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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.23 no.3 São Paulo set./dez. 2021

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPPE13226 

PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

 

A compreensão da leitura e o processo inferencial de um estudante idoso

 

 

Alex B. A. Pinto; Sandra Patrícia A. Ferreira

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é parte de uma dissertação de mestrado que investigou a compreensão da leitura e o processo inferencial de estudantes idosos de uma turma de jovens e adultos. Foram considerados apenas os dados de um dos participantes, construídos por meio de entrevistas semiestruturadas e sessões de leitura. As entrevistas objetivaram identificar as histórias de vida e de leitura do participante. As sessões de leitura consistiram em responder a perguntas inferenciais sobre dois textos - um cordel e um poema -, que foram divididos em partes previamente estabelecidas pelos pesquisadores. Os resultados evidenciaram que a compreensão da leitura e o processo inferencial do participante basearam-se principalmente no material textual; que houve relação entre as histórias de vida e de leitura do participante e sua compreensão dos textos; e, ainda, que existiram maiores dificuldades do participante na leitura do gênero poético do que na leitura do gênero cordel.

Palavras-chave: compreensão da leitura; inferência; gênero textual; idosos; EJA.


 

 

1. Introdução

Na contemporaneidade, um domínio satisfatório da linguagem escrita tornou-se um pré-requisito indispensável para a participação nas diversas práticas sociais - interação com placas de trânsito, participação política, leitura e compreensão de cartas, de contas de água e luz, de receitas médicas, de lista de compras - e nos diversos contextos que constituem a vida nas sociedades letradas - por exemplo, os contextos da educação formal, da política e do mercado de trabalho.

O desafio que o sistema educacional enfrenta hoje é o de organizar suas escolas e práticas educacionais de modo que os sujeitos que a elas recorram possam encontrar, por meio da leitura e da escrita, as respostas para os problemas que necessitam resolver em sua vida cotidiana, as informações necessárias à melhor compreensão de algum aspecto do mundo que seja objeto de suas preocupações, os argumentos para defender uma posição com a qual estão comprometidos, entre outros (Ferreira, Gonçalves, & Melo, 2018).

No Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, o índice de brasileiros com 15 anos ou mais que não sabiam ler e escrever, que era de 17,2% em 1992, caiu para 8,5% em 2013. No entanto, quanto à idade, a mesma pesquisa revelou que o maior índice de analfabetos se concentra no grupo de pessoas com 40 anos ou mais: 37,6%. A questão torna-se mais complexa se considerarmos que, no país, verifica-se um crescimento anual significativo do número de idosos.

Segundo Neri (2001), são denominados idosos os indivíduos situados em um determinado contexto histórico e sociocultural, e que apresentam certas características - como aparência, força física e desempenho de papéis sociais - diferentes daquelas apresentadas por adultos não idosos. Verificam-se, na literatura contemporânea, várias definições acerca do que é a velhice. Entre tais definições, destacam-se, por um lado, aquelas que compreendem a velhice como resultado de um processo progressivo de perdas biológicas, neurológicas, psicológicas e sociais (por exemplo Damasceno, 2001; Santo et al., 2017; Mendoza-Ruvalcaba, Arias-Merino, Flores-Villavicencio, Rodríguez-Díaz, & Díaz-García, 2018). Por outro lado, aquelas em que o envelhecimento é compreendido como um processo de alterações mais relacionadas às experiências de vida do sujeito e às características particulares de seu contexto sócio-histórico do que a fatores associados ao avanço da idade (por exemplo Lima, 2001; Tavares et al., 2017; Mantovani, Lucca, & Neri, 2016).

Neste início do século XXI, a ideia de que o processo de desenvolvimento do cérebro seria um processo apenas geneticamente determinado - e que, portanto, possibilidades de modificação da estrutura cerebral seriam inexistentes - vem se mostrando cada vez mais inconsistente, principalmente diante das descobertas alcançadas por meio das técnicas mais atuais de imagens cerebrais, que têm oportunizado constatar que o cérebro possui surpreendente plasticidade e que o funcionamento mental pode sofrer alterações a partir da influência de fatores externos ou ambientais, tais como alimentação, educação e estilos de vida (Lima, 2001).

Acreditava-se que o órgão cerebral, com o avanço do processo de envelhecimento, perderia sua capacidade de crescimento, tornando-se fixo e estático logo após a puberdade, e que cerca de 50% das células cerebrais seriam destruídas no processo de envelhecimento normal (Lima, 2001). Tal perda, segundo Lima (2001), resultaria no declínio de faculdades mentais específicas, significando que a todas as pessoas estariam reservadas, por via de regra, perdas na capacidade de memória e declínio do funcionamento cognitivo, existindo ainda uma possibilidade real de "senilidade" para aquelas que vivessem até a velhice.

Entretanto, atualmente, os especialistas acreditam que os principais motivos da aparente diminuição dessas funções intelectuais e de memória nos idosos não se relacionam apenas ao processo de envelhecimento em si, mas às doenças (Neri, 2001; Lima, 2001). Acredita-se que esses mesmos efeitos podem ser significativamente atenuados quando se relaciona à velhice a prática habitual de atividades que requerem algum esforço intelectual, como ler jornais, romances e legendas de filmes; interagir socialmente (ou seja, conversar, trocar ideias, dar risadas etc.); aprender coisas novas (como idiomas e jogos) ou utilizar as novas tecnologias informáticas; fazer cursos; engajar-se em atividades manuais; enfim, qualquer atividade que exercite as funções cognitivas (por exemplo Tavares et al., 2017; Silva, Lima, Diniz, Ribeiro, & Santos, 2018; Oliveira & Rossi, 2019).

