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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.22 no.3 São Paulo Sep./Dec. 2020

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v22n3p208-229 

ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL

 

Sentidos sobre a participação em uma capacitação em práticas restaurativas

 

 

Letícia T. Vidotto; Laura V. e Souza

University of São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP, Brazil

Correspondência

 

 


RESUMO

A Justiça Restaurativa (JR) envolve princípios éticos, filosóficos e políticos na compreensão dos conflitos humanos em diferentes contextos. Considerando a importância e escassez de estudos referentes a processos formativos de facilitadores em práticas restaurativas, o objetivo deste estudo foi compreender os sentidos produzidos sobre a participação nessas formações. Entrevistaram-se representantes de cada grupo social inscrito em uma capacitação de práticas restaurativas. A partir da análise temática das entrevistas, foram criados os eixos analíticos "para que", "quem" e "como". Os resultados mostraram que os participantes tiveram mudanças na qualidade da escuta, da comunicação e do entendimento de conflito e punição. Entretanto, os participantes se mostraram inseguros para facilitar os círculos restaurativos, o que demonstra a necessidade de mais exercícios práticos. Realizar a construção do contexto conversacional do grupo pode colaborar para alinhar expectativas e diminuir os níveis de ansiedade e taxa de abandono no decorrer do processo formativo.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa; práticas restaurativas; construcionismo social; capacitação; facilitação de diálogos.


 

 

1. Introdução

O que denominamos de Justiça Restaurativa (JR) surgiu de experiências distintas, com nomenclaturas e contextos diferentes, mas, apesar da diversidade, as metodologias apresentavam características em comum. A primeira definição mais formal foi proposta pelo inglês Tony Marshall (1999, p. 5): "A Justiça Restaurativa é um processo pelo qual todas as partes envolvidas em um delito reúnem-se para resolver coletivamente como lidar com as consequências da ofensa e suas implicações para o futuro". Essa definição foi adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) na Resolução n. 12/2002, elaborada pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, e, a partir dela, propuseram-se diversas outras. Sendo assim, a JR pode ser considerada um conceito aberto e fluido, pois vem se modificando desde os primeiros estudos e experiências, não sendo possível estabelecer uma única definição (Palamolla, 2009).

Assim como em diversos países, a expansão da JR no Brasil, entre outros fatores, está fortemente ligada à crise de legitimidade do sistema penal e à crise das modalidades de regulação social, como o fracasso das políticas públicas para conter a violência e a falta de eficiência e credibilidade do sistema judiciário (Sica, 2007). É a partir desse contexto que, em 2005, a JR começou a ter maior destaque e se disseminar pelo país. Naquele ano, elaborou-se o projeto "Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro", e três projetos-piloto nacionais foram implantados, com o financiamento da Secretaria de Reforma do Judiciário e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, nas cidades de São Caetano do Sul, em São Paulo, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e em Brasília, no Distrito Federal (Pallamolla, 2009; Penido, 2009, como citado em Salmaso, 2016). A JR no país teve ainda mais repercussão a partir da instituição da Resolução n. 225 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ (2016), que, entre várias considerações, destacou a importância de se estabelecerem fluxos e procedimentos que considerem os aspectos comunitários, institucionais e sociais que contribuem para o surgimento do conflito e da violência, além de apresentar alguns dos princípios norteadores da JR: a reparação de danos, a corresponsabilidade, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos e o empoderamento.

Para além do âmbito jurídico, a JR pode ser aplicada em diferentes situações e contextos, como na resolução de conflitos em comunidades, escolas e empresas, o que possibilita a utilização ampla dos procedimentos restaurativos, mas pode dificultar as tentativas de delimitação ou definição (Walgrave, 2008). Nesse sentido, inúmeras iniciativas de seu uso surgiram e se desenvolveram simultaneamente em diversos locais do país, reproduzindo-se em diferentes projetos de juizados, escolas e comunidades.

Três metodologias de JR são as mais amplamente reconhecidas em diferentes países: conferência do grupo familiar, mediação vítima-ofensor e círculos restaurativos (Bazemore & Umbreit, 2001). Essas metodologias apresentam características específicas em relação aos participantes, ao formato e às perguntas norteadoras do processo. No Brasil, uma das metodologias mais difundidas é a dos círculos restaurativos (Andrade, 2018). Para Pallamolla (2009), a metodologia dos círculos restaurativos é também conhecida como community circles, sentencing circles ou peacemaking circles, e se diferenciam em relação a seus propósitos. Dependendo do objetivo, participam dos círculos restaurativos pessoas envolvidas direta ou indiretamente em um conflito, podendo também abranger profissionais relacionados às políticas públicas de determinado local e representantes comunitários. Esses círculos podem ser utilizados para alcançar um acordo restaurativo, além de incluir, conforme a necessidade, encontros preparatórios com as partes envolvidas no conflito e um encontro pós-círculo restaurativo para acompanhamento do plano de ação delineado (Pallamolla, 2009).

