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Psicologia: teoria e prática

versión impresa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.23 no.1 São Paulo ene./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPSP13040 

ARTIGOS
PSICOLOGIA SOCIAL

 

Grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica: estudo comparativo a partir de três programas brasileiros

 

 

Juliano Beck Scott; Isabel F. de Oliveira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O Brasil ainda possui poucos programas que atendem homens autores de violência, apesar de estarem previstos em Lei. Pensando nisso, delineou-se um estudo comparativo com foco na abordagem teórico/metodológica adotada por diferentes programas que trabalham com grupos reflexivos para homens autores de violência no Brasil. Assim, sete facilitadoras pertencentes a três diferentes programas foram entrevistadas. Os dados foram categorizados e apresentaram como principais resultados a necessidade de se reforçar a importância de capacitações iniciais para facilitadores, a triagem como instrumento de trabalho fundamental na inserção de participantes e a relevância da abordagem reflexivo-responsabilizante. Ressalta-se que os grupos não devem ocorrer de forma isolada, mas sim integrados à rede de enfrentamento à violência contra a mulher e de forma conjunta aos movimentos sociais em prol da transformação social. Este estudo pode contribuir para se refletir sobre novos modelos de intervenção e na criação de diretrizes para a realização de grupos reflexivos no país.

Palavras-chave: violência doméstica; grupos; responsabilização; mudança; transformação social.


 

 

1. Introdução

O atendimento aos homens autores de violência (HAV) surgiu nos Estados Unidos no final da década de 1970. Os primeiros programas a surgir foram denominados de Emerge (em Boston), Amend (em Denver), Raven (em St. Louis) e na década seguinte o Domestic Abuse Intervention Programs (DAIP), que ficou mais conhecido como modelo Duluth ou Duluth Model, tornou-se o modelo mais difundido mundialmente. Alguns anos depois, tais programas começaram a se disseminar para outros países, mais precisamente nas décadas de 1980 e 1990. Os primeiros programas fora dos Estados Unidos foram implementados no Canadá e depois se espalharam pela Europa, América Latina e África (Rothman, Butchart, & Cerdá, 2003).

No Brasil, os serviços de atendimento aos homens autores de violência surgiram entre o final da década de 1990 e início dos anos 2000, relacionados a organizações do terceiro setor que funcionavam em parceria com o poder estatal e o sistema judiciário (Amado, 2014). De acordo com Beiras, Nascimento e Incrocci (2019), que realizaram um panorama das intervenções existentes para homens autores de violência no Brasil, o primeiro programa surgiu, mais especificamente, em 1999, no Instituto NOOS; em seguida foi estabelecido o programa municipal da prefeitura de Blumenau, SC, o qual iniciou suas intervenções com homens no ano de 2004; posteriormente, foi a vez do Programa Albam, do Instituto Mineiro de Saúde Mental e Social, de Belo Horizonte, MG, com intervenções a partir de 2005. De acordo com o panorama, que apresenta um mapeamento de programas para HAV no Brasil, realizado entre 2015 e 2016, a maioria dos programas surgidos no Brasil iniciou-se entre os anos de 2003 e 2011, com um número bastante expressivo de programas iniciados a partir de 2012 (Beiras et al., 2019).

Os dados apresentados pelo relatório demonstram que mesmo antes da Lei nº 11.340/2006 (mais conhecida como a Lei Maria da Penha - LMP) já existia no Brasil o atendimento aos HAV. Contudo, a Lei nº 11.340/2006 ampliou as ações voltadas ao enfrentamento da violência contra a mulher, reconhecendo e incorporando o atendimento aos HAV. Diante de tais esforços para a ampliação desse tipo de ação, foi sancionada em 3 de abril de 2020 a Lei nº 13.984, que alterou a LMP para estabelecer como medida protetiva de urgência a frequência do HAV a centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

O atendimento aos homens, portanto, já constava na LMP, mais especificamente em seus artigos 35 e 45, sendo novamente reforçado na alteração proposta em 2020 por meio da Lei nº 13.984. Contudo, apesar de a LMP não descrever como os serviços devem ser organizados e conduzidos, tornou-se possível sua implementação, inclusive com o incentivo de intervenções a partir de serviços públicos (Beiras et al., 2019; Lima & Büchele, 2011; Toneli, 2007).

A implementação do atendimento aos HAV já vem sendo defendida por autores reconhecidos na área (Beiras & Bronz, 2016; Beiras et al., 2019; Lima & Büchele, 2011; Saffioti, 2004; Toneli, 2007). Saffioti (2004), por exemplo, acredita que somente um trabalho com ambos os envolvidos na situação de violência doméstica pode gerar efeitos satisfatórios no enfrentamento e combate ao fenômeno. Contudo, apesar de as políticas públicas estarem voltadas principalmente ao atendimento das mulheres em situação de violência, ainda existe resistência e pouco incentivo das políticas públicas que inclua o atendimento aos homens.

Cabe ressaltar a relevância do atendimento aos homens, visto que surgiu de uma demanda das mulheres em situação de violência, de técnicos dos serviços que as atendiam e do reconhecimento da insuficiência das respostas penais e preventivas nas situações de violência contra a mulher. Tais ações se expandiram a partir das primeiras experiências criadas, as quais se difundiram e proporcionaram mais visibilidade sobre o conjunto de fatores envolvidos na violência contra a mulher (Amado, 2014).

De acordo com Acosta, Andrade Filho e Bronz (2004), a contribuição dos grupos reflexivos no enfrentamento da violência consiste na promoção de diálogos entre os componentes, favorecendo a compreensão sobre as situações de violência e a construção de relações de gênero mais equitativas. Nesse sentido, o diferencial dos grupos reflexivos para outros tipos de atendimento em grupo reside na realização de ações reflexivas em um espaço interativo em que os homens compartilham suas dores, temores e o silêncio sobre a sua vida pública e privada. O grupo reflexivo funciona, portanto, como um espaço acolhedor e facilitador de mudanças por meio do diálogo e do compartilhamento de vivências e experiências entre homens que viveram situações semelhantes (Acosta et al., 2004).