Embora algumas células em determinadas partes do cérebro desapareçam com o avanço da idade, o efeito não é devastador ou irreversível (Lima, 2001). As descobertas recentes da ciência cognitiva permitem compreender que, além dos genes, os fatores ambientais - tais como alimentação, educação e estilo de vida - exercem influência determinante sobre o funcionamento mental (Lima, 2001). Assim, no processo de envelhecimento saudável, embora algumas células cerebrais possam desaparecer e, de fato, ocorra um certo declínio do funcionamento intelectual geral, como apontam alguns estudos (por exemplo Damasceno, 2001; Neri, 2001), ao contrário do que decretava o mito do envelhecimento, o efeito não é devastador ou irreversível (Lima, 2001). Sabe-se hoje que esses mesmos efeitos podem ser significativamente atenuados por meio da prática habitual de atividades que requeiram o exercício constante do intelecto, tais como a leitura e a escrita (por exemplo Neri & Lima-Costa, 2018).

Assim, resumidamente, compreende-se aqui que o processo de envelhecimento, para além de um processo biológico, consiste em um processo de natureza dialética que se dá a partir de constantes trocas entre os sujeitos e seu contexto social, o que confere à linguagem (verbal e/ou escrita) papel especialmente destacado.

Foi buscando oportunizar uma melhor elaboração das práticas pedagógicas relacionadas ao ensino e à aprendizagem da leitura e compreensão de textos escritos desenvolvidas nas escolas de Educação para Jovens e Adultos (EJA), bem como visando à adequação dessas práticas às características particulares e às necessidades específicas do sujeito idoso, que se questionou:

• Que especificidades caracterizam os processos de compreensão textual e inferencial elaborados pelo sujeito idoso durante a leitura de textos escritos?

Este artigo é parte de uma pesquisa de mestrado (Pinto, 2018) que teve como objetivo investigar os processos de compreensão textual e inferencial elaborados por sujeitos idosos estudantes da EJA.

Segundo Marcuschi (2008), todas as teorias de compreensão da leitura se situam em um dos dois paradigmas seguintes: compreensão como decodificação ou compreensão como atividade inferencial. As teorias que propõem que a compreensão se dá a partir de atividades cooperativas e inferenciais (como é o caso da teoria sociointeracionista) consideram a compreensão como uma atividade construtiva, criativa e sociointerativa (Barbosa, Freitas, Ferreira, & Gonçalves, 2020).

No processo de compreensão textual, são as inferências que possibilitam o estabelecimento de elos entre o dito e o não dito (isto é, a emergência do que está nas "entrelinhas" do texto), o que permite a manutenção da continuidade e coerência daquilo que é lido. Para Marcuschi (2008, p. 249), "a contribuição essencial das inferências na compreensão de textos é a de funcionarem como provedoras de contexto integrador para informações e estabelecimento de continuidade do próprio texto, dando-lhe coerência".

As inferências são processos cognitivos que se dão a partir das relações entre esses - e outros tantos - conhecimentos (Dávalos & León, 2017). Os processos inferenciais são inerentes ao processo mais amplo de compreensão textual, e é possível até dizer que, não raro, as inferências podem tornar a compreensão de um determinado texto mais rica e elaborada do que esse próprio texto poderia permitir por meio das informações objetivas que veicula.

Embora haja na literatura várias propostas de classificação das inferências (por exemplo Graesser, Singer & Trabasso, 1994; Kintsch, 1998), optou-se pela realização dessa pesquisa de mestrado pelo modelo inferencial de Marcuschi (1989, 2008), considerando que tal modelo parte de uma perspectiva sociointeracionista da linguagem, com base na qual as inferências são compreendidas como sendo constituídas por: 1. variáveis do texto (organização sintática, léxico, estrutura referencial e informações objetivas); 2. variáveis do leitor (conhecimentos de mundo, crenças, conhecimentos linguísticos, nível de formação e outros); 3. variáveis do autor (conhecimentos de mundo, intenções, objetivos, estratégias de codificação etc.); e algumas regras de operação dessas variáveis (Marcuschi, 1989).

Em seu modelo inferencial, Marcuschi (1989) identifica três grupos de inferências: 1. inferências de base textual; 2. inferências de base contextual; e 3. inferências sem base textual e contextual.

As inferências de base textual podem ser de natureza lógica (dedutivas, indutivas e condicionais), sintática ou semântica (associativas, generalizadoras e correferenciais). Já as inferências de base contextual podem ser de natureza pragmática (intencionais, conversacionais, avaliativas e experienciais) ou cognitiva (esquemáticas, analógicas e composicionais). As inferências sem base textual e contextual seriam aquelas falseadoras ou extrapoladoras.

 

 

No que diz respeito aos tipos de operação inferencial que comumente ocorrem no processo de compreensão textual, o mesmo autor identifica os seguintes: dedução, indução, particularização, generalização, sintetização, parafraseamento, associação, avaliação ilocutória, reconstrução, eliminação, acréscimo e falseamento.