Ainda que o processo de formação de facilitadores de práticas restaurativas seja uma das principais fases a serem analisadas para o estudo da eficácia da sua implementação, é escassa a produção científica sobre esse tema. Apenas os autores Gomes (2013), Boonen (2011), Vieira (2014) e Yabase (2015) focaram os processos formativos em JR em suas pesquisas, e os últimos três analisaram o mesmo curso de formação de facilitadores: Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP). Essa formação utiliza embasamento da Escola de Perdão e Reconciliação (ESPERE), metodologia que visa atingir as dimensões cognitivas, emocionais, comportamentais e espirituais dos participantes, de modo que estes passem por experiências restaurativas pessoais, para compreenderem os próprios conflitos e, como eles são trabalhados a partir da filosofia da JR, para posteriormente facilitarem conflitos. Gomes (2013), por sua vez, analisou a própria experiência na formação de socioeducadores em centros de internação, utilizando como metodologia os círculos de paz, com o objetivo de mobilizar deslocamentos na perspectiva ideológica dos servidores desses centros. Apesar de o processo formativo não ter sido concluído, a autora sugere que a JR pode qualificar a ação socioeducativa, melhorando a possibilidade e disponibilidade de escuta e a abordagem com os jovens.

Considerando a falta de pesquisas que abordam a formação em JR e, em consonância com os pesquisadores da área, a premissa de que o processo de formação de facilitadores de práticas restaurativas é um momento fundamental para o sucesso de sua instauração, o objetivo deste estudo foi compreender os sentidos produzidos sobre a participação no processo de formação em facilitação de práticas restaurativas, a partir das práticas discursivas de seus participantes.

 

2. Método

2.1 Delineamento teórico-metodológico

Este estudo sustenta-se na perspectiva construcionista social (Spink, Brigagão, Nascimento & Cordeiro, 2014), segundo a qual a linguagem é tomada como prática social e as ações conjuntas entre as pessoas são entendidas como lócus da produção de sentidos sobre o mundo (Souza, 2014).

Entende-se o estudo das práticas discursivas como via de análise da produção de sentidos. Práticas discursivas é uma "expressão utilizada para demarcar e distinguir o foco de interesse das pesquisas voltadas para o papel da linguagem na interação social" (Spink et al., 2014, p. 327). Sentidos estão aqui sendo compreendidos como "um empreendimento coletivo por meio do qual as pessoas, na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e localizadas, constroem os termos a partir dos quais compreendem e se posicionam em situações cotidianas" (Spink et al., 2014, p. 329). Portanto, neste estudo, os sentidos produzidos sobre a participação no processo de formação de facilitadores de práticas restaurativas em escolas serão explorados a partir dos termos utilizados pelos participantes na con-versa com relação a essa participação.

2.2 Contexto da pesquisa

O presente estudo foi realizado a partir da análise de um projeto-piloto que pretendia promover a JR em uma cidade de médio porte do interior do estado de São Paulo, em 2015. Esse projeto foi proposto e coordenado por uma equipe de profissionais, especializada em mediação de conflitos e ciências jurídico-criminais, de uma fundação privada que financiou a iniciativa. Por meio da parceria com a prefeitura, convidaram-se quatro escolas municipais como ponto inicial da proposta de disseminação da JR na cidade. Nessas escolas, seriam primeiro oferecidos cursos de capacitação em JR e depois haveria a implementação e supervisão de círculos restaurativos. Os convites para a participação no projeto foram realizados em palestras de sensibilização em cada uma das quatro escolas e na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) da cidade. Esse projeto teve como público-alvo a comunidade escolar, diferentes atores sociais que pudessem colaborar com a construção de fluxos a partir das necessidades que surgissem nos encontros, além de qualquer pessoa que tivesse interesse em realizar voluntariamente os círculos restaurativos nas escolas.

O período previsto para a capacitação era de um ano, sendo seis meses de oficinas teóricas e simulações das práticas, e seis meses de supervisões e acompanhamento da implementação dos círculos restaurativos nas escolas. A parte teórica foi realizada como planejado, mas a formação não seguiu para a segunda fase. Os professores entraram em greve, e, após cinco meses, houve a tentativa de retorno dos encontros, com horário e dia modificados. Como não houve adesão dos participantes, a coordenação interrompeu a continuidade do projeto nesse formato.

A parte teórica da capacitação constituiu-se de 10 a 11 encontros em cada uma das quatro escolas selecionadas, com duração de três horas, no decorrer de seis meses, coordenados em duplas. Em uma das escolas, houve pouca adesão, e, por esse motivo, a coordenação do projeto decidiu cancelar sua participação, redistribuindo as pessoas que aderiram para uma das outras escolas. Houve alta oscilação na presença dos participantes, além da entrada de novos participantes durante quase todo o decorrer do processo.

O conteúdo programático foi o mesmo para todas as escolas, abordando os princípios e valores da JR, as diferenças dos modelos retributivo e restaurativo e reflexões sobre o conceito de justiça e conflito. O formato dos encontros foi inspirado na metodologia de processos circulares de Kay Pranis (2010), especialmente nos círculos de construção de paz, em que os participantes se sentavam em círculo, com objetos e livros no centro, e utilizavam um "bastão de fala", que organizava as falas e permitia que todos pudessem contribuir com algo, além de iniciarem e terminarem o encontro compartilhando como chegaram e como saíam daquele momento. O conteúdo incluiu ainda elementos da comunicação não violenta, da metodologia utilizada por Belinda Hopkins em escolas, além de elementos teóricos do livro Justiça Restaurativa,, de Howard Zehr (2012).

