SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 número2Revisão teórico-integrativa na atualização sobre vocalização ultrassônica em animais: correlação com o modelo de transtorno do espectro autista?Percepção de trabalhadores acerca de inibidores e propulsores do desenvolvimento profissional índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.22 no.2 São Paulo maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v22n2p83-104 

ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL

 

Representações sociais sobre um antigo hospital colônia: um estudo com seus moradores

 

 

Ádilo L. V. Passos; Ludgleydson F. de Araújo

Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), Parnaíba, PI, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou analisar as representações sociais de moradores de um hospital colônia (HC), do Nordeste brasileiro, sobre a própria instituição. Participaram 16 moradores, com idade entre 48 e 85 anos (M = 67,0 anos; DP = 9,7). Na coleta de dados, utilizaram-se um questionário sociodemográfico e entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram analisadas pelo método da Classificação Hierárquica Descendente. Os resultados indicaram a centralidade da função justificadora das representações sociais, evidenciando explicações para a permanência na colônia, já que todos os moradores estão curados da hanseníase. Assim, para alguns residentes, viver no HC se deve à falta de recursos materiais. Para outros, permanecer no local decorre do apego à instituição. Portanto, embora o HC tenha servido de abrigo para os doentes e tenha possibilitado seus "cuidados", essa instituição também contribuiu para a construção de representações negativas sobre essas pessoas e não forneceu subsídios suficientes para reinseri-las na sociedade.

Palavras-chave: representações sociais; hanseníase; lepra; hospital colônia; isolamento.


 

 

1. Introdução

A hanseníase pode ser configurada como uma doença infectocontagiosa, de evolução crônica, que se manifesta por meio de lesões cutâneas com importante redução da sensibilidade dolorosa, tátil e térmica (Ministério da Saúde, 2014). Vale mencionar que há cura para a doença, e seu tratamento segue um esquema padrão proposto em 1982 pela Organização Mundial da Saúde - OMS (Awofeso, 2011; Santos et al., 2015).

No entanto, a existência de um tratamento capaz de prover a cura da hanseníase é algo ainda recente. Durante a maior parte da história da humanidade, as pessoas, até então denominadas "leprosas", foram consideradas uma ameaça aos indivíduos saudáveis e, por isso, segregadas e isoladas do convívio em sociedade (Botero-Jaramillo, Padilla-Pinzón, Beltrán-Serrano, & Ossa-Trujillo, 2017). É nesse cenário que surgem os chamados hospitais colônias, instituições que, destinadas ao controle social dos enfermos, tinham a capacidade de atender a todas as necessidades básicas de seus moradores, a fim de evitar qualquer tipo de interferência extramuros (Palmeira, Queiroz, & Ferreira, 2012).

Cabe salientar que na Era Vargas (1931-1945) registrou-se, no Brasil, o ápice das medidas de isolamento compulsório, tendo como base o tripé: dispensário, leprosário e preventório (Castro & Watanabe, 2009). O dispensário era o responsável pelo acompanhamento dos familiares e das pessoas que mantiveram contato com o doente; o leprosário isolava e tratava os doentes; e o preventório abrigava os filhos não contagiados dos hansenianos (Palmeira et al., 2012).

Nesse contexto, obteve centralidade a construção dos leprosários (ou hospitais colônias). Entre várias demandas, tal medida refletia uma resposta do Estado à elite brasileira que, em decorrência da constante publicização científica do caráter contagioso da hanseníase, passou a cobrar ações mais severas para a proteção dos indivíduos saudáveis (Leandro, 2013). Por conta disso, grande parte dos internos das colônias foi levada para o isolamento contra a própria vontade, muitas vezes por meio do uso da força policial.

Com a finalidade de isolar para tratar, construiu-se o hospital colônia (HC) do presente estudo, localizado na Região Nordeste do país, em uma zona afastada da cidade, projetado para abrigar aproximadamente 50 pessoas, possuindo vários pavilhões e instituições, como prefeitura, delegacia e pensões (Lima & Santos, 2014). Vale ressaltar que a localização geográfica e a forma de organização do HC materializavam um isolamento efetivo, o que muito colaborou para que a população local elaborasse representações negativas acerca dessa instituição e de seus moradores.