Faz-se relevante destacar que os processos inferenciais e de compreensão textual são determinantemente influenciados pelo gênero do texto. São os gêneros textuais que orientam a compreensão (Marcuschi, 2008). No presente estudo, foram utilizados, para realização das sessões de leitura, um texto do gênero poético e um do gênero cordel.

O poema é um gênero textual com características específicas, que apresenta a finalidade discursiva comum de evocar sentimentos, provocar emoções, sendo mais referente ao mundo das ideias e dos afetos do leitor do que à sua realidade natural, exterior. No poema, é prevalente o sentido conotativo, que torna possível a multiplicidade de interpretações e que, acima de tudo, volta-se para a subjetividade. Em se tratando de sua estrutura, o poema é tradicionalmente escrito em forma de verso (embora haja também poemas escritos em prosa, como é o caso do "Poema do menino Jesus", de Fernando Pessoa (2005), texto utilizado na segunda sessão de leitura deste estudo), ocorrendo comumente em sua elaboração o emprego de determinados recursos linguísticos relacionados à métrica, à rima e ao ritmo, além de outros recursos linguísticos que dizem respeito à sonoridade.

O gênero cordel faz parte do romanceiro popular do Nordeste brasileiro (coleção de antigas narrativas de fatos reais, imaginários ou lendas, baseados em temas ou personagens populares), tendo se originado nos romances portugueses em versos, os quais, por sua vez, surgiram inicialmente em sua expressão oral, tendo sido posteriormente escritos (Haurélio, 2016). Resumidamente, trata-se de livretos de narrativas em versos, impressos em papel simples. São compostos de um grupo de versos, os quais constituem estrofes que comumente apresentam sentido completo. As estrofes mais utilizadas no cordel são as quadras (estrofes de quatro versos, hoje em desuso), as sextilhas (estrofes de seis versos), as setilhas (estrofes de sete versos) e as décimas (estrofes de dez versos). "O cego de Jericó", de Leoníres Di Olliveira (2014), - texto utilizado na primeira sessão de leitura deste estudo - é um cordel composto de décimas.

Considerando as dimensões deste artigo, serão apresentados apenas os dados referentes a um dos participantes, Alberto.1

A escolha pelo participante não foi aleatória: durante a análise das sessões de leitura desse participante, observou-se com maior clareza a relação entre as histórias de vida e de leitura e a compreensão textual. Além disso, foi também nas sessões de Alberto que se observaram os trechos mais ilustrativos dos processos abordados aqui.

 

2. Método

2.1 Participantes

Participaram do estudo original três estudantes idosos de uma turma de jovens e adultos do Módulo V de uma escola municipal da cidade do Recife. Esses estudantes tinham idade igual ou superior a 60 anos e sabiam ler compreensivamente textos escritos, sendo esses os critérios exigidos para participação no estudo. A seleção dos participantes foi feita com o auxílio de duas professoras que, a pedido do pesquisador, indicaram os estudantes idosos que atendiam aos critérios de inclusão do estudo. Neste relato de pesquisa, para fins didáticos e em conformidade com as dimensões deste artigo, serão apresentados e discutidos apenas os resultados relacionados ao participante Alberto, natural de Camaragibe, município do estado de Pernambuco, que, à época da pesquisa, tinha 73 anos completos.

2.2 Materiais

Para consecução dos objetivos, realizaram-se individualmente duas entrevistas e duas sessões de leitura com cada aluno idoso participante. O roteiro dessas entrevistas foi elaborado com base no relatório da pesquisa de Marcuschi (1989). Assim, o roteiro, contendo ao todo 21 perguntas, buscou conhecer a idade, a naturalidade, o tipo de espaço geográfico e populacional de origem e atual (se urbano ou rural), a experiência escolar (inclusive dos pais), a formação profissional (inclusive dos pais), a renda familiar, a experiência com leitura de textos escritos (inclusive dos pais e familiares), as preferências de leitura (texto escrito) e os assuntos/temas de interesse atuais dos participantes.

Nas sessões de leitura, utilizaram-se textos impressos em folhas de papel sulfite A4, em fonte Times New Roman, tamanho 24. Optou-se por uma fonte de tamanho notadamente maior, dado que duas participantes relataram ao pesquisador problemas de visão. A escolha dos dois textos utilizados nas sessões de leitura foi feita com base nas informações constituintes das histórias de leitura dos participantes, as quais revelaram predominância de temas religiosos (espíritas e católicos), do gênero literário (poema e conto) e do tipo narrativo. Assim, escolheram-se um texto do gênero conhecido como literatura de cordel ("O cego de Jericó") e um poema ("Poema do menino Jesus"), ambos remetendo a temáticas de cunho religioso, sendo do tipo narrativo.

Tanto as entrevistas como as sessões de leitura foram audiogravadas por meio de um aplicativo gravador de voz, e, para tanto, utilizou-se um celular da marca Samsung, modelo J7.