Todos os encontros começaram com uma atividade de relaxamento ou aquecimento que durava de cinco a dez minutos, e com um período de intervalo de até 30 minutos.

2.3 Participantes da pesquisa

Nesta pesquisa, propusemos o registro dos sentidos sobre o processo de participação na referida capacitação por meio do uso de entrevistas semiestruturadas. Para seu uso, foi necessário um recorte do universo de participantes dos encontros nas quatro escolas. Buscando garantir a representação da diversidade de opiniões e lugares sociais ocupados no contexto estudado, decidiu-se pela seleção aleatória de um participante representante de cada um dos grupos sociais que estavam inscritos na capacitação, a saber: 1. um representante do Poder Judiciário, 2. um representante do Ministério Público, 3. uma agente da segurança pública, 4. um profissional da assistência social, 5. um profissional da educação, 6. um profissional da saúde, 7. um membro do Conselho de Direitos e Tutelar, 8. um membro da equipe de atendimento socioeducativo em meio aberto, 9. membros das comunidades escolares envolvidas (um professor, um diretor, um mediador, um coordenador pedagógico, um aluno e um familiar) e 10. um membro da comunidade local do entorno das escolas.

A única pessoa presente na formação ligada à segurança pública não aceitou participar da pesquisa. A familiar que aceitou participar (mãe) era também membro da comunidade local do entorno da escola. Não houve adesão de coordenadores pedagógicos na formação, e a única diretora com engajamento se desligou da escola no fim do ano letivo, não sendo possível contatá-la. Todas as pessoas ligadas ao Ministério Público participaram apenas do primeiro encontro; no entanto, considerou-se importante realizar a entrevista com algum deles para compreender os sentidos produzidos sobre a desistência no processo. Desse modo, foi realizado o total de dez entrevistas.

2.4 Instrumento e estratégias de produção de dados

A construção do roteiro de entrevista foi inspirada em parâmetros mencionados por Melo, Ednir e Yazbek (2008), em sua publicação sobre o projeto "Justiça, Educação, Comunidade: parcerias para a cidadania", implementado em São Caetano do Sul, em São Paulo, em 2005. Essa publicação detalhou o desenvolvimento das estratégias utilizadas na formação e implementação do projeto que fez parte de um dos pilotos realizados no Brasil e, assim como a capacitação realizada, contou com a participação de diferentes atores sociais. Alguns dos parâmetros se relacionam aos aspectos da construção de fluxos de encaminhamento, da incorporação de técnicas para o cotidiano de trabalho e da identificação de modos de autossustentabilidade na manutenção e no aprimoramento dos conhecimentos adquiridos.

As entrevistas duraram entre 30 minutos e duas horas e foram audiogravadas em modo MP3. A pesquisadora acompanhou toda a parte teórica da capacitação em uma das escolas para poder contextualizar a produção de sentidos dos participantes nas entrevistas, que foram realizadas ao fim da parte teórica, quando as coordenadoras informaram que a fase de implementação do projeto não ocorreria.

2.5 Procedimento de análise dos dados

O corpus de análise desta pesquisa foi constituído pela transcrição integral das dez entrevistas, e realizou-se a análise temática desse material. Análise temá tica é aqui entendida, conforme Braun e Clarke (2006), como um método em si mesmo capaz de, independentemente de uma abordagem teórica, oferecer ferramentas analíticas úteis que mostram de forma detalhada as experiências, os sentidos e a realidade das pessoas, sem perder sua complexidade. Consideraram-se os aspectos do texto que capturassem algo de significativo com relação aos objetivos do estudo e que mostrassem certo padrão de resposta dos participantes ou, oposto a isso, mostrassem a singularidade de algumas opiniões (Braun & Clarke, 2006). Dessa forma, em cada uma das transcrições, destacamos os diferentes temas a partir da concordância de ao menos dois pesquisadores sobre a coerência dessas delimitações, defendendo a necessária postura ativa do pesquisador nessas escolhas, mas buscando certo consenso e inteligibilidade na organização do material. Esses temas foram destacados em cada entrevista com diferentes cores. Em seguida, criaram-se diferentes documentos Word para cada um dos temas selecionados, e distribuiu-se o conteúdo de todas as entrevistas nesses documentos. Ao final, essa organização nos permitiu a visualização de todos os temas por entrevista e do conteúdo de todas as entrevistas por temas.

A partir da literatura construcionista social sobre processos grupais, os temas foram organizados em três eixos analíticos: um eixo que denominamos de "para que" da formação, referente à avaliação dos propósitos da capacitação; outro eixo que denominamos de "quem" da formação, referente à avaliação da adesão ao grupo e público-alvo da formação; e um eixo que denominamos de "como" da formação, referente à avaliação do formato e conteúdo do processo. A inspiração para nomeação desses eixos veio da bibliografia construcionista social que pensa processos grupais como construções sociais e valoriza a reflexão sobre esses elementos (para que, quem e como), fundamentais para o sucesso de intervenções em grupo (Rasera & Japur, 2007). Essa literatura, além daquela que versa sobre JR, serviu de base para a discussão desses eixos.

