reversa, análises de especialistas (juízes) e posteriores análises de concordância (Borsa, Damásio, & Bandeira, 2012; Cassepp-Borges et al., 2010; Pernambuco, Espelt, Magalhães, & Lima, 2017).

A tradução deve ser realizada por tradutores bilíngues e a tradução reversa por tradutores nativos do idioma-origem, e ambas precisam passar por sínteses e revisões (Pernambuco et al., 2017). Já a análise de juízes visa investigar a clareza, a representatividade e a relevância dos itens, sendo baseada no julgamento realizado por um grupo de especialistas experientes na área. Caberá a esse tipo de análise verificar se o conteúdo está correto e adequado ao que se propõe (Cassepp-Borges et al., 2010; Medeiros et al., 2015).

Uma das maneiras de se analisar a concordância dos especialistas é pelo Coeficiente de Validade de Conteúdo (CVC), proposto por Hernández-Nieto (2002). Esse coeficiente é calculado com base na avaliação dos juízes-avaliadores quanto às seguintes categorias: clareza de linguagem, que consiste na análise da linguagem utilizada nos itens, tendo em vista as características da população respondente; pertinência prática, que tem como objetivo avaliar se o item de fato é importante para o instrumento; e relevância teórica, que se trata da análise da associação entre o item e a teoria (Cassepp-Borges et al., 2010).

No que concerne à avaliação da dimensão teórica, que consiste no estudo da adequação de cada item à teoria correspondente, e também no intuito de afirmar que a caracterização de um construto é confiável ou não, utiliza-se a Análise de Concordância Kappa (Siegel & Castellan, 1988). O objetivo nessa etapa é descrever a intensidade de concordância interobservador (entre dois ou mais juízes), medindo então o grau de concordância, além do que seria esperado tão somente pelo acaso (Siegel & Castellan, 1988).

De modo geral, a obtenção de evidências de validade de conteúdo tende a refinar de forma significativa o instrumento em análise, visto que permite uma maior compreensão, clareza dos termos utilizados no instrumento e identificação dos pontos fortes e fracos de um questionário (Cassepp-Borges et al., 2010). O presente estudo teve como objetivos realizar a tradução e investigar as evidências de validade de conteúdo do instrumento Schema Mode Inventory - versão reduzida (SMI), proposto por Lobbestael, Van Vreeswijk, Spinhoven, Schouten e Arntz (2010). O SMI avalia Modos de Esquema, que se caracterizam como estados do self que o indivíduo apresenta momento a momento, que refletem operações de esquemas iniciais adaptados ou desadaptados (Young, Klosko, & Weishaar, 2008).

Os modos de esquema referem-se ao estilo global de funcionamento do indivíduo em situações específicas de ativação emocional, que incluem sentimentos, pensamentos, formas de enfrentamento saudáveis ou não, que são experimentados em uma determinada situação da vida (Wainer & Wainer, 2016). Frequentemente, esses modos são ativados pelo ambiente em situações cotidianas e influenciam a forma de pensar, sentir e agir da pessoa (Young et al., 2008).

Young et al. (2008) indicam a existência de dez modos de esquema: quatro modos criança (feliz, zangada, impulsiva e vulnerável), três modos de enfrentamento desadaptados (protetor desligado, autoengrandecedor e capitulador complacente), dois modos pais (exigente e punitivo) e o modo adulto saudável. Por sua vez, Lobbestael et al. (2010) acrescentaram a essa lista, para compor o SMI, os seguintes modos: criança indisciplinada, criança enfurecida, protetor autoaliviador e provocativo e ataque. Na prática clínica, o psicólogo identifica e nomeia os modos, explora as origens, relaciona-os aos problemas atuais e demonstra as vantagens de modificar algum modo (Wainer & Wainer, 2016). O profissional observa a dinâmica dos modos de esquema específica para cada paciente. Tais modos precisam ser avaliados, e o paciente deve ser psicoeducado em relação a essa dinâmica, ressaltando então a importância do uso de um instrumento para auxiliar nessa identificação (Lopes, 2015; Wainer & Wainer, 2016). Assim, a proposta deste artigo é realizar a tradução e investigar as evidências de validade de conteúdo do SMI visando colaborar para a adaptação do instrumento que favorecerá a prática clínica do terapeuta do Esquema.