2.3 Procedimentos

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe) e aprovado pelo Parecer n° 1.967.495, sendo cumpridas todas as considerações éticas exigidas para o desenvolvimento deste estudo. Seguindo as orientações do referido comitê, todos os estudantes convidados foram devidamente esclarecidos sobre a pesquisa, por meio das informações constantes no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), documento que foi lido cuidadosamente - com auxílio do pesquisador - e assinado pelos três participantes.

Em seguida, realizaram-se individualmente duas entrevistas semiestruturadas com cada estudante idoso participante. Como já mencionado, as entrevistas objetivaram traçar um perfil sociocultural de cada participante e também identificar suas histórias de leitura. As entrevistas foram realizadas na própria escola, em uma sala de aula desocupada, em períodos de intervalo entre aulas, conforme acordo entre pesquisador, professores e cada participante. A duração média das entrevistas foi de 20 minutos.

Após a realização das entrevistas, realizaram-se, individualmente, duas sessões de leitura com cada participante idoso. Os dias, locais e horários das sessões foram acordados entre pesquisador e participantes ao final das entrevistas iniciais. As atividades de compreensão textual consistiram em responder a perguntas inferenciais sobre dois textos: um do gênero cordel, de tipo narrativo ("O cego de Jericó" - ver Anexo A) e outro do gênero poético (poema), de tipo também narrativo ("Poema do menino Jesus" - ver Anexo B). Ambos os textos se mostraram adequados aos objetivos do estudo, tendo sido lidos integralmente e compreendidos por todos os participantes, permitindo a construção dos dados que aqui se propõe analisar.

Em cada sessão, os participantes leram um único texto, impresso em folhas de papel sulfite A4, em fonte Times New Roman, tamanho 24, conforme já mencionado. Antes do início das sessões de leitura, os participantes foram informados sobre os respectivos gêneros textuais e a divisão dos textos em trechos, e também instruídos a ler cada um dos trechos em voz alta e a responder às perguntas que o pesquisador faria ao final da leitura de cada trecho.

Os participantes também foram informados de que não havia tempo limite para a leitura dos trechos ou de todo o texto, de que não havia uma única resposta às perguntas inferenciais, e sim uma multiplicidade de respostas possíveis, e de que era possível abandonar, a qualquer momento, as sessões de leitura.

Assim, aos participantes, antes do início das sessões, foram dadas basicamente as seguintes instruções:

Esse texto é um cordel [ou um poema, no caso da segunda sessão] e se refere a uma parábola bíblica [ou diz respeito a um sonho tido pelo autor do texto, no caso da segunda sessão]. Está dividido em "X" partes [em 13 partes, no caso do cordel; e em 16 partes, no caso do poema]. Você terá de ler em voz alta, uma por uma, cada uma dessas partes, e, ao final da leitura de cada parte, você deverá responder a uma ou duas perguntas sobre o que acabou de ler, informando o que compreendeu do que leu. Não existe uma "resposta única" para qualquer uma das perguntas, sendo possíveis várias respostas a uma mesma pergunta. O que importa é o que você vai compreender do que vai ler. Você pode tomar o tempo que quiser para a leitura dos trechos e para responder às perguntas. A qualquer momento, você pode se retirar da sessão de leitura.

Nas sessões de leitura, adotou-se uma metodologia que permite analisar o processo de compreensão textual durante a leitura mesma do texto (metodologia on-line), e não após a leitura (metodologia off-line), como se dá mais comumente na maioria das pesquisas na área (por exemplo Marcuschi, 1989). Mais precisamente, utilizou-se no presente estudo a técnica "pausa previamente marcada no texto", uma técnica do tipo pergunta-resposta, que consiste na divisão do texto em partes e no estabelecimento de pausas pré-marcadas no texto pelo pesquisador, sendo feitas ao leitor perguntas inferenciais sobre as partes lidas, imediatamente após sua leitura. Segundo explica Boas (2010, p. 21):

A técnica de pergunta-resposta pode ser trabalhada através da pausa protocolada. Este teste consiste em entregar ao leitor o texto dividido em partes. Cada interrupção (pausa) é estabelecida antecipadamente. O pesquisador determina possíveis perguntas relacionadas a cada divisão textual estabelecida. Preliminarmente à distribuição do texto, o pesquisador divide-o em partes, estabelecendo os intervalos mais significativos para alcançar seus objetivos. Em seguida, levanta perguntas sobre cada pausa protocolada. Ao aplicar a pausa protocolada, o leitor lê oral ou silenciosamente cada intervalo do texto que lhe é entregue e responde às questões propostas oralmente, por escrito, ou ambos sucessivamente. Este tipo de teste permite ao pesquisador verificar se houve compreensão textual, para, em seguida, verificar as inferências e avaliações do leitor, permitindo controlar as perguntas que deseja fazer, bem como determinar a pausa que será conveniente, ou seja, que certamente irá gerar diversidade de interpretação.

Segundo Marcuschi (1989, p. 22), "trata-se de um tipo de coleta feita individualmente, com um informante por vez e com um bom controle", sendo mais adequada para pesquisas que reúnam um número reduzido de participantes, justamente por requerer muito tempo. Ainda, além de permitir verificar com maior controle a natureza das inferências geradas, refere-se essa técnica a um tipo de atividade comum em situações de leitura desenvolvidas no contexto pedagógico (Boas, 2010), levando a supor que, por experiência, os participantes compreenderiam mais facilmente a dinâmica das sessões de leitura. Finalmente, justifica-se a adoção da técnica considerando-se que, por um lado, um dos pressupostos nos estudos da compreensão de texto atribui à memória um papel essencial; e, por outro lado, como já visto na sessão referente à fundamentação teórica deste estudo, grande parte da literatura sobre envelhecimento identifica no desempenho cognitivo do sujeito idoso alterações relacionadas à memória.