2.6 Aspectos éticos

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Todos os participantes assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. A coordenação do projeto-piloto deu sua anuência para a presença da pesquisadora nos encontros observados e para a realização da pesquisa. Os participantes tiveram o sigilo das suas identidades preservado e todos os nomes foram substituídos por nomes fictícios.

 

3. Resultados

3.1 O "para que" da formação em JR

Os relatos dos participantes apontaram para diferentes expectativas que os trouxeram para a formação, a partir de seus diferentes lugares sociais e de seus entendimentos sobre o que essa formação lhes permitiria. Alguns compreenderam que o objetivo da capacitação era formar profissionais que colaborassem com a implantação do projeto-piloto no município, por meio de um novo modelo de justiça. Nesse sentido, buscaram participar desse projeto para atuar a partir dos locais profissionais em que já estão inseridos. Esses participantes demonstraram frustração em seus relatos, pois esperavam que, além da formação para condução de círculos restaurativos, os fluxos de encaminhamento e a definição de papéis fossem esclarecidos para que compreendessem como poderiam se articular em uma situação de conflito que surgisse a partir da escola:

Valéria (Professora): Então, de início achei interessante porque seriam alternativas, né?, pra gente tentar trabalhar depois melhor a questão do conflito em sala de aula, e essa foi minha expectativa. Eu achei que teria um meio a mais da gente é... diferenciado, que eu poderia usar na minha prática como professora.

Lucília (Mãe de aluno): Eu achei que com esse curso seria uma oportunidade de integrar comunidade dentro da escola, né?, essa parte que me frustra um pouco, porque é difícil integrar [...]. Mas o curso... me fez aprender muito como lidar, como conversar [...]. Aprendi muito, muito, muito, com todos aqueles textos, com todos aqueles vídeos de experiências. Muito. Aprendi muito mesmo e isso vai me servir muito.

Os participantes que não conheciam a JR e procuraram a capacitação apenas para esse fim produziram expectativas que foram contempladas, pois puderam encontrar nesse processo informações suficientes para a compreensão do tema, como afirmou Luiza (membro da equipe de atendimento socioeducativo):

Luiza (Membro da Equipe de atendimento socioeducativo): Na minha cabeça eu pensava que Justiça Restaurativa era algum trabalho que pudesse, vamos dizer assim, fazer algum acordo, né?, pra restaurar. Mas eu não imaginei que era dessa forma que eu vim conhecendo, né? Então, minha expectativa era conhecer, saber o que era aquele desconhecido pra mim.

3.2 O "quem" da formação em JR

Alguns dos participantes apresentaram questionamentos em relação ao público presente na capacitação, como é o caso de Lucília, mãe de um aluno, que acredita que, para haver continuidade das práticas no ambiente, é fundamental a presença de integrantes da própria comunidade escolar:

Lucília (Mãe de aluno): A hora que colocou esse projeto dentro da escola, eu realmente achei que iriam estar todos lá [coordenadores, professores, alunos e familiares] e pessoas que não eram da comunidade estavam lá, que não sabem a realidade da comunidade em si. De pais e alunos só estava eu lá, né?, e aí não é culpa do projeto.

Outros participantes demonstraram confusão sobre a proposta da capacitação e quais tipos de conflito seriam trabalhados, o que consequentemente gerou dúvidas sobre quem era o público esperado e como seriam os fluxos de encaminhamento entre as escolas, comunidades e serviços públicos:

Renato (Representante do Poder Judiciário): A gente acabou não voltando pras demais sessões porque nós não éramos o público-alvo, o público-alvo parecia os próprios adolescentes, crianças, familiares, pessoas do ambiente escolar, ali do cotidiano.

Evalda (Profissional da Assistência social): Eles não estavam pedindo a rede? Cras, saúde, tudo mais? Eu achei que ia ser uma coisa mais integrada, entendeu? Eu achei que seria uma coisa mais integrada com os serviços públicos. E os casos mais agravados.

Além desses, outros participantes também levantaram questões sobre o público e a oscilação na presença dos participantes durante o processo formativo:

Evalda (Profissional da Assistência social): Então, por exemplo, ia explicar alguma coisa, mas não podia aprofundar demais porque tinha os alunos.

Maria (Profissional de Mediação): Não tinha sempre as mesmas crianças, as mesmas pessoas, o pessoal da escola começou a faltar muito. Tinha aula que tinha mais gente de fora da escola do que da escola.