Por conta da segregação efetiva e, consequentemente, do rompimento e/ou da fragilização dos laços familiares e comunitários, muitos dos antigos internos dos HCs, embora tenham recebido alta por cura, permaneceram asilados (Castro & Watanabe, 2009; Souza & Sena, 2014). Situação também vivenciada pelos participantes da presente investigação.

Um estudo prévio que objetivou identificar o perfil socioeconômico dos moradores remanescentes do HC em questão revelou a existência, à época, de 30 pessoas na instituição (Vilela & Rocha, 2011). Por meio desses achados, constatou-se que 70% tinham entre 51 e 70 anos, 60% eram do sexo masculino, 50% apresentavam sequelas da hanseníase, 60% não conseguiam ler e escrever, e a ocupação profissional de 45% dos moradores, antes do asilamento, era a de agricultor.

Esses dados fornecem subsídios para a compreensão das dificuldades concernentes à reinserção social dos moradores do HC, mesmo após a cura da hanseníase. Assim, percebe-se que esses residentes apresentavam vulnerabilidades relacionadas à idade já avançada, à baixa escolaridade e à ocupação profissional associada ao trabalho físico, uma vez que a doença, até bem pouco tempo atrás, causava graves danos à condição física.

Embora sejam relevantes os fatores individuais que dificultam o processo de reinserção social, também é importante destacar o papel do Estado na invisibilização e no esquecimento desse público, que demanda recursos, políticas públicas e infraestrutura governamental para se desligar do hospital. Nesse âmbito, ressalta-se que, atualmente, o HC ainda conta com 22 moradores em suas respectivas instalações, não apresentando nenhuma estratégia de ressocialização para os asilados.

Levando em consideração o passado da hanseníase associado à lepra, à mutilação, ao sofrimento e ao isolamento social, não é raro encontrar na literatura estudos, principalmente memorialísticos, que tiveram como participantes moradores de antigos HCs (Carvalho, 2009; Botero-Jaramillo et al., 2017; Castro & Watanabe, 2009). Nesses trabalhos, ao contrário do que se poderia supor, geralmente os ex-internos tendem a representar a colônia como o lugar onde puderam reconstruir suas vidas, e o "ressentimento" que sentem não é direcionado à colônia, mas à sociedade "sadia" que os excluiu (Carvalho, 2009; Maciel, 2017; Rocha, Landim, Caprara, Lefèvre, & Lefèvre, 2011).

Apesar da relevância dos estudos apontados, salienta-se que tais investigações estão mais centradas em representações individuais e/ou em questões históricas. Nesse sentido, é para ampliar o escopo de análise nesse tipo de pesquisa, bem como para compreender as concepções dos moradores de um HC ainda não investigado por uma abordagem psicossocial, que este trabalho adota a perspectiva da Teoria das Representações Sociais (TRS).

Com relação às representações sociais (RS), é válido destacar que são estruturas dinâmicas construídas socialmente e se manifestam no discurso e nas práticas que orientam as tomadas de decisão cotidianas de sujeitos e grupos nos mais diversos momentos da vida (Moscovici, 2007). No processo de elaboração desses saberes práticos, os atores sociais articulam informações com suas vivências e com os conhecimentos arraigados na cultura (Belfort, Barros, Gouveia, & Santos, 2015).

Logo, estudar as RS significa não somente apreender as cognições, mas principalmente evidenciar as funções que cumprem esses saberes práticos, bem como aclarar o contexto no qual são elaborados (Jodelet, 2001). Sobre as funções das RS, salientam-se quatro: a função do conhecimento torna o mundo inteligível aos indivíduos e facilita a comunicação social; a função identitária lança mão da comparação social para a emergência da identidade e proteção das particularidades grupais; a função de orientação toma a RS como um guia para a ação; e, finalmente, a função justificadora serve para explicar comportamentos adotados perante os outros grupos (Chaves & Silva, 2011).