Sobre as duas sessões de leitura, empreendeu-se uma análise qualitativa e exploratória, objetivando, com base no referencial teórico exposto, descrever o processo de leitura compreensiva dos participantes, assim como os tipos e as características das inferências geradas por eles no desdobramento desse mesmo processo, o que foi feito especificamente com base no modelo inferencial proposto por Marcuschi (1989, 2008).

Na análise das sessões de leitura, recorreu-se também a alguns dos indicadores identificados nos perfis socioeconômicos e culturais dos participantes. Nesse sentido, resumidamente, foram entrecruzadas as informações constituintes dos perfis socioeconômicos e culturais de cada participante com aquelas das sessões de leitura, o que possibilitou enriquecer a compreensão acerca dos processos de leitura e de geração de inferências de cada participante.

A análise da compreensão dos textos, apoiando-se em Marcuschi (1989), deu-se também baseada nas seguintes máximas:

• Antes de decidir entre o certo e o errado, identificar o procedimento seguido pelo leitor para chegar àquele resultado.

• Se a resposta do leitor tem uma razão plausível, isto é, fundada no material textual ou em alguma instância justificável, admiti-la como possível.

Partindo dessa perspectiva, coerente com o referencial teórico aqui adotado (dentro do qual a compreensão textual resulta de uma negociação entre autor, texto e leitor), amplia-se a possibilidade de respostas - para além das previstas como "certas" ou "erradas" -, tornando-se possível e adequado um incontável número de respostas.

 

3. Resultados

Os resultados sugeriram relação entre as histórias de vida e de leitura de Alberto e as compreensões da leitura que o participante realizou nas duas sessões. Este, que apresentou história de leitura mais robusta e diversificada, foi o que melhor se saiu nas duas sessões, tanto no que se refere à decodificação dos elementos textuais quanto no que diz respeito às perguntas inferenciais. Verificou-se que Alberto desenvolveu uma leitura compreensiva de ambos os textos, gerando, na maioria das vezes, inferências condizentes com as informações textuais. Foi esse o participante com melhor desempenho em termos gerais (fluência leitora e compreensão) nas duas sessões de leitura.

Para a elaboração da maior parte das inferências geradas por Alberto, nas duas sessões, foi o material textual - mais do que suas experiências e conhecimentos pessoais - sua constante e principal referência. No entanto, em alguns casos, ocorridos principalmente na segunda sessão de leitura, a recorrência frequente ao material textual, como que "em busca da resposta certa", revelou-se como uma estratégia inadequada, levando a inferências não condizentes com as informações textuais, como ilustra o exemplo a seguir, que demonstra como Alberto recorreu ao texto e realizou uma extração de informações aleatórias do trecho cinco do poema para responder à nona questão da segunda sessão de leitura, "Com quem Jesus vive na aldeia?".

Participante: Hoje vive na, hoje vive na terra aldeia comigo. É uma criança bonita, de risos, natural. Limpa o nariz [risos] ao braço [risos] direito. Chapinha nas poças [risos] de água. Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedra aos burros. Rouba a fruta dos pomares, e foge a chorar e a gritar dos cães. Porque sabe que elas não gostam, que toda a gente acha graça, corre atrás das raparigas, que vão em rancho pelas estradas...

Entrevistador: Ótimo.

P: É.2

E: Agora, com quem Jesus vive na aldeia?

P: Com a criança bonita, de risos, e natural (grifos nossos).3

Na primeira sessão de leitura, o desempenho de Alberto parece ter sido bem favorecido pelo uso da estratégia de busca de resposta à pergunta inferencial unicamente no texto. Das 16 perguntas inferenciais, apenas a uma delas (pergunta nº 6) o participante respondeu de forma inadequada em relação à proposta de sentido do texto. Alberto infere que o "conversêro danado" certamente é a respeito do cego Bartimeu, o que não condiz com as informações textuais ("o pessoal que passava/nenhuma atenção dava/para aquele rabugento").

Foi mais comum, nessa sessão de leitura, a realização por Alberto de operações inferenciais do tipo "avaliação ilocutória" (três das 16 respostas) e do tipo "particularização" (cinco das 16 respostas). As "avaliações ilocutórias", segundo Marcuschi (2008), correspondem a inferências de natureza lexical, semântica e pragmática, e podem ser compreendidas como uma atividade de explicitação dos atos ilocutórios com expressões performativas que os representam. Nesse caso, o leitor constrói um quadro para explicitação de intenções (por exemplo: ordenar, avisar, declarar, criticar, perguntar, convidar, ameaçar, exprimir sentimentos). Por exemplo, depois de ler o trecho "Este então lhe perguntou:/ - Que queres que eu te faça?/O cego se emocionou/E foi ficando sem graça./Aproveitou a ocasião/ Em meio à multidão/Lhe disse com tal fervor:/- diante de todo mundo/Lhe peço nesse segundo/ Que eu enxergue senhor!", Alberto responde à pergunta inferencial "Por que o cego se emocionou?", abrindo os braços: "Porque Jesus perguntou [entoando como se fosse o personagem]: Que queres que eu te faça?!".

