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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.2  São Paulo Dec. 1999

 

ARTIGOS

 

O trabalho do camelô: trajetória profissional e cotidiano1

 

The work of the peddler: professional trajectory and daily routine

 

 

Adriana Salvitti; Lygia de Sousa Viégas; Samir Pérez MortadaI, 2; Daniela Sanches TavaresII, 3

I Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
II Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Parte da investigação das trajetórias profissionais de camelôs, visando identificar fatores que as determinaram, bem como compreender se o trabalho de camelô surge como uma alternativa de emprego ou uma saída para o desemprego. Para tanto, foram feitas entrevistas semidirigidas com 13 camelôs da região da grande São Paulo que se instalaram nas ruas após a implantação do Plano Real. Os depoimentos abrangeram os seguintes períodos da vida dos entrevistados: o percurso profissional até o presente, o cotidiano do trabalho e do lazer e as perspectivas futuras. Os dados obtidos nas entrevistas foram organizados em três eixos: a) as trajetórias profissionais; b) o cotidiano de trabalho; e c) mercado formal e mercado informal. Os camelôs apontaram questões de profunda relevância acerca dos caminhos percorridos pelos trabalhadores brasileiros na busca de colocação profissional. Destacaram-se as dificuldades de inserção no mercado formal, em que um movimento pendular os conduzia ora ao trabalho formal, ora ao trabalho informal; trouxeram o duro cotidiano das ocupações informais, a importância da educação e da origem para a colocação profissional, e as visões das determinações que as distantes esferas de decisões políticas e econômicas lhes impõem no cotidiano.

Palavras-chave: Psicologia social, Mercado informal, História de vida, Camelô, Desemprego.


ABSTRACT

This article stems from the investigation into the professional paths of peddlers, with a view to identifying factors which determine them as well as finding out whether peddling comes about as a choice of employment or as a way out of unemployment. With this aim, semidirected interviews were made with 13 peddlers from the São Paulo metropolitan area who had taken to the streets after the introduction of the Real Plan. Interviews have covered the following periods in the lives of interviewees: professional path until the present, everyday work life and leisure and future prospects. The data obtained in the interviews were set up in three axes: (a) professional trajectories; (b) everyday work life; and (c) formal market and informal market. Peddlers pointed out questions of deep relevance regarding the paths trodden by Brazilian workers in search of professional placement. The difficulties in fitting into the formal market &– in which an oscillating movement led them sometimes to formal, sometimes to informal work &– were emphasized; they brought out the rough quotidian experience of informal occupations, the importance of education and origin for job admission, and the visions of the determinations which the distant circles of political and economical decisions impose on them.

Keywords: Social psychology, Informal market, Life story, Peddler, Unemployment.


 

 

Este artigo apresenta a atividade dos camelôs (trabalhadores ambulantes) através da consideração de suas trajetórias profissionais e de seu cotidiano, como uma tentativa de compreensão das relações sociais que permeiam essa forma de trabalho e também da influência do contexto político e econômico atual do Brasil nesse setor da economia.

Como ponto de partida, levantou-se a seguinte questão: seria o trabalho de camelô uma alternativa de trabalho entre outras possíveis ou a única saída para o desemprego?

Para tanto, foram realizadas entrevistas com alguns desses trabalhadores, com enfoque na trajetória profissional de cada um, através do relato de suas histórias de vida. Dessa forma, houve a possibilidade de emergência de um rico material de análise que permitiu a observação e a elucidação da dinâmica da relação da pessoa com o trabalho e os recursos oferecidos pelo meio, envolvidos direta ou indiretamente em tal relação. Consideramos importante a observação da inter-relação entre a história pessoal dos depoentes e o contexto histórico que envolve o processo de constituição de suas identidades profissionais, a fim de obter um maior esclarecimento do desenvolvimento de uma trajetória profissional, culminando no trabalho de camelô, bem como os fatores econômicos presentes na atualidade.

Primeiramente, deve-se dizer que a existência dessa forma de comércio nos grandes centros urbanos, bem como do comércio informal em geral, é bastante polêmica e complexa. Se, por um lado, o sistema informal é, em parte, promotor de desenvolvimento econômico, por outro, é também nesse setor que se concentram atividades marginais ao próprio sistema. Os camelôs, por exemplo, apesar de estarem fora do controle legislativo, são instrumentos da circulação de mercadorias e de certa forma estimulam certos setores de produção formal da economia. Segundo Cacciamali (1991), “muitos países toleram esse nível de sonegação e grande parte deles isenta de impostos esse segmento4, pois a perda de receita fiscal é mais que compensada pelos benefícios que trazem aos produtores” (p. 10). Vale dizer que, no Brasil, o ambulante encontra grande parte de suas mercadorias no Paraguai, ajudando mais a economia daquele país ou incentivando a produção de produtos piratas no Brasil. De qualquer forma, a existência dos camelôs não é insignificante, nem pode ser vista como algo passageiro, próprio de um período de crise.

Apesar de setor informal ser um termo controvertido (Cacciamali, 1983), ele é aqui entendido como aquele setor em que a forma de produção, para o seu funcionamento, não está necessariamente baseada no assalariamento do trabalhador. Agrega tanto a produção manufaturada, quanto a participação no setor terciário, característico de grandes centros urbanos (Cacciamali, 1983). O camelô, um pequeno revendedor de mercadorias, ou até mesmo produtor das mesmas, faz parte do chamado setor informal, juntamente com os trabalhadores autônomos em geral, estando ou não submetidos ao controle legislativo.

Estima-se que só na cidade de São Paulo há mais de 1,4 milhão de trabalhadores autônomos5. Segundo Fuentes (1997), o setor informal apresentou um grande crescimento no Brasil na década de 90, sendo que em 1995, representou 41,9% da população ocupada, indicando um aumento de sua participação na economia. Pires (1993) afirma que esse espaço ocupado pelo setor informal não só é criado pelo sistema capitalista, como desempenha um papel na sua manutenção, promovendo, entre outros aspectos, um movimento de informalização e ilegalização do trabalho nos países subdesenvolvidos (vale lembrar que nem todo trabalho informal é ilegal). Com a globalização e a abertura dos mercados, esses países, entre outras conseqüências, têm tido o crescimento do seu mercado formal limitado; para baratear custos e continuar se mantendo em atividade, os empregadores têm contratado mão-de-obra ilegal ou informalmente. Segundo Cacciamali (1983), o setor informal é determinado pelos espaços intersticiais criados no sistema capitalista e não pelo excedente de mão-de-obra. Assim, de um modo geral, o desemprego não cria o setor informal, apesar deste, por suas características, acabar absorvendo grande parte dos desempregados do setor formal.

Segundo dados do Seade, a taxa de desemprego na região metropolitana de São Paulo cresceu de 12,1% em janeiro de 1995, para 18,9% em agosto de 1998. Devido a essa alta e ao fato de ampla parcela da população empregada ser mal e irregularmente remunerada, o setor informal tem seu crescimento incentivado, já que é ele que irá suprir as necessidades desta grande população. A norma de consumo é bastante heterogênea e garante mercado de bens e serviços tanto de atividades formais, quanto das informais e ilegais.

Índices revelam que as taxas de desemprego na década de 90 apresentaram uma estabilização superior ao registrado na década anterior, estimando-se que houve uma certa acomodação do desemprego, sem que houvesse possibilidades de inserção ou reinserção dos trabalhadores no mercado. Dessa maneira, o desemprego passa a ser caracterizado como estrutural e não mais como cíclico (Fuentes, 1997). Diminuiu a própria capacidade de absorção do setor informal dos trabalhadores desempregados, por saturação deste setor e pelas novas características do desemprego.

Assim, esta pesquisa situa-se em um momento delicado da história brasileira e mundial. A globalização e as políticas neoliberais adotadas pelo governo na década de 90 implicam em conseqüências econômicas e sociais de relevo. Consideramos assim, como relevante, a investigação dos camelôs inseridos no mercado informal a partir de 1995, ano da implantação do Plano Real. A economia “submersa” ou “invisível”, que representa a atividade informal ilegal, à margem de regulações estatais, tende a aumentar quanto maior a carga tributária e quanto mais extensa e complexa a regulação do Estado.

Os pequenos estabelecimentos, nesse contexto, independentemente de sua forma de organização, e os trabalhadores por conta própria, vivem uma condição ambígua. Por um lado sua pequenez e pulverização perante o tecido econômico conferem-lhes facilidades para fugir do controle do Estado, por outro, são mais susceptíveis às pressões e às propinas da fiscalização (Cacciamali, 1991, p. 10).

As políticas de intervenção no comércio ambulante variaram bastante nas últimas décadas, apesar de distantes da realidade da atividade deste comércio. Segundo Costa (1989):

A questão reside na expectativa que cada administração tem em relação à cidade, onde cada fenômeno pode ser visto de forma isolada ou contextual. (...) o comércio ambulante, apesar de contraventor, não só tem funcionado como um escape ao desemprego ou a outros desequilíbrios socioeconômicos, como também tem desenvolvido ramos da economia paralela que cumprem funções importantes na produção da cidade, e a consideração desse aspecto interfere diretamente nas políticas de intervenção exercidas em cada administração (p. 43).

