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Psicologia: teoria e prática

Print version ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.23 no.3 São Paulo Sep./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPCP13276 

PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Família, religião e educação sexual em mulheres com vaginismo: um estudo qualitativo

 

 

Ana Carolina de M. Silva; Maíra B. Sei; Rebeca B. de A. P. Vieira

Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O diagnóstico e o tratamento do vaginismo são complexos porque envolvem fatores biopsicossociais e insuficiente avaliação etiológica. Por conta disso, buscou-se discutir aspectos do vaginismo referentes à religião, família e educação sexual, sob a perspectiva de mulheres que apresentam essa disfunção. Trata-se de um estudo qualitativo, de caráter exploratório, com nove mulheres que experienciaram vaginismo acompanhado ou não de dispareunia. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e analisados a partir da análise de conteúdo. Os resultados foram dispostos em duas categorias referentes às concepções apreendidas sobre sexo e à busca por conhecimento diante das lacunas de informações sobre sexualidade e disfunções sexuais. Percebe-se que uma educação sexual inadequada propicia desconhecimento, rigidez e equívocos, o que gera insegurança. Portanto, é necessário instruir e conscientizar as famílias, os profissionais e os contextos religiosos acerca de formas saudáveis e construtivas de abordar a sexualidade, respeitando crenças e valores. Aponta-se ademais para a necessidade de aprimoramento na prestação de serviços em saúde para essa população.

Palavras-chave: vaginismo; educação sexual; religião; relações familiares; sexualidade.


 

 

1. Introdução

As disfunções sexuais, segundo o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5, podem ser compreendidas como distúrbios na capacidade de resposta ou prazer sexual (American Psychiatric Association [APA], 2014). Entre essas disfunções, destaca-se o transtorno da dor genitopélvica/penetração, que consiste na combinação do vaginismo e da dispareunia, presentes no DSM-IV-TR (APA, 2002). A nomenclatura e os critérios diagnósticos foram substituídos na edição mais recente do DSM por conta da comorbidade e dificuldade de diferenciação entre essas duas disfunções, já que ainda há muitas discussões acerca da classificação e denominação do vaginismo (Özen, Özdemir, & Bestepe, 2018).

O vaginismo é descrito como um espasmo involuntário do músculo vaginal que interfere na relação sexual, sendo atualmente também compreendido como incapacidade de ter relação sexual por meio vaginal/penetração, dor genitopélvica, medo de penetração vaginal/penetração e tensão dos músculos do assoalho pélvico (APA, 2002, 2014). De modo geral, é considerado um distúrbio de penetração, em que qualquer modo de penetração vaginal, como dilatadores vaginais, absorventes internos, exames ginecológicos e relação sexual, é doloroso ou impossível (Pacik, 2014). Já a dispareunia é uma sensação de dor genital recorrente ou persistente, que ocorre antes, durante ou após a atividade sexual (APA, 2002).

Segundo o DSM-5 (2014, p. 482), há subtipos: "ao longo da vida/adquirido" e "generalizado/situacional". O "ao longo da vida" ocorre desde o momento em que a mulher se torna sexualmente ativa, e o "adquirido" tem início após um período de atividade sexual considerada como relativamente normal. Já o "generalizado" ocorre em quaisquer contextos e o "situacional" apenas em situações específicas. Além desses, o DSM-IV-TR (APA, 2002, p. 557) também considerava a etiologia - em razão de fatores psicológicos ou combinados.

Salienta-se que o DSM-5 aponta cinco fatores que devem ser considerados durante a avaliação diagnóstica do transtorno: 1. parceiro, 2. relacionamento, 3. vulnerabilidade individual, 4. cultura e religião, 5. e outros dados médicos que possam ser relevantes para o tratamento. Esses fatores podem influenciar de maneiras distintas os sintomas em cada mulher, sendo importantes para a etiologia e/ou tratamento (APA, 2014). Aponta-se também que há incertezas acerca da concepção, considerada no DSM-IV-TR, de que questões diagnósticas relativas à cultura, como inadequada educação sexual e questões de rigidez referentes à religião, poderiam ser fatores predisponentes para o diagnóstico de vaginismo (APA, 2014).

Segundo Batista (2017), os poucos estudos empíricos sobre o vaginismo apontam para a dificuldade diagnóstica e de tratamento, não discutindo acerca da etiologia do transtorno. Críticas ao DSM-5 apontam para atenção insuficiente à avaliação etiológica, concentrando-se apenas na fenomenologia (Özen et al., 2018), o que pode levar à negligência do diagnóstico de vaginismo ao longo da vida, tendo como base fatores culturais e religiosos específicos do contexto em que está inserido (Alizadeh, Farnam, Raisi, & Parsaeian, 2019). Rahman (2018) aponta que os critérios mais recentes generalizam algumas doenças em categorias menores, o que limita as possibilidades diagnósticas e de tratamento. Desse modo, compreendendo o vaginismo e a dispareunia como subconjuntos do transtorno da dor genitopélvica/penetração e devido ainda à ampla utilização dessa forma de designação na literatura recente, optou-se neste trabalho por fazer uso dessa nomenclatura.

Diante disso, sabe-se que a saúde e o funcionamento sexual são afetados tanto por fatores biológicos e psicológicos quanto socioculturais, refletidos por meio de crenças e interpretações religiosas de diversas culturas (Rahman, 2018). Fadul et al. (2018) realizaram um estudo na República Dominicana para identificar os fatores psicossociais associados ao vaginismo em dois grupos de mulheres, 40 com vaginismo e 80 sem, como grupo controle. Os autores estudaram variáveis como abuso sexual, ideias negativas sobre sexualidade por motivos religiosos, medo da relação sexual, educação sexual e educação rígida/autoritária. Foram apontadas similaridades em aspectos de comportamento sexual, e as mulheres com vaginismo apresentaram maior preocupação quanto à perda de controle tanto corporal quanto da situação.