As "particularizações" consistem na tomada de um elemento geral de base lexical ou fundado em experiências e conhecimentos pessoais, individualizando ou contextualizando num conteúdo particular com um lexema específico, tratando-se de inferências de natureza lexical, semântica e pragmática. Por exemplo, pode-se observar que o participante realizou esse tipo de operação ao responder à pergunta inferencial n° 3 dessa sessão: Alberto leu o trecho do cordel que informa que o personagem Bartimeu "Derna o seu nascimento/Carregava a desgracença./Tava sem alma, alento/E era cego de nascença/Só três coisa levava:/Uma vara que o guiava/Uma capa, uma bacia./Seu nome era Bartimeu/Por tanto o desejo seu/Era ver a luz do dia". Então, à pergunta inferencial que se seguiu, "Por que o cego carregava a desgracença?", Alberto respondeu: "Tava desgostoso da vida". Compreende-se que aqui ocorreu o seguinte: o participante condensou as informações expressivas da situação de infortúnio do cego ("carregava a desgracença./Tava sem alma, alento/E era cego de nascença /Só três coisa levava:/Uma vara que o guiava/uma capa, uma bacia") no lexema específico "desgostoso", uma palavra mais próxima dele do que a palavra "desgracença", um léxico saliente no texto - por seu caráter inusual. Na verdade, pode-se dizer que o participante realizou no caso, simultaneamente, uma operação inferencial do tipo "particularização" - uma vez que ocorreu a tomada de um elemento geral de base lexical (desgracença) ou fundado em experiências e conhecimentos pessoais (cegueira e pobreza), individualizando ou contextualizando num conteúdo particular com um lexema específico (desgostoso); e do tipo "parafraseamento" - uma operação inferencial de natureza lexical e semântica - dado que o participante realizou uma alteração lexical (alterou "carregava a desgracença" para "tava desgostoso da vida") para dizer a mesma informação sem alteração fundamental do conteúdo proposicional.

Quanto ao desempenho do participante, observou-se também, nessa sessão, a presença de uma operação inferencial do tipo "reconstrução". Reconstruções consistem na reformulação de elementos textuais com quadros total ou parcialmente novos. Observe-se que o trecho ao qual se refere a pergunta n° 9, "Que fala Jesus escutou que o deixou encabulado?", informa que "Jesus deu um passo atrás/Ficou munto encabulado/Com a fala do rapaz/Qu'ele tinha escutado./De repente ele parou/E ao povo mandou/Buscar o tal indigente/Que à beira do caminho/Ficava ali sozinho/Mendigando, sem parente". Quando questionado sobre "Que fala Jesus escutou que o deixou encabulado?", Alberto respondeu da seguinte forma:

P: Porque, quando o cego tava solicitando pra ser visto, o povo mandava ele calar, né?

E: Sim.

P: Lá, não era isso? Jesus deu um passo atrás e ficou muito encabulado. Que o cego tava gritando pra ser observado, né?

E: Sim.

P: Jesus não gostou porque ele tava implorando a Jesus, e neguinho tava repreendendo ele, né?

Observou-se aqui a construção de um quadro parcialmente novo, em que Jesus "não gostou" de ver o cego Bartimeu sendo repreendido. Na verdade, a fala que deixou Jesus encabulado refere-se à súplica de Bartimeu: "Jesus tem pena de mim, Pois quero munto enxergar!". A perspectiva era de que o participante informasse algo sobre os berros e apelos do cego deixando Jesus "sem jeito", encabulado. Talvez, para Alberto, o significado de "encabulado" possa ser algo próximo de "chateado" ("não gostou"). Considerando que tenha sido esse mesmo o motivo de sua interpretação (isto é, um significado diverso do léxico "encabulado"), Alberto então compreendeu perfeitamente o trecho e, para si, apenas realizou um "parafraseamento". Dito de outro modo: considerando a proposta do texto, Alberto compreendeu de modo "errado", inadequado. Em nenhuma parte do texto está informado que o personagem Jesus se preocupou com o fato de o cego estar sendo maltratado pelo povo, conforme expressa a resposta de Alberto ("Jesus não gostou porque ele tava implorando a Jesus, e neguinho tava repreendendo ele, né?"). Se realmente, para Alberto, encabulado significa "não gostar", então se pode afirmar que o participante compreendeu o trecho lido e sua resposta não foi uma tentativa de adivinhação por ter havido falta de compreensão.

Embora, na leitura do cordel, o desempenho de Alberto tenha sido bem favorecido pelo uso quase exclusivo da estratégia de busca da resposta à pergunta inferencial no material textual, supõe-se que, além dos conhecimentos linguísticos e da familiaridade com leitura de textos escritos, as experiências pessoais do participante possam ter exercido alguma influência favorável à leitura e compreensão do cordel. Durante sua primeira entrevista, Alberto relatou ter ajudado um "indigente" que "vivia 29 anos abandonado no meio da rua" e que "ficava mendigando nas parada". Inclusive comentou espontaneamente durante a leitura do cordel: "Rapaz, essa história me lembra uma que eu já passei. Eu cuidei do pobre na sarjeta. Agora tá vindo tudo na minha cabeça".