Cabe destacar que existem diferentes formatos de intervenção com base em grupos reflexivos. De acordo com Veloso e Natividade (2013), o tipo de abordagem adotada nesse tipo de atendimento determina a forma como se possibilitará a mudança dos comportamentos violentos. Antezana (2012) vai mais além, destacando que, conforme a perspectiva epistemológica adotada, será definida a abordagem teórico-prática utilizada na intervenção. Assim, discutir os pressupostos dos programas de intervenção com homens possibilita uma melhora das intervenções e das potencialidades de transformação (Antezana, 2012).

Segundo o referido autor, existem diferentes metodologias de trabalho com grupos reflexivos, sendo necessário compreender os principais modelos e suas especificidades: modelo psicopatológico; enfoque psicoeducativo pró-feminista; enfoque cognitivo-comportamental; enfoque construtivista-narrativista com perspectiva de gênero. Resumidamente, o modelo psicopatológico considera o problema da violência de gênero como psicopatológico e de personalidade. Assim, esse tipo de modelo assume uma perspectiva clínica e psicoterapêutica de intervenção. O enfoque psicoeducativo pró-feminista considera o problema da violência de gênero como proveniente das relações de poder e de controle dos homens sobre as mulheres. Por ter um viés educativo, ressalta a importância da desnaturalização de certos comportamentos, diferenciando-os do que é culturalmente produzido. O enfoque cognitivo comportamental, por sua vez, possui uma base terapêutica, considerando o fenômeno como proveniente de pensamentos, crenças e condutas dos homens. Nesse sentido, a intervenção direciona-se, por exemplo, para técnicas de reestruturação cognitiva, confronto de ideias irracionais ou técnicas de controle da ira. Por fim, o enfoque construtivista-narrativista com perspectiva de gênero considera a subjetividade dos homens como expressão dos diferentes aspectos sociais e políticos entrelaçados ao gênero. Esse tipo de intervenção busca estabelecer diálogos colaborativos com os HAV, relacionando-os às suas experiências, vivências, sentimentos e significados, num processo de construção de forma mais empática e menos coercitiva (Antezana, 2012).

Pensando nisso, este estudo tem por objetivo comparar e problematizar a abordagem teórico/metodológica utilizada em três distintos programas de atendimento a homens autores de violência doméstica no Brasil, a partir da análise estrutural das determinações materiais ancoradas no feminismo marxista proposto por Heleieth Saffioti. Contudo, ressalta-se que diferentes autores com diversificadas abordagens teóricas serão utilizados para compor este estudo, considerando as várias contribuições trazidas por eles na análise do fenômeno da violência contra a mulher.

Os programas analisados localizam-se em distintas regiões do país, mais especificamente na região Sul, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil, e fazem parte da rede de proteção às mulheres em situação de violência, principalmente órgãos ligados ao Sistema de Justiça dos municípios pesquisados. Os referidos municípios, que compõem o universo da pesquisa, integram o Programa de Cooperação Acadêmica (Procad), do qual o primeiro pesquisador faz parte.

O Procad consiste em um convênio de cooperação acadêmico-científica, desenvolvido em nível nacional, entre três Programas de Pós-Graduação em Psicologia pertencentes a diferentes universidades públicas do Brasil. Essa parceria foi aprovada e financiada pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes) e buscou estabelecer uma rede de pesquisa com foco na atuação do psicólogo no campo das políticas sociais. Entre as pesquisas realizadas pelo projeto, este trabalho fez um recorte do eixo da Assistência Social, mais especificamente no que se refere à assistência às mulheres em situação de violência e ao atendimento aos homens autores de violência doméstica por meio de grupos reflexivos.

Ressalta-se que este estudo se baseia na tese de Scott (2018), a qual abarca dados de umas das três cidades participantes do projeto Procad. As outras duas cidades participantes do estudo tiveram os dados coletados no ano de 2019, compondo a totalidade deste estudo para fins comparativos.

 

2. Metodologia

2.1 Participantes

A amostra estava composta por sete facilitadoras de grupos reflexivos para homens autores de violência de três cidades pertencentes às regiões Sul, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil, abarcadas pelo projeto Procad. Denominou-se de facilitadoras, no gênero feminino, devido ao fato de a maioria das entrevistadas serem mulheres; apenas um homem compõe a amostra na função de facilitador. Sendo assim, as participantes do estudo foram denominadas por P1, P2, P3, P4, P5, P6 e P7.

2. 2 Instrumento

O pesquisador realizou entrevistas semiestruturadas a partir de um roteiro elaborado e adaptado do estudo de Scott (2018), a fim de obter informações sobre a fundamentação teórico/metodológica e sobre a prática e atuação com grupos reflexivos. Conforme Gray (2012), as entrevistas semiestruturadas possuem um caráter exploratório e envolvem o exame de sentimentos e atitudes, permitindo ao pesquisador aprofundar as questões em busca de respostas mais detalhadas que proporcionem maior esclarecimento por parte do respondente.

2. 3 Procedimentos éticos

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) de uma universidade pública, localizada em uma das cidades participantes do estudo, sob parecer CAAE n° 07990719.7.0000.5537, e, após sua aprovação, operacionalizou-se a coleta de dados. Além disso, os participantes foram convidados a participar da pesquisa, mediante todos os esclarecimentos e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do Termo de autorização para gravação de voz. Todos os preceitos que regem a ética em pesquisa com seres humanos foram contemplados, conforme preconiza a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (Conselho Nacional de Saúde [CNS], 2016).