Percebe-se na literatura grande incidência de publicações sobre vaginismo em países do Mediterrâneo e Oriente Médio, como Irã (Alizadeh et al., 2019), Turquia (Özen et al., 2018) e Índia (Vaishnav, Saha, Mukherji, & Vaishnav, 2020), abordando questões como o casamento não consumado (Alizadeh et al., 2019; Rahman, 2018), que frequentemente é relacionado com disfunções sexuais, principalmente o vaginismo. Rahman (2018) estudou as disfunções sexuais entre mulheres muçulmanas e constatou que as percepções sobre sexualidade e relações sexuais afetam o tipo de disfunção que essas mulheres experienciam e que os distúrbios sexuais de dor acabam sendo mais prevalentes por conta de preocupações específicas referentes à sexualidade, advindas da religião, como a manutenção da virgindade. Nota-se, com isso, a relevância em compreender as concepções acerca da sexualidade em mulheres brasileiras com vaginismo, principalmente em razão do escasso número de estudos na América Latina (Fadul et al., 2018).

O Brasil é um país cuja pluralidade religiosa vem aumentando nos últimos tempos, entretanto, ainda predomina o grupo cristão, composto por católicos e protestantes (evangélicos tradicionais e pentecostais) (Alves, Cavenaghi, Barros, & Carvalho, 2017). Tanto o catolicismo quanto o protestantismo possuem concepções contra o sexo antes do casamento. No entanto, a tradição católica brasileira vem sofrendo mudanças e possui características polissêmicas, enquanto os protestantes, principalmente pentecostais, têm um viés mais rígido e conservador (Ogland, Bartkowski, Sunil, & Xu, 2010).

Alves et al. (2017) estudaram a transição religiosa brasileira e constataram que esse fenômeno tem influência sobre mudanças em diversos âmbitos socioculturais. Já Hoga, Tibúrcio, Borges e Reberte (2010) realizaram um estudo qualitativo acerca da influência de familiares e da religião nas atitudes sexuais de mulheres católicas e perceberam distintas experiências, organizadas em três categorias, que enfatizam as orientações recebidas de padres. De acordo com os autores, essas orientações eram tanto diretas, com destaque à abstinência sexual, quanto indiretas, principalmente em relação ao comportamento das mulheres no cotidiano. Segundo ainda esses autores, verificaram-se, no âmbito familiar, experiências variadas permeadas por dois extremos: participantes que não receberam nenhuma orientação e aquelas que tiveram a possibilidade de falar abertamente sobre sexualidade. Além disso, Hoga et al. (2010) abordaram a reação das mulheres às orientações recebidas, divididas entre aquelas que aderiram aos ensinamentos transmitidos ou os repudiaram. Por fim, esse estudo destaca a necessidade de orientações adequadas no que diz respeito à religiosidade e à saúde sexual e reprodutiva.

Com isso, para além da religião, as questões de sexualidade e educação sexual perpassam também os contextos familiar, escolar e social. No que concerne à família, Pereira (2014) percebe que o foco está nas questões do namoro e nas consequências do sexo, e que na escola priorizam-se aspectos preventivos e biológicos. Hawkins (2016) verificou uma relação entre o funcionamento sexual da mulher e a educação sexual obtida, o que demonstra que a obtenção de conhecimento está relacionada com a saúde sexual, tendo assim melhor desempenho quanto ao desejo, à lubrificação, à satisfação e à dor.

Nota-se que estudos sobre saúde e disfunções sexuais podem contribuir para o desenvolvimento de melhores abordagens de transmissão de conhecimento, prevenção e tratamentos, como exposto por Pereira (2014, p. 13) que indica que "elucidar as concepções que as pessoas carregam e quais os discursos estão na base dessa construção tem o intuito de pensar possibilidades de trabalho". Desse modo, esta investigação objetivou discutir aspectos sobre o vaginismo referentes à religião, família e educação sexual, sob a perspectiva de mulheres que apresentam essa disfunção.

 

2. Método

As pesquisas qualitativas no campo da saúde permitem aprofundar a compreensão acerca dos aspectos psicossociais, os quais são uma limitação dos estudos quantitativos (Faria-Schutzer et al., 2019). Por conta disso, este trabalho se caracteriza como uma pesquisa empírica, qualitativa, de caráter exploratório, pois busca aprofundar conhecimentos acerca de uma temática pouco conhecida (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008).

2.1 Participantes

Participaram deste estudo nove mulheres que apresentavam ou haviam apresentado vaginismo acompanhado ou não de dispareunia. O critério de inclusão na pesquisa era ter no mínimo 21 anos de idade, e todos os casos seguiram os critérios do DSM-IV-TR (APA, 2002) para vaginismo.

Selecionaram-se as participantes por meio de um convite de divulgação, disposto em redes sociais e nos arredores do Serviço-Escola de Psicologia da universidade na qual este estudo foi realizado. Dessa forma, compôs-se uma amostragem intencional seguindo o critério de saturação de discurso. De acordo com esse critério, o término da coleta deve ocorrer quando os conteúdos passarem a se repetir (Fontanella et al., 2008).

A amostra foi composta por mulheres católicas, evangélicas tradicionais, pentecostais e sem religião, que possuíam majoritariamente vaginismo ao longo da vida (primário), em comparação ao adquirido (secundário), como caracterizado na Figura 2.1.1. Para a organização dos dados, as participantes foram identificadas, aleatoriamente, pela letra P e por um número, a fim de garantir o sigilo das informações.

 

 

2.2 Instrumentos

Para a coleta de dados, utilizou-se um roteiro de entrevistas semiestruturado, que foi desenvolvido com base nas principais temáticas presentes em estudos realizados sobre vaginismo, como aspectos religiosos, emocionais, socioculturais, o histórico do relacionamento amoroso, a educação rígida e autoritária, entre outros (Fadul et al., 2018; Pacik, 2014; Vaishnav et al., 2020). Esse modelo de entrevista busca, por meio de questões abertas, explorar uma temática nova. Questões abertas permitem o surgimento de conteúdos ao encorajarem a produção de ideias, deixando o participante livre para falar e fazer articulações (Fontanella, Campos & Turato, 2006). Desse modo, o roteiro contava, inicialmente, com dados gerais, como idade, ocupação, religião e estado civil. Depois, buscou-se abordar aspectos referentes ao vaginismo e à sexualidade, de modo a compreender como foi a iniciação sexual e a descoberta do vaginismo, as atitudes e crenças da família em relação ao sexo e, por fim, como se deu a educação sexual, quem abordou o assunto, as expectativas de como o sexo deveria ser e como esse tema foi tratado na escola.