O comércio informal, além de se impor com o fluxo da demanda em um local, mesmo que esporadicamente, sempre se mobilizou na tentativa de forçar o Estado a regular o comércio. É o que pudemos observar, por exemplo, durante uma greve de fome ocorrida no segundo semestre de 1998, mantida pelos camelôs do centro de São Paulo, para que não fossem removidos do local em que trabalhavam e fossem ocupar locais construídos especialmente para essa atividade. Segundo os noticiários, o local oferecido pela prefeitura não proporcionava condições de trabalho, por não ser uma região de passagem de pedestres.

Assim, temos que a articulação do setor informal com o formal dá-se de modo bastante complexo, pois envolve diversas características da estruturação econômica e produtiva de um país e, segundo Fuentes (1997), não é apenas a presença ou não do Estado como regulador dos setores que determina sua organização e expansão.

O trabalho de camelô surge como uma possível alternativa de fonte de renda em períodos de crises econômicas, determinado tanto pela falta de perspectivas e baixos salários oferecidos pelo setor formal, ou mesmo informal, quanto por determinações culturais, que fazem parte da formação do trabalhador. O mercado informal envolve não apenas as dimensões econômicas e políticas na sua organização, mas também as redes sociais formadas. Segundo Lautier e Pereira (1994), a inter-relação entre essas dimensões e a regulação do mercado de trabalho são estabelecida por regras extra-oficiais. São relevantes as redes de relações estruturadas fora do mercado de trabalho, influenciando o mercado e também as políticas do Estado. As representações do camelô sobre o mercado de trabalho e as estratégias de inserção constituem elementos fundamentais de investigação para o entendimento dessas relações. A construção da identidade social e pessoal do trabalhador, revelada pela análise da trajetória profissional6 na história de vida, implica na consideração do tempo social e do tempo individual vivido pelos depoentes.

(...) o horizonte dos projetos profissionais ambicionados pelos indivíduos se forma a partir de outros projetos já pensados e/ou experimentados, tanto no ambiente de socialização (sair da pobreza, manter-se na pequena classe média, ascender etc.), quanto a partir de representações nascidas nas relações sociais verticais, vividas pelos membros da família, no trabalho ou fora dele (Guimarães, Agier & Castro, 1995, p. 117).

E mais, sabendo que grande parte dos camelôs que moram em São Paulo são nordestinos,

[a] precariedade das condições de vida do campo, que empurra para a migração, ou a dificuldade do acesso ao emprego na cidade, não fazem destes trabalhadores desqualificados seres passivos e interditados de conceberem alternativas. (...) essas estratégias não deixam de constituir escolhas livres, mas trata-se também, com certeza, de escolhas condicionadas (Guimarães et al., 1995, p. 134).

As condições econômicas e sociais do local de origem dessa população, bem como da realidade brasileira, contribuem para a formação das representações sobre o trabalho, o mercado de trabalho, a construção de projetos pessoais e as expectativas em relação ao futuro. O tempo social provê tanto os elementos que alimentam os projetos pessoais, quanto as condições para que esses projetos venham a se efetivar ou não. Assim, as condições reais influenciam na elaboração das idéias para uma possibilidade de futuro. Vemos que o tempo social atual, por limitar a inserção do trabalhador no mercado formal, faz com que outras alternativas sejam buscadas, mas que nem sempre são eficientes. O futuro acaba, assim, sendo facilmente idealizado e visto como algo muito distante e os sonhos aparecem como algo não permitido.

Os recursos e representações sociais, adquiridos no processo de socialização, influem tanto nos projetos pessoais para o futuro, quanto são elementos utilizados para a sua efetivação. As dificuldades encontradas mobilizam a utilização e criação de novos recursos, que nem sempre são eficientes. Devido ao contexto atual e aos acasos do mercado, mesmo aqueles que elaboram estratégias condizentes com a realidade encontram grandes barreiras para a sua efetivação, o que contribui para a vivência de sentimentos de desesperança e descrença.

A importância social e a tendência de crescimento do setor informal justificam a relevância de estudos sobre tal atividade, suas determinações e as condições de vida dos indivíduos que a exercem. Delineou-se a trajetória profissional dos camelôs e as determinações das mesmas, as condições de vida e trabalho e, ainda, o perfil sociodemográfico dos depoentes, a fim de levantar fatores em comum que tenham valor determinante no percurso profissional e investigar os processos sociais envolvidos nesse fenômeno.

Assim, procuramos investigar o quanto os projetos pessoais puderam ser efetivados, se ainda permanecem ou foram modificados com as condições reais enfrentadas e também voltamos nossa atenção para os caminhos na trajetória profissional que levaram ao trabalho de camelô. Como então é dada a inserção no mercado informal, considerando a idéia sobre as redes de relações? Que representação do trabalho de camelô esses trabalhadores têm? É visto como profissão? Há preferência por um trabalho autônomo e o que justifica essa preferência? Enfim, visamos a dinâmica de funcionamento desta atividade, levando em consideração os diversos contextos representativos.

 

Metodologia

Os dados desta pesquisa em psicologia social foram recolhidos através da gravação de depoimentos de camelôs, em regime de entrevista semidirigida. A escolha por este procedimento de investigação foi orientada pelas sugestões de Howard Becker (1997) e Maria Isaura Pereira de Queiroz (1988). Pode-se considerar que a realização das entrevistas traz material valioso que contribui para a compreensão de questões que, embora não estejam no centro da investigação, beneficiam-se do trabalho realizado através das representações que surgem em sua direção.

Orientamos a investigação sobre as trajetórias profissionais e os cotidianos de trabalho através dos depoimentos pessoais. As questões que surgem através desses depoimentos podem ir ao encontro de fenômenos sociais que, apesar de não estarem no foco do estudo, relacionam-se com o objeto do trabalho. Enfocamos, principalmente, as passagens dos depoentes pelas diferentes ocupações, desde o ingresso no mercado de trabalho até a época das entrevistas (primeiro semestre de 1998), embora outras dimensões da história de vida dos depoentes sejam investigadas, devido à sua importância para o tema. Fatores econômicos e políticos, por exemplo, foram trazidos pelos depoentes, corroborando ou contradizendo opiniões correntes sobre questões políticas ou econômicas.

Ao estudar os depoimentos pessoais &– em nosso caso, de camelôs sobre suas trajetórias profissionais &–, é possível identificar os fenômenos sociais como processos inseridos em um contexto e antecedidos pelo seu desenvolvimento histórico. Atentando-se aos dados qualitativos obtidos nas entrevistas, pode-se acompanhar uma seqüência de episódios em seu conjunto, como elementos relacionados e indissociáveis numa história de vida.

Através da riqueza de detalhes dos depoimentos, da vitalidade com que surgem nas entrevistas, busca-se o contato frutífero com um universo distinto do nosso, com uma classe social cujas perspectivas diferem das que conhecemos. Através do diálogo com nossos depoentes acerca de suas trajetórias profissionais, pode-se identificar suas perspectivas, suas possibilidades e expectativas referentes ao futuro.

A coleta de depoimentos pessoais através de entrevistas orientadas em torno da trajetória profissional dos camelôs pode possibilitar a emergência de novas questões acerca do tema abordado. Configura, também, o fenômeno da inserção no mercado informal e da exclusão do mercado formal como processos ao mesmo tempo sociais e individuais, presentes na vida de cada depoente.

Assim, foram colhidos depoimentos de 13 camelôs &– 6 homens e 7 mulheres, com idades entre 18 e 38 anos &– acerca de suas histórias profissionais. O critério para a escolha dos depoentes foi baseado na data que marcava o início de suas atividades em tal trabalho, que deveria contemplar o ano de implementação do Plano Real, 1994.

As entrevistas foram realizadas durante o horário comercial, nos próprios locais de trabalho dos depoentes, situados nos grandes e movimentados centros de comércio: região central de São Paulo, Largo da Batata, Rua Teodoro Sampaio e Penha (município de São Paulo) e Guarulhos (município da Grande São Paulo). Os pontos dos camelôs ficavam nas calçadas das ruas &– à margem do intenso fluxo de pedestres &– próximos de muitas outras barracas e das lojas do comércio formal. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas pelos próprios pesquisadores para que seu conteúdo pudesse começar a ser analisado também durante esse procedimento.

Para a elaboração do roteiro das entrevistas semidirigidas, foi necessária a realização de uma entrevista piloto. Sua forma e os dados obtidos por ela foram avaliados e, através desse processo, chegou-se ao roteiro definitivo, que englobava questões tais como: origem, escolarização, início e desenvolvimento da vida profissional, cotidiano de trabalho (onde almoçam, compram e guardam as mercadorias, qual é a jornada de trabalho, como se dá a relação com colegas, fiscais, polícia e prefeitura), lazer, questões políticas e econômicas, a comparação entre o mercado formal e o informal e as perspectivas de planos para o futuro profissional.