2. 4 Procedimento de categorização dos dados

A categorização dos dados ocorreu por meio da transcrição das entrevistas registradas em áudio. Os dados foram categorizados e analisados a partir do referencial teórico e metodológico marxista com inspiração no materialismo histórico dialético. Conforme Cisne & Santos (2018), o arcabouço marxista, construído na perspectiva metodológica do materialismo histórico dialético, demonstra as bases concretas das determinações das explorações e opressões imbricadas no modo de produção patriarcal-racista-capitalista, auxiliando na construção de um projeto societário emancipador.

Cabe salientar que a categorização dos dados consistiu em quatro etapas distintas, que se aproximam de uma análise de conteúdo temática, conforme segue: a primeira etapa da análise consistiu de uma leitura inicial do material gerado pelas entrevistas. Essa leitura possibilitou as primeiras impressões sobre o material e seu conteúdo. Em um segundo momento, realizou-se uma leitura do material de forma mais minuciosa e detalhada. Dessa forma, buscou-se extrair do texto os principais conteúdos e assuntos abordados, destacando-os da totalidade, buscando as particularidades presentes no conteúdo. Além disso, observou-se a relação entre a totalidade do conteúdo e as particularidades existentes. A terceira etapa consistiu em uma nova leitura do material, dessa vez de forma a explorar mais profundamente os assuntos e conteúdos encontrados na etapa anterior, verificando as particularidades, aproximações e semelhanças existentes entre os conteúdos, organizando-os a partir de afinidades temáticas. Por fim, a última etapa consistiu na organização dos conteúdos em categorias, possibilitando melhor entendimento do seu conteúdo, a partir do comparativo entre os três programas investigados.

Assim, a análise dos dados originou três grandes categorias que consideraram a importância, a centralidade e complexidade que a metodologia possui na prática dos grupos reflexivos, essas se subdividiram em algumas subcategorias. Outrossim, a categorização deste estudo inspirou-se no disposto por Beiras e Bronz (2016), cuja proposta de metodologia utilizada no atendimento aos HAV por meio de grupos reflexivos de gênero ocorre em três etapas: constituição do grupo, realização dos encontros reflexivos e avaliação do trabalho. Contudo, neste trabalho, adaptou-se o modelo difundido pelos referidos autores, denominando-as de Fase pré-grupo, Fase grupal e Fase pós-grupo. Buscou-se descrever e problematizar as três fases ao longo da apresentação dos resultados, visando um melhor entendimento do seu conteúdo.

 

3. Resultados e discussão

As três grandes etapas - Fase pré-grupo, Fase grupal e Fase pós-grupo - serão descritas a seguir. Cabe ressaltar que as duas primeiras categorias originaram subcategorias que possibilitaram a ampliação do comparativo e da problematização dos dados, conforme o objetivo deste estudo. Além disso, buscou-se trazer um mínimo de três falas em cada categoria/subcategoria, de forma a representar o comparativo entre os programas investigados, intercalando falas das diferentes profissionais entrevistadas com a posterior análise e problematização do conteúdo. Cabe ressaltar que os diferentes programas estavam em funcionamento no momento da coleta, aproximadamente há um ano, três anos e oito anos.

3. 1 Fase pré-grupo

A fase pré-grupo abarca a constituição do grupo e envolve a Capacitação para as facilitadoras, Tipos de encaminhamento para os grupos e Triagem e seleção dos participantes. O conteúdo encontrado nas entrevistas apontou que essa fase inicial ocorreu de forma distinta nos diferentes programas, conforme descrevem as subcategorias a seguir.

3. 1.1 Capacitação para as facilitadoras

Eu fiz algumas formações e comecei a conhecer alguns projetos existentes no Brasil, como o Instituto Albam e outros projetos que eu pesquisei na internet, e alguns eu fui verificar pessoalmente, para trazer de forma mais vivencial, trazer e implantar esses grupos aqui. Então, pegando um pouquinho daqui, um pouquinho dali [...] (P6).

[...] foi ofertado um curso, foi promovido pelo tribunal de justiça do Estado, de capacitação para facilitadores de grupos com homens, de grupos de violência de gênero. Então foi uma capacitação à distância que a gente fez no final do ano passado (2018). Essa capacitação eu recebi aqui, e o restante a gente procura por vontade própria, porque não nos ofertaram mais recursos (P3).

Eles [os capacitadores] trouxeram a prática deles. Eles só vieram trazer a prática deles e a gente teria autonomia de montar o nosso grupo. Eles não permitiram nem que a gente pegasse slides deles, nem nada do tipo. Então, nós que construímos de certa forma esse grupo que está aqui. Na capacitação eles nos deram um norte (P2).

Percebe-se que nem todas as facilitadoras receberam capacitação para o trabalho com grupos reflexivos. Formas distintas foram descritas pelas entrevistadas: um dos programas, por exemplo, não ofertou capacitação para facilitadores, fazendo com que estes procurassem alguma forma de se instrumentalizar. Em outro caso, a capacitação ocorreu de forma on-line, após o início das atividades com os grupos. Em apenas um dos programas, a capacitação ocorreu antes de iniciarem os grupos. Nos programas que receberam capacitações, as informações foram rápidas e superficiais, fazendo com que as facilitadoras buscassem conhecimento mais aprofundado de forma autônoma e destituída de recursos institucionais.

Conforme Atallah, Amado e Gaudioso (2013), existe um consenso entre as metodologias utilizadas pelos programas da importância de uma capacitação inicial para a equipe técnica. De acordo com as diretrizes para implementação dos Serviços de Responsabilização e Educação de Agressores (SPM, 2011), é necessário ir além da capacitação inicial, visto que somente formações continuadas de forma multidisciplinar podem garantir a qualidade do atendimento prestado. Contudo, percebe-se que formações continuadas se tornam inacessíveis em alguns casos por causa da falta de recursos financeiros ou incentivo das instituições.

