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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.23 no.3 São Paulo set./dez. 2021

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPHD11551 

DESENVOLVIMENTO HUMANO

 

Dislexia e transtorno do desenvolvimento da linguagem: diferenças cognitivo-linguísticas na leitura

 

 

Silvia B. GuimarãesI; Renata MousinhoII

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A compreensão da leitura é produto do desempenho das habilidades de decodificação e compreensão da linguagem. A dificuldade de compreensão dessa atividade pode ser a consequência de um déficit em qualquer uma dessas habilidades. O objetivo deste estudo foi verificar as habilidades subjacentes de leitura em dois grupos clínicos, dislexia do desenvolvimento (DD) e transtorno do desenvolvimento da linguagem (TDL), buscando suas similaridades e diferenças. A amostra foi de crianças nos anos iniciais da escolarização. Avaliaram-se os grupos em compreensão leitora, velocidade de leitura de palavras, processamento fonológico e compreensão e produção de linguagem. Os resultados das comparações entre os dois grupos mostraram que eles foram similares nas habilidades fonológicas, mas diferiram nas habilidades de compreensão e produção da linguagem oral. Nessa habilidade, o grupo DD obteve maior desempenho quando comparado ao grupo TDL. Concluiu-se que diferentes formas de intervenção são necessárias para suprir as fragilidades específicas de cada grupo.

Palavras-chave: compreensão leitora; leitura; dislexia; transtorno do desenvolvimento da linguagem; linguagem.


 

 

1. Introdução

A Teoria Simples de Leitura (Gough & Tunmer, 1986) define que a compreensão leitora é produto do desempenho tanto das habilidades que envolvem a decodificação quanto da capacidade de compreensão da linguagem oral. A decodificação é a conexão da relação entre letras e sons das palavras. A automatização desse processo permite ao leitor ler com rapidez e precisão as palavras do texto (Gough & Tunmer, 1986). A compreensão da linguagem envolve aquelas habilidades relacionadas à extração do significado do que é lido. São capacidades envolvidas no entendimento de palavras, frases e textos (Gough & Tunmer, 1986). Leitores disléxicos ou com transtorno do desenvolvimento da linguagem (TDL) sofrem durante a leitura, e isso pode ser reflexo das fraquezas das habilidades de decodificação e/ou de compreensão da linguagem oral. Entender as semelhanças e as diferenças das habilidades linguístico-cognitivas dentro dos quadros desses transtornos é um passo importante na compreensão das origens das dificuldades de compreensão leitora.

Tanto o TDL quanto o Transtorno específico da aprendizagem com prejuízos na leitura (dislexia do desenvolvimento - DD) são transtornos do neurodesenvolvimento, o que significa que os sintomas aparecem ao longo do desenvolvimento e persistem por toda a vida. De maneira geral, ambos têm sérios impactos nos resultados educacionais e psicossociais da criança quando não identificados e tratados precocemente (Adlof & Hogan, 2018; Bishop & Snowling, 2004).

A DD é um transtorno específico na aquisição da leitura, que é observado em indivíduos com inteligência e audição normais, bem como com oportunidades ambientais e instrucionais adequadas (Stanovich, 1994). Uma das hipóteses mais fortes sobre sua causa vem do déficit fonológico, que afeta a precisão e a fluência de leitura de palavras, e, consequentemente, a compreensão da linguagem escrita (Lyon, Shaywitz, & Shaywitz, 2003). Para a revisão dos modelos de déficit na dislexia, ver Pennington et al. (2012).

O TDL é caracterizado por déficits na produção e/ou na compreensão da linguagem apesar da inteligência e audição normais, bem como pela presença de um ambiente de aprendizagem adequado (Bishop, Snowling, Thompson, Greenhalgh, & CATALISE-2 Consortium, 2017). O TDL é diagnosticado quando o desenvolvimento da linguagem da criança fica atrasado em relação a outras habilidades sem motivo aparente, apesar da capacidade não verbal na faixa normal. Ele apresenta pelo menos duas ou mais dimensões da linguagem comprometidas, como os níveis sintático, morfológico, semântico e/ou fonológico (Bishop et al., 2017).