Renato (Representante do Poder Judiciário): Então, aí a gente chegou lá, vimos uma capacitação que não... não é que não era o que a gente esperava, a gente sentiu, eu e o Dr. João, eu principalmente, que era voltado pra um outro público né? Ela queria integrar alunos, sensibilizar alunos e outras pessoas do meio da escola, os conselheiros tutelares que estavam lá, pais etc., no que era aquela proposta, né?, de solução dos conflitos escolares por uma outra via que não o boletim de ocorrência e etc., e que ela queria sensibilizar esses alunos e mostrar o que era aquela proposta. Mas tudo numa, num jeito de apresentar aquilo e numa forma de trabalhar voltado pra esse público, pra crianças, pra adolescentes, pra pessoas que não têm o conhecimento técnico. E a gente achou que seria um negócio um pouco, com um olhar um pouco mais técnico.

Por ser representante do Poder Judiciário e ter sido convidado a participar da capacitação, Renato relatou que esperava uma formação composta por profissionais com conhecimentos técnicos. Ao se deparar com um grupo composto por crianças e adolescentes, pais de alunos e comunidade, não compreendeu como a capacitação poderia abarcar todo esse público em uma mesma conversa. Desse modo, não se sentiu envolvido pelas atividades propostas, pois eram realizadas de modo a atender todo o diversificado público presente.

3.3 O "como" da formação em JR

No que se refere à produção de sentidos positivos sobre a formação, muitos participantes mencionaram a qualificação em seu modo de se comunicar, tanto no âmbito de suas relações pessoais como profissionais:

Patrícia (Membro do Conselho de Direitos e Tutelar): Pra mim, o que mais se destacou mesmo, o que fez eu pensar bastante foi a comunicação não violenta. Aquela forma de você parar, pensar, reavaliar, pensar o que você vai falar, a forma como você vai falar, foi mais difícil pra mim, mas... foi muito relevante [...]. Fez com que eu pensasse mais no dia a dia, a forma de falar, a hora que uma pessoa chegava já com uma história de eu não já ir atacando e falar de uma forma mais suave, me colocar no lugar da pessoa, né?

Valéria (Professora): Muitas vezes na sala de aula a gente fala: "faz" [no sentido de mandar], mas às vezes a pessoa não tem aquela estrutura, aquela autonomia [...]. A gente tem que lançar um outro olhar [...] o que tá faltando pra esse aluno? O que ele precisa?

Artur (Aluno): [...] Aí, aconteceu alguma coisa em casa, que eu sentava e conversava... eu falei pra minha mãe do objeto de fala, pra não atropelar todo mundo...

Alguns participantes revelaram os efeitos na vida deles relacionados a uma nova compreensão do conflito e da cultura punitiva, temas centrais para o enten dimento da mudança de paradigma na JR:

Lucília (Mãe de aluno): Eu fazendo parte do conselho da escola, muitas vezes, eu tomei decisões contrárias do que diz o curso, porque eu não conhecia esse método. Contrária mesmo até assim, sendo sincera, participar de transferência de aluno [...] porque é muito fácil tirar a laranja podre daqui e pôr ali, né?

Eugraci (Profissional do Ministério Público): A gente olha pro conflito só como algo negativo, aquilo te deixa estagnado, mas, se você olhar ele pelo lado bom, que seria o lado transformador dele, que você se propõe a mudar, a ver aquilo que você fez que poderia ser melhor, acho que é nesse ponto assim.

Patrícia (Membro do Conselho de Direitos e Tutelar): O que mais pra mim fez muita diferença foi mais na comunicação. Que eu sempre tive muita dificuldade em conversar, em falar o que eu realmente quero, então uma coisa assim... eu falava, falava... eu tenho isso, né?, você pode ver, eu falo, falo, falo... Então, de parar um pouco e falar "Não, mas pera aí", e parar, né?, peraí, o que realmente eu quero, onde eu quero chegar.

Evalda (Profissional da Assistência Social): A questão da linguagem, né?... de pensar mesmo na questão da não violência, de tirar um pouco daquela coisa de punição, punição, punição, pensar de outra forma também, isso ajuda, isso ajudou bastante.

Sobre o que a capacitação deixou a desejar ou sobre o que modificariam no processo, alguns participantes apontaram a necessidade de modificação no forma-to, no tempo de duração e horários, de modo que mais professores pudessem participar, integrando esse público.

Duas participantes mencionaram a importância de alinhar melhor a implementação do projeto com as escolas para garantir seu sucesso:

Maria (Profissional de Mediação): Então, pode ter um resultado negativo se a gente não conseguir envolver as pessoas da escola para mostrar que dá certo.

Evalda (Profissional da Assistência Social): Figuras fundamentais da escola não estavam presentes, por completo, diretora, professores, tinham muito pouco, e eles saíam a todo momento. A diretora, por exemplo, entrava e saia. A vice-diretora foi umas poucas vezes, professores tinha só uma de história que era muito legal...

Alguns participantes detalharam a insuficiência da parte prática e como isso produziu sentimentos de insegurança em facilitar círculos restaurativos:

Maria (Profissional de Mediação): Teve uma oportunidade pra fazer uma simulação e foi uma situação muito precária o que foi proposto, porque era o último encontro. Foi feito no final do período e sobrando 15 minutos, depois que foi feita a avaliação, inclusive por escrito, da parte teórica.