Outro ponto, destacado por Beiras e Bronz (2016), é a importância de o facilitador, antes de exercer a sua função, submeter-se a um grupo reflexivo de gênero, com o intuito de questionar os próprios valores e ideias relacionadas às relações de gênero. Tal fato não ocorreu com nenhuma das facilitadoras entrevistadas, o que pode comprometer sua prática, pois, segundo os autores, esse tipo de experiência possibilita a familiarização com o processo e com a postura reflexiva imprescindível a esse tipo de trabalho.

Portanto, sugere-se que os programas busquem capacitar os profissionais antes da sua atuação com grupos reflexivos, visando maior qualidade e alcance dos objetivos de reflexão/responsabilização dos HAV. Defende-se que as capacitações também ocorram ao longo do trabalho com grupos reflexivos para uma maior qualidade do serviço prestado e aprimoramento dos objetivos de reflexão e de responsabilização dos participantes. Para além disso, conforme Novaes, Freitas e Beiras (2018), destaca-se a importância do Estado no apoio aos programas por meio de políticas públicas e de espaços de capacitação e de produção de materiais didáticos aos profissionais e programas, bem como apoio técnico e supervisão do trabalho visando à otimização e ao controle de qualidade dos programas.

3. 1.2 Tipos de encaminhamento para os grupos

Cada juiz tem uma forma de encaminhar. Não existe uma padronização de encaminhamento, porque cada juiz tem um entendimento da lei. Nós temos magistrados que encaminham fazendo uma propaganda do grupo, convencendo o suposto agressor de que o grupo vai ser importante pra ele. É uma sugestão do juiz, mas é voluntário. Outro tipo de encaminhamento é como suspensão condicional do processo; eles são obrigados a ir, são obrigados a comparecer, uma vez que aceitam a suspensão condicional do processo, aí eles entram como "solicitários". Outros juízes encaminham como medida protetiva. Então são várias formas de encaminhamento (P6).

[...] tem cinco portas, a mais forte é a suspensão [suspensão condicional do processo]. [...] que outras portas eu tenho? Outras alternativas? Medida protetiva, suspensão da pena, medida alternativa à prisão, e a última é como acessória, pena acessória, então são cinco portas (P1).

A gente é voluntário, vem se quer, se não quer, tudo bem. [...] Então a partir desse convite, eles comparecem ou não. Muitos não comparecem (P4).

Os resultados demonstraram que os encaminhamentos ocorrem, geralmente, a partir do judiciário, em sua maioria dos Juizados de Violência Doméstica (JVD), de forma voluntária ou por meio da opção pela Suspensão condicional do processo, que se origina de um acordo com condicionalidades que devem ser cumpridas pelo HAV. O encaminhamento também pode ocorrer por convite, exigindo do possível participante do grupo a sua aceitação voluntária.

De acordo com Novaes et al. (2018), que realizaram um levantamento bibliográfico das principais produções sobre a temática dos HAV, os estudos investigados demonstraram que a forma de encaminhamento das intervenções com homens é predominantemente realizada pelo judiciário, ou seja, de forma compulsória. Além disso, os autores ressaltaram que o encaminhamento dos homens para os programas de intervenção acaba sendo precário devido à inexistência de uma política específica sobre o tema.

Nesse sentido, deve-se investir em outras formas de encaminhamento para os grupos reflexivos, diferente das formalmente compulsórias, criando uma política de Estado de esclarecimento e conscientização da necessidade da discussão de gênero por meio da reflexão e da responsabilização dos envolvidos. Os encaminhamentos compulsórios devem ocorrer a partir de uma comunicação permanente entre os órgãos da rede de proteção à mulher vítima de violência e os programas de atenção aos HAV, para que ocorra um acompanhamento mais efetivo dos casos de violência doméstica.

De acordo com as diretrizes para implementação dos Serviços de Responsabilização e Educação de Agressores, produzido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM, 2011), o núcleo ou órgão responsável pelos grupos reflexivos deve organizar e atualizar permanentemente o banco de dados das atividades realizadas para que seja realizada a prestação de contas, a quem couber, incluindo o próprio poder judiciário que realizou o encaminhamento, demonstrando a importância das comunicações entre os órgãos.

Portanto, além da responsabilidade atribuída aos encaminhamentos, deve-se investir em formas diversificadas de fazê-lo, destacando-se a necessidade de sempre ocorrer a comunicação entre os programas e as diferentes instituições da rede, com fins de acompanhamento do processo de responsabilização e de reflexão dos homens, bem como avaliando os programas de intervenção e as potencialidades dos grupos reflexivos como agente transformador em prol do fim da violência e da igualdade de gênero.

3. 1.3. Triagem e seleção dos participantes

Porque a triagem, ela acontece né, o convite sai de onde? Ele vai junto com a medida protetiva. Eles comparecem ou não. Os que comparecem a gente faz uma fala mais livre, pra entender como foi o processo, a gente avalia se a pessoa apresenta perfil de que quer participar do grupo ou não. [...] quais os requisitos? Ter um relacionamento conjugal, configurar um relacionamento conjugal com a vítima; não apresentar algum transtorno mental, algum déficit cognitivo; e não trazer essa questão de alcoolismo e drogadição (P4).

[...] não tem dentro da nossa estrutura de grupo fazer triagem, quem faz essas triagens é o próprio juiz, é a percepção que ele [o juiz] tem de que ele [o HAV] tem que ser encaminhado, é o perfil, né? O perfil desse agressor é avaliado pelo próprio juiz. Na hora que chegou no grupo, nós recebemos. [...] esse encaminhamento está na sentença do juiz (P6).

[...] é tipo uma triagem. Então, não estar respondendo a qualquer outro tipo de processo judicial, estar em plenas condições de saúde mental e não fazer uso abusivo de álcool e/ou outras drogas. Mas cada caso é examinado separadamente e verificada a possibilidade de inserção. [...] ele [HAV] não é descartado logo de imediato, ele vem aqui, a gente faz essa triagem e tenta perceber qual é o nível de comprometimento que ele está naquele momento (P2).