No que se refere ao processo de criação das RS, compete ressaltar a importância de dois mecanismos sociocognitivos: a ancoragem e a objetivação (Jodelet, 2001). O primeiro se refere ao esforço de tornar o desconhecido algo familiar, sob a forma de conceitos ou ideias, constituindo, assim, as teorias do senso comum. Já o segundo tem como atribuição dar substância às ideias, conferindo-lhes concretude ou estrutura icônica (Chaves & Silva, 2011).

Foi graças ao potencial da TRS para compreender o senso comum, ou seja, a realidade social partilhada no cotidiano, que este estudo buscou analisar as RS de moradores de um HC, do Nordeste brasileiro, relativas à própria instituição.

 

2. Métodos

2.1 Tipo da investigação

Trata-se de um estudo exploratório e descritivo, qualitativo, com dados transversais.

2.2 Participantes

A pesquisa contou com a participação de 16 moradores de um HC, da Região Nordeste do país. A unidade hospitalar foi inaugurada em julho de 1931 por uma sociedade beneficente, tendo sido encampada pelo então governo em 3 de janeiro de 1940.

A idade dos participantes variou de 48 a 85 anos (M = 67,0 anos; DP = 9,7), e todos já se encontravam curados da hanseníase. O tempo de diagnóstico da doença apresentado pelos participantes foi entre quatro e 63 anos (M = 36,42; DP = 17,1); a idade na ocasião da internação no HC variou de 13 a 66 anos (M = 37,56 anos e DP = 16,20). O detalhe é que o morador mais recente vive na instituição há dois anos, e o mais antigo, há 56 anos (M = 28,9 anos; DP = 17,8). Os dados sociodemográficos podem ser verificados na Tabela 2.2.1.

 

 

2.3 Instrumentos

Para a coleta de dados, utilizaram-se dois instrumentos. O primeiro foi um questionário sociodemográfico para a caracterização dos participantes, com a finalidade de obter informações sobre idade, sexo, estado civil, escolaridade, renda, época do diagnóstico, ano em que foi morar no HC e diagnóstico de cura.

O segundo foi uma entrevista semiestruturada, para compreender as percepções dos participantes sobre o HC, com a seguinte questão norteadora: "O que o(a) senhor(a) pensa sobre o HC?".

2.4 Procedimentos éticos e de coleta de dados

A presente pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí (Ufpi): Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) n. 69177017.3.0000.5669 e Parecer n. 2.311.177. Após aprovação pelo CEP, o pesquisador contatou o HC, a fim de solicitar a autorização para realizar a pesquisa no interior da instituição. Em seguida, foi iniciada a coleta de dados, ocasião na qual os participantes foram esclarecidos acerca dos objetivos do estudo e do caráter anônimo e voluntário da participação. Os que concordaram em participar da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), como determinam as resoluções nos 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). A participação na pesquisa levou, em média, 20 minutos.

Os critérios de inclusão da pesquisa contemplaram os participantes que possuíam diagnósticos ou vivenciaram o adoecimento por hanseníase, que moravam no HC havia pelo menos um ano, eram maiores de 18 anos e apresentavam discurso coerente e orientado no tempo e no espaço.

Na época da pesquisa, o HC contava com 22 moradores, dos quais três se recusaram a participar da investigação e outros três não se enquadravam nos critérios de inclusão da pesquisa. Um deles apresentava comprometimento cognitivo, o outro estava na instituição apenas temporariamente, e ainda havia um morador que, a despeito de viver no HC, nunca vivenciou o adoecimento por hanseníase.

2.5 Análise de dados

Os dados sociodemográficos foram analisados a partir das estatísticas descritivas no software SPSS for Windows versão 21, objetivando caracterizar os participantes.