Patrícia (Membro do Conselho de Direitos e Tutelar): Oh... teve uma simulação, foi boa, mas eu acho que precisava ter mais. O curso foi completo, mas... não sei se foi só eu, né?, mas eu me senti insegura na hora de fazer o círculo.

Apesar das dificuldades que atravessaram o processo de capacitação, diversos elementos utilizados nos círculos restaurativos foram considerados pelos participantes entrevistados como aspectos importantes de aprendizagem, como o objeto de fala, que organiza e dá voz a todos os participantes; a horizontalidade que possibilita a participação igualitária de todos sem favorecer relações de poder; e a escuta ativa, ou seja, estar aberto e atento ao que os outros também têm a compartilhar.

 

4. Discussão

Percebem-se, a partir das entrevistas realizadas, diferentes sentidos produzidos sobre o "para que" da JR não só em relação à formação estudada, mas também no que concerne aos objetivos da sua aplicação em um determinado local, que vão desde fomentar princípios e valores da JR em uma comunidade até articular os mais diferentes níveis de atendimento de uma cidade, de modo que a implementação prática desses processos ocorra em todo o município. Esses diferentes sentidos produzidos parecem se relacionar às dificuldades na definição da JR. Para Larrauri (2004), a falta de uma definição única e a variedade de seus objetivos podem levar ao risco de que existam práticas que não respeitam os seus princípios originais, produzindo avaliações negativas do modelo. Portanto, a ausência de um consenso em sua definição dificulta a clareza de seus objetivos e a criação de parâmetros para avaliação de seus resultados.

Além disso, os sentidos produzidos com relação aos tipos de conflito nos parecem relacionados à ideia de justiça para cada um, vinculados novamente ao próprio entendimento de JR e aos seus possíveis alcances. Alguns participantes compreenderam que o objetivo da capacitação era a articulação de serviços públicos para a resolução de conflitos escolares agravados, de modo a evitar a judicialização desses conflitos. Isso parece estar relacionado com o entendimento popular de que a resolução de conflitos dentro da própria escola colabora para a não judicialização, o que pode diminuir a saturação de processos nesse âmbito e aumentar os canais de acesso à justiça (Pranis, 2010). No entanto, alguns autores compreen dem o discurso de desafogamento da justiça como um mito (CNJ, 2018), além de não existir um consenso em relação à gravidade e aos tipos de conflitos que podem utilizá-la, seja na justiça penal ou fora dela (Zehr, 2012).

Sobre os tipos de conflito e a ampliação da JR para contextos além dos jurídicos, Hopkins (2004) destaca a importância de que essas práticas sejam desenvolvidas também em escolas, sugerindo a utilização de uma abordagem em que os processos vão alcançando novos níveis conforme o aumento da complexidade dos conflitos, sendo necessário envolver um número maior de pessoas em sua resolução, de acordo com essa complexidade. A autora sugere um continuum de processos restaurativos que se iniciam no que ela nomeia de "investigação e conversa restaurativa em situações desafiadoras", aumentando para "mediação", "mediação vítima/ofensor", "reuniões comunitárias" e "círculos de solução de conflitos", "encontros restaurativos" e "encontros restaurativos com grupos familiares". Para ilustrar essa compreensão, Hopkins (2004) construiu uma pirâmide: em sua base, constam ações que constroem senso de comunidade; no intermédio, ações informais para resolução de conflitos menos graves; e no topo, ações formais para solução de conflitos graves, afirmando que devemos fortalecer a base para diminuir a necessidade de intervenção prática até o topo da pirâmide.

Ainda em relação ao "para que", alguns participantes viram nessa capacitação uma oportunidade gratuita de aprender com profissionais reconhecidos da área; técnicas e ferramentas que pudessem ser aplicadas nos contextos em que estão inseridos. Capacitar-se nesse sentido não é necessariamente ruim, mas faz pensar que o "para que" desses participantes é diferente do proposto pelo projeto, já que algumas dessas pessoas não tinham necessariamente como objetivo um compromisso com a escola na fase de implantação e autogestão desse projeto, pois seus interesses estavam relacionados a outros aspectos.

Compreender o "para que" de uma capacitação em JR ajuda a pensar "quem" deverá compor esse grupo para atingir os objetivos propostos. Alguns autores compreendem que, para tornar as práticas restaurativas mais efetivas em um ambiente, é necessário que todas as pessoas relacionadas ao local sejam sensibilizadas pelo trabalho que ocorrerá nesse ambiente (Penido, 2009 como citado em Salmaso, 2016; Hopkins, 2004; Pranis, 2010). A metodologia desenvolvida por Hopkins (2004), por exemplo, convida todos os segmentos da comunidade escolar, ou seja, gestores, alunos, equipes de apoio e familiares, a serem capacitados nas práticas restaurativas. Ela compreende que dessa maneira todos podem se responsabilizar pela construção de uma convivência segura e justa, pautada nos valores e princípios da JR.