Dois dos três programas realizam triagem, que seguem alguns critérios. Em apenas um dos programas não há triagem, a seleção ocorre diretamente pelo juiz do JVD. Os critérios para triagem variam desde estarem em um relacionamento conjugal, não estar respondendo a qualquer outro tipo de processo judicial, até os mais comuns: não apresentar transtorno mental, alcoolismo ou drogadição.

As pesquisas sobre esse tipo de intervenção indicam que a maioria dos serviços de atendimento aos HAV realiza atividades em grupo e individuais. Essas constituem-se majoritariamente em avaliações iniciais ou de encaminhamento para o grupo (Álvarez & Montero, 2009). De acordo com Beiras e Bronz (2016), entrevistas iniciais são importantes para que o candidato ao grupo avalie se a proposta de trabalho realmente lhe interessa. Para isso, os facilitadores precisam descrever o objetivo da proposta e a forma como os grupos irão funcionar, auxiliando na adesão ao trabalho. Nesse momento, como forma de inclusão do participante, este já pode inclusive sugerir temáticas a serem trabalhadas nos encontros reflexivos, aumentando a possibilidade de comprometimento e adesão ao grupo. Dessa forma, a triagem pode ser um importante instrumento para o trabalho com grupos reflexivos, desde que não exclua potenciais participantes, mas sim verifique o melhor momento destes para participação no grupo.

Portanto, a triagem pode ser um importante instrumento a ser utilizado na construção dos grupos reflexivos, auxiliando na adesão dos homens ao grupo e na construção compartilhada e colaborativa. Assim, desde o primeiro momento, os HAV podem experimentar um espaço de acolhimento e de pertencimento, distante de julgamentos pré-concebidos que rotulam os homens devido ao ato de violência praticado.

3. 2 Fase grupal

A segunda categoria descreve a fase grupal e envolve a etapa de realização dos encontros reflexivos a partir da metodologia adotada pela equipe. Essa categoria subdivide-se em: Funcionamento, Condução dos grupos e Configuração dos grupos, conforme segue.

3. 2.1 Funcionamento

Com relação ao funcionamento dos grupos, destacam-se as seguintes falas:

Mas com relação ao manejo do grupo, é algo que a gente faz experimentando, a cada dia, a cada reunião. [...] a gente tem um convidado que nos ajuda, a gente convida ele pra fazer uma fala sobre a Lei Maria da Penha, por ele ter o aporte jurídico, que a gente não tem. Mas, algo que a gente percebeu, o quanto é complicado pra nós sermos duas mulheres coordenadoras do grupo (facilitadoras), ver que a voz masculina é mais respeitada. A gente percebe isso, quando ele vem tem outra constituição, uma outra dinâmica no grupo, que eu acredito que ainda seja muito em respeito dessa voz masculina. [...] infelizmente, a gente percebe que a voz masculina é muito mais ouvida (P4).

[...] eu percebo que, assim, pelo fato de ser homem é mais fácil de lidar com algumas questões, com alguns embates que por ventura apareçam, possam aparecer. [...] existe o manejo da objeção e uma questão de gênero, sem dúvida: porque é uma mulher, então vou desestabilizar, vou fazer perguntas, e isso contagia os outros participantes do grupo, sabe? (P6).

[...] essa [a condução do grupo] é uma coisa que dá discussão aqui, se faz diferença se é um homem facilitador ou uma mulher facilitadora. Essa é uma discussão. A minha impressão é que certas coisas faz muita diferença você ouvir de outro homem (P5).

De acordo com o relato das entrevistadas, em dois dos programas a questão de gênero promoveu diferenças no andamento do grupo. Ou seja, a diferença de gênero presente na figura de facilitadores provocou reverberações no grupo, como as descritas nos relatos.

Tal fato ilustra a importância de se considerar o referido aspecto na estruturação dos grupos, realizando-os sempre com uma dupla de facilitadores e de preferência de ambos os gêneros. Conforme Beiras e Bronz (2016), a dinâmica grupal produz muitas informações de forma simultânea, as quais podem ser facilmente desapercebidas caso exista apenas um facilitador. Além disso, ambos podem conversar entre si sobre o que escutam no grupo, facilitando a análise e a condução.

Para além disso, os referidos autores afirmam que devem ser incluídas mulheres nos grupos com HAV, na função de facilitadoras, formando duplas mistas de facilitadores, se possível. Segundo os autores, tal fato é visto como positivo pelos homens, tornando as discussões de gênero mais presentes ao longo dos encontros. Lima, Medrado, Carolo e Nascimento (2007) acreditam que duplas mistas de facilitadores contribuem para o trabalho com grupos de homens, pois demonstram a cooperação de homens e mulheres na construção da equidade de gênero e respeito mútuo.

Bernardes e Mayorga (2017, p. 11) também reforçam essa questão, pois os resultados de sua pesquisa com serviços de intervenções com homens no estado de Minas Gerais indicou que a facilitação por um homem e uma mulher possui a "função de projetar a imagem de um relacionamento equitativo e respeitoso, deste modo, potencializando um sentido vicariante da aprendizagem". Portanto, de acordo com os achados deste estudo e da literatura, recomenda-se a utilização de duplas mistas na condução dos grupos reflexivos de homens, com o intuito de potencializar as reflexões suscitadas pelo grupo, fomentando a igualdade de gênero.

3. 2.2. Condução dos grupos

Com relação à condução dos grupos, destacam-se as falas das facilitadoras (P4, P5 e P6):

Eu trabalho muito com perguntas, de transformar as afirmações em perguntas. Nós trabalhamos em um formato não de palestra, mas de construção do tema. [...] no grupo eu pego o norte da reflexão temática e construo junto com eles, e essa construção suscita exemplos, e a gente trabalha dentro dos exemplos, que eles próprios apresentam. [...] a gente começa a trabalhar com eles dentro daquilo que eles apresentam (P6).