As entrevistas semiestruturadas foram analisadas com o auxílio do software Iramuteq. Realizou-se uma Classificação Hierárquica Descendente (CHD), análise que permite a obtenção de classes lexicais, caracterizadas por vocábulos específicos e pelos segmentos de texto (ST) que possuem esses vocábulos em comum (Camargo & Justo, 2016).

 

3. Resultados

O corpus geral foi constituído por 16 textos, separados em 177 ST, com aproveitamento de 151 ST (85,31%), satisfazendo o critério mínimo apontado pela literatura, a saber, 75% de aproveitamento do corpus (Camargo & Justo, 2016). Emergiram 5.902 ocorrências (palavras, formas ou vocábulos), sendo 993 palavras distintas e 504 hápax (palavras com uma única ocorrência). Formaram-se seis classes de aproximação semântica, porém, em razão do número de entrevistados, não foi possível estabelecer um perfil de pessoas em cada classe.

A primeira partição do dendograma deu origem a dois subcorpora, separando as classes 2 e 1 das demais. Na segunda divisão, o subcorpus maior foi fragmentado gerando, por um lado, as classes 6 e 5, e, por outro, as classes 4 e 3. A partição do corpus em seis classes pode ser observada na Figura 3.1.

 

 

A classe 2, "Qualidade do relacionamento entre moradores e funcionários no HC", é constituída por 20 ST (13,25% do total), sendo a menor classe do dendograma. Nessa classe, predomina a concepção de que, no HC, as relações interpessoais entre os moradores e os funcionários são baseadas no respeito e na consideração mútuos, como pode ser observado na seguinte fala: "O relacionamento com os funcionários da colônia, tudo pra mim corre tudo bem. Eles são umas boa pessoa, né? Recebe os paciente bem, trata bem todo mundo e a gente trata eles também. Consideração e respeito e eles respeita a gente".

A classe 1, "A vida no HC", compreende 15,23% (f = 23 ST). As palavras que melhor se relacionam a essa classe descrevem o HC como um lugar maravilhoso, que supre todas as necessidades de seus moradores e que desperta um sentimento de gratidão. As seguintes falas ilustram essa classe: "Minha vida é maravilhosa, minha vida é tranquila, um mar de rosas. A colônia aqui é muito boa"; "Não tenho o que me queixar. É agradecer a Deus que tem tudo para mim, que não falta nada, graças a Deus".

As classes 6 (f = 28 ST - 18,54%) e 5 (f = 26 ST - 17,22%), nomeadas como "Razões para morar no HC", evidenciam que as razões para a permanência no HC, mesmo após o diagnóstico de cura da hanseníase, decorrem de necessidade, haja vista a inexistência de outro lugar para morar, ou de opção pessoal. Vale ressaltar que, embora alguns mencionem possuir família, morar com os familiares parece não ser possível.

As falas mais características dessas classes são: "O motivo de eu morar aqui é porque, é o seguinte, eu me sinto bem. Não tenho casa, não sou casado, mas só que minha família toda me considera bastante, graças a Deus"; "Eu não posso morar sozinho"; "Porque a gente aqui não tem mais outro lugar pra ir não, rapaz. Se eu pudesse sair daqui pra mim morar noutro lugar, eu já tinha saído, mas não posso. Tenho que ficar aqui"; "Rapaz, eu sinto, mas meu desejo é ficar aqui ateeé... Só sair se fechar ou então morrer".

A classe 4 é composta por 26 ST (17,22% do total). Intitulada "Relacionamento interpessoal entre os moradores do HC", observa-se que os discursos dessa classe destacam as brigas e o hábito de falar mal dos outros como as principais ameaças para a boa convivência. Isso pode ser constatado nas seguintes falas: "Não adianta fazer a desunião, briga, porque briga não vai pra frente, só bota pra trás"; "Eu não ando falando da vida de A. Eu cuido só de mim mesmo. Cuido da minha vida e deixo que os outros vivam. Não vou atrapalhar. Se eu puder ajudar, eu ajudo".