Pesquisas mostram que ambos os transtornos compartilham dificuldades na leitura (Bishop, McDonald, Bird, & Hayiou-Thomas, 2009; Bishop & Snowling, 2004; Catts, Adlof, Hogan, & Weismer, 2005; Snowling, Hayiou-Thomas, Nash, & Hulme, 2019). Bishop e Snowling (2004) propuseram um modelo bidimensional cruzando fraquezas nas habilidades fonológicas e habilidades linguísticas mais amplas (por exemplo: morfologia, vocabulário e sintaxe). O modelo sugere que ambos os transtornos são parcialmente distintos por compartilharem dificuldades fonológicas (um fator compartilhado é a fraqueza na decodificação), mas se diferem na extensão em que as dificuldades mais amplas de linguagem estão implicadas. A DD estaria associada a dificuldades nas habilidades fonológicas, e, portanto, o déficit na leitura estaria mais fortemente associado às dificuldades de decodificação das palavras. Posteriormente, o estudo longitudinal de Catts et al. (2005) mostrou uma hipótese complementar à de Bishop e Snowling (2004), destacando os transtornos com diferentes déficits subjacentes. Uma fraqueza no processamento fonológico está intimamente associada à dislexia, mas não ao TDL, quando este ocorre sem comorbidade com a DD. Há quadro de TDL com habilidades fonológicas fortes, mas as demais habilidades linguísticas estariam prejudicadas (Nation, 2005).

São muitos os estudos que apontam o TDL e a DD como transtornos separados, mas a comorbidade entre eles é comum, como mostram Adlof e Hogan (2018), Bishop et al. (2009) e Ramus, Marshall, Rosen e Lely (2013). Quando há um quadro combinado entre ambos, o comprometimento na leitura é prejudicado devido a um baixo desempenho nas habilidades fonológicas e de linguagens mais amplas (vocabulário, aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos). Assim sendo, dentro do Modelo Simples de Leitura (Gough & Tunmer, 1986), a decodificação seria o obstáculo central enfrentado pelos leitores disléxicos, e o comprometimento mais amplo nas habilidades linguísticas estaria relacionado às fraquezas dos leitores com TDL.

É importante destacar que a literatura científica a respeito da leitura foi construída e projetada para as crianças falantes do inglês. Há críticas sobre o anglocentrismo das teorias de leitura (Share, 2008). O inglês é uma língua que excede nas irregularidades ortográficas (Share, 2008). Testar os efeitos das habilidades envolvidas na leitura em línguas mais transparentes, como o português, é importante. Poucos estudos fizeram comparações diretas entre os transtornos com falantes do português. Posto isso, este artigo apresenta como objetivo compreender os processos subjacentes de leitura em dois grupos clínicos, DD e TDL, buscando suas similaridades e diferenças. A hipótese que guia este estudo é que, apesar das similaridades no que diz respeito às queixas de dificuldades de leitura, o perfil linguístico-cognitivo difere entre os grupos mencionados.

 

2. Método

2.1 Amostra

Os dados de arquivo do programa ELO: escrita, leitura e oralidade (Mousinho, 2017) foram utilizados neste estudo. Participaram do estudo crianças diagnosticadas pela equipe do projeto ELO com DD, ou TDL que estavam cursando os anos iniciais do ensino fundamental (do primeiro ao terceiro ano). Esse recorte na escolaridade é referente ao ciclo de alfabetização. Selecionou-se um total de 76 protocolos, dos quais 48 com crianças diagnosticadas com Transtorno específico da aprendizagem com prejuízos na leitura (dislexia do desenvolvimento - DD) e 28 com transtorno de linguagem. As idades das crianças variaram de 6 a 12 anos, com média de idade de 7 anos e 9 meses (DP = 12,9 meses) para o grupo DD, e média de 8 anos de idade (DP = 14,6 meses) para o grupo TDL. Os dois grupos não diferiram significativamente na idade cronológica, t(74) = -1,05, p = 0,29.

As crianças participantes do projeto ELO tinham um perfil clínico construído cuidadosamente por uma avaliação multidisciplinar composta de fonoaudiólogos, psicólogos, neuropediatra e psicopedagogos. Os diagnósticos respeitaram os critérios do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013). As avaliações englobaram os aspectos da leitura, escrita, linguagem oral e cognição. O perfil clínico era baseado nas avaliações linguísticas e cognitivas coletadas individualmente com cada criança, bem como acrescidas dos relatos detalhados dos pais sobre a história de desenvolvimento de seus filhos e trajetória escolar.

O projeto ELO: escrita, leitura e oralidade, aprovado em julho de 2010 pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Neurologia Deolindo Couto e renovado sob o número 5/2013, atua no atendimento de crianças com queixas de dificuldade de aprendizagem. Todas as crianças e seus pais assinaram um termo de consentimento permitindo que o projeto ELO usasse as informações das avaliações para fins de pesquisa.