2.3 Procedimentos

Inicialmente, foram feitos convites para a participação, expostos em redes sociais e nos arredores do Serviço-Escola de Psicologia, que continham os objetivos da pesquisa e o perfil desejado para participação, com as informações de contato da pesquisadora responsável pela coleta de dados. Desse modo, as entrevistas foram realizadas com as participantes que entraram em contato manifestando interesse e se enquadravam no critério de inclusão. Salienta-se que algumas participantes indicaram outras mulheres para a participação deste estudo, e, dessa forma, a seleção ocorreu por meio de busca ativa.

Realizaram-se as entrevistas de forma individual, em local de preferência das participantes, com duração média de 50 minutos. Os dados foram gravados e transcritos na íntegra, e todas as mulheres concordaram em participar voluntariamente da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e aprovada por meio do Parecer nº 2.102.053.

Analisaram-se os dados com base na técnica de análise de conteúdo temática (Bardin, 2011). As categorias foram construídas a posteriori, a partir de uma análise global do conteúdo das respostas das participantes realizada por dois avaliadores independentes, visto que, por caracterizar-se como um estudo exploratório, não existiam categorias, nem objetivos específicos predeterminados (Fontanella et al., 2008). Desse modo, em razão do contexto regional do espaço em que esta pesquisa foi realizada, a religiosidade e as questões socioculturais referentes à educação sexual surgiram espontaneamente como um dos destaques nos discursos das participantes, sendo esse, portanto, um dos recortes dessa pesquisa e o objetivo deste trabalho. Salienta-se também que este estudo passou por avaliação metodológica realizada pelo grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Psicanálise da universidade na qual o trabalho foi elaborado.

Depois de repetidas leituras, que são flutuantes e minuciosas (Pereira, 2014), as análises prévias dos avaliadores foram organizadas de acordo com suas semelhanças (Meneses & Santos, 2013) em duas categorias: "O que me diziam sobre sexo?" e "A busca por respostas e conhecimento". Optou-se por subdividir a primeira categoria em três subcategorias (religião, família e educação sexual), a fim de melhorar a sistematização e apresentação dos dados (Figura 2.3.1). A apresentação conjunta dos resultados e as discussões garantem melhor visualização das informações e da análise das categorias, ilustradas por meio da aparição de relatos, que corroboram a discussão.

 

 

3. Resultados e discussão

3.1 O que me diziam sobre sexo?

3.1.1 Religião

No que concerne à religião, cinco participantes (P1, P3, P4, P5, P6) afirmaram que esse campo teve significativa influência em suas concepções acerca da sexualidade. As demais afirmaram que não tinham uma religião, caso específico de P8, ou eram católicas não praticantes (P2, P7 e P9). Essas participantes, como ilustrado pela fala de P2, buscavam entrar em contato com a espiritualidade e fé, mas não costumavam frequentar a igreja com regularidade, assim como seus pais.

A igreja fornece uma série de condutas éticas e morais aos seus integrantes, de onde se desenvolvem as concepções e atitudes sexuais (Meneses & Santos, 2013; Rahman, 2018). De modo geral, a perspectiva e os valores da religião cristã sobre os relacionamentos amorosos e a sexualidade podem ser organizados, segundo os discursos das participantes, nos seguintes comportamentos: oração ao potencial novo casal, pedir a permissão aos pais para o namoro, preferência de relacionamento com pessoas da igreja, contato frequente com os pastores acerca das questões do relacionamento e castidade até o matrimônio. Essas questões costumam variar conforme a denominação religiosa, como exposto a seguir:

[...] é diferente, bem diferente a visão de uma igreja pentecostal, não sei se você tem esse conhecimento, quanto à questão de que é muito mais restrito. É mais restrita e olham para o pecado como uma forma, como tudo é pecado. Então aquela imagem do sexo, de que o sexo é pecado (P3).

A participante P3 cresceu frequentando a religião pentecostal, no entanto, após o casamento, decidiu mudar para uma outra igreja, evangélica tradicional, apresentando, desse modo, sua percepção acerca da diferença sobre a abordagem das questões de sexualidade. Para os pentecostais, a atividade sexual antes do casamento é tida como desviante, e, por isso, eles utilizam abordagens que guiam o sujeito para orientações morais rumo à piedade e à santidade ou ao pecado (Ogland et al., 2010). Tais designações referentes à sexualidade como um "pecado" foram somente expostas por P3 e P4. Reconhecer o sexo dessa maneira pode levar à associação de sentimentos negativos, reprimir o sujeito e consequentemente resultar em culpa. Nesse sentido, P4 relatou que, inicialmente, desejava ter relação sexual somente após o casamento, por conta de sua criação, no entanto, ao começar a namorar, sentiu-se pressionada pelo parceiro e aceitou ter relações sexuais antes de ser batizada:

[...] depois que eu batizei, a gente combinou de não ter mais relação sexual. Mas tivemos algumas vezes, e aí foi tranquilo, mas eu fiquei com uma culpa muito grande, muito grande. [...] Aí foi aquela pressa para casar, né?. E depois do casamento, na minha lua de mel, eu já não conseguia mais ter. [...] era a mesma coisa que se eu estivesse sendo estuprada, doía, saía sangue, eu chorava muito.