A análise dos dados teve caráter qualitativo e foi feita tendo em vista conhecer as histórias profissionais dos camelôs, assim como suas expectativas com relação ao futuro profissional. Os dados obtidos nas entrevistas foram organizados em três grandes eixos: a) as trajetórias profissionais, b) o cotidiano de trabalho e c) mercado formal e mercado informal.

 

As trajetórias profissionais

 

Origem e escolarização

De todos os entrevistados, somente uma era de uma família originária do estado de São Paulo, sendo a maioria formada por migrantes ou filhos de migrantes. Vinham de diversos estados da região nordeste do país, principalmente do interior desses estados. Grande parte dos depoentes mudou-se para cá sozinha, sendo que apenas três vieram com a família. A maior parte mudou-se para São Paulo contando já com certa estrutura, através do apoio de conhecidos ou, principalmente, de familiares. Cada um desses migrantes teve diferentes motivações para a mudança de estado, momento em que aparece o desejo de estudar e, principalmente, de ascensão econômica.

A mudança de estado motivada pelo sonho de estudar esteve presente em três histórias; em apenas uma delas esse sonho concretizou-se, não tendo sido substituído pela necessidade imediata de trabalho, como nos outros casos.

O maior motivador da mudança para São Paulo foram as dificuldades financeiras e a busca por um trabalho. Disseram que em suas cidades de origem a situação “estava muito ruim” e “não havia empregos”. Outros, ainda, procuravam um “jeito melhor de viver”. Em muitas falas perpassa a idéia de luta pela sobrevivência.

A mudança para São Paulo não parece ter sido vivida com facilidade, tendo em vista que a saudade da terra natal e o estranhamento da cidade nova aparecem com muita força. O enraizamento na cultura de seus estados apresenta-se em diversos discursos, nos quais as comparações são feitas de maneira saudosa. A determinação para alcançar o crescimento pessoal ou profissional, no entanto, busca constantemente sufocar a falta da cidade natal ou dos parentes.

Quanto à escolarização, apenas uma depoente nunca havia freqüentado a escola, sabendo apenas escrever o próprio nome e fazer contas simples. Os outros já haviam freqüentado ou ainda iam à escola, variando entre aqueles que tinham estudado por apenas um ano e os poucos que concluíram o segundo grau. A maioria dos entrevistados declarou ter interrompido seu processo de escolarização em virtude da necessidade de trabalhar7. Segundo eles, a coexistência do trabalho e do estudo acabava por se transformar em uma rotina muito “puxada”, uma vez que todos trabalhavam durante o dia e estudavam à noite.

O caso de Severina8, 34 anos, vendedora de frutas e temperos, parece típico: matriculava-se todos os anos na escola, mas não passou da segunda série. Sempre a abandonava para plantar ou colher, dependendo da época do ano. Embora tenha permanecido na escola por muitos anos (até os dezoito anos), compreende que o trabalho infantil sacrificou a sua escolarização.

Vale dizer que aqueles que paralisaram sua escolarização no início do primeiro grau, valorizavam enormemente o papel da escola na educação dos filhos, depositando neles a esperança de ascensão econômica e desenvolvimento pessoal.

Quanto à aplicação da escolarização no contexto profissional, a questão aparece em diferentes níveis. No caso daqueles que haviam concluído o segundo grau, a hipótese de utilizar tal nível de escolarização na procura por outro emprego “mais qualificado” e melhor remunerado não parecia ser feita, sequer pensando na possibilidade de deixar de trabalhar como camelôs.

Os dois entrevistados que ainda estavam na escola faziam planos envolvendo a escolarização, para os quais cursar uma faculdade era o objetivo. Dentre os que pararam de estudar, as respostas foram variadas: em alguns casos existia o sonho de continuidade, em outros, a desilusão por sua impossibilidade.

Como a escolarização requer certo investimento, mesmo em escolas públicas, não apenas a questão da incompatibilidade do tempo está presente, como também da impossibilidade de investir na própria educação escolar. Assim, fica claro que, embora depositem na escolarização a possibilidade ascensão profissional, vêem-se obrigados a postergar ou abandonar tal sonho pela difícil realidade em que vivem.

 

Histórias profissionais e rede de relações

Todas as histórias profissionais possuíam características particulares, sendo muito interessantes e ricas de informações sobre a trajetória de cada um dos camelôs entrevistados. Foi possível perceber, no entanto, que alguns aspectos pareciam ser comuns a algumas histórias. Por exemplo, o fato de que muitos deles se inseriram no mercado de trabalho quando ainda eram crianças, inserção que prejudicou o curso de suas escolarizações, as quais, não raro, ficaram comprometidas, foram abandonadas ou sequer se iniciaram. Como conseqüência, a possibilidade de inserção no mercado formal de trabalho em muito se reduzia.

Muitos viveram a dificuldade de se manter no mercado formal, marcando suas histórias profissionais por um movimento pendular entre o mercado formal e o informal. Dessa maneira, alguns casos mostram que o entrevistado estava no mercado informal pois não conseguiu um emprego no mercado formal. Procuravam, ainda, um emprego estável, declarando que voltariam ao mercado formal caso encontrassem lá melhor remuneração.

As histórias profissionais dos camelôs revelaram um aspecto fundamental não apenas da sua inserção no mercado informal, mas também de suas opções pela mudança para o estado de São Paulo. Foi determinante, na grande maioria dos casos, o apoio de familiares ou amigos, que ofereceram uma estrutura que os acolhesse aqui: moradia, empregos no mercado formal ou mesmo caminhos para a inserção no mercado informal.

Severina, por exemplo, veio para São Paulo contando com um grande apoio familiar, que no seu caso partiu de suas irmãs, que já moravam nesta cidade. Segundo seu relato, o apoio dos familiares foi fundamental não só para a sua mudança para São Paulo, como também para conseguir empregos, montar sua barraca e vender produtos na rua. A rede familiar ou de vizinhança, tal como aparece no discurso de Severina, foi o maior apoio que recebeu:

A idéia é sempre das pessoas que ajudam, né... porque eu tinha a minha cunhada, que trabalhava no Largo da Batata, né, e aí ela... trabalhava já com licença, né, então ela deu uma força para eu conseguir montar uma banca de bolacha lá, né... aí eu... comecei lá, com a força dos outros, né... não do pessoal da prefeitura, de quem já trabalhava lá... na rua, né... de quem trabalha na rua.

A própria Severina conta que se tornou ela mesma um apoio para outros, contribuindo para a permanência de familiares que chegaram depois à cidade: cedeu um pedaço do seu terreno para que um tio lá morasse, contratou a tia como empregada doméstica e babá de seus filhos e conseguiu um ponto de vendas para eles no Largo da Batata.

A mudança para São Paulo não estava vinculada, para a maioria, à idéia de trabalhar como camelô, pois muitos dos que vieram, quando aqui chegaram, tinham outros empregos &– também conseguidos através de contatos familiares. Por exemplo, Samara, 26 anos, vendedora de relógio e bijuterias, teve como ponto de apoio alguns familiares que já moravam na cidade anteriormente à sua vinda. Foi através da ajuda desses parentes que pôde se mudar, já contando com um emprego garantido em uma loja como balconista.

A presença de parentes e amigos demonstra-se fundamental na consolidação de espaços nos mercados formal ou informal. O primeiro emprego de quase todos os entrevistados foi conseguido através de parentes ou amigos próximos. A seqüência da vida profissional também esteve ligada a essa rede de relações pessoais. Percebe-se, assim, a importância não apenas do grupo familiar, mas também do grupo social, na determinação de trajetórias profissionais.

 

O mercado formal e a chegada ao trabalho informal

Os camelôs entrevistados começaram a trabalhar desde jovens, geralmente através dos familiares. Depois, por diversas circunstâncias &– como a falência da pequena empresa familiar ou a necessidade de sair de casa &– partiram em busca de empregos fora do âmbito familiar.

A maior parte dos camelôs entrevistados não tinha como objetivo o trabalho nas ruas. Eles chegaram a essa ocupação graças a fatores diversos, dentre eles destacam-se a falta de instrução e o crescente desemprego, conjugados à escassez de oportunidades de ocupações formais que compensassem financeiramente abandonar as ruas.

Em relação às tentativas de inserção no mercado formal, há dois grupos distintos: 1) pessoas que sequer tiveram registro em carteira, ou cujos registros foram curtos em comparação à vida no trabalho; 2) pessoas que já tiveram vínculo empregatício por um tempo significativo e perderam seus empregos.