2.2 Instrumentos

2.2.1 Medidas de leitura

A leitura foi avaliada a partir de textos narrativos, de acordo com o ano escolar: "A folia das cores" para o primeiro ano, texto composto por 113 palavras; "O acidente" para o segundo ano, texto composto por 196 palavras (Cocco & Hailer, 1995); e "As travessuras de Afonsinho" para o terceiro ano, texto constituído por 724 palavras. A examinadora dava a seguinte instrução: "Você vai ler esse texto e, quando você acabar, eu vou fazer perguntas sobre ele". A velocidade de leitura foi medida em palavras por minuto (PPM). Ofereceram-se cinco minutos de leitura oral para cada criança ler o texto. A quantidade de palavras lida durante esse tempo foi dividida por cinco para calcular o número de PPM. Avaliou-se a compreensão leitora por meio de cinco perguntas eliciadoras sobre a história lida pela criança, sendo contabilizado o percentual de acerto. As perguntas eram sobre os personagens, as ações norteadoras da história, suas consequências e o desfecho da narrativa.

2.2.2 Linguagem oral

A linguagem oral compreensiva foi analisada a partir do texto ouvido. A examinadora lia o texto, em seguida, pedia para recontar, e, por fim, fazia perguntas eliciadoras sobre ele. Utilizou-se o texto "O leão e o rato" (Carpaneda & Bragança, 2005), composto por 104 palavras e 560 caracteres. Primeiramente, a criança recontava a narrativa da história e, depois, respondia a cinco perguntas sobre o que havia lido. O nível de compreensão e produção da narrativa foi medido a partir dos níveis de complexidade propostos por Brandão & Spinillo (2001).

As cinco categorias de Brandão e Spinillo (2001) utilizadas como base para a classificação de produção de narrativa utilizadas foram as seguintes:

Nível I: Repetição do tema proposto ou produção de frases desconectadas, que podem estar ou não relacionadas ao tema.

Nível II: Descrição do estado dos personagens. O tema apenas insere enunciados e sugere o personagem principal.

Nível III: Sequência de eventos interligados por relações causais, e algumas incluem meta/motivo para o personagem principal. O tema é um eixo norteador.

Nível IV: Situação-problema a ser resolvida pelo personagem principal e que o motiva, mas o desfecho é repentino e pouco elaborado, sem resolução do problema.

Nível V: Narrativa complexa e com detalhes. A história possui início, meio e fim bem elaborados e com a resolução explícita da situação-problema.

Para a classificação da compreensão de narrativas, foram utilizados os seguintes parâmetros de Brandão e Spinillo (2001):

Nível I: Reproduções desconectadas, enredos diferentes, repetição ipsis litteris do tema proposto ou frases não relacionadas ao texto.

Nível II: Reproduções descritivas do estado dos personagens ou situações, sem relações causais. Pode envolver alguns personagens ou eventos da narrativa original, nem sempre reais.

Nível III: Reproduções já caracterizadas por sequência de eventos interligados por relações causais, que incluem partes da história, nem sempre de forma articulada ou fidedigna.

Nível IV: Reproduções globais, com uma situação-problema a ser resolvida, mas com desfecho repentino, sem conexão precisa entre o problema e sua resolução.

Nível V: Reproduções completas da narrativa ouvida, com inferências, articulação entre ideias centrais e resolução da situação-problema.

A compreensão do texto ouvido também foi avaliada por meio de cinco perguntas eliciadoras sobre a história lida pela criança. Tal qual na análise da compreensão do texto lido, as perguntas tratavam sobre os personagens, ações norteadoras da história, suas consequências e o desfecho da narrativa. Foi considerada para a análise a porcentagem de acertos.

2.2.3 Processamento fonológico

Para a consciência fonológica, foi utilizado o teste das Provas de Habilidades Metalinguísticas e de Leitura - Prohmele (Cunha & Capellini, 2009), com as seguintes tarefas: identificação inicial, final e medial, segmentação, adição, substituição, subtração e combinação. Para cada uma das tarefas, havia seis itens avaliando o nível silábico e seis itens avaliando o nível fonêmico. Utilizaram-se como parâmetro para análise o percentual total de acertos de tarefas silábicas e o percentual total de tarefas fonêmicas.