Um aspecto fundamental é esse enfoque nas perguntas. A gente sabe quais os objetivos que a gente quer alcançar com cada encontro e quais são as perguntas, que a gente chama de perguntas norteadoras, pra atingir cada um desses objetivos, esse é o ponto! [...] Então, reforçando, muda crença, muda comportamento, e muda a partir de perguntas que podem fazer ele repensar qual é a visão dele do mundo e por que ele está tendo certas atitudes (P5).

[...] a partir de cada grupo, a gente vai adaptando ideias, não tem algo fixo. [...] é algo que a gente deixa aberto, que a gente instiga a participação de todos, às vezes a gente fala de todos os assuntos no mesmo dia. Então a gente vai fazendo uma crescente para que eles cheguem em novas crenças centrais. [...] e aí a gente vai desconstruindo e sempre jogando para o grupo (P4).

A partir do conteúdo trazido pelas falas, percebe-se que, no grupo facilitado por P6, são trazidos elementos da abordagem construtivista, que sugerem uma intervenção a partir de uma construção compartilhada com os HAV, sugerindo uma desconstrução de qualquer tipo de hierarquia na intervenção. Antezana (2012) defende que, nesse tipo de enfoque, a violência é fruto da interação entre a esfera social e a subjetividade do sujeito, sendo necessário que o indivíduo compreenda esse processo para que adquira mais autonomia em seus relacionamentos. Nesse sentido, a colaboração do sujeito é imprescindível para o êxito do processo reflexivo.

As participantes P4 e P5, por sua vez, demonstraram um enfoque mais cognitivo-comportamental, visto que abordam a necessidade de um processo de mudança de crenças (centrais) que incitam os homens ao comportamento violento e que por isso precisam ser modificadas para que ocorra uma mudança comportamental. O enfoque cognitivo-comportamental, conforme Antezana (2012), individualiza o fenômeno da violência, entendendo-o como um recurso utilizado pelos homens para diminuir tensões e frustrações. Reitera-se que abordagens individualizantes devem ser evitadas, visto que a violência contra a mulher é um fenômeno multicausal e multideterminado.

Os grupos reflexivos, segundo Atallah et al. (2013), precisam ancorar-se em um modelo reflexivo-responsabilizante que proporcione reflexões em grupo, constituindo-se em um local de troca de experiências e de produção de significados a partir de discussões que ocorram na interação entre os participantes, como narrativas pessoais, acontecimentos diversos e julgamentos que indicam, muitas vezes, ideologias sexistas, machistas, preconceituosas, homofóbicas e hierárquicas. Assim, pode ocorrer uma importante troca de valores, concepções e afetos entre os membros do grupo e a possibilidade de desconstrução das masculinidades violentas.

Nesse sentido, Beiras et al. (2019, p. 272) sugerem que os programas tenham um caráter mais reflexivo "para evitar uma perspectiva psicologizante ou patologizante da violência" e que se utilizem da perspectiva de gênero e de teorias feministas contemporâneas com abordagem crítica e reflexiva. Portanto, sugere-se que os programas adotem um tipo de abordagem que suscite o processo reflexivo e responsabilizante nos homens.

Assim, cada programa deve adequar a metodologia escolhida ao seu contexto de atuação, tornando o grupo mais próximo da realidade em que se encontra inserido, aumentando as chances de êxito. O funcionamento do grupo deve, portanto, ocorrer de forma flexível, com assuntos variados, respeitando a demanda dos participantes, utilizando perguntas norteadoras que instiguem a reflexão e/ou dinâmicas e assuntos que se adaptem à demanda dos homens, favorecendo o pertencimento, bem como o processo reflexivo.

Outro aspecto que merece destaque é referente à condução do grupo por meio de perguntas. Para Beiras e Bronz (2016), as perguntas merecem uma atenção especial, visto que promovem a abertura para conversas que podem trazer novos significados. Elas podem tanto suscitar conversas relacionadas ao tema que está sendo trabalhado quanto instigar os participantes a dizer o que pensam sobre o que está sendo proposto, bem como promover o intercâmbio de distintas visões que são a base do processo reflexivo.

Portanto, o modelo reflexivo-responsabilizante demonstra-se mais adequado, visto que possibilita que sejam fomentadas reflexões a partir da liberdade de expressão dos participantes, em um processo coparticipativo e de criação de laços em vez de atitudes passivas e observadoras (Acosta et al., 2004; Beiras & Bronz, 2016), sendo o mais indicado nas intervenções.

3. 2.3 Configuração dos grupos

Seria impossível ter grupos fechados, dificultaria muito. Então são grupos abertos com cinco temas, cinco encontros: a gente começa falando da Lei Maria da Penha; o segundo tema a gente fala sobre sistema de crenças. O terceiro a gente fala sobre habilidades relacionais, eles adoram. O quarto grupo, mitos e verdades sobre a violência doméstica; e termina com autorresponsabilização. Em regra, os grupos duram cerca de uma hora e meia, duas horas. [...] a gente tem regras de convivência, mas as principais são em relação ao horário de chegada, não vir alcoolizado, a história das faltas e como um vai respeitar o outro nessas trocas. [...] Então, elas [as regras] são apresentadas no primeiro dia, da LMP, mas são lembradas nos outros dias por ser um grupo aberto (P5).