Mumme e Penido (2014) também ressaltam a necessidade de que pessoas vinculadas às instituições sejam formadas para que possam cuidar de fato da transformação proposta pela JR naquele ambiente, de modo que a estrutura e cultura da instituição, muitas vezes hierárquica e excludente, não retroalimente a situação de conflito e violência e mantenha as relações institucionais de poder. Nesse sentido, Pranis (2010), quando promove trabalhos em escolas, propõe círculos de convivência com os funcionários da instituição antes de implementar círculos preventivos ou conflitivos com os alunos, introduzindo os princípios restaurativos na relação entre os funcionários. A implementação, portanto, é transversal na instituição, de maneira que todas as pessoas envolvidas com o ambiente possam vivenciar o círculo restaurativo, alinhando os entendimentos e as práticas decorrentes de um conflito que possa surgir.

Alguns autores ressaltam a importância da articulação da rede para a sustentação das práticas restaurativas; é o caso de Mumme e Penido (2014), que apontam que a rede secundária de apoio na JR são as instituições que compõem o sistema de garantia de direitos. Essas instituições podem ser representadas por profissionais que dão suporte para os planos de ação resultantes do processo restaurativo.

No caso do processo formativo aqui pesquisado, a capacitação foi realizada com o propósito de implementar as práticas no município. A diversidade de público presente parece ter produzido confusão nos participantes sobre qual era o objetivo da formação e quem deveria participar dela. A falta de clareza sobre o "quem" parece ter levado os participantes a se questionar sobre qual era o seu papel como servidor do município e como o trabalho a ser desenvolvido na escola poderia se articular com a rede de serviços da cidade. Ter clareza dos fluxos de procedimentos que envolvem o atendimento restaurativo é uma condição básica para a aplicação da JR (Melo et al., 2008); no entanto, até o final da capacitação, esses aspectos não ficaram claros.

Em relação à produção de sentidos positivos sobre o "como" da capacitação, os participantes ressaltaram alguns conteúdos e técnicas aprendidos, além de mudanças no modo de pensar aspectos relacionados à violência e ao conflito. Nota-se que o processo analisado por este estudo, assim como em outras formações e práticas desenvolvidas no Brasil, detém como referencial teórico predominante o trabalho de Howard Zehr (com a divulgação do livro Trocando as Lentes, 2008) e como referenciais metodológicos os estudos de Kay Pranis (círculos de construção de paz) e Dominic Barter (que colaborou com a disseminação da comunicação não violenta no país) (Andrade, 2018).

O processo formativo pesquisado se inspirou principalmente na metodologia desenvolvida por Kay Pranis. As coordenadoras propuseram o estabelecimento de combinados entre os participantes da capacitação, de modo similar ao que a autora propõe como construção de valores e diretrizes em um círculo de construção de paz (Pranis, 2010), ou seja, demonstrando uma prática do círculo restaurativo no próprio processo grupal. Todavia, os combinados estabelecidos nesse momento não necessariamente funcionaram e não foram retomados com profundidade durante o processo. Ademais, nenhuma conversa preparatória, no sentido de alinhar expectativas, foi realizada, o que parece ter colaborado para gerar as confusões e os questionamentos relatados pelos participantes.

Ao considerarmos o grupo como uma construção social, como o fazem Rasera e Japur (2007), entendemos que a realidade de um grupo se dá pela forma como o descrevemos. Nesse sentido, há a negociação contínua de significados em relação ao que falamos e a como falamos. Essas negociações são exercícios de tensão entre perspectivas, diferenças, criação e restrição de possibilidades. Alguns autores construcionistas sociais propõem que no início da prática grupal, por meio de uma metaconversa, fale-se no grupo sobre o próprio grupo, em uma técnica denominada de "construção do contexto conversacional". Ou seja, inicia-se o grupo convidando todos os participantes a falar sobre como querem se construir como grupo, o que inclui a negociação das diferenças entre os participantes e coordenadores. Isso possibilita um alinhamento de ideias; portanto, o "para que", o "quem" e o "como" podem ser negociados nesse momento, sendo este um instrumento que ajuda na construção de uma boa capacitação.

Para colaborar com a construção de um entendimento comum, perguntas como "Por que você optou por participar dessa capacitação?", "O que você espera que aconteça ao longo da capacitação?" e "Como acha que você e o grupo podem contribuir para isso?" são possibilidades para a construção de grupos (Rasera & Japur, 2007) e podem ser adaptadas para formações em JR. Outro procedimento útil para antecipar o que desmotiva as pessoas a continuar na formação e/ou participar da etapa de implementação da prática é perguntar o que pode ocorrer que incite a pessoa a desistir do processo e como deveria ser feita a inclusão de novas pessoas no grupo.

Ainda em relação à composição grupal, sugere-se que se utilizem diferentes estratégias didáticas para diferentes públicos, refletindo sobre a flexibilização do grupo a ser formado e sobre a necessidade de manter a presença das mesmas pessoas do começo ao fim do processo. Ou seja, sugere-se a possibilidade de que diferentes formatos sejam desenvolvidos com os diferentes públicos-alvo e se pense em qual momento pode ser útil juntá-los.