A participante tinha uma vida sexual ativa antes do batismo, desenvolvendo assim vaginismo adquirido em decorrência de uma situação. Essa percepção do sexo antes do casamento, como um pecado e um erro, pode estar tão enraizada "que, mesmo quando a relação sexual é sancionada pelo casamento, pode ser difícil relaxar física ou mentalmente" (Vaishnav et al., 2020, p. 221). A culpa sexual (sex guilt) mostrou-se significativamente correlacionada com a religiosidade, a espiritualidade e o fundamentalismo religioso, como demonstrado no estudo de Woo, Morshedian, Brotto e Gorzalka (2012) realizado com mulheres do leste da Ásia e do Canadá. Dessa forma, a condenação da sexualidade suscitava sentimento de culpa no que concerne à expressão da sexualidade, à medida que quanto maiores os níveis de religiosidade, maiores os níveis de culpa (Woo et al., 2012).

Essa culpa advém, principalmente, da tentação a esse desejo que não pode ser consumado. Meneses e Santos (2013) entrevistaram jovens evangélicos acerca da sexualidade e constaram uma unanimidade nos depoimentos: o único sexo possível e correto, de acordo com a igreja, seria aquele após o casamento. Em consonância com isso, o sexo só depois do casamento foi o aspecto do discurso religioso mais enfatizado pelas participantes evangélicas, que relataram que certas vezes tinham oportunidade de praticar uma relação, mas tinham que "frear" e "reprimir" essa possibilidade. Para P3, sentir-se tentada já consistia em um pecado e causava "muito sofrimento e arrependimento", já outras, como P6, enxergavam de forma mais leve, como uma parte desse processo, o que exigia a reafirmação dessa escolha. De acordo Hawkins (2016), uma relação entre crenças disfuncionais referentes ao sexo e a visão do desejo como um pecado indica um conservadorismo sexual associado ao estabelecimento dessas crenças.

Em contrapartida, no catolicismo, verificou-se uma visão plural, de maneira que nenhuma das participantes desta pesquisa esperou até o casamento para ter relações sexuais, e, como exposto por P1, há uma adaptação dos princípios da igreja à realidade e aos valores pessoais. A maneira como os valores são percebidos varia tanto entre os indivíduos quanto entre as diferentes denominações religiosas:

Eu achava que tinha que ser depois do casamento, assim, até um pouco antes de eu começar a namorar, eu tinha esse pensamento. Depois, eu já abri um pouco a mente, eu vi que não tinha nada a ver aquilo e eu sempre pesquisava em questão da religião, e eu vi que não era tão assim (P1).

E daí eu coloquei aquilo na cabeça, mas não era aquela coisa consciente, "não vou fazer isso, porque...", não, era uma coisa muito de princípio, de valor, sabe?, não era aquela coisa que não, é uma coisa que eu decidi e é tranquilo isso para mim, não, era uma coisa forçada. Tanto é que deu no que deu (P3).

Percebe-se que no caso de P1 houve uma reflexão crítica acerca dos valores colocados pela igreja, diferentemente de P3 que relatou ser algo "muito inconsciente". Essas tomadas de decisões "podem resultar de uma profunda reflexão sobre a situação pessoal e familiar ou ser uma consequência da subordinação inconsciente aos valores e padrões recomendados pela Igreja" (Hoga et al., 2010, p. 713). Assim, é importante que os profissionais da saúde, ao atenderem mulheres religiosas, verifiquem se suas escolhas são conscientes, provendo um espaço para elas refletirem sobre essa temática nos serviços de saúde (Hoga et al., 2010).

Desse modo, nota-se a importância de instruir e não somente impor valores e condutas. Nesse sentido, P5 e P6 fizeram comentários acerca de um curso de noivas ofertado pela igreja, que foi a única fonte de informação que elas tiveram sobre sexo e vida conjugal. No entanto, mesmo após frequentar o curso, P5 afirmou que não tinha ideia de como o sexo poderia ser, sendo este uma "surpresa" para ela. Tal fala corrobora os dados do estudo de Meneses e Santos (2013), em que os participantes afirmaram que a discussão acerca da sexualidade na igreja era rasa, faltando esclarecimentos, principalmente devido ao tabu que contorna esse tema.

3.1.2 Família

No que concerne à criação familiar, são percebidos valores conservadores e rígidos, certas vezes circundados pelo contexto religioso. Nesse âmbito, a educação sexual dentro das famílias foi tratada majoritariamente pela ausência de diálogo e imposição de regras, como ilustrado pelos seguintes relatos:

[...] minha mãe nunca falou de sexo comigo, isso era muito tenso em casa assim, ou quando tinha algumas cenas nas novelas de sexo, a gente ficava meio constrangido, todo mundo constrangido. E não, nunca foi falado comigo antes sobre sexo, ou sobre qualquer outra coisa que envolva relacionamento (P5).

[...] não me deixavam sair para lugar nenhum, sempre foram muito rígidos (P1).

Além da questão da igreja... Minha mãe tinha muito medo de eu engravidar e de acontecer alguma coisa, não acho que era tanto a questão da religião dela daí. A gente namorava, parecia aqueles namoros antigos [...] (P3).

[...] meus pais não me deixavam brincar com meninos, não podia andar de saia e não era por religião [...]. [...] e em casa ninguém falava sobre isso. Todas minhas amigas tinham dormido fora, e eu não podia [...]. Era sempre isso, mas eu não entendia o porquê, ninguém me explicou (P8).

Há dificuldades em abordar essa temática, cercada por constrangimento não somente por parte dos pais, mas também pelo lado dos filhos. Em aspectos referentes à sexualidade, a figura paterna foi retratada como "fechada e brava", tendo a mãe a função de "porta-voz" das diretrizes do pai. O único pai que abordou essa questão foi o de P4, já que conversas sobre esse tema geralmente são realizadas entre mães e filhas (Hoga et al., 2010). No entanto, raramente ocorreram diálogos, e toda referência ao assunto foi tratada com conotação negativa e punitiva pelas famílias, não tendo caráter esclarecedor ou informativo. Identifica-se a concepção familiar de que a ausência de discussões sobre a sexualidade poderia colaborar para que esta não se tornasse real. Entretanto, percebe-se que tais condutas geram dúvidas acerca das regras impostas sem explicações, como colocado por P8.