A gente faz seis encontros com eles, encontros semanais, que duram, mais ou menos uma hora, uma hora e meia. Nesses encontros a gente trabalha diversos temas, como a Lei Maria da Penha, a medida protetiva. O primeiro encontro, a gente deixa algo mais aberto, porque é o primeiro momento deles. Então é um momento mais de uma fala mais aberta, de um acolhimento inicial. No segundo encontro a gente traz algumas dinâmicas, de papéis de gênero, de estratégias para resolução de conflitos. [...] mas a gente não tem algo fixo, no segundo encontro vai ser isso, no terceiro isso... a gente tem algumas ideias que a gente vai trabalhando, e a partir do que vem no grupo a gente vai adaptando. [...] a gente está iniciando, é um grupo fechado e com uma turma certinha. Quem inicia, geralmente termina com a gente (P4).

[...] as diferentes temáticas são trabalhadas de forma estruturada ao longo dos dez encontros e seguem uma ordem predeterminada, qual seja: introdução das discussões de gênero, reflexões sobre as formas de violência contra a mulher, o papel da comunicação e a solução de conflitos a partir do diálogo, identificação do comportamento agressivo: prevenindo a violência e como ter o controle da raiva, história da Lei nº 11.340/2006 e a sua execução, considerações sobre direitos humanos, uso abusivo de álcool e outras drogas, saúde do homem. [...] seguindo um programa predeterminado de temáticas que deve ser executado em um referido tempo [20 horas, visto que o programa se encontra no formato de dez encontros com duas horas cada] (P1).

Os programas investigados seguem formatos distintos, em sua maioria fechados, com frequência semanal, com um mínimo de cinco encontros e máximo de dez e com temáticas variadas. Apesar de os grupos possuírem uma ordem predeterminada de temáticas a serem trabalhadas nos encontros, eles apresentam certa flexibilidade na discussão dos assuntos. Este último aspecto é de suma importância para atingir objetivos de reflexão e responsabilização, pois, conforme Atallah et al. (2013), grupos com conteúdo e temáticas fechadas, previamente estabelecidas pela equipe, tendem a tornar os participantes mais passivos e observadores, aproximando-se de um modelo punitivo, o que deve ser evitado. Sendo assim, a recomendação dos autores é que a reflexão ocorra em um espaço de criação e participação ativa dos homens.

Nesse sentido, Beiras e Bronz (2016) estabelecem que a quantidade de encontros não precisa ser definida a priori pelos facilitadores. Contudo, salientam que a literatura internacional indica um mínimo de dez encontros, uma vez que um número menor de encontros pode ser prejudicial para as discussões, porque a inclusão de questões individuais e aprofundamento dos temas debatidos se tornam mais limitados devido à preocupação com a efetivação das temáticas previstas.

Beiras et al. (2019) defendem um número mínimo entre 12 e 15 encontros, com o intuito de garantir a qualidade da reflexão suscitada. Além disso, ressaltam que, para além do formato adotado, deve-se manter o foco na responsabilização, por meio de metodologias participativas, perguntas reflexivas e atividades que provoquem mudanças nas masculinidades desses homens. Portanto, sugere-se às equipes que reflitam sobre a configuração dos grupos, tornando o processo mais participativo e colaborativo, incluindo os homens na escolha das temáticas, do número de encontros, do tempo de cada encontro, do horário de funcionamento do grupo e de outras demandas que possam ocasionalmente surgir e/ou que façam parte da localidade, contexto e/ou instituição em que se insere o trabalho/programa.

Para além dos quesitos indispensáveis discutidos nessa categoria, ressalta-se a importância da análise dos grupos e da sua inserção na estrutura social vigente, a qual Saffioti (2004) denomina de estrutura ou sistema patriarcal-racista-capitalista. Nesse sentido, a referida autora defende que enquanto não houver uma mudança radical do sistema patriarcal-racista-capitalista, as desigualdades e as violências (principalmente às direcionadas às mulheres e às minorias) tende a se reproduzir. Ou seja, enquanto não houver uma transformação da estrutura social na qual vivemos, a violência contra a mulher continuará a se reproduzir, principalmente devido aos aspectos de dominação/opressão/exploração existentes nessa estrutura (Saffioti, 2004).

Portanto, o atendimento aos HAV deve ocorrer de forma integrada e coletiva com movimentos sociais, coletivos feministas, políticas públicas e ações estatais de proteção às mulheres, favorecendo a ampliação da capacidade dos serviços de saúde e assistência social para que atuem de forma comunitária e preventiva, ampliando as discussões em torno da igualdade de gênero em escolas, centros comunitários e associações de bairro, por exemplo. A atuação em torno da violência contra a mulher, portanto, exige ações conjuntas em prol da desconstrução da masculinidade violenta e da exploração/dominação/opressão expressa pelas contradições inerentes ao sistema patriarcal/racista/capitalista.

3. 3 Fase pós-grupo

A terceira categoria abarca a descrição da fase pós-grupo e envolve a etapa de avaliação do trabalho, e é nessa fase que ocorre o acompanhamento dos egressos, conforme segue:

[...] surgiu a ideia que não está implementada ainda, que nós não temos, que é fazer visita domiciliar depois de 30 dias, alguns estados fazem isso. [...] nós não fazemos isso hoje por falta de recursos humanos, nós não temos pessoal pra fazer isso, né? (P6).

[...] a gente, depois de uns 90/120 dias de término do grupo, faz uma entrevista de reavaliação, onde a gente chama esses homens pra saber como é que está agora? O que aconteceu depois do grupo? O que o grupo agregou? [...] então nós deixamos alguns meses pra ter a certeza de que muitos já passaram pela audiência, muitos já finalizaram o processo, ou não, mas que as coisas podem estar mais organizadas, um pouco diferente do que estava antes (P4).

[...] acompanhamento por seis meses desses homens, pra ver de fato o impacto desse trabalho para as famílias: O que foi que impactou esse trabalho? Houve algum significado esse trabalho? (P1).