A classe 3, "Proteção contra o preconceito", é constituída por 28 ST (18,54% do total). Predomina, nessa classe, a concepção de que morar no HC possibilita uma vida longe do preconceito, pois as relações sociais lá se estabelecem entre pessoas que também foram acometidas pela hanseníase. Os discursos mais representativos dessa classe foram: "Eu me isolava. Não queria conversar com ninguém, mas hoje acho que viver aqui é uma maravilha. Olha essa natureza aqui!"; "Olha, de tudo que é ruim, aqui é o pedacinho do céu. Aqui você tá livre do preconceito porque todos são doente, então aqui ninguém pode falar um do outro".

A partir da observação dos dados obtidos na pesquisa, percebe-se que, de modo geral, as RS do HC evidenciam significados que corroboram os resultados já indicados pela literatura. Desse modo, a seguir serão discutidos os conteúdos lexicais que estruturam as classes do dendograma (Figura 3.1), a fim de compreender as RS do HC elaboradas por seus moradores.

 

4. Discussão

Conforme reportado por outros estudos com moradores de antigos HCs (Maciel, 2017; Rocha et al., 2011), também nesta investigação a vida no interior desse tipo de instituição foi representada de forma positiva. Entre as razões para essa representação, elencaram-se a qualidade do relacionamento estabelecido entre os moradores e os funcionários, e a capacidade do HC de suprir as necessidades de seus residentes.

O relacionamento amistoso entre funcionários e moradores dos HCs pode ser compreendido como uma realidade recente. Ilustrando esse contexto, um estudo apontou que o isolamento em tais instituições era marcado pelo preconceito e pela discriminação, materializados até mesmo em simples atividades do cotidiano, como o não compartilhamento de utensílios domésticos, principalmente entre pacientes e funcionários (Palmeira et al., 2012).

Assim, a melhora na qualidade desse relacionamento pode ser decorrente tanto da abertura dos portões das colônias como do despertar de uma consciência crítica em relação à função dos funcionários e ao modo como eles devem tratar os ex-internos. Com efeito, desde o surgimento do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), em 1981, houve um maior empoderamento das pessoas com hanseníase ou que vivem com suas sequelas, o que favorece a autonomia e o exercício da cidadania (Santos et al., 2015).

Nessa acepção, salienta-se que a fundação do Morhan resultou da presença massiva e impositiva do Estado, tendo em vista que a aversão social causada pela então "lepra" foi legitimada e intensificada, durante um longo período, pela Política de Isolamento Compulsório do extinto Departamento de Profilaxia da Lepra, o DPL (Vieira, 2008).

Também é interessante notar que a mencionada satisfação dos moradores com a estrutura do HC contrasta com o cenário vivenciado pela maioria dos 33 HCs remanescentes do período de isolamento compulsório (Vieira, 2008). De modo geral, essas instituições têm vivenciado diversos problemas, como desassistência a seus moradores, depredações de suas construções e falta de equipamentos e medicamentos para aqueles que precisam de atenção à saúde (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase, 2004).

Cabe esclarecer que, atualmente, o HC conta com uma estrutura organizacional composta por 55 funcionários, distribuídos pelos serviços de saúde, administração e acompanhamento psicossocial. Embora o HC não mais adote o sistema asilar, haja vista a curabilidade da hanseníase, essa instituição tem desempenhado as funções de hospital para a comunidade vizinha e, principalmente, de "abrigo" para os moradores que envelheceram no internamento, à semelhança do que ocorreu em outros HCs (Souza & Sena, 2014).

No entanto, o atual caráter não isolacionista apresenta uma contradição configurada pelo acolhimento de um morador que vive no HC apenas há dois anos (Tabela 2.2.1). Essa situação alerta para que a permanência de moradores remanescentes do sistema asilar não seja utilizada para legitimar o ingresso de novos residentes, haja vista a superação do modelo de tratamento segregacionista e sua incongruência com os princípios de uma sociedade que se pretende democrática.