O "como" de um processo formativo é construído a partir do "para que" e do "quem". É necessário que os objetivos e o público-alvo da capacitação estejam alinhados para se pensar sobre o conteúdo programático, as atividades e o forma-to. Existe pouca literatura que detalha o "como" de capacitações em JR, pois há uma valorização, coerente com a própria filosofia da JR, de um espaço coconstruído que leve em conta cada contexto, de modo que se adotem procedimentos pertinentes e adequados às circunstâncias do local. Ao mesmo tempo, como afirma Zehr (2012), o planejamento e os conteúdos de programas de JR precisam levar em conta os princípios norteadores, para manterem-se alinhados à origem e filosofia dessas práticas.

Não há uma normatização de como as capacitações devem ocorrer em relação à duração, à carga horária e ao formato como um todo. Uma pesquisa realizada pelo CNJ (2018) traz em suas discussões o "mito da formação instantânea". Além disso, critica-se a visão de que uma única e instantânea formação seja suficiente para capacitar facilitadores. Para os pesquisadores, é necessária a formação continuada, amparada por cursos interdisciplinares e com permanente autoavaliação e monitoramento. Nesse sentido, Andrade (2018), ao refletir sobre os programas de JR desenvolvidos no país, sugere que a prioridade dos programas parece estar no fazer, implementar, aplicar, treinar, irradiar e multiplicar, em vez de conceituar e elaborar, o que demonstra um déficit no desenvolvimento teórico do campo e consequentemente leva a treinamentos curtos, com pouco aprofundamento.

Todos os participantes da presente pesquisa produziram sentidos de insegurança em relação à condução do processo restaurativo, desde os diálogos preparatórios até o acompanhamento do plano de ação a ser delineado. A falta de simulações impediu colocar em prática o que se aprendia na teoria. No entanto, com base em um dos referenciais metodológicos utilizado nessa capacitação, alguns processos circulares são considerados menos complexos que um círculo restaurativo que visa à transformação de um conflito, como os círculos de celebração, círculos de aprendizado e círculos de construção de senso comunitário (Pranis, 2010).

Desse modo, parece que os participantes desta pesquisa conquistaram habilidades importantes para alguns desses processos. Esses tipos de círculo vão ao encontro de um "para que" preventivo, mas não necessariamente para a resolução de conflitos. Todavia, essas diferentes possibilidades não ficaram claras, e a falta da parte prática na formação parece ter colaborado para que os participantes não desenvolvessem confiança para a condução de círculos mais complexos. Os sentidos produzidos sugerem que os participantes se envolveram mais a partir do lugar de aprendizes sobre as possibilidades da JR do que da preparação para se tornarem facilitadores de círculos restaurativos. Nesse sentido, uma capacitação que possibilita experimentações da prática, além de reflexões mais aprofundadas sobre casos reais, com exemplos de processos exitosos e processos complicados ou até mesmo falhos, pode colaborar para formar facilitadores críticos.

Ressalta-se que a capacitação pesquisada foi parte de um projeto-piloto e, portanto, teve um caráter experimental, com acertos e erros. Os diferentes modos de conceituar a JR, as diversas metodologias existentes, os distintos entendimentos sobre práticas restaurativas e seus modos de aplicação prática, e os diferentes entendimentos sobre justiça atravessaram a produção de sentidos sobre a formação em JR aqui pesquisada. Ou seja, algumas das confusões percebidas nessa capacitação parecem ser reflexo de como a JR vem sendo disseminada no Brasil.

É necessário reconhecer os limites relacionados às tomadas de decisões que envolvem questões materiais, organizacionais e institucionais, levando em conta a complexidade das relações de poder mais amplas que podem abranger a implementação de JR em um município. Desse modo, considerando que o processo de adesão dos participantes é construído antes mesmo de os encontros acontecerem, essa formação mostrou que as decisões conjuntas com financiadores e instituições relacionadas ao processo influenciam no sucesso da capacitação. Além disso, uma capacitação que tem em seu projeto a intenção de formar profissionais em práticas restaurativas e implementar as práticas em determinada instituição necessita pensar estratégias para adesão e engajamento dos gestores dessa instituição.

Ainda assim, este trabalho sugere que o processo de formação de facilitadores de práticas restaurativas é um momento de fundamental importância para o sucesso da instauração da JR, e, por esse motivo, novas pesquisas devem ser realizadas para a produção de avaliações críticas.

Reconhecendo os limites do presente estudo, destaca-se a importância de pesquisas que possam acompanhar uma formação completa, considerando também formações que contemplem a fase de implementação prática. Espera-se que este estudo contribua para reflexões críticas acerca da construção de novos processos formativos, refletindo-se em formações coerentes e comprometidas com o paradigma e a transformação social propostos pela JR.

 

Referências

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Correspondência:
Letícia Trombini Vidotto
Avenida Bandeirantes, 3900, Vila Monte Alegre
Ribeirão Preto, SP, Brasil. CEP 14040-900
E-mail: leticiatvidotto@gmail.com

Submissão: 02/07/2019
Aceite: 23/06/2020
Apoio financeiro: Processo n. 2016/23063-6, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

 

 

Nota das autoras
Letícia T. Vidotto, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), Universidade de São Paulo (USP); Laura V. e Souza, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), Universidade de São Paulo (USP).

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