De acordo com os relatos, apenas um dos programas realiza o acompanhamento dos egressos, por até seis meses após o término dos grupos, por meio de visitas domiciliares. Contudo, todos os programas realizam algum tipo de avaliação dos grupos reflexivos nos HAV, em sua maioria ao final do ciclo dos grupos, ou após 90/120 dias, conforme um dos programas pesquisados.

Conforme Atallah et al. (2013), as atividades de monitoramento e avaliação dos serviços possuem escassas experiências e instrumentos incipientes e com baixa capacidade de auferir resultados. Nesse sentido, Beiras e Bronz (2016) indicam a produção de um relatório final contendo todas as informações geradas pelo(s) instrumento(s) avaliativo(s), como forma de verificar se o trabalho foi satisfatório ou se há necessidade de prosseguir com o trabalho, caso seja possível.

Além disso, Acosta et al. (2004) indicam grupos de acompanhamento, também conhecidos como follow-up, na fase pós-grupo. De acordo com os autores, o acompanhamento deve ocorrer por um período de um ano, com um total de cinco encontros que aumentam de intervalo ao longo do processo. Os encontros devem iniciar 40 dias após o término do grupo reflexivo e serve para monitorar e apoiar os egressos com o intuito de dar continuidade à avaliação do impacto do trabalho em suas vidas, bem como verificar a reincidência ou não de situações de violência (Acosta et al., 2004). Contudo, os programas pesquisados demonstraram que ainda estão aquém de uma avaliação ou monitoramento ideal, devido à falta de recursos humanos e financeiros, falta de apoio institucional, falta de uma política pública específica, entre outros desafios já descritos nos resultados deste trabalho.

Percebe-se, portanto, que a avaliação é uma atividade que necessita de mais aprofundamento pelos programas, uma vez que as estratégias utilizadas para avaliar, apenas baseadas nos índices de reincidência e de reentradas no sistema de justiça, não abarcam a complexidade do fenômeno da violência. Assim, torna-se necessária uma avaliação que considere maior tempo de contato com os homens após o término dos atendimentos grupais, de forma mais aprofundada e representativa.

 

4. Considerações finais

O atendimento aos homens autores de violência doméstica tem se ampliado no Brasil, contudo ainda precisa expandir, visto as dimensões e demandas do país. Pensando nisso, este estudo buscou comparar e problematizar as metodologias utilizadas em três programas de atendimento aos HAV localizados em diferentes regiões do Brasil.

Os principais resultados encontrados neste estudo demonstraram a necessidade de investimento em capacitações e formações continuadas para os facilitadores dos grupos com o intuito de qualificar a prática com os grupos e potencializar o espaço reflexivo e de responsabilização. Além disso, recomenda-se o atendimento em grupo por meio de uma dupla mista de facilitadores, potencializando a aprendizagem, a reflexão e a responsabilização dos homens.

Com relação ao funcionamento dos programas e abordagens adotadas, sugere-se a adoção de abordagens que suscitem o processo reflexivo e responsabilizante, para evitar perspectivas psicologizantes ou patologizantes da violência (Beiras et al., 2019). Além disso, os programas devem adequar a metodologia escolhida ao seu contexto de atuação, tornando o grupo mais próximo da realidade em que está inserido, aumentando as possibilidades de êxito. Para isso, o funcionamento do grupo deve ocorrer de forma flexível, com assuntos variados, respeitando a demanda dos participantes, utilizando perguntas norteadoras que instiguem a reflexão e/ou dinâmicas e assuntos que se adaptem à demanda dos homens, favorecendo o pertencimento e o processo reflexivo.

Além da problematização sobre a metodologia, cabe ressaltar a importância da análise dos grupos e da sua inserção na estrutura social vigente, a qual Saffioti (2004) denomina de estrutura ou sistema patriarcal-racista-capitalista. Nesse sentido, a referida autora defende que enquanto não houver uma mudança radical desse sistema, as desigualdades e as violências (principalmente as direcionadas às mulheres e às minorias) tendem a se reproduzir. Ou seja, enquanto não houver uma transformação da estrutura social na qual vivemos, a violência contra a mulher continuará a se reproduzir, principalmente devido aos aspectos de dominação/opressão/exploração existentes e inerentes à estrutura (Saffioti, 2004).

Nesse sentido, deve-se fomentar o atendimento aos HAV de forma coletiva e integrada aos movimentos sociais, coletivos feministas, políticas públicas e ações estatais de proteção às mulheres, favorecendo a ampliação da capacidade dos serviços de saúde e assistência social, para que atuem de forma comunitária e preventiva, e não apenas após a ocorrência da situação de violência, ampliando as discussões em torno da equidade de gênero em escolas, centros comunitários e associações de bairro, por exemplo. A atuação em torno da violência contra a mulher, portanto, exige ações conjuntas em prol da desconstrução da masculinidade violenta e da exploração/dominação/opressão expressa pelo patriarcado/racismo/capitalismo.

Para finalizar, cabe ressaltar a necessidade de políticas públicas específicas para o atendimento aos HAV, o apoio financeiro e institucional para a ampliação dos programas e a necessidade de integração das diferentes instituições da rede de proteção à mulher. Cabe ressaltar que este estudo apresenta limitações quanto ao número de programas investigados e de facilitadores entrevistados. Nesse sentido, indicam-se novos estudos que possam abarcar maior número de programas e/ou facilitadores a partir de diferentes análises e aportes teóricos, proporcionando a ampliação das discussões e a disseminação da importância do atendimento para homens autores de violência contra a mulher.

 

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Correspondência:
Juliano Beck Scott
Rua Hélio Galvão, 8830, 203, Ponta Negra
Natal, RN, Brasil. CEP 59090-070
E-mail: bs.juliano@gmail.com

Submissão: 20/12/2019
Aceite: 21/10/2020
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

 

 

Nota dos autores:
Juliano Beck Scott,
Departamento de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi/UFRN), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Isabel F. de Oliveira, Departamento de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi/UFRN), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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