Outro dado significativo no campo representacional do HC é a centralidade da função justificadora das RS (Chaves & Silva, 2011), a qual se materializa na tentativa de explicar a permanência na colônia, tendo em vista que todos os moradores já estão curados da hanseníase. Nesse âmbito, as concepções dos entrevistados se ancoram, por um lado, numa perspectiva de carência: não possuir casa, cônjuge ou até mesmo saúde para poder morar sozinho. Por outro lado, no bem-estar sentido em viver na colônia, resultado das relações estabelecidas com os demais moradores e da vivência longe do preconceito.

A falta de recursos e de uma rede sociofamiliar que possibilite ao ex-hanseniano construir uma vida longe da colônia é a realidade de grande parte dos remanescentes do isolamento compulsório. Essa situação se justifica, sobretudo, porque a pessoa doente, ao ser recolhida, era impedida de viver com os familiares e amigos, bem como não podia estudar ou trabalhar fora dos limites geográficos da colônia (Rocha et al., 2011).

Um estudo realizado com pessoas que envelheceram institucionalizadas por conta da hanseníase evidenciou que a vida na colônia fez com que esses indivíduos reconstruíssem sua rede de relações sob um novo prisma, pois os valores, as possibilidades e as perspectivas que antes possuíam não se adequavam mais à nova realidade de restrição e reclusão (Souza & Sena, 2014).

Outra face desse modelo de cuidado restritivo e isolacionista se refere ao fato de que muitos dos ex-internos não desejam sair dos HCs. Entre as principais razões subjetivas para a permanência nas instituições, destacam-se: a noção de pertencimento ao local de internação, a indisposição de desfazer os laços sociais construídos no isolamento e a proteção diante do preconceito sofrido fora dos muros da colônia (Maciel, 2017).

Com efeito, um dos principais dificultadores da reinserção social, e até mesmo familiar, é o preconceito. Nesse sentido, os moradores do HC tendem a representar essa instituição como um local livre de preconceitos, haja vista que seus residentes possuem condição semelhante, a saber, o adoecimento e o isolamento por conta da hanseníase.

Contudo, não há como deixar de salientar o caráter ambíguo da função exercida pela colônia, pois, embora tenha servido de abrigo para os doentes e tenha lhes oferecido "cuidados", o hospital também desempenhou importante papel para a construção de RS negativas acerca dessas pessoas, o que se constituiu como sério entrave à reinserção social.

O fato de o preconceito ser representado como exterior à colônia corrobora os resultados de outros estudos (Carvalho, 2009; Maciel, 2017; Rocha et al., 2011). Com base nisso, ressalta-se um achado bastante interessante obtido num estudo com moradores de um antigo HC (Carvalho, 2009), onde foi possível identificar que a identidade dessas pessoas, pelo menos em parte, ancorava-se numa dicotomia expressa pelo binômio colônia versus sociedade. Assim, a colônia representava o espaço de acolhimento, de identificação com um grupo; e a sociedade, o ambiente do qual os hansenianos foram expulsos, pois não eram desejados.

A partir disso, depreende-se que as RS influenciam, diretamente, na construção da identidade. Isso ocorre porque os grupos sociais possuem representações deles mesmos, assim como têm representações da posição que ocupam em relação aos demais grupos, o que contribui para que essas representações desempenhem um papel fundamental no sentimento de identidade, uma vez que é por meio delas que os indivíduos apreendem suas diferenças e semelhanças em relação ao outro (Deschamps & Moliner, 2014).

Desse modo, possuir uma vida marcada pelo adoecimento, isolamento e preconceito decorrentes da hanseníase faz com que os moradores do HC construam suas identidades ancoradas em representações que opõem doentes (moradores) e sadios (sociedade), ainda que essa representação não esteja mais em alinhamento com a realidade, pois todos os moradores do HC já estão curados da hanseníase. Portanto, não são mais doentes.

Destarte, evidenciou-se que as RS do HC entre seus moradores ancoram-se, sobretudo, em aspectos positivos, salientando-se o elevado nível de satisfação pela possibilidade de morar na referida instituição. Apesar disso, também é notório que essa representação não é totalmente homogênea, principalmente no que tange aos motivos para a permanência na colônia.