Podemos dizer que os membros do primeiro grupo têm poucas chances de conseguir um emprego registrado, pois são pessoas com menor escolarização e que não contam com formação profissional ou registros em carteira compatíveis com as exigências do mercado. Assim, as oportunidades de saírem das ruas aparecem apenas através de empregos mal remunerados e pouco qualificados ou, ainda, do ideal de montar um negócio próprio, como um pequeno estabelecimento comercial. O caso de Severina é um bom exemplo:

...por causa que eu não tenho estudo para arrumar serviço... serviço de casa de mãe de família também não estou arrumando. (...) tem muita gente desempregada, procurando serviço, então a minha luta é esta daqui, da rua... eu não consigo arrumar, assim, uma firma para trabalhar, porque eu não tenho... estudo que dê... suficiente para arrumar uma firma, né... então foi aonde que eu achei, para mim... depender da... sustento da minha família foi a rua.

Já o segundo grupo espera retornar ao mercado formal: tem experiência registrada em carteira e, freqüentemente, percebe a atividade de camelô como um “passatempo” ou um “bico”. Gozando de alguma experiência profissional e de melhor instrução do que o primeiro grupo, esses camelôs parecem ter mais chances de conseguir inserção no mercado formal através de uma ocupação dentro de uma empresa que os registre em conformidade com a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Nesse caso, o trabalho nas ruas surge quando as ocupações formais desaparecem, sendo que a transição entre o trabalho de camelô e os empregos registrados é algo comum, configurando uma espécie de rotina em suas vidas. O caso de Denise, 20 anos, paulistana filha de migrantes que vende bolsas, ilustra essa idéia: nos períodos em que está desempregada, ajuda seu pai no trabalho de camelô, enquanto continua a procurar emprego no mercado formal.

As dificuldades de inserção no mercado formal remetem a um déficit nas vagas oferecidas, atingindo até mesmo aqueles que contam com certa experiência e instrução. A maior dificuldade, portanto, recai sobre aqueles com baixa escolarização, acabando por restringir suas opções de trabalho registrado àquelas que requerem pouca especialização e grande esforço físico. Outras possibilidades seriam os diversos tipos de trabalho informal &– nas bancas de ruas, vendendo de porta em porta ou nas faxinas em “casas de família”. Jussara, 26 anos, baiana que vende roupas, só conseguiu emprego de faxineira em um shopping, onde trabalhou por algum tempo, optando por sair desse trabalho, pois, segundo relatou, trabalhava “muito pesado” para receber menos do que como camelô.

Mesmo quando os camelôs conseguiam exercer ocupações assalariadas, havia o problema da ilegalidade &– ausência de regulamentação &–, sendo este um importante fator de exclusão da esfera formal. Mesmo quando os entrevistados passaram por funções dentro de lojas ou pequenos comércios, por vezes não contaram com os registros em carteira na época respectiva à ocupação ou ainda tiveram registros que não correspondiam ao trabalho executado. Esse foi o caso de Davi, um cearense de 38 anos, que vendia artigos eletrônicos, registrado como balconista durante os anos em que foi gerente de lanchonete.

A consciência da precariedade de sua escolarização, aliada à percepção da crise de empregos vivida pelo país, faz com que alguns dos camelôs, avaliando suas possibilidades profissionais, sequer procurem emprego no mercado formal. Esse é o caso de Alexandre, cearense de 21 anos, que vende bijuterias, cujas expectativas de ingressar numa atividade registrada não figuram a curto prazo, mas como remota e futura alternativa através de algum concurso público.

A inserção no mercado formal freqüentemente aparece como possibilidade mais viável dentro do próprio setor terciário. Entre os entrevistados, muitos desejavam ter um negócio próprio &– uma pequena loja, um lava-rápido, um barzinho etc. O obstáculo mais apontado para atingir tal objetivo foi a falta de recursos para o investimento inicial. Sem capital suficiente para pagar o aluguel comercial de uma loja, os camelôs permanecem nessa espécie de “degrau inferior” do setor terciário em que podem vender suas mercadorias com menores despesas. É o caso de Elizabeth, 31 anos, paulistana que vende relógios. Ela teve de abrir mão do seu plano de ter uma loja em um pequeno shopping e trabalhar como ambulante.

A escolha entre as ocupações oferecidas pelos mercados informal e formal são feitas, em grande parte, segundo a remuneração, parecendo significativamente descartada a especificidade do serviço buscado. Ou seja, tanto faz se é um trabalho como vendedor de crediário ou como doméstica, contanto que renda mais. O que está em foco, portanto, não é o trabalho como um fim, que deve trazer satisfação, mas como um meio de se conseguir sobreviver. Para Davi, qualquer alternativa que se apresentar mais rentável será bem vinda.

A falta de registro em carteira gera dificuldades para a colocação no mercado formal, ao mesmo tempo em que a experiência registrada abre portas para futuros empregos. Trata-se de um círculo vicioso que, de um lado, facilita a inserção daqueles que já se encontram dentro ou próximos da formalidade e, de outro, distancia ainda mais aqueles cuja colocação no mercado formal foi breve ou sequer aconteceu. Jussara, 26 anos, baiana vendedora de roupas, apesar de ter concluído o segundo grau no Ceará, não consegue um emprego formal por sua carteira de trabalho ser “branca”, isto é, sem qualquer atividade formal registrada.

Há uma inter-relação entre os motivos para a exclusão do mercado formal e a inserção no comércio das ruas, não sendo possível identificá-los de forma isolada. As altas taxas de desemprego, a baixa instrução dos camelôs, a oferta aviltante de ocupações desgastantes e pouco remuneradas e o círculo vicioso provocado pela exigência de registro em carteira são fatores que se conjugam, formando um sistema complexo que promove a exclusão social.

 

O “luxo” de planejar o futuro

A pergunta sobre planos para o futuro parece ter causado embaraço e, algumas vezes, ter sido de difícil entendimento, demonstrando quão estranha é, para os camelôs, a idéia de que possam planejar suas vidas. Assim, um dos entrevistados explicou que pensar no futuro na situação atual, tão instável, seria imprudência ou ingenuidade:

Olha, com esse emprego que eu tenho, não dá nem prá pensar em futuro [riu]. Sinceramente, né, eu não acho que seja um emprego assim que você possa pensar no futuro, porque não dá prá você ganhar nada. Só prá ganhar prá comer... Esses negócios de luxo, essas coisas assim, prá guardar dinheiro não dá, né (Bárbara, 27 anos, cearense, vende cachorro-quente).

Pudemos perceber que a questão sobre as perspectivas de futuro trouxe algumas respostas que falavam claramente de projetos, os quais levavam em conta a situação atual do depoente e a preocupação de vislumbrar as possibilidades vindouras. Outras respostas falavam do que o entrevistado idealizava como futuro desejável, independente de ter traçado um caminho concreto para isso.

As dificuldades enfrentadas, o estigma e a ilegalidade fazem com que o vendedor ambulante esteja constantemente buscando um trabalho assalariado, ao mesmo tempo em que sonha com um negócio próprio. Os projetos de futuro dos entrevistados incluíam: montar um negócio próprio (lava-rápido, lanchonete, pequena loja), ter um emprego formal (vendedor), ter uma profissão de nível universitário (por exemplo jornalista), estudar e conseguir um emprego formal mais qualificado (por exemplo, ser funcionário público).

A partir das ocupações anteriores, de sua trajetória pessoal e profissional, pudemos entender os meios pelos quais eles chegaram ao trabalho de camelô, que lugar tal atividade ocupa em suas vidas e ainda quais são seus planos para o futuro. A iniciação dos entrevistados no trabalho de camelô deu-se quase que exclusivamente através de parentes ou amigos. As possibilidades de trabalho estão, dessa maneira, condicionadas por tais relações sociais. Embora procurem emprego, sabem que suas maiores chances são aquelas intermediadas por conhecidos.

Assim, o futuro acaba sendo mais circunstancial e não o resultado de uma perspectiva planejada. Mais que isso, planejar o futuro torna-se um “luxo”, quando pensado do ângulo de pessoas que sofreram constantes processos de exclusão social (de seus estados de origem, das escolas, do mercado formal) e que vivem, ainda hoje, à margem da sociedade, trabalhando em uma ocupação reconhecida como ilegal.

 

O cotidiano de trabalho

 

A “empresa rua”

O olhar atento sobre o trabalho dos camelôs revela o quanto o mercado informal encontra-se permeado por regras que vão além das regulamentações estabelecidas pela prefeitura. Apesar de haver espaços oficiais para a ocupação pelas bancas e de ter havido um sistema de cadastramento (já que não é mais feito o registro), sabemos que a maioria dos camelôs ocupam diferentes áreas na cidade que não fazem parte das delimitações predeterminadas, embora esses espaços também sejam alvo da fiscalização da prefeitura.

Fora do sistema oficial de ocupação da rua e dentro do sistema informal, encontramos uma organização “formal” entre os camelôs, que vai desde a possibilidade de estabelecimento do ambulante na rua, até o modo de utilização desse espaço e as diversas relações que daí surgem. Esse sistema de regras tácitas vai sendo construído e apreendido no convívio com os outros camelôs que trabalham na mesma zona ou área.