 

2. Método

2.1 Participantes

Conforme Borsa e Seize (2017), para indicar as evidências de validade baseadas no conteúdo, é necessário que especialistas realizem uma revisão dos itens do instrumento de interesse. Dessa maneira, o convite de participação da pesquisa foi enviado para uma amostra não probabilística de 20 psicólogos especialistas na área de Terapia do Esquema. Todos atuavam na área clínica utilizando essa abordagem teórica e possuíam mestrado acadêmico. A escolha dos participantes ocorreu conforme avaliação do Currículo Lattes e pela técnica "bola de neve" (especialistas indicando outros especialistas).

Conforme Cassepp-Borges et al. (2010), para a realização da análise de juízes, o ideal seria a participação de no mínimo três e no máximo cinco especialistas. Para favorecer a manutenção da quantidade sugerida, o convite foi enviado a 20 participantes, sendo metade destinada a cada um dos instrumentos. Em relação ao primeiro instrumento, de verificação do CVC, cinco participantes responderam ao formulário. No que se refere à Análise de Concordância Kappa, três enviaram suas respostas. Dessa forma, um total de oito especialistas participaram desta pesquisa.

2.2 Instrumento

O SMI (Lobbestael et al., 2010) possui 118 itens que são julgados em uma escala do tipo Likert de 1 (nunca ou quase nunca) a 6 (sempre), representando 14 modos de esquema (fatores). É considerado uma medida válida para avaliação de modos de esquema, apresentando consistência interna adequada em todos os fatores (α = de 0,79 a 0,96) (Lobbestael et al., 2010). Assim, utilizando como base os itens do instrumento supracitado, foram elaborados dois instrumentos para a análise de juízes: um para averiguar o CVC e outro para avaliar a dimensionalidade conforme o cálculo da Análise de Concordância Kappa. No primeiro instrumento, os itens foram agrupados de acordo com o modo de esquema que representam no instrumento original, visando à melhor organização e visualização para análise. Havia uma descrição sobre o modo de esquema e em seguida todos os itens relacionados a ele. As categorias de clareza de linguagem, pertinência prática e relevância teórica foram avaliadas por uma escala do tipo Likert de 1 (pouquíssima) a 5 (muitíssima), havendo também um espaço para observações e sugestões sobre cada item do questionário. Os itens considerados adequados são aqueles que possuem valor acima de 0,8 do índice CVC (Cassepp-Borges et al., 2010). O segundo instrumento, que visava ao cálculo Kappa, era composto pela apresentação dos itens conforme aparecem no instrumento original, e a tarefa do especialista era escolher qual modo cada item representava. Para a Análise de Concordância Kappa, apenas os itens com resultado acima de 0,40 possuem concordância adequada (Landis & Koch, 1977).

2.3 Procedimentos

Após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Uberlândia, CAAE: 69612717.3.0000.5152, foi realizado o contato por e-mail com uma das autoras da versão de interesse do SMI, Jill Lobbestael, obtendo-se a anuência dela para a tradução do instrumento para a língua portuguesa.

Dessa forma, o SMI foi traduzido da língua inglesa para a portuguesa por dois tradutores bilíngues, a fim de minimizar possíveis vieses linguísticos, culturais e de compreensão (Borsa et al., 2012). Nessa etapa de tradução, apenas dois itens (28 e 92) precisaram ser reavaliados quanto à versão em português, visto que houve discordância entre os tradutores. Assim, um terceiro tradutor bilíngue se reuniu com os dois primeiros e chegaram à concordância dos itens específicos (sendo a versão final: 28 - "Eu posso resolver problemas de uma maneira racional, sem deixar que minhas emoções me dominem"; 92 - "Eu sinto que sou ouvido, compreendido e valorizado"). Por fim, realizou-se uma síntese das versões, e posteriormente uma tradução reversa foi efetuada por uma nativa da língua inglesa proficiente na língua portuguesa.