A nomeação automatizada rápida (Denckla, 1974 como em Capellini, Ferreira, Salgado, & Ciasca, 2007) mediu o tempo entre o reconhecimento visual e a resposta verbal de estímulos visuais sequenciados: letras, números, cores e objetos. Para esta pesquisa, adotou-se apenas a versão de números e letras, cuja velocidade de nomeação foi medida em segundos.

2.3 Procedimentos

As avaliações aconteceram no laboratório de fonoaudiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O processo de avaliação era realizado em quatro momentos (ver Mousinho, 2017). No primeiro dia, fazia-se uma anamnese completa com a família. No segundo, realizavam-se três avaliações distintas e de forma individual, respectivamente, com a equipe especializada nas áreas de neurologia, fonoaudiologia e neuropsicologia. No terceiro dia, novas sessões fonoaudiológicas e neuropsicológicas eram realizadas, além da investigação psicopedagógica e das habilidades matemáticas. No quarto momento, após a reunião da equipe interdisciplinar e elaboração do laudo, a família recebia a devolutiva e orientações.

2.4 Análise dos dados

As variáveis foram combinadas em dois grupos: processamento fonológico (consciência fonológica silábica, fonêmica e nomeação automatizada rápida) e habilidades de linguagem oral (compreensão da narrativa oral, perguntas eliciadoras e produção da narrativa oral). Primeiro, para determinar se os dois grupos (dislexia e Transtorno do desenvolvimento da linguagem) diferiam no desempenho nos dois domínios de habilidade, realizaram-se uma análise multivariada unidirecional de variância MANOVA e, subsequentemente, uma análise univariada de variância (ANOVAs). A premissa da homogeneidade das matrizes de covariância foi verificada com o teste de Box, importante para tamanhos amostrais diferentes. O teste de inferência estatística foi Pillai's Trace. Nas medidas não paramétricas, utilizou-se o teste t de Mann-Whitney para comparar as medidas de leitura. Além disso, calculou-se o tamanho do efeito de acordo com Field (2009), e valores acima de 0,80 foram considerados grandes. Os resultados significativos das comparações dos grupos serão seguidos por análises qualitativas do percentual de frequência entre os grupos. Os dados foram analisados no SPSS versão 13 para Windows.

 

3. Resultados

A Figura 3.3.1 apresenta as médias e os desvios padrão de todas as medidas usadas. Os dados de cada distribuição foram conferidos quanto à normalidade (Field, 2009). Antes das próximas análises, examinaram-se as propriedades distributivas de todas as medidas. Os dados foram conferidos quanto à normalidade por meio da divisão das skewness pelo desvio padrão do erro (Field, 2009). As variáveis velocidades de leitura e compreensão da leitura oral tiveram valores violados acima de 2,0.

 

 

3.1 Habilidades de leitura

As comparações das medidas de leitura entre os grupos da dislexia não apresentaram diferenças significativas na velocidade de leitura de palavras (U = 616, p = 0,54) e compreensão de leitura oral (U = 579, p = 0,26). Ambos os grupos foram similares no desempenho em leitura.

3.2 Processamento fonológico

Para a homogeneidade, os testes de Box não foram significativos, p = 0,20, o que indica que a suposição de homogeneidade das matrizes de covariância não foi violada. No teste de MANOVA, não houve diferença estatisticamente significativa entre os disléxicos e com transtorno de linguagem nas medidas de consciência fonológica silábica, fonêmica e nomeação automatizada rápida, Λ = 0,01 F(3,72) = 0, 25, p = 0,86, η2p = 0,01. Os grupos também são parecidos nas habilidades que envolvem o processamento fonológico (consciência fonológica silábica, fonêmica e nomeação automatizada rápida).

3.3 Habilidades de compreensão da linguagem oral

Finalmente, nas medidas de compreensão linguística, o teste de Box não foi significativo, p = 0,74, o que indica que a suposição de homogeneidade das matrizes de covariância não foi violada. No teste de MANOVA, apareceu efeito de grupo, Λ = 0,90, F (4,71) = 160,0, p < 0, 001, η2p = 0,90. Em todas as medidas de compreensão oral, os grupos se diferiram em relação ao desempenho - F (1,7) = 4,1, p < 0,05, η2p = 0,05 -, na produção da narrativa oral - F (1,17) = 10,8 p < 0,01 η2p = 0,002 - e nas perguntas eliciadoras - F (1,9) = 6,4 p < 0,05, η2p = 0,08. O teste t mostrou que as médias dos grupos com dislexia foram maiores do que do grupo de TDL e estatisticamente significativas na compreensão da narrativa oral, t(74) = 2,02, p < 0,05, na produção da narrativa oral, t(74) = 2,66, p < 0,01, e nas perguntas eliciadoras, t(48) = 3,10, p < 0,01. O cálculo de Cohen indicou um largo tamanho de efeito médio para as perguntas eliciadoras (r = 0,40) e para a produção da narrativa oral (r = 0,30), e baixo efeito para a compreensão da narrativa oral (r = 0,23).