Em geral, as famílias das participantes tinham receio de uma gravidez precoce, afirmando que era necessário cuidado para não ficarem "malfaladas". Já as famílias mais religiosas trouxeram também preocupações referentes a "pecado e fornicação". Ambos incorporam a noção de que, se tais valores não forem seguidos, a imagem da mulher ficará degradada em contextos sociais (Hoga et al., 2010).

Para Pereira (2014), as famílias temem a expressão sexual por conta de suas possíveis consequências, como gestação, doenças e, em alguns casos, manutenção da virgindade. Desse modo, nota-se que a sexualidade é vista como um perigo iminente de gravidez. Portanto, para evitarem qualquer aproximação nesse âmbito, as famílias das participantes colocavam diversas restrições referentes à aproximação de meninos, como ir a festas, sair com frequência, voltar tarde, dormir fora de casa, ficar sozinha com o namorado e usar roupas curtas.

Com isso, as famílias transmitem uma visão negativa acerca da sexualidade, por meio de valores conservadores. No Brasil, considerado um país amplamente cristão (Alves et al., 2017), verifica-se que condutas e perspectivas do âmbito religioso estão também presentes na criação dos filhos, mesmo em famílias não tão assíduas dentro da igreja. O estudo de Fadul et al. (2018) constatou que um estilo autoritário de educação está mais presente em mulheres com vaginismo em comparação ao grupo controle. A ausência de informações e esclarecimentos acerca das imposições parentais e da sexualidade resulta em inseguranças, medos e baixa autoestima, assim como gera questionamentos e incertezas:

[...] só que já não era mais coisas do meu pai, era coisa minha, eu já tinha internalizado. Eu criei um monstro na minha cabeça, meus pais foram tão rígidos que eu, tipo assim, eles me davam um e eu já virava para dez (P1).

Minha mãe sempre fala que ela deveria ter me soltado mais, porque ela acha que eu sou muito presa às coisas de casa. Eu não gosto de fazer as coisas e achar que eu estou magoando meus pais (P2).

[...] como eu tinha esse tratamento em casa, acabava me esquivando de tudo (P5).

As participantes relataram que se sentiam "presas, fechadas e reprimidas". Percebe-se que a educação baseada em proibições, sem as devidas instruções acerca do motivo dessas imposições, faz com que o sujeito cresça com receio do que pode ou não realizar, como também de decepcionar e ir contra as expectativas dos pais. Esse modelo de educação baseado nas consequências e responsabilidades traz a ideia de que a sexualidade possui uma parcela errada, que implica efeitos negativos, e um lado correto, que condiz com o discurso parental e religioso (Pereira, 2014). Em consequência, algumas participantes relataram que não sentiam confiança para se abrirem com os pais no que se refere à sexualidade, escondendo qualquer informação sobre o tratamento do vaginismo e o uso de anticoncepcionais.

3.1.3 Educação sexual

Muitas famílias esperam que a educação sexual seja realizada em outros contextos, como na igreja, na escola ou com profissionais da saúde (Hoga et al., 2010). No que diz respeito à escola, a maioria das participantes (P1, P2, P3, P7, P8 e P9) apontou esse espaço como a única fonte de educação sexual, fato ilustrado pelos seguintes relatos:

[...] só tive a da escola. Lembro que foi na sétima série, que eu lembro que foram as doenças e os órgãos masculino e feminino, foi só isso. No ensino médio que mostraram as partes das doenças, ao invés de mostrarem coisas legais, mostram as partes ruins, para ter cuidado e tudo (P7).

[...] acho que a escola não abordou de uma forma muito adequada em alguns momentos, foi impactante, mas talvez negativamente impactante de algum modo. A gente tinha 12 anos e eles passaram o vídeo de um parto, então foi meio traumático, você saiu da sua infância feliz e que você achava que você vinha pela cegonha e de repente olha uma cabeça enorme saindo (P2).

O foco da educação nesse contexto é biológico, abordando o sistema reprodutor e os métodos contraceptivos. Há a ausência de orientações acerca da saúde sexual e do prazer, com foco em um método de exposição de conteúdos que, certas vezes, pode ser considerado aversivo e "traumático", como exposto nos relatos. Percebe-se uma similaridade com os discursos parental e religioso, ao visar não somente à apresentação biológica, mas também por enfocar as responsabilidades e os efeitos negativos da sexualidade.

Somente abordar o caráter profilático pode contribuir para um elevado índice de crenças sexuais, e a transmissão de informações desconexas acerca da sexualidade pode ser tão prejudicial à saúde quanto a ausência de educação sexual (Hawkins, 2016). A maioria das mulheres com vaginismo no estudo de Fadul et al. (2018) não recebeu nenhum tipo de educação sexual durante a vida, e mais da metade foi exposta a concepções negativas sobre sexualidade por motivos religiosos.

Para Pereira (2014, p. 106), a escola se utiliza do "caráter científico para incutir preocupação e medo na vivência da sexualidade ao focar apenas no caráter profilático e higiênico do tema". O espaço acadêmico tem, assim, grande potencial para não somente propiciar a disseminação de conteúdo, mas também incentivar a reflexão e o pensamento crítico quanto à educação sexual recebida, o que permite a reformulação de concepções pessoais. No entanto, há diversas deficiências na formação profissional e no processo educacional que impossibilitam essa forma de pensar, como a falta de conhecimento técnico-científico e a reprodução de valores e comportamentos do senso comum por parte dos educadores (Pereira, 2014).

Para além da escola, algumas participantes relataram também obter informações sobre a relação sexual por meio de amizades e da mídia. Cada um desses contextos exerce um tipo de influência, disseminando um parâmetro acerca da sexualidade:

A gente não é educado em relação à família, mas a gente assistia novela, filme. Também não era nenhuma alienada do mundo. Achava que ia ser aquele negócio louco, aquele amor louco, tal, avassalador (P6).

Minhas amigas sempre me colocavam esse medo de que doía muito (P2).