A leitura de Alberto na segunda sessão, isto é, do texto "Poema do menino Jesus", foi bem diferente da primeira, tendo o participante demonstrado maiores dificuldades em responder à maioria das perguntas inferenciais. Embora não tenha(m) sido investigada(s) a(s) causa(s) das dificuldades, pode-se supor que sua história de vida religiosa tenha dificultado a compreensão do "Poema do menino Jesus", uma narrativa que subverte os personagens bíblicos tradicionais (um Deus sujo, um Espírito Santo como uma pomba estúpida, um Jesus que levanta as saias das raparigas etc.). Após a leitura do poema, o participante comentou:

P: Isso é uma coisa que existe tanta dúvida sobre isso. Ah, ah, ah, o catolicismo, né?

E: Sim.

P: A gente fica assim, puxa, também, o negócio é muito complexo! Né? Religião é uma coisa que, se você for olhar a fundo mesmo, assim... você se torna até um... um incrédulo!

E: Sim.

P: Num é?

E: Hã-hã.

P: Por isso tem os, tem os ateu, né? Tem?

E: Sim.

[...]

E: O senhor, o que achou do texto?

P: [O participante arfa, parecendo empolgado ou emocionado, e ri] O texto tem coisas que você lê e acha um pouco... Tem, tem frase que você, sei lá, parece até que é uma, inventam coisa que não existe, né?

E: Sim.

P: Num tem isso?

E: É.

P: Ou não?! É! Que não cabe assim na, na verdade, assim aí... é pra confundir, né?

Além disso, nessa sessão, o participante precisou, com frequência, que lhe fossem repetidas as perguntas inferenciais, sugerindo se tratar de dificuldades de memória relacionadas à capacidade de retenção de informações.

E: Agora por que, no sonho do poeta, Jesus fala mal de Deus, da Virgem Maria, do Espírito Santo e da Igreja Católica?

[Longa pausa]

P: Puxa... Como é?

[...]

E: Certo. Agora, por que as histórias das coisas dos homens são diferentes do florescer de uma flor?

[Longa pausa]

P: Sim. Por gentileza? De novo?

[...]

E: Certo. Agora, última pergunta: por que o poeta pensa que a sua história poderia ser verdadeira?

P: [Longa pausa] Por quê...?

E: Por que o poeta pensa que a sua história poderia ser verdadeira?

P: [Longa pausa] De novo, por gentileza, meu filho.

Das 21 perguntas inferenciais feitas ao participante nessa sessão, Alberto não soube responder a apenas três. Excetuando sua resposta à pergunta inferencial "Por que o poeta se diz poeta sempre?", que se tratou de uma operação inferencial do tipo "dedução", em que o participante reuniu duas informações textuais ("E é porque ele anda sempre comigo/que eu sou poeta sempre" - grifos nossos) para inferir que "É porque ele anda sempre comigo!", todas as respostas de Alberto consistiram em extrações diretas do material textual, embora nem sempre tenham sido condizentes com a proposta de sentido do texto, resultando, nesses casos, em operações inferenciais do tipo "falseamento". Por exemplo, quando perguntado sobre "Quem foi que roubou os três milagres?",4 Alberto respondeu da seguinte forma: "Foi Deus". O participante então releu o trecho: "Um dia que Deus estava a dormir, o Espírito Santo, ahh...", e respondeu: "O Espírito Santo!". O que parece ter ocorrido aqui foi uma interpretação precipitada do dêitico ele (na verdade, referente ao personagem Jesus), que foi relacionado erroneamente por Alberto aos personagens Deus e Espírito Santo, mencionados imediatamente antes do aparecimento do pronome no texto.

No entanto, a prevalência quase absoluta de extrações diretas do material textual em suas respostas às perguntas inferenciais não significou que Alberto não tenha desenvolvido uma leitura compreensiva do texto, mas sim que houve pouquíssima participação de seus conhecimentos de mundo (linguísticos ou vivenciais) no processo de compreensão do poema, refletindo uma leitura feita a partir de uma perspectiva de "falta de horizonte", em que o leitor apenas repete ou copia o que está dito no texto, agindo como se este tivesse apenas informações inscritas de modo diáfano (Marcuschi, 2008). Há de se considerar, ainda, que uma das características fundamentais do gênero poético consiste na multiplicidade de interpretações que esse tipo de texto (poema) permite ao leitor. Cabe aqui a observação feita por Marcuschi (1989, p. 18): "Se tomarmos um poema, podemos imaginar que pouco de nossa compreensão está no texto de forma explícita. Será que o poema é o tipo de texto implícito por natureza?".