Recorrendo-se à função justificadora das RS, os participantes evidenciam que as razões para morar no HC, mesmo após a cura da hanseníase, dividem-se entre aquelas de caráter objetivo e as de caráter subjetivo. Entre as primeiras, ressalta-se a perspectiva do ex-hanseniano que não tem recursos materiais e/ou condições físicas para sair do HC, e, por isso, morar nesse local se configura como uma necessidade.

Numa perspectiva oposta, os moradores da instituição evocam justificativas de cunho subjetivo para a permanência no HC. Consoante a isso, a instituição passa a ser representada como o local onde reconstruíram a vida após a internação, com o estabelecimento de relações centradas na identificação e no acolhimento e distantes do preconceito e da discriminação sofridos fora do HC em questão.

De acordo com essa representação, o HC não cumpre mais a função social de segregação e isolamento, mas de abrigar pessoas com idade avançada e incapacidades físicas, que estão negligenciadas pelo Estado. Entretanto, o fato de o HC ainda manter esses residentes não pode ser utilizado como justificativa para o acolhimento de novos moradores ou para a defesa do sistema asilar, haja vista que a hanseníase é uma doença com tratamento e cura consolidados.

Por fim, salienta-se que os resultados desta pesquisa retratam a realidade de um grupo específico e, por isso, não podem ser generalizados. Nesse sentido, sugere-se que sejam empreendidas pesquisas sobre outros HCs, em diferentes regiões do Brasil, e que se enfatizem as RS não somente dos moradores, mas também de seus funcionários e da população vizinha aos hospitais.

Apesar das limitações, percebe-se a relevância deste estudo ao demonstrar que o HC, embora tenha sido representado de modo positivo por seus moradores, ainda representa uma barreira para a ressocialização dos remanescentes do sistema asilar, porque contribui para a construção de representações negativas sobre os residentes e não fornece subsídios suficientes para possibilitar o desligamento do hospital.

 

Referências

Awofeso, N. (2011). Leprosy control, public health paradigms and stigma. Australian and New Zealand Journal of Public Health, 35(1),9-11. doi:10.1111/j.1753-6405.2010.00662.x        [ Links ]

Belfort, P. B., Barros, S. M. M., Gouveia, M. L. A., & Santos, M. F. S. (2015). Representações sociais de família no contexto do acolhimento institucional. Psicologia: Teoria e Prática, 17(3),42-51. Retrieved from http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-36872015000300004&lng=t&tlng=pt        [ Links ]

Botero-Jaramillo, N., Padilla-Pinzón L.T., Beltrán-Serrano M. A., & Ossa-Trujillo R. H. (2017). Tratamiento de la enfermedad de Hansen en Colombia: Medicalización y control de la enfermedad a lo largo del siglo XX. Revista Facultad Nacional de Salud Pública, 35(3),358-368. doi:10.17533/udea.rfnsp.v35n3a06        [ Links ]

Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2016). Tutorial para uso do software de análise textual IRAMUTEC. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição.         [ Links ]

Carvalho, K. A. (2009). Tempo de lembrar: As memórias dos portadores de lepra sobre o isolamento compulsório. Aedos, 2(3),238-255. Retrieved from http://seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/view/10592/6241        [ Links ]

Castro, S. M. S., & Watanabe, H. A. W. (2009). Isolamento compulsório de portadores de hanseníase: Memória de idosos. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 16(2),449-487. doi:10.1590/S0104-59702009000200010        [ Links ]

Chaves, A. M., & Silva, P. L. (2011). Representações sociais. In L. Camino, A. R. R. Torres, M. E. O. Lima, & M. E. Pereira. (Orgs.), Psicologia social: Temas e teorias (pp. 299-350). Brasília: Technopolitik.         [ Links ]