Conforme os relatos, percebe-se que os colegas acabam trazendo informações acerca da relação sexual, tanto por meio de experiências pessoais quanto pela disseminação de mitos socialmente construídos. Por sua vez, os canais de entretenimento disseminam uma visão idealizada, estereotipada e possivelmente, inalcançável, principalmente nas primeiras tentativas sexuais.

Geralmente, os problemas sexuais decorrem de crenças culturais, aspectos religiosos, falta de educação sexual ou ignorância da própria pessoa (Vaishnav et al., 2020). Para Hawkins (2016), os contextos que exercem mais influência sobre crenças sexuais são a escola e os amigos: o contexto escolar reforça, enquanto as amizades previnem crenças disfuncionais.

Estas influências - família, religião, escola, amizades e mídias - afetam a concepção sobre a relação sexual e a sexualidade, e a interpretação e a atitude em relação ao comportamento sexual parecem contribuir mais para a existência de uma disfunção do que, por exemplo, o grau de religiosidade (Rahman, 2018). Desse modo, constrói-se um imaginário sobre o sexo rodeado de expectativas e incertezas. As participantes relataram que compreendem o sexo como um tabu, algo "feio", "sujo", "proibido" e que causa dor, ao mesmo tempo que carregam os estereótipos sociais que visualizam a relação como simples, rápida e fácil, que todos fazem.

Percebe-se que há uma visão ambígua atrelada a diversas dúvidas por parte das participantes. A educação sexual inadequada contribui para expectativas sexuais irreais, relativas a como, a quando e ao que deve acontecer em uma relação sexual, sendo esse um dos principais motivos pelos quais os indivíduos enfrentam problemas sexuais (Vaishnav et al., 2020). Em relação às disfunções sexuais, o vaginismo possui etiologia desconhecida (Pacik, 2014; Batista, 2017), entretanto, estudos mostram correlações com a presença de crenças disfuncionais e atitudes negativas em relação ao sexo, aversão à genitália, restrita educação familiar e religiosa, estigmas culturais e familiares, medo da (primeira) penetração, virgindade, medo de engravidar, sexo só depois do casamento, ansiedade e medo ante a possibilidade de dor e a realização de exames ginecológicos, e ausência ou inadequada educação sexual (Alizadeh et al., 2019; Fadul et al, 2018; Özen et al., 2018; Pacik, 2014; Rahman, 2018; Vaishnav et al., 2020).

A maioria desses autores também considerou traumas no desenvolvimento infantil, como abuso sexual (Özen et al., 2018; Pacik, 2014; Rahman, 2018; Vaishnav et al., 2020). No entanto, Fadul et al. (2018) analisaram que a maioria dos estudos que consideram esse histórico não possui dados estatisticamente significativos para correlação com o vaginismo, assim como informado pelo DSM-5 (APA, 2014). No presente estudo, apenas P3 relatou ter sido vítima de abuso, o que ela relacionou, em partes, com a sua postura retraída perante a sexualidade.

Com isso, percebe-se que, embora sentimentos como a aversão e a ansiedade em relação sexo possam ser considerados fatores pessoais, o impacto de demandas culturais e sociais na formação dessas emoções não deve ser ignorado (Alizadeh et al., 2019). Ao longo da análise dos relatos, foi possível elencar similaridades principalmente entre o discurso familiar e o religioso, que visualizam a sexualidade no âmbito do sagrado. Enquanto a escola, além de certas vezes carregar tais características, indiretamente por meio de comentários e "piadas" advindos da própria vivência pessoal do educador (Pereira, 2014), agrega a visão biológica à sexualidade. Todas essas expectativas e informações sobre a sexualidade formam, de modo singular e pessoal, um imaginário repleto de anseios e incertezas.

3.2 A busca por respostas e conhecimento

Quanto ao vaginismo, as participantes enfrentaram diversas dúvidas, principalmente ao questionarem se realmente se tratava de um problema ou se era apenas inexperiência e dificuldades naturais do processo de descoberta sexual. Essa confusão se intensifica porque as expectativas delas não conversam com a realidade apresentada, e, por conta disso, elas procuraram conversar com pastores, parentes e profissionais da saúde em busca de informações e conselhos, como ilustrado pelos seguintes relatos:

Você acaba conversando com pessoas que falam coisas do tipo: "Tenta aguentar". E você mesmo pensa: "Eu quero conseguir"; então segura, respira forte, tenta, mas não vai (P6).

O ginecologista não deu muita importância, assim, não que ele não deu muita importância, mas ele falou assim: "Continua tentando, é normal" (P2).

Neste momento eu já estava em contato com os meus pastores, eles já conheciam outras histórias de vaginismo na igreja, e tem muito. [...] eles achavam que podia ser qualquer outra questão, de ser essa primeira relação e não estarmos acostumados. [...] e eu falava com a minha médica, e ela dizia: "Não, tá tranquilo, isso é só questão de você relaxar" (P5).

Fui conversar com minha mãe, e ela disse que ela também tinha demorado um mês para conseguir de fato, aí eu: "Pronto, ai meu Deus, um mês". E ela começou a dizer que era por conta da inexperiência [...] depois de um mês, eu não tinha conseguido, fui em uma médica, aí ela disse: "Nem vou te examinar porque é normal, atendo tantos casais iguais vocês. E, te digo, se você não tomar vergonha na sua cara e parar de ter frescura, você vai perder seu marido" (P3).

A preconcepção de que a iniciação sexual é dolorosa e difícil intensifica as incertezas das participantes e pode influenciar no medo subsequente da penetração (Pacik, 2014; Vaishnav et al., 2020). Há uma dúvida sobre até que ponto é normal a dor que sentem, e, ao serem instruídas por pessoas próximas e autoridades de que se trata de algo "normal", a procura por um diagnóstico ou tratamento pode demorar ou até nunca acontecer. Em seu estudo, Fadul et al. (2018) verificaram que relações sexuais dolorosas (dispareunia) estavam presentes tanto no grupo controle quanto em mulheres com vaginismo, com prevalência no grupo controle. Além disso, essas participantes mencionaram que nunca haviam relatado tais sintomas aos médicos, porque acreditavam que a sensação de dor era algo normal da relação sexual. Esse dado demonstra como concepções prévias e socialmente construídas podem ser prejudiciais à saúde sexual.