 

4. Discussão

Embora os dados desta pesquisa não favoreçam a explicação de algumas das dificuldades apresentadas por Alberto na leitura do "Poema do menino Jesus", foram tecidas algumas reflexões em relação a elas na segunda sessão de leitura. No poema, o personagem Jesus é mencionado de modo literal apenas no título ("Poema do menino Jesus") e, ao longo do texto, uma vez como Jesus Cristo e outras duas como Menino Jesus, exigindo do leitor, ao longo de toda a narrativa poética, uma atividade constante e mais complexa de inferenciação do que aquela necessária à leitura e compreensão adequada do primeiro texto. No cordel, o protagonista (o cego Bartimeu) é mencionado diretamente e com frequência na maioria dos trechos (às vezes, inclusive, mais de uma vez), ora por meio do léxico "cego", ora por meio de vocábulos que remetem à condição de miséria, já que Bartimeu é o único personagem cego e miserável da narrativa (como "cego de Jericó", no título; "cego" e "rabugento", no primeiro trecho; "cego" e pelo nome "Bartimeu", no segundo trecho; "cego de nascimento", no terceiro trecho; "indigente", no sétimo trecho; "coitado" e "condenado", no oitavo trecho; novamente como "cego", no nono trecho; "ismiliguido", "rabugento" e "esmolé", no décimo trecho; e, finalmente, "cego" e como "Bartimeu", no último trecho).

Acredita-se que a presença massiva de elementos anafóricos tenha constituído a principal dificuldade do participante em relação ao poema, dado que o texto exige do leitor, para uma leitura e compreensão adequadas, a realização frequente de remissões anafóricas.5 Alguns exemplos:

Tinha fugido do céu; Era nosso demais para fingir; Nem sequer o deixavam ter pai e mãe; O seu pai era duas pessoas; E a sua mãe não tinha amado antes de o ter; E queriam que ele, que só nascera da mãe; Ele foi à caixa dos milagres e roubou três; Depois fugiu para o Sol; Hoje vive na minha aldeia comigo; Limpa o nariz ao braço direito; Ensinou-me a olhar para as coisas; Aponta-me todas as coisas que há nas flores; Diz-me muito mal de Deus; Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro; A Criança Nova que habita onde vivo; E gozando o nosso segredo comum; Damo-nos tão bem um com o outro; Mas vivemos juntos e dois (grifos nossos).

Desse modo, o poema requer uma atividade de inferenciação de natureza mais complexa do que aquela requerida pelo cordel, atividade na qual a capacidade de memória - ao menos no que se refere à retenção de informações durante o processo de leitura - possui papel fundamental. Ainda considerando aspectos da história de vida religiosa do participante, talvez suas dificuldades nessa segunda sessão possam ter relação também com o teor subversivo da narrativa, como já foi mencionado anteriormente.

Quanto às histórias de leitura, acredita-se que a escolha de dois textos adequados aos leitores participantes, ou seja, mais próximos das suas possibilidades e limitações leitoras, além da sua relação com as leituras já realizadas por eles, foi determinante para a qualidade do processo de compreensão textual e geração de inferências realizado pelos participantes.

De modo geral, os resultados encontrados neste estudo parecem sugerir que a escola não tem investido na aprendizagem da compreensão entendida como diálogo e como integração de informações e que, de acordo com os pesquisadores da EJA (Di Pierro, Orlando, & Masagão, 2001), essa modalidade não tem priorizado e valorizado os saberes particulares dos estudantes. Tais resultados levam a concordar com a observação feita por Ferreira et al. (2018), para quem a escola não tem garantido efetivamente o desenvolvimento da capacidade de geração de inferências elaboradas, o que só é possível por meio da valorização da reflexão e da reconstrução do conhecimento. Pelo contrário, ainda de acordo com essas autoras, perpetua-se no âmbito das escolas a prática da leitura reprodutiva, passiva e acrítica, interditando o desenvolvimento de cidadãos mais potentes em termos das possibilidades inerentes a um domínio satisfatório da linguagem escrita.

Pensa-se, em consonância com Marcuschi (1989), que a escola poderia trabalhar com novos gêneros e tipos textuais, além de propor atividades de leitura que requeressem do leitor bem mais do que a mera decodificação e repetição das informações textuais superficiais (tal como aqui se observou predominante), isto é, que exigissem do leitor dialogar de forma crítica com o texto, elaborando sentidos e gerando inferências condizentes com as informações textuais, refletindo uma leitura com coerência e coesão global dos textos.

Espera-se que o presente estudo possa reforçar ainda mais essa necessidade de ser trabalhada uma diversidade de gêneros e tipos textuais nas escolas de modo geral e, especificamente, na educação de jovens e adultos. Finalmente, pensa-se que as histórias de leitura podem, inclusive, ser utilizadas nas escolas de modo a possibilitar a escolha de textos mais próximos da realidade dos estudantes, facilitando o trabalho dos professores (e dos estudantes) no desenvolvimento de leitores mais habilidosos.

 

Referências

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Correspondência:
Alex Barbosa Abreu Pinto
Rua Valdemar Falcão, 90, Engenho do Meio
Recife, PE, Brasil. CEP 50730-020
E-mail: alex.abreu@ufpe.br

Submissão: 19/03/2020
Aceite: 03/04/2021

 

 

Notas dos autores: Alex B. A. Pinto, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Sandra Patrícia A. Ferreira, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva, UFPE.

 

 

1 Nome fictício.
2 Convenções: E: entrevistador; P: participante.
3 No poema, a criança é o próprio personagem Jesus.
4 Segundo o texto, quem roubou os três milagres foi o menino Jesus.
5 Trata-se da remissão anafórica de uma modalidade de coesão que consiste na reativação de um referente mencionado anteriormente no texto.

 

 


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