Deschamps, J., & Moliner, P. (2014). O aporte das representações à problemática da identidade. In J. Deschamps & P. Moliner (Orgs.), A identidade em psicologia social: Dos processos identitários às representações sociais (pp. 80-85). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Jodelet, D. (2001). Representações sociais: Um domínio em expansão. In D. Jodelet (Org.), As representações sociais (pp. 17-44). Rio de Janeiro: EdUerj.         [ Links ]

Leandro, J. A. (2013). Em prol do sacrifício do isolamento: Lepra e filantropia na Argentina e no Brasil, 1930-1946. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 20(3),913-938. Retrieved from http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v20n3/0104-5970-hcsm-20-03-0913.pdf        [ Links ]

Lima, M. R., & Santos, D. T. (2014). Memórias da Colônia do Carpina: Entre a "lepra" e o cotidiano. Paper presented at the II Encontro internacional história, memória, oralidade e culturas, Fortaleza, CE. Retrieved from de http://uece.br/eventos/2encontrointernacional/anais/trabalhos.html        [ Links ]

Maciel, L. R. (2017). Memórias e narrativas da lepra/hanseníase: Uma reflexão sobre histórias de vida, experiências do adoecimento e políticas de saúde pública no Brasil do século XX. História Oral, 20(1),33-54. Retrieved from http://revista.historiaoral.org.br/index.php?journal=rho&page=article&op=view&path%5B%5D=696&path%5B%5D=pdf        [ Links ]

Ministério da Saúde (2014). Descrição da doença. Retrieved from http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/705- secretaria-svs/vigilancia-de-a-a-z/hanseniase/11294-descricao-da-doenca        [ Links ]

Moscovici, S. (2007). Representações sociais: Investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (2004). Jornal do Morhan, pp. 4-15.         [ Links ]

Palmeira, I. P., Queiroz, A. B. A., & Ferreira, M. A. (2012). Quando o preconceito marca mais que a doença. Tempus Actas de Saúde Coletiva, 6(3),187-199.         [ Links ]

Rocha, A. C. R. P., Landim, F. L. P., Caprara, A., Lefèvre, A., & Lefèvre, F. (2011). O discurso coletivo de ex-hanseniano morador de um antigo leprosário no Nordeste do Brasil. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 15(36),213-223. doi:10.1590/S1414-32832011000100017        [ Links ]

Santos, K. S., Fortuna, C. M., Santana, F. R., Gonçalves, M. F. C., Marciano, F. M., & Matumoto, S. (2015). Significado da hanseníase para pessoas que viveram o tratamento no período sulfônico e da poliquimioterapia. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 23(4),620-627. doi:10.1590/0104-1169.0323.2596        [ Links ]

Souza, J., & Sena, T. (2014). O envelhecer institucionalizado de sujeitos sequelados pela hanseníase da U/E Abrigo João Paulo II. Kairós, 17(1),103-123. Retrieved from https://revistas.pucsp.br//index.php/kairos/article/view/19879/14790        [ Links ]

Vieira, M. L. (2008). Hanseníase X lepra: o passado da morte social. In Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase. Cadernos do Morhan: A prática do serviço social no Morhan (pp. 70-92). Rio de Janeiro: Morhan.         [ Links ]

Vilela, D. A., & Rocha, J. C. T. (2011). Moradores do Hospital Colônia no Norte do Piauí: Um estudo dos perfis de pacientes de hanseníase. Cadernos de Estudos e Pesquisas, 15(33),55-60. Retrieved from http://revista.universo.edu.br/index.php?journal= 1studospesquisa2&page=article&op=view&path%5B%5D=339&path%5B%5D=220        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ádilo Lages Vieira Passos
Rua Genésio Lopes Moreira, 345, Campo Velho
Chapadinha, MA, Brasil. CEP 65500-000
E-mail: adilolp@hotmail.com

Submissão: 13/07/2018
Aceite: 18/11/2019
Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (FAPEPI) pelo financiamento da pesquisa.

 

 

Nota dos autores
Ádilo L. V. Passos, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar); Ludgleydson F. de Araújo, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar).

Creative Commons License