Referente à atuação dos profissionais da saúde, percebe-se que há um déficit na atuação e, consequentemente, na formação deles. Conforme os relatos, os médicos, em vez de esclarecerem informações, acabam reproduzindo o mesmo discurso familiar e das rodas de amizades, operando por meio de um discurso não científico, do senso comum. Ao desqualificarem os sintomas das pacientes, eles corroboram não somente o atraso do tratamento, mas confirmam os dados que colocam o vaginismo como difícil de ser diagnosticado e tratado (Batista, 2017), o que o caracteriza como um "sofrimento silencioso" (Rahman, 2018, p. 541), dificultando o cálculo da verdadeira prevalência dessa disfunção (Alizadeh et al., 2019).

Pacik (2014), ao abordar aspectos relacionados à formação dos ginecologistas, aponta que existe uma falha na educação superior e nas residências médicas, o que torna os profissionais incapazes de diagnosticar e tratar o vaginismo. O autor construiu uma tabela intitulada "O que seus pacientes não querem ouvir (condescendentes observações)" (Pacik, 2014, p. 1616), com discursos depreciativos similares aos relatados pela maioria das participantes desta pesquisa (exceto P8). Os comentários humilhantes não somente diminuem a autoestima das pacientes, mas também fazem com que elas evitem ir ao ginecologista, principalmente porque não conseguem realizar os exames ginecológicos e nem ter relações, mesmo depois de terem "relaxado e parado de frescura", como os profissionais sugeriram.

Diante dessa situação, a dúvida e a busca por uma resposta permanecem, e a maioria das participantes acabou conseguindo informações por conta própria ao buscarem na internet (P1, P3, P4, P5, P9), encontrando recomendações de outras pacientes sobre o tratamento com os dilatadores e a fisioterapia pélvica. As demais foram diagnosticadas por profissionais da medicina, como P2, que voltou ao mesmo médico após um tempo e, enfim, recebeu o diagnóstico, e P6, que precisou ir em busca de outros ginecologistas. Já P8 foi a única participante diagnosticada por um médico na primeira consulta, após a realização de exames e triagem acerca do histórico e sintomas. Esse momento de descoberta pode ser ilustrado pelos seguintes relatos:

E foi de profissional e profissional que não sabia o que era vaginismo direito, e quem diagnosticou fui eu, fui eu que cheguei com os artigos e falei: "Olha, eu acho que eu tenho isso" (P3).

Então assim, a gente vê que os profissionais não têm, tem uns que nem sabem que isso existe, alguns ginecologistas (P1).

Eu nunca tinha ouvido falar sobre isso. [...] aí eu vi um post no grupo do Facebook, quando eu vi pensei: "Nossa, minha salvação" (P9).

Aí, quando eu fui no ginecologista, eu nunca tinha feito Papanicolau porque eu não conseguia também. Eu começava a suar frio e o médico entendia, e ele que me falou [...], me explicou, falou o que que era (P8).

A internet acabou sendo a fonte de informações da maioria das participantes não somente sobre os sintomas do vaginismo, mas também sobre sexualidade, educação sexual e possibilidades de tratamento. Percebe-se que há um alívio com essas descobertas, pois, a partir disso, elas passaram a compreender melhor a situação que estavam vivenciando, principalmente ao entrarem em contato via Facebook com grupos de mulheres com vaginismo. No entanto, levanta-se uma discussão acerca da segurança e da fonte das informações divulgadas on-line que acabaram tendo maior validade do que o conhecimento médico para as participantes. No caso das mulheres entrevistadas, muitas das informações encontradas foram congruentes e as levaram a bons profissionais, entretanto sabe-se que a busca on-line pode também colaborar para o estabelecimento de equívocos, o que pode aterrorizar em vez de informar.

Não se excluem a relevância desses canais e a possibilidade deles de conectar indivíduos a profissionais que divulgam informações confiáveis, principalmente em um momento em que a internet está tão atrelada à vida cotidiana, em que há diversos cursos on-line para mulheres em relação à sexualidade. No entanto, será que as redes sociais e a internet deveriam ser a fonte principal de informações seguras e acolhedoras acerca da educação sexual e das possíveis disfunções para as mulheres? Parece ser problemático que esses veículos de informação exerçam melhor suporte para mulheres com vaginismo do que profissionais da saúde, amigos, educadores e familiares, e que elas tenham que esperar até a idade adulta e a descoberta de uma disfunção para que finalmente possam receber informações adequadas acerca dessas questões.

Desse modo, a existência de contextos de educação sexual contribui para uma vida mais saudável, na medida em que influenciam positivamente o desenvolvimento de concepções positivas e flexíveis, promovendo "um bom funcionamento e satisfação sexual, que são questões de saúde pública, tal como os comportamentos sexuais de risco" (Hawkins, 2016, p. 28). Nesse âmbito, Fadul et al. (2018) destacam a importância de os ginecologistas estarem atentos para a alta incidência de dor nas relações sexuais, a fim de que possam implementar medidas preventivas e reduzir os impactos na saúde das pacientes. Como o tratamento do vaginismo é multidimensional (Batista, 2017), ressalta-se a importância do envolvimento não somente dos médicos nesse complexo processo biopsicossocial (Vaishnav et al., 2020), mas também de fisioterapeutas e psicólogos.