As figuras 3.3.2 e 3.3.3 apresentam a análise qualitativa da produção e compreensão da linguagem dentro dos grupos clínicos. Na compreensão da narrativa oral, o grupo da dislexia concentrou-se nas categorias IV e V (66,6%), enquanto se observa um baixo percentual nas categorias I, II e III (33,4%). No grupo com transtorno de linguagem, as distribuições das categorias foram mais equivalentes, no entanto 64,3% da frequência das respostas ficou nas categorias I, II e III e 35% nas categorias IV e V. Nota-se que os dois grupos se diferenciaram na qualidade das compreensões feitas, sendo o grupo da dislexia com maior frequência em categorias mais complexas do ponto de vista linguístico. Na produção da narrativa oral, o grupo da dislexia concentrou-se nas categorias IV e V com um percentual total de 56,3%, enquanto as categorias I, II e III representam 43,8% no total de ocorrências. No grupo com transtorno de linguagem, 53,9% da frequência das respostas ficou nas categorias I, II e III e 46,1% nas categorias IV e V. Verifica-se, de modo geral, que as crianças do grupo da dislexia tendem a produzir a narrativa em categorias mais complexas do que o grupo de TDL. Cabe destacar que, no grupo do transtorno de linguagem, 25% da frequência das respostas se enquadrou na categoria I.

 

 

 

 

Sendo assim, observaram-se variações importantes na qualidade das categorias em relação aos grupos. As crianças do grupo do TDL compreendem e produzem histórias orais nas categorias mais elementares. Já as crianças disléxicas tendem a apresentar compreensão e produção oral em categorias elaboradas.

 

4. Discussão

O objetivo deste estudo foi verificar o perfil linguístico-cognitivo entre os grupos de crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem de leitura - DD e TDL -, a partir da Teoria Simples de Leitura. Em particular, examinou-se a proposta de que similaridades entre os grupos poderiam surgir em termos de habilidades fonológicas, nos casos de comorbidades (Catts et al., 2005), mas que distinções devem ser evidentes quando as habilidades de compreensão linguística são consideradas (Bishop & Snowling, 2004).

Primeiramente, os achados apontaram que as habilidades fonológicas parecem ser importantes para explicar as similaridades das dificuldades de leitura em ambos os grupos deste estudo. O desempenho do grupo com TDL nas tarefas de consciência fonológica e nomeação automatizada foi similar ao grupo com DD. O TDL é conhecido por ser um distúrbio heterogêneo, e a similaridade nas habilidades fonológicas com o grupo DD pode ser explicada em parte por uma possível sobreposição entre os diagnósticos. Essas descobertas estão alinhadas com um modelo longitudinal de desenvolvimento da leitura proposto por Catts et al. (2005), Bishop et al. (2009) e Snowling et al. (2019) que, ao compararem os grupos DD e TDL, encontraram déficits fonológicos apenas no grupo de DD. As dificuldades fonológicas mais graves foram encontradas em casos de associações entre DD + TDL quando comparadas ao grupo DD.

Em seguida, foram exploradas as habilidades de compreensão linguísticas orais. Os resultados mostram diferenças entre os grupos, o que sugere a tese central do modelo de Bishop e Snowling (2004) de que crianças do grupo com dislexia e TDL devem ser distinguidas pelo desempenho nas tarefas não fonológicas. Os resultados encontrados neste estudo vão ao encontro da proposta desses autores. As crianças do grupo TDL apresentaram escores menores nas tarefas de produção e compreensão da linguagem oral em relação às crianças do grupo com DD. A análise qualitativa do desempenho das crianças nas tarefas de compreensão linguística mostra que o grupo disléxico obteve maior frequência de resposta com nível de linguagem mais complexa. Esses resultados corroboram igualmente a hipótese de Bishop e Snowling (2004), na visão de que as crianças com TDL apresentam uma gama maior de déficits na linguagem, envolvendo mais níveis linguísticos, em comparação com as crianças com DD.