Quanto à forma de inserção na rua, percebemos que esta se dá por várias vias: compra de um ponto, pedido para trabalhar em um local e ter a permissão dos lojistas em frente ou dos camelôs ao lado, ocupação de um ponto de um amigo ou parente ou mesmo a ocupação de um espaço onde até então não havia camelôs ao redor (o que pode se dar também em locais onde outros camelôs foram previamente retirados pela prefeitura).

Nos lugares onde a concentração de camelôs é bastante alta e já são ocupados há muitos anos, geralmente a ocupação depende da compra do chamado “ponto”. Esse local “pertenceria”, pelo tempo de ocupação, a um camelô mais antigo que, portanto, pôde registrá-lo em seu nome, na época em que estes registros eram feitos e válidos oficialmente. Muitos pontos são vendidos ou alugados para outros camelôs.

Quanto à organização e utilização do espaço, bem como quanto às relações que aí se estabelecem, um dos depoentes nos conta que aquele que desrespeita os colegas ou os lojistas é denunciado por eles mesmos à prefeitura. Diz, ainda, que se deve ter uma relação amistosa e de confiança com os colegas de trabalho, já que precisam constantemente contar uns com os outros, para que cuidem de sua barraca, possibilitando, por exemplo, que ele vá almoçar, vá ao banheiro ou faça um telefonema. Há, dessa maneira, uma troca entre todos, que se ajudam mutuamente no cotidiano profissional.

Elizabeth conta da preocupação em deixar o local sempre limpo para não haver desentendimento com os lojistas, além de procurar não vender aquilo que eles vendem, evitando, dessa maneira, “abrir concorrência” com a loja, o que certamente geraria desafeto entre eles. Segundo Elizabeth, a relação que possui com os lojistas é boa, apesar de normalmente não gostarem da presença dos camelôs.

Eles vêem que você está lutando, tem uma família; eles têm, assim, pelo menos aqui nesse setor, nesta quadra, eles são assim bastante compreensivos; estão sempre conversando com a gente, se precisa de alguma coisa, se eu preciso de um troco, ou eles, vêm aqui. Posso dizer que é um relacionamento bom. Também a gente respeita, né, eu não vendo produto que ele vende, eu procuro deixar tudo limpo, organizado. Já tem locais em que a pessoa coloca uma banca de calçados de frente da loja e vende mais barato. Eletrodoméstico é uma coisa séria, né, você vê que lá no centro tem aquelas bancas enormes de eletrodomésticos em frente à G. Aronson, Arapuã.

Parece haver, no trabalho nas ruas, um acordo velado com os fiscais ou com a polícia, o que raramente foi explicitado nas entrevistas. Essa relação é sempre relatada de maneira obscura: a maioria diz que paga uma pequena quantia para os fiscais, polícia ou a prefeitura &– o “cafezinho”. Dizem, ainda, que, se esse acordo não é respeitado, correm o risco de ter suas barracas apreendidas. Há ainda aqueles que dizem nunca terem sido importunados pelos fiscais. Samara, diz que entre as pessoas que trabalham na rua há uma relação de confiança e Elizabeth comenta que quando a prefeitura passa para fiscalizar, um camelô avisa o outro.

(...) lá na feira tem licenciamento, a gente paga todo mês... na rua também, a gente paga para a... prefeitura todo... todo final de semana a gente paga para eles... se não pagar, a prefeitura vem buscar as bancas (Severina).

Quanto ao sistema de organização de cada camelô no seu trabalho, pode-se perceber a existência de diversos pontos em comum. O cotidiano é relatado como sendo bastante cansativo: a maioria trabalha em média dez horas por dia, de segunda a sábado. É, ainda, parte da rotina de alguns enfrentar a poluição visual, sonora e do ar, as variações climáticas e os perigos da rua, como assaltos ou presenciar tiroteios. Elizabeth fala sobre as dificuldades vividas no seu cotidiano profissional:

(...) roubaram minha caixa com toda a mercadoria, perdi tudo, neste mesmo local. Aí eu comecei do zero novamente. Então, cê tem, assim, tem o lance da violência também que nos atinge, óbvio. Você vê, eu com uma banca dessa, chama a atenção, né. Sempre tem aqueles que na hora que você está atendendo um, vem um e leva uma peça. Aqui é uma loucura, tem um movimento absurdo, muito grande. Eu dei uma vacilada e perdi minha caixa com toda a mercadoria. Tem o lance das pessoas que maltratam, passam e xingam mesmo, falam “esses maloqueiros, esses malandros, deviam sair mesmo”. Mas não vêem o lado de que você está vivendo em um país que não tem emprego, não tem direito à saúde, à educação, infelizmente, e eu batalho mesmo para eu prover os meus filhos de um futuro melhor.

A mercadoria vendida é geralmente guardada em algum local próximo da região de trabalho, quer seja um depósito, um bar ou uma loja. A maioria paga por isso, embora tenhamos encontrado outros que conseguiram o espaço emprestado, não tendo gastos com tal função. A maioria utiliza banheiros liberados por comerciantes locais. Quanto às refeições, variam entre aqueles que comem na própria casa (quando moram perto do local de trabalho), aqueles que levam a própria comida, os que comem nos bares e restaurantes da região ou aqueles que recebem comida de marmiteiros.

 

A dupla jornada de trabalho

Esse assunto surgiu apenas nas entrevistas com as mulheres, de modo espontâneo, enquanto contavam sobre o seu cotidiano. Nos relatos, a dupla jornada também ficou bastante mesclada quando falavam do modo de utilização do “tempo livre”.

Tem dia que eu chego em casa oito horas, sete e meia, depende muito do ônibus, porque esses ônibus é uma porcaria! Aí quando chega em casa é todo dia a mesma coisa, todo dia a mesma coisa, é fazer a janta, depois fazer..., preparar as coisas para trabalhar no outro dia, depois acordar cedinho. É sempre assim, todo dia a mesma coisa (Bárbara).

A questão da mulher camelô não é diferente da maioria das mulheres de baixa renda que trabalha fora de casa (Mello, 1985). A maioria das entrevistadas enfrenta a dupla jornada de trabalho por não ter uma renda suficiente para contratar alguém para cuidar da casa. Os homens da casa &– marido, irmão, pai &– nunca aparecem como aqueles que ajudam ou participam do trabalho doméstico.

Além do trabalho na rua, que as mulheres entrevistadas disseram ser bastante cansativo, todas acordam cedo para arrumar a casa, fazer comida, sendo que às vezes até faltam no trabalho da rua para trabalhar em casa. O “trabalho mais pesado” da casa é feito nos “dias de descanso”, numa relação paradoxal entre ambos. Assim, como foi dito anteriormente, o “tempo livre” é usado muitas vezes para o trabalho.

De domingo lá em casa, Ave Maria, só dá tempo mesmo para lavar roupa, fazer comida, arrumar a casa, é uma canseira que você chega aqui no outro dia na Penha aleijada de tanta coisa para fazer (...) o trabalho de casa é todo meu (Bárbara).

Fica, assim, caracterizada uma diferença da mulher camelô em relação ao homem camelô, diferença que extrapola o fato de serem camelôs, uma vez que a grande maioria das mulheres de baixa renda que estão inseridas no mercado de trabalho acabam tendo, na sua vida cotidiana, essa dupla função &– de cuidar da casa e da família ao mesmo tempo em que trabalham fora.

 

Lazer e tempo livre

A questão do lazer geralmente apareceu nos momentos em que falavam sobre as diferenças entre morar em uma cidade grande como São Paulo e nas cidades de onde vieram; ou quando falavam da rotina, do trabalho pesado, e conseqüentemente da falta de tempo para descansar ou mesmo da falta de dinheiro.

Para muitos deles, o lazer na cidade de São Paulo está ligado a alguma atividade em que se gasta algum dinheiro. Outros consideram como lazer a utilização do tempo livre como um momento de visitar parentes ou ver televisão. Filó, 27 anos, pernambucana, vende cigarros, diz que apesar de freqüentar o Parque do Ibirapuera nos finais de semana, sente-se presa morando em São Paulo. Já para Bárbara, não há tempo livre: quando não está trabalhando na rua, arruma a casa. Devido à sua rotina de trabalho, diz não sair nos finais de semana, pois está muito cansada. Assim, o seu próprio local de trabalho é usado como local de divertimento: Bárbara e Filó contam que gostam de trabalhar na rua, pois têm amigos, conversam e brincam com as pessoas.

Uma frase bastante característica da situação do camelô em relação ao tempo livre e ao trabalho é proferida por Denise quando perguntada a respeito do que fazia nos momentos em que não trabalhava:

Como assim? Sempre estou trabalhando!