Há uma variedade de tratamentos efetivos, como o uso de dilatadores, fisioterapia, terapia de biofeedback, aconselhamento sexual e psicoterapia (Pacik, 2014), além de terapia de casal e psicoeducação (Vaishnav et al., 2020). Entretanto, cada tratamento, além de suas especificidades, atua com o objetivo de desenvolver autoestima, autoconfiança e bem-estar (Batista, 2017). Para Batista (2017), o fisioterapeuta, além de aplicar técnicas, precisa realizar uma anamnese cuidadosa e oferecer informação e educação sobre anatomia, fisiologia e consciência corporal, visando ao autoconhecimento. Algumas participantes (P1, P4, P6, P8) tiveram ou ainda têm receio de procurar tratamento, enquanto o tratamento fisioterapêutico é mais procurado (P1, P2, P3, P5, P7, P9) do que a assistência psicológica (P4, P3, P5, P7).

Busca-se, dessa maneira, compreender o paciente como um todo para que, assim, o profissional possa planejar um tratamento adequado às particularidades de cada indivíduo. Segundo Hoga et al. (2010), as orientações de saúde sexual não devem ser padronizadas, e é imprescindível considerar e respeitar o âmbito religioso, com o propósito de promover uma atenção ao cuidado ética e de qualidade. Para que isso ocorra, é importante retomar preconcepções construídas e considerar todos os fatores que correspondem a esse processo, não só os físicos e biológicos, mas também aqueles referentes às experiências pessoais.

Portanto, compreende-se que o modo como a educação será incorporada na história do sujeito e como ela o influenciará é singular. Com isso, os tratamentos devem buscar investigar a história de cada indivíduo, reduzir atitudes negativas em relação sexo, abordar mitos e equívocos, e clarificar as concepções acerca da sexualidade (Vaishnav et al., 2020). Dessa forma, não cabe ao paciente se enquadrar na educação sexual tradicional e nos programas de saúde, mas é papel destes compreender as particularidades de cada público, com o intuito de exercer um cuidado que seja relevante e significativo (Hoga et al., 2010), e não apenas cumprir com algo instituído como vem sendo realizado.

Percebe-se que há um déficit de educação sexual de modo geral, tanto que os próprios profissionais da saúde e os educadores não possuem formação adequada para exercer essa tarefa. A educação sexual nas escolas, nas famílias e nos contextos religiosos é fundamentada no senso comum, por meio de valores conservadores, em um aspecto normativo que distingue o que seria a sexualidade correta (Pereira, 2014). Portanto, estudos como este, que buscam caracterizar o âmbito cultural e suas influências, são relevantes na medida em que permitem uma abordagem centrada nas particularidades de uma determinada população, melhorando tanto a prestação de serviços em saúde quanto a conscientização sobre o tema (Rahman, 2018).

Embora seja essencial um suporte tanto físico quanto emocional (Pacik, 2014), existem poucos estudos que focam o papel do psicólogo perante as disfunções sexuais, como o vaginismo, além de uma escassez de dados sobre disfunções sexuais no geral (Rahman, 2018). Tal cenário aponta para a importância de mais estudos, principalmente com recorte populacional brasileiro, a fim de investigar as particularidades dessa população, haja vista que a maioria dos estudos e das referências atuais sobre vaginismo é oriunda de países do Mediterrâneo e Oriente Médio.

Este trabalho buscou apresentar aspectos familiares, religiosos e de educação sexual relacionados ao vaginismo, a partir de um estudo qualitativo com uma amostra intencional de participantes. Salienta-se como uma limitação que os resultados não foram comparados com mulheres sem vaginismo, as quais também são uma população submetida a esses mesmos padrões sociais, educacionais e religiosos. Dessa maneira, este estudo não pretendeu associar tais aspectos como efeito de causalidade do vaginismo, pois, como exposto, essa disfunção sexual possui etiologia desconhecida (Pacik, 2014; Batista, 2017). Entretanto, os dados encontrados possibilitaram discutir alguns fatores sociais e culturais que podem estar presentes em mulheres com vaginismo, impactando a vivência dessa disfunção.

Nesse sentido, este estudo apresenta relevância exploratória dada a escassez de trabalhos brasileiros e a apresentação de uma amostra diversa no que concerne à denominação religiosa, abordando católicos, evangélicos tradicionais, pentecostais e ateus. Além disso, realizou-se a descrição da realidade de mulheres com vaginismo e suas concepções acerca da sexualidade, apresentando bastante similaridade com a literatura internacional. Sugere-se para estudos futuros a realização de entrevistas com mulheres sem vaginismo para comparar as experiências de educação sexual, com a intenção de averiguar as variáveis que estiveram presentes na vida desses dois grupos de mulheres e as diferenças que existem entre elas.

Logo, verifica-se que uma educação sexual inadequada propicia lacunas e desconhecimento, gerando insegurança e medos. Percebe-se que a disseminação de informações é a melhor forma tanto de prevenção quanto de tratamento, pois, por meio do conhecimento sobre a própria sexualidade, é possível desmistificar crenças e fortalecer a confiança da paciente diante dos medos e das incertezas. A conotação da sexualidade como um tabu torna todo o processo de desenvolvimento mais penoso e difícil. Com isso, instruir e conscientizar as famílias, os profissionais e o contexto religioso acerca de formas saudáveis e construtivas de abordar o assunto, respeitando a crença e os valores de cada grupo, configura-se como uma estratégia essencial para diminuição dos impactos negativos diante da sexualidade.

 

Referências

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Correspondência:
Ana Carolina de Moraes Silva
Universidade Estadual de Londrina, Centro de Ciências Biológicas, Departamento de Fundamentos de Psicologia e Psicanálise
Rodovia Celso Garcia Cid, PR-445, Km 380, Campus Universitário
Londrina, PR, Brasil. CEP 86057-970
E-mail: anacarolianams@gmail.com

Submissão: 08/04/2020
Aceite: 19/03/2021
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) o financiamento que permitiu a realização deste estudo.

 

 

Notas das autoras: Ana Carolina de M. Silva, Departamento de Fundamentos de Psicologia e Psicanálise, Universidade Estadual de Londrina (UEL); Maíra B. Sei, Departamento de Fundamentos de Psicologia e Psicanálise, UEL; Rebeca B. de A. P. Vieira, Departamento de Fundamentos de Psicologia e Psicanálise, UEL.

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