Após as correções, obteve-se uma versão única, que foi utilizada para a análise de juízes realizada por meio da plataforma de formulários do Google Docs.

A seguinte ordem de apresentação foi utilizada para os dois instrumentos: 1. descrição sobre a pesquisa, os objetivos e as instruções; 2. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); 3. Descrição de cada modo de esquema e seus respectivos itens a serem julgados ou a apresentação do item com as opções dos modos de esquema a serem escolhidos pelo juiz.

O convite para participação da pesquisa foi enviado aos especialistas, e, após aceitação, disponibilizou-se o acesso do formulário para análise. Este só poderia ser acessado após a anuência do participante ao TCLE. Todos os campos pertencentes ao instrumento eram obrigatórios, e o sigilo dos participantes foi mantido.

 

3. Resultados

Após a coleta das respostas dos juízes, organizaram-se os dados em planilhas, e a análise foi iniciada por meio da realização do cálculo do CVC, o qual segue cinco etapas: obtêm-se as médias das notas dos juízes; dividem-se as médias pelo valor máximo que a questão poderia receber; calcula-se o erro; divide-se o valor 1 pelo número de juízes avaliadores, elevado pelo mesmo número de avaliadores; e subtrai-se a média do cálculo obtido pela média do erro (Cassep-Borges et al., 2010). Depois da aplicação do cálculo, consideram-se aceitáveis os itens que apresentarem um CVC geral acima de 0,80 (Cassep-Borges et al., 2010).

A Tabela 3.1 apresenta os escores obtidos do CVC final para cada modo de esquema. Dessa maneira, o resultado da Tabela 3.1 refere-se às características avaliadas de clareza de linguagem, pertinência prática e relevância teórica do conjunto de itens de cada modo de esquema.

 

 

Quando se analisam, de maneira isolada, os 118 itens, constata-se que apenas seis apresentaram valores inferiores a 0,80, sendo o menor valor obtido no item "89 - Sou invulnerável" (0,56), pertencente ao modo provocativo e ataque. Outro item desse mesmo modo também obteve valor insuficiente: "1 - Imponho respeito por não permitir que outra pessoa me intimide" (0,77). Os demais itens que apresentaram valor de CVC insatisfatório pertencem aos modos criança impulsiva: "62 - Eu desobedeço às regras e me arrependo depois" (0,77); protetor desligado: "84 - Eu me sinto sem graça" (0,67); e criança indisciplinada: "61 - Eu não me forço a fazer coisas desagradáveis, mesmo sabendo que é para meu próprio bem" (0,79) e "66 - Eu fico entediado(a) facilmente e perco o interesse pelas coisas" (0,77).

No que concerne à Análise de Concordância Kappa, foram obtidos os resultados apresentados na Tabela 3.2.

 

 

A análise dessa etapa da pesquisa se deu também com base nos itens agrupados em seus respectivos modos de esquema. Os cálculos foram realizados por meio do aplicativo Online Kappa Calculator, que verifica a razão da proporção de vezes em que os especialistas concordam com a pertença do item a um construto com a proporção máximo de vezes que poderiam concordar, realizando também a correção da concordância ao acaso (Siegel & Castellan, 1988). Landis e Koch (1977) apresentam a seguinte classificação para análise Kappa: (<0) não há concordância; (0,01-0,19) concordância pobre; (0,20 a 0,39) concordância fraca; (0,40 a 0,59) concordância moderada; (0,60 a 0,79) concordância forte; (0,80 a 1,00) concordância quase perfeita. Quanto mais próximo de 1, mais satisfatório é o resultado. Assim, são considerados apenas os resultados acima de 0,40 (Landis & Koch, 1977).