O tempo livre não está necessariamente associado ao lazer. Ter tempo livre é muitas vezes associado ao trabalho, seja para que outros trabalhos sejam feitos, como atividades domésticas, ou para que seja usado como um descanso do trabalho. É como se o tempo livre, associado à falta de obrigações, fosse um privilégio para muitos deles, já que não podem utilizá-lo para o enriquecimento pessoal ou para qualquer atividade que vá além de uma obrigação. É o tempo livre do trabalho de camelô, mas que no entanto é tomado por outros trabalhos. Já a palavra lazer é associada com passeios e divertimentos. Para além do descanso é que pode vir a possibilidade de algum lazer: para alguns quando sobra dinheiro, para outros, um passeio no parque.

 

Preconceito

O preconceito foi um assunto que permeou muitas entrevistas, direta ou indiretamente, seja dos outros em relação ao trabalho do camelô ou do camelô em relação ao seu próprio trabalho. Alexandre diz que é muitas vezes destratado pelos fiscais, que são freqüentemente agressivos.

Severina mostrou-se bastante preocupada em dizer que, ao ir ao banheiro, lava as mãos e sempre deixa tudo limpo, já que trabalha com produtos alimentícios. Nesse sentido, parece preocupada com ser julgada por seu interlocutor. Além disso, enquanto falava da relação com a fiscalização e de sua indignação por eles dificultarem o trabalho do camelô, trouxe a questão do trabalho ligado à sobrevivência. A partir daí, o estabelecimento de relações preconceituosas entre desemprego e roubo, e também a imagem do camelô como aquele que é mal visto pelos outros, apareceram com muita força. Sobre a retirada dos camelôs, diz:

Ah, eu achei que é uma miséria o que eles fazem com a gente, né, porque não tem serviço para ninguém... se for todo mundo procurar serviço não acha, né, então a gente depende de... sobreviver disso... porque eu acho que é uma injustiça fazer isso com a gente (...) muitos dependem de vender alguma coisinha para sobreviver, por causa que não acha serviço, vai roubar? Não tem, não dá, vai roubar dos outros? Vai ser preso, (...) então é melhor você trabalhar... de que ir roubar..., às vezes rouba de uma pessoa pior do que a gente. (...) Então é melhor a gente vender aqui na rua, e eles têm que deixar a gente trabalhar... por causa que a gente não está empatando a praça, a gente não... eu mesma trabalho aqui... eu não deixo uma sujeira... toda hora eu estou varrendo, estou pegando lixo... eu saio daqui seis e meia, eu coloco a minha sujeira que eu faço dentro de um saco de lixo, amarro e coloco para o lixeiro levar. Então não fica sujeira na rua. A gente não tampa o farol... (Severina, 34 anos).

O relato de Severina, repleto de negativas, vem para afirmar aquilo que ela não faz. Assim, relaciona o trabalho de fiscalização e a proibição do seu trabalho como algo diretamente ligado ao modo dos camelôs se portarem. Se eles se comportarem bem, deixando a rua limpa e não dificultando a circulação, não há motivos para serem retirados.

Roberval, 19 anos, cearense vendedor de artigos eletrônicos, diz que a prefeitura acha que eles são ladrões por colocar policiais nas ruas para não deixá-los trabalhar. Mas a questão do preconceito fica bem caracterizada por Elizabeth. Além de ser, ela mesma, preconceituosa com o seu próprio trabalho, conta-nos como os outros também não o respeitam. Primeiramente, ao perguntarmos sua origem, preocupou-se em dizer que era “paulistana da terra”, preocupada em se diferenciar dos demais (nordestinos), que “não eram da terra”. No decorrer da entrevista, no entanto, mostrou sofrer, também, com o preconceito da sociedade:

O trabalho na rua é difícil, porque é discriminado, é um trabalho ilegal, é um subemprego. Aqui você é maltratado por cidadãos normais que, por exemplo, estacionam o carro aqui, vai abrir a porta... realmente, a barraca atrapalha. Então, tem pessoas que não têm a compreensão, acha que você está aqui porque você quer. Eu já ouvi várias vezes as pessoas falando “você é nova, poderia estar trabalhando...”, realmente, poderia até trabalhar em... ter um outro trabalho, mas para ganhar o que eu ganho aqui é muito difícil; tenho dois filhos para criar; então, eu tenho motivos para estar aqui, não é porque eu quero, porque eu escolhi (...) Eu não desejo ficar aqui nesse subemprego o resto da vida, não tem futuro nenhum para mim. Tem o lance das pessoas que maltratam, passam e xingam mesmo, falam “esses maloqueiros, esses malandros, deviam sair mesmo”.

Roberval e Severina comentam a relação entre trabalho e roubo ao falarem sobre a relação da fiscalização com os camelôs e o desemprego. Dizem que tem sempre um jeito de não precisar roubar, de ganhar dinheiro honestamente. Severina fala de como está difícil arranjar serviço e de como as pessoas dependem do trabalho na rua para sobreviverem. Considera uma injustiça a prefeitura retirar os camelôs da rua, levarem suas mercadorias, pois não têm outro meio de garantirem a sobrevivência. Nesse sentido, a atividade de camelô aparece na fronteira com o roubo, visto como uma das últimas alternativas honestas de viver, embora vitimada pela ilegalidade que a cerca.

a gente tem que vir, né... arrumar um meio de... de trabalhar, pelo menos na rua, para não ir roubar, não é não? (Roberval).

Ironicamente, nem mesmo ex-presidiários teriam direito a esse trabalho. Uma portaria publicada no Diário Oficial do Município de 14 de julho de 1998, de autoria do secretário das Administrações Regionais, Alfredo Mário Savelli, impede a regulamentação de ex-presidiários como camelô, discriminando aqueles que não tenham bons antecedentes.

A questão do roubo aparece ligada à figura do camelô por sua atividade ser marginalizada e estar no limite da ilegalidade. Conseqüentemente sua identidade pessoal é muitas vezes vinculada e confundida com a figura do ladrão.

 

O camelô e a ilegalidade

Na visão dos entrevistados, o tratamento dado à questão da legalização do comércio ambulante pelas últimas gestões da prefeitura de São Paulo variou em função de concepções diferenciadas a respeito da ocupação do espaço público, indo desde a concessão de locais de trabalho na rua até a construção de camelódromos ou a proibição acirrada pelas fiscalizações. Assim, vimos que, no governo Luíza Erundina (1988-1993) houve termos de concessão do espaço de maneira restrita, em que os camelôs teriam de se cadastrar para que pudessem ocupar determinadas áreas. Na gestão Maluf, a seguinte, não houve ações proibitivas, tampouco novas regulamentações.

Na gestão do prefeito Celso Pitta (em curso quando da pesquisa) foram invalidadas todas as licenças concedidas anteriormente e distribuídas novas senhas para dimensionar a população de camelôs, o que possibilitaria a construção de locais específicos para tais ocupações, chamados popcenters ou bolsões. Assim, os camelôs não poderiam ocupar pontos que não tivessem sido determinados pela Prefeitura9. Os camelôs teriam de pagar para ocupar tais lugares, que possuem barracas padronizadas, além de rede de luz e água.

Segundo os camelôs, essas localidades oferecem pouquíssimas possibilidades de venda, pois são locais distantes de pontos comerciais e nada atrativos aos consumidores. Além disso, a invalidação dos Termos de Permissão de Uso (TPU) causou indignação nos poucos camelôs que tinham essa licença e que pagavam um imposto por isso. Julgaram que seus direitos foram anulados repentinamente.

Os camelôs têm resistido a sair das ruas do centro e lembram que a legislação permite o comércio ambulante em qualquer local da cidade, desde que haja uma distância mínima entre as barracas. Dizem, ainda, que caberia à Prefeitura fazer cumprir tal determinação. A Prefeitura, por sua vez, diz que as áreas destinadas ao comércio ambulante não são livres como declaram os camelôs, sendo que tal determinação deve ser feita pela própria Prefeitura. Assim, em 1997, a Secretaria das Administrações Regionais (SAR), representada por Alfredo Mário Savelli, iniciou a operação de retirada de camelôs, colocando a Guarda Civil Metropolitana nas ruas, o que gerou conflitos, violência e o envolvimento até mesmo da Polícia Militar.

A população e os lojistas passaram a se voltar contra os camelôs por considerá-los responsáveis pelos tumultos. O conflito direto entre camelôs e lojistas aparece de várias formas, conforme noticiado pela grande imprensa: desde uma guerra de ovos (15/01/98, no Brás) até o “feriado forçado” (05/05/98, no Centro). No entanto, é importante lembrar que pudemos observar, a partir das entrevistas, também a presença de solidariedade entre lojistas e camelôs.

Até o ano de 1996, a ação da fiscalização da Prefeitura, que teria como objetivo zelar pelo espaço público e controlar o seu uso, foi a de cobrar “taxas” dos ambulantes. Houve opiniões diferentes, entre os camelôs entrevistados, sobre o destino desse dinheiro. Alguns demonstraram não entender o que de fato a taxa representava. Outros relacionaram-na ao “esquema de propinagem”, que hoje se tornou um escândalo nacional. Há ainda os que achavam que, pagando semanalmente, estariam regularizando sua situação na Prefeitura ou, como dizem, “pagando a licença”.