A partir da teoria do Modelo Simples de Leitura (Gough & Tunmer, 1986), as dificuldades de leitura advêm de fraquezas envolvidas no reconhecimento de palavras e/ou na compreensão da linguagem oral. No grupo DD, as dificuldades no processamento fonológico para ler com precisão e fluência as palavras podem impactar indiretamente a compreensão da leitura via decodificação. Uma vez superadas essas dificuldades básicas, a compreensão leitora é competente. Segundo Nation (2005), apesar do déficit fonológico, a força na DD pode advir das habilidades linguísticas mais amplas da linguagem, como a compreensão da linguagem oral. Elas podem apoiar as habilidades de leitura e fornecer um meio de compensação para esses leitores. Todavia, essa compensação pode estar menos acessível aos leitores com quadro de TDL, que se mostrou mais prejudicado, indicando um déficit mais geral nos diferentes níveis da linguagem, o que pode explicar as dificuldades tanto na fluência quanto na compreensão da leitura.

 

5. Conclusão

Acredita-se que o presente estudo trouxe contribuições para a compreensão das diferenças e similaridades dos quadros de dificuldade de leitura em estudantes brasileiros com DD e TDL. Nesse sentido, com base na perspectiva da Teoria Simples de Leitura que guiou o estudo, tanto a DD quanto o TDL compartilham similaridades nas dificuldades fonológicas relacionadas à decodificação, mas se diferenciam nas habilidades linguísticas mais amplas, como a compreensão linguística.

O estudo vai em direção à hipótese de que, na amostra de estudantes brasileiros, o transtorno com maior probabilidade de estar associado a um déficit no processamento fonológico seja a DD. Esse déficit é considerado a causa proximal dos problemas de leitura de palavras na DD (Vellutino, Fletcher, Snowling, & Scanlon, 2004). Já crianças com TDL podem apresentar déficits mais amplos da linguagem, implicados na decodificação e compreensão da linguagem, como em Catts et al. (2005), Bishop et al. (2009) e Snowling et al. (2019), quando combinados com o quadro de DD.

O estudo apresentou algumas limitações metodológicas. A primeira foi em relação à ausência do grupo controle de leitores típicos com o mesmo nível de leitura. Esse é um controle importante, pois é possível comparar os grupos sem interferência da experiência da leitura (Bryant & Bradley, 1987). A segunda limitação é que este é um estudo transversal, e, por isso, a relação de causa e efeito não é possível de ser apresentada, mas é viável construir um caminho de relação entre as variáveis. Estudos futuros se fazem necessários no sentido de acompanhar os padrões de desenvolvimento linguístico que explicam as dificuldades de leitura nos dois grupos (DD e TDL). Adlof e Hogan (2018) apontam que desenhos longitudinais que controlam a experiência de linguagem antes da escolarização podem verificar o quanto há de sobreposição entre os transtornos ao longo da escolarização. Mais evidências comparando as trajetórias de desenvolvimento linguístico são essenciais para determinar com mais precisão as diferenças entre esses dois transtornos, principalmente até que ponto outros aspectos do desenvolvimento da linguagem, como vocabulário, sintaxe e discurso, são afetados em indivíduos com DD e TDL.

As contribuições do estudo versam dos pontos de vista teórico e prático. Teórico, por contribuir para a compreensão dos aspectos da leitura no contexto de ortografia mais transparente. Prático, porque entender as habilidades que estão subjacentes às dificuldades de leitura permite pensar em intervenções clínicas, ações educativas inclusivas e avaliações mais eficazes, no sentido de contornar uma história de fracasso na leitura que essas crianças vão construindo ao longo dos anos escolares. Além disso, o estudo destaca a importância de avaliações abrangentes da linguagem. Avaliações mais amplas da linguagem podem ajudar a identificar, de maneira mais completa, os pontos fortes e fracos das crianças, que, por sua vez, podem informar os caminhos da intervenção.

 

Referências

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Correspondência:
Silvia Brilhante Guimarães
Rua Marquês de São Vicente, 225, 10º andar, Leme, Gávea
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 22451-900
E-mail: silvia_brilhante@yahoo.com.br

Submissão: 05/12/2019
Aceite: 18/05/2021
Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) a bolsa de pós-doutorado concedida a Silvia Brilhante Guimarães.

 

 

Notas das autoras: Silvia B. Guimarães, Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Renata Mousinho, Departamento de Fonoaudiologia, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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