Os modos criança impulsiva e protetor autoaliviador apresentaram total concordância entre os juízes, indicando que, para os especialistas, todos os itens são condizentes com o conteúdo de cada modo em questão. É também perceptível que outros quatro modos apresentaram ótimos resultados com uma concordância quase perfeita (de 0,80 a 1,00): capitulador complacente (0,85), protetor desligado (0,84), provocativo e ataque (0,84) e pai/mãe Exigente (0,90). As categorias que apresentaram concordância forte (de 0,60 a 0,79) foram as predominantes, com seis modos: criança vulnerável (0,71), criança indisciplinada (0,71), criança enfurecida (0,60), criança feliz (0,64), autoengrandecedor (0,78) e pai/mãe punitivo (0,61). No que se refere ao modo adulto saudável, houve concordância moderada, pois obteve como resultado da análise o valor de 0,53. Por fim, o modo com menor concordância entre os juízes, sendo considerada uma concordância fraca, foi criança zangada (0,35). Assim sendo, em se tratando do instrumento como um todo, o Kappa médio geral de 0,74 indica uma concordância forte dos especialistas quanto à caracterização do instrumento e ao que este julga avaliar.

 

4. Discussão

Os objetivos deste trabalho foram realizar a tradução e investigar as evidências de validade de conteúdo do instrumento SMI de Lobbestael et al. (2010). Por meio da análise do CVC, buscou-se avaliar os itens quanto à sua clareza de linguagem, pertinência prática e relevância teórica.

A categoria da clareza de linguagem apresentou o maior número de itens com valor insuficiente de CVC. Desses itens, três pertencem ao modo protetor desligado - "32 - Sinto-me isolado(a) (sem conexão comigo mesmo(a), minhas emoções ou outras pessoas"; "37 - Sinto-me distante das outras pessoas"; "60 - Não me sinto conectado(a) a outras pessoas" -, dois ao modo criança feliz - "19 - Sinto-me conectado(a) a outras pessoas"; "46 - Sinto que eu me adapto às outras pessoas" - e um ao modo criança vulnerável - "6 - Sinto-me perdido(a)" -, conforme instrumento original. De acordo com a avaliação e os comentários dos especialistas, o valor insuficiente pode ser associado com a falta de especificidade de cada item, o que traz uma interpretação muito abrangente e gera confusão. A sugestão dada pelos juízes foi realizar a substituição das variações da palavra "conexão" por palavras como "vínculo" ou "contato" ou retirar os itens, visto que há itens mais satisfatórios para a representação dessa dimensão. Assim, optou-se pela supressão desses itens.

A pertinência prática obteve como pontuação insatisfatória dois itens do modo criança zangada - "22 - Se eu não brigar, eu vou ser abusado(a) ou ignorado(a)" e "75 - Eu tenho dificuldade de pedir que parem de me tratar como me tratam" - e um do modo protetor desligado - "84 - Sinto-me chato(a)". Além de não possuírem escores satisfatórios, esses itens causaram questionamentos nos especialistas, que indicaram não haver necessidade da presença deles no instrumento, visto que os modos criança zangada e protetor desligado possuem número de itens suficientes que são mais pertinentes que estes para representá-los.

Ainda conforme os resultados obtidos pelo cálculo do CVC final de cada item, nota-se que três itens (45, 75 e 84) obtiveram coeficientes não satisfatórios na categoria de relevância teórica. Assim, o item "45 - Sinto-me furioso(a) em relação às outras pessoas", que pertence ao modo criança zangada no instrumento original, não apresentou relação de importância nessa versão brasileira aqui apresentada, sendo um dos motivos, conforme avaliação dos especialistas, o fato de que pode ser confundido facilmente com o modo criança enfurecida. Os dois modos dizem respeito à irritação que o indivíduo manifesta, havendo expressão verbal e física de raiva, porém o modo criança enfurecida é composto por itens que indicam comportamentos mais intensos e agressivos (Wainer & Wainer, 2016). Outro item discrepante é "75 - Eu tenho dificuldade de pedir que parem de me tratar como me tratam", pertencente ao modo criança zangada conforme instrumento original. Para os participantes desta pesquisa, esse item é mais representativo do modo capitulador complacente, que diz respeito à submissão ao outro e à obediência, passividade e dependência (Wainer & Wainer, 2016). Por fim, o item "84 - Sinto-me chato(a)", que corresponde ao modo protetor desligado, é, conforme os juízes, um item curto que possui uma ampla interpretação, havendo pouca especificidade e relevância.