Aí vem os fiscais, tem que regularizar, né, com a prefeitura, regularizar o ponto, direitinho. Os fiscais vêm e... conversa... eu tive [de pagar] [Riu] (Jussara).

Essa “taxa” incorporou-se de tal forma no cotidiano que passou a ser um direito do fiscal e uma obrigação do camelô. Legitima-se, dessa maneira, a corrupção, que acaba se tornando uma prática naturalizada: o pagamento passou a ser um acerto entre duas partes interessadas, redefinindo as regras de ocupação do espaço público. Essa naturalização da corrupção ocorre de tal maneira que acaba por fazer com que as pessoas redefinam o próprio conceito de legalidade (Silva & Hernandez, 1995).

Nesse sentido, a obrigatoriedade da “caixinha” contribui para o estabelecimento de relações de poder entre aqueles que permitem a ocupação do espaço e os que ocuparão o mesmo, além de consolidar uma posição de marginalidade e falta de direitos dos camelôs, que, quando acatam essas cobranças, acabam tornando-as “de direito”. Assim, essa cobrança contribui para a alienação de seus direitos e deveres, uma vez que, pela relação de poder, uns detêm o controle da ocupação por meio de uma cobrança arbitrária e outros se vêem obrigados a pagar por já estarem na ilegalidade, sem perceberem que isso ajuda a mantê-los em tal posição.

O tema é polêmico e envolve vários interesses. No entanto, tem sido tratado como se fosse apenas um acordo particular entre o “dono do espaço” (o fiscal, através da autoridade concedida pela prefeitura) e o “locatário deste espaço” (o camelô). A Prefeitura, que se omitiu na maior parte do tempo, procura agora resolver o problema sem considerar que o crescimento do mercado informal, sobretudo do comércio ambulante, tem relação direta com a atual crise econômica e social.

 

O plano real

Os depoentes nos trouxeram suas representações acerca do Plano Real freqüentemente revestidas por avaliações negativas, relacionadas a um declínio econômico percebido nos setores em que atuavam, representado pela queda das vendas, pelo aumento do desemprego, pelas falências das empresas onde trabalhavam e o conseqüente aumento do número de camelôs nas ruas. Essas dificuldades, no entanto, também foram percebidas no início da trajetória profissional de alguns camelôs. A falência de antigos patrões, donos de pequenas empresas, colocou nas ruas parte dos depoentes. Houve, ainda, avaliações positivas do Plano, manifestadas através do elogio à estabilidade da moeda e ao aumento da possibilidade de aquisição de eletrodomésticos. Tais pontos positivos, entretanto, sempre surgiram relativizados nos depoimentos, confrontados com as adversidades atribuídas a ele.

O Plano Real foi relacionado com freqüência ao alto índice de desemprego que atinge o país, mesmo entre aqueles que valorizaram a estabilidade da moeda. Os camelôs entrevistados, de forma geral, perceberam, no Plano Real, sua relação com a crise de empregos, assim como identificaram-no, também, como responsável pela retração do comércio varejista, apontando a queda nas vendas de camelôs e lojistas durante o período referente à sua implantação:

Piorou bastante. As vendas caíram cem por cento em um ano (...)...não está muito para as vendas, não só aqui como também nas lojas... eu tenho umas amigas que trabalham, o pessoal sempre fala, né, que estão fracas as vendas (Samara).

Além do desemprego, da falência de antigos locais de trabalho e da queda geral das vendas, outro problema relacionado ao Plano Real foi o aumento das vendas a prazo, favorecidas pela estabilidade da moeda e que competem diretamente com as vendas cujo pagamento é à vista. Os ambulantes não dispõem de estrutura para as vendas a prazo ou com cartões de crédito, sendo assim obrigados a vender seus produtos sem parcelamento e requerendo pagamento imediato. A depender do produto vendido pelo ambulante, a concorrência com as lojas, que dispõem de outras formas para facilitar os pagamentos, torna-se difícil de suportar.

Os aspectos positivos relacionados ao Plano Real foram a estabilidade da moeda e as facilidades que tal circunstância trouxe para o planejamento dos próprios ganhos. Tais considerações, quando presentes, falavam do plano de maneira abstrata, não relacionando-o às suas vidas particulares. Quando tal relação se dava, as avaliações mudavam de teor, sendo sempre acompanhadas de algumas considerações não tão positivas. Elizabeth elogia o plano, ao mesmo tempo em que o liga ao desemprego:

Olha, eu acho que o Plano é excelente, porque você pode se programar, se você quer comprar um carro, você sabe que vai pagar “x” por mês. O problema é o desemprego, se não fosse isso, estaria maravilha. Todo brasileiro, todos nós sabemos que depois do Plano, o que vendeu de eletrodoméstico, tinham famílias que não tinham uma televisão a cores e hoje têm. Porque ele sabe que vai ter prestações fixas...

Embora houvesse opiniões negativas em relação ao Plano Real, o medo de mudanças apareceu, por exemplo, no depoimento de Elizabeth, que, às vésperas das eleições presidenciais, e temerosa de possíveis alterações econômicas, reflete sobre o Plano, ponderando suas falhas e crendo que uma transformação na economia, personificada por outro governo, poderia ser pior. Teme outro “choque”, o receio de quem já experimentou certo número de mudanças que trouxeram ainda mais dificuldades:

Tem eleições, eu não sei se ele ficar [o presidente] vai ser importante, se vai assumir outro, vai mudar tudo e vai ser mais um choque para nós. De uns dez, doze anos para cá, quantas vezes a moeda já não mudou... Então isso assusta a gente, uma insegurança tremenda.

Parece que a dificuldade não está na ponderação dos benefícios e malefícios do plano, mas no temor da inflação e de mais transformações cujos efeitos podem ser ainda piores.

O aquecimento no comércio e o crescimento do poder aquisitivo, divulgados freqüentemente nos índices econômicos, não são observados no cotidiano dos entrevistados. O desemprego aumenta o número de camelôs, aumentando a concorrência entre eles e ao mesmo tempo diminuindo suas vendas. Assim, seguindo tal direção, não só aumentam os excluídos do mercado formal, como o próprio mercado informal se esgota como alternativa para o desemprego, estando as ruas cada vez mais cheias de ambulantes e menos visitadas por consumidores.

 

Outras questões políticas e econômicas

Algumas considerações sobre política e economia, embora não tenham sido sistematicamente buscadas, apareceram de maneira intrigante nas falas dos depoentes.

Sobre as atitudes dos responsáveis pela expulsão dos ambulantes das ruas do centro da cidade, Roberval, por exemplo, entende Pitta e Savelli como agentes da repressão empreendida aos trabalhadores do centro da cidade, crendo que eles consideram os camelôs como ladrões, já que devem ser enfrentados pela polícia:

Porque, a pessoa que não quer roubar arruma um jeito para trabalhar, para ganhar seu dinheiro honestamente... porque todo trabalho é digno... agora, tem pessoas que não... pensa que a pessoa tá é roubando... como por exemplo... o Pitta, né... o outro cara lá... aquele que trabalha prá ele, o... Savelli, sei lá...

Em oposição à atual prefeitura, a gestão de Luíza Erundina foi lembrada pela concessão de licenças para os ambulantes. Entre os depoentes houve quem manifestasse sua preferência pela antiga prefeita:

Isso de registro teve no tempo da... Erundina, né, ela que fez esse registro, recadastramento dos camelôs (...) O Pitta, que é comandado pelo Maluf, para ele não existe, ele dá preferência para os... aos, como é que chama... taxistas, né. Quem é a favor dos camelôs é o... o PT, né (Denise).

Bárbara falou sobre sua desesperança relativa à situação política e econômica do país, por vezes com certo rancor, dirigido indistintamente aos políticos. Assim, compõe uma série de fatores para construir uma opinião acerca da política, parecendo não ver a possibilidade de um governo que zele pelo bem comum, senão pelo benefício privado daqueles que ocupam os cargos executivos.

Na minha opinião, é a má administração. Por causa desses políticos. Eles só pensam neles. Eles acham que estão pensando no povo, no Brasil, mas eles não pensam. O negócio deles é só com eles. Eles tendo dinheiro no bolso, para eles tá bom demais, porque você sabe, todo político rouba, não tem um que não rouba. Eu odeio político, sou revoltada com político, detesto! Eu não voto aqui! Meu título não é daqui. Eu só justifico, faço minha obrigação de cidadã. O resto...

Bárbara fala das condições de vida no nordeste, da seca, do desemprego: tudo que forma um quadro no qual só percebemos possibilidades de agravamento das condições sociais.