Da mesma forma, tendo em vista a importância de verificar se os itens do SMI, traduzidos para o português, são representativos dos modos de esquema conforme estudo de origem, realizou-se a Análise de Concordância Kappa. Os resultados demonstraram bons índices de concordância geral (Kappa médio geral = 0,74). O modo criança zangada foi o único que apresentou uma concordância fraca (0,35) entre os juízes. É possível que isso tenha ocorrido pela similaridade entre esse modo e os modos criança enfurecida e provocativo e ataque, visto que possuem características equivalentes, como impaciência, agressividade e sentimentos de raiva (Wainer & Wainer, 2016).

A avaliação dos especialistas também colaborou para a análise de itens que foram divergentes quanto aos resultados da análise fatorial confirmatória apresentados pelo instrumento original e pela análise semântica aqui efetuada. Por exemplo, no item "50 - A igualdade não existe, por isso é melhor ser superior a outras pessoas", os especialistas identificaram essa afirmação como representativa do modo autoengrandecedor, enquanto o SMI indica que ele representa o modo provocativo e ataque. Outro exemplo são os itens "77 - Sou muito crítico(a) com outras pessoas" e "87 - Sou exigente com outras pessoas", que foram julgados como modo pai/mãe exigente pelos especialistas, contudo, de acordo com os resultados originais, pertencem ao modo autoengrandecedor. É possível que os juízes tenham tomado de forma autorreferenciada (eu sou) os termos crítico e exigente, o que levou à discrepância desses itens em relação ao estudo original. O modo autoengrandecedor implica tomar o outro como ponto de referência e compreendê-lo como inferior, por isso digno de crítica e exigências (Lobbestael et al., 2010).

É necessário ressaltar que os itens 75 e 84 apresentaram pontuação insatisfatória em duas categorias simultaneamente (pertinência prática e relevância teórica), indicando que a presença deles no instrumento brasileiro deve ser reavaliada. Enfatiza-se a importância de explorar a necessidade da presença desses itens no instrumento, especialmente daqueles que não atingiram o escore mínimo na categoria de clareza de linguagem. De modo geral, observa-se que o SMI evidencia uma boa validade de conteúdo para o contexto brasileiro. Os resultados indicam que grande parte do instrumento mede o que sugere medir, considerando a variável viés de conteúdo.

A utilização do CVC para a análise semântica também demonstrou bons resultados em outros estudos recentes (Silveira et al., 2018), assim como a sua utilização na análise Kappa (Almeida-Brasil et al., 2016). Dessa forma, os resultados deste artigo fornecem subsídio para que uma versão adaptada ao contexto brasileiro seja efetuada, além de reafirmar a importância da realização de análises de validade de conteúdo ao se adaptar um instrumento para outro país.

Apesar dos resultados citados, é importante pontuar limitações a serem consideradas neste estudo. Sabe-se que as análises dos juízes foram realizadas por meio da internet. Esse contexto pode proporcionar vantagens, como abranger um número maior de participantes e possibilitar maior rapidez nas respostas. Porém, não é possível controlar variáveis como distração dos participantes em outras atividades e cansaço (como o instrumento possui muitos itens, requer maior tempo para análise). Embora existam tais limitações, este trabalho colabora para a adaptação transcultural de um instrumento de grande importância para a área da Terapia do Esquema. Recomenda-se a continuação de uma agenda de pesquisa em torno do SMI que envolva a realização de estudos que abarquem análises fatoriais exploratórias e confirmatórias, além da verificação de evidências convergentes e divergentes do instrumento. Tais esforços visam tornar o SMI um instrumento apto para aplicação no contexto clínico e de pesquisa, estando apropriado para uso e fortalecendo a Terapia do Esquema como campo teórico e prático.

 

Referências

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Correspondência:
Fabíola Rodrigues Matos
Avenida Fernando Ferrari, 514, Bairro Goiabeiras
Vitória, ES, Brasil. CEP 29060-970
E-mail: fabiolarmatos@yahoo.com.br

Submissão: 30/09/2018
Aceite: 23/10/2019

Nota dos autores
Fabíola R. Matos, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); Joaquim Carlos Rossini, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Renata F. F. Lopes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Jodi Dee H. F. do Amaral, Programa de Residência Multiprofissional em Saúde, Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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