... Eu ia ficar na casa dos meus pais, né. Trabalhar lá com eles, na roça. Mas também lá está uma desgraça. A seca. Meu pai está vendendo o gado para não ver morrer de fome. Se as coisas continuarem ruins, não tem como as pessoas sobreviverem. Ou vão roubar ou... tem gente que até se mata com uma crise dessas. E tá ruim para todo mundo. Tem um rapaz ali que é engenheiro e ele tem barraca porque não tem emprego. Se continuar assim, vai ter muito mais roubo, muito mais morte no mundo do que qualquer coisa. É revoltante! Se você for parar para ficar pensando, ficar analisando, é capaz de você mesmo fazer uma besteira com você, se matar. Porque eu sou assim, eu não estou nem aí, eu levo na esportiva. Do jeito que der, vai.

Se, por um lado, para Bárbara aparece como melhor alternativa não pensar nas atuais condições, por outro lado, Wellington (cearense de 18 anos, que vende pequenos produtos, como imãs de geladeira), reflete sobre um “Brasil de ilusão”, um Brasil ainda dependente, onde ninguém está feliz em seu trabalho, pois ele está restrito à esfera da sobrevivência: é o trabalho alienado, que traz imanentes condições de exploração e sofrimento.

Tem muitas pessoas desempregadas nesse mundo, nesse Brasil; é um Brasil de ilusão. (...)... porque as pessoas falam que o Brasil está livre, desde 7 de setembro, acho que não existe isso, acho que não está libertado ainda, as pessoas estão muito presas ainda. Se você perguntar para toda a população de São Paulo, do Brasil, quem está feliz de trabalhar no que está trabalhando, 90% vão dizer que não estão felizes. A maioria vai dizer que está trabalhando para ganhar mais dinheiro, para colocar sempre um alimento na mesa, e eu sou uma dessas pessoas...

Essa realidade, para Wellington, não é mantida apenas pelo presidente ou pelos políticos, mas por todas as pessoas que desconsideram quem necessita, quem passa fome. Segundo ele, as preocupações estão voltadas para o dinheiro, para a acumulação financeira e para o próprio bem-estar, sobrepujando a solidariedade possível entre as pessoas.

A visão de Roberval sobre o prefeito e seu secretário, a desesperança de Bárbara em relação aos políticos e as idéias de Wellington sobre um “Brasil de ilusão” e sobre possíveis soluções para melhorar a vida das pessoas, apontam para uma esfera de decisões que, por atingir o cotidiano das pessoas “de cima para baixo”, aparece de forma pouco concreta, muito distante e enigmática.

 

Mercado formal e mercado informal

As relações entre o mercado formal e a atividade nas ruas muito esclareceram as escolhas feitas por cada um, dentro de seus percursos profissionais. Nem sempre as alternativas de empregos registrados compensaram a saída das ruas. A depender do que a própria instrução lhes possibilitava no mercado, os empregos nas firmas pareceram, muitas vezes, vantajosos em relação aos rendimentos das bancas.

Algumas vantagens presentes na atividade de camelô e ausentes nos trabalhos registrados foram apontadas. Os camelôs trouxeram a autonomia da atual ocupação como vantagem inexistente no cotidiano de um trabalho assalariado, proporcionada pela ausência de chefes e pela flexibilidade de horários do trabalho autônomo. Apesar da grande carga horária diária nas ruas, a possibilidade de não trabalharem quando assim o desejassem foi trazida, embora quase nunca se efetivasse. Faltar no trabalho de camelô, assim como em um emprego no mercado formal, representa perda de dinheiro, apesar da suposta autonomia.

A ocupação de camelô surgiu representada como alternativa à instabilidade do mercado: uma vez empregados, as chances de demissão são grandes, mas nas ruas não se depende de contratos, senão da própria presença e da motivação para o trabalho. Tendo em vista certos empregos no mercado formal, a ocupação de camelô figurou, por vezes, como alternativa mais vantajosa, se comparada a outras que, embora registradas, são mais desgastantes e menos rentáveis, mesmo trazendo os benefícios da CLT. Para Jussara, foi melhor desistir do antigo emprego de faxineira num shopping e vir trabalhar nas ruas, por exemplo.

Embora percebessem vantagens do trabalho de camelô, as desvantagens do trabalho nas ruas foram suficientes para a relativização da presente comparação. Foi freqüente o surgimento de temas que apontaram vantagens do trabalho formal e desvantagens da ocupação atual que, quando combinadas, faziam com que a última fosse considerada como “bico”, “subemprego” ou “passatempo”. A ilegalidade da ocupação, a fragilidade e instabilidade decorrentes da fiscalização, que imprevisivelmente podem pôr fim às atividades de ambulante, aliadas aos baixos e instáveis ganhos dos camelôs, foram características decisivas em alguns depoimentos que trouxeram a ocupação atual dos entrevistados como um “subemprego”. Também a ausência dos benefícios da CLT &– falta de aposentadoria, fundo de garantia e dispensas justificadas &– vem pela fala de Denise, corroborando opiniões recorrentes em alguns depoimentos acerca da precariedade do trabalho nas ruas:

...porque você não tem férias, não tem seguro-desemprego, não tem parcelas, não tem INSS, você não tem nada (...)...meu pai tem... sessenta e cinco anos e não tem carteira registrada, desde pequeno, que ele migrou para cá, ele é camelô. Então, ele não tem uma aposentadoria, não tem horário para acabar, não tem... horário para começar, não, para ele não existe sábado, domingo, feriado, todos os dias é dia de trabalho.

As ocupações registradas disponíveis para aqueles que não contam com formação profissional especializada, experiência anterior e bom nível de instrução freqüentemente são apontadas como opções menos interessantes do que o trabalho nas ruas, apesar de suas incertezas e contratempos. De forma geral, os camelôs que tiveram passagens ou a possibilidade de estarem em empregos de baixa remuneração e grande desgaste físico, tais como faxineira e balconista de bar, trouxeram vantagens da atual ocupação em relação a tais alternativas com “registro em carteira”.

Mas, se por um lado, algumas alternativas de trabalho assalariado oferecem baixa remuneração, por outro trazem uma identidade social. Identificar-se como desempregado parece vergonhoso, enquanto possuir carteira assinada localiza a pessoa na sociedade, sendo um referencial significativo. Com registro em carteira, passa a ser chamado de “trabalhador”, não mais de “desempregado” ou “vagabundo”.

Os depoentes que contaram com passagens pelo mercado formal exercendo ocupações menos precárias &– tais como vendedor em loja ou office-boy &– freqüentemente relatam a atual ocupação como algo passageiro e ocasional. Esses relatos diferem significativamente dos depoimentos daqueles cujas opções sempre restringem-se ao mercado informal e às funções registradas menos especializadas e pior remuneradas.

A impossibilidade de usar a capacidade de expressão e a criatividade no trabalho foi relacionada à atividade de camelô. Wellington lamenta estar submetido a essas condições, próprias da falta de especialização que acomete todos os depoentes. Trata-se de uma questão que, embora trazida como uma desvantagem da atual ocupação, envolve menos a questão da formalidade do que a precariedade e a alienação do trabalho: o camelô é também um trabalhador inserido numa dinâmica empobrecedora, que é própria de nossa sociedade.

...porque o meu tipo de pessoa acho que é me expressar, colocar a minha idéia, e todo serviço que eu trabalhei eu ainda não pude colocar a minha idéia para fora, eu sempre trabalhava com as idéias das pessoas e acho que para mim... Eu quero ser jornalista já tem bastante tempo, eu escrevo, às vezes eu faço alguma música; mas por enquanto, para mim me sustentar eu tenho que fazer isso até chegar na faculdade, depois da faculdade eu posso colocar todas as minhas idéias para fora (Wellington).

Para que a ocupação de camelô seja considerada vantajosa ou não, passageira ou não, frente às alternativas disponíveis no mercado formal correspondente ao nível de instrução e à experiência profissional de cada um, combinam-se diversos determinantes a serem avaliados antes de eleger a melhor alternativa profissional. Para aqueles cujas possibilidades restringem-se pela falta de instrução e especialização, são raras as alternativas de emprego melhor remuneradas do que a ocupação de camelô. Mas para os depoentes que contam, de alguma forma, com mais chances de inserção em trabalhos melhor remunerados, a atividade atualmente exercida é entendida como algo muitas vezes “emergencial”, como forma momentânea de sustento enquanto não se encontram alternativas melhores.

As justificativas construídas durante a entrevista para o fato de estar no trabalho de camelô, foram freqüentemente fundamentadas em preferências pessoais, tais como: “não querer ser empregado”, “dar-se bem com vendas”, “preferir trabalhar em locais abertos”. Esse dado poderia nos levar a concluir que o trabalho de camelô é uma escolha pessoal. No entanto, nos relatos, foram trazidas dificuldades e impossibilidades de conseguir um emprego no setor formal que compensasse o abandono da atual função. Ser camelô foi uma escolha pautada em características pessoais ou apenas a melhor saída dentro das poucas possibilidades que existiam?

Cremos que a resposta mais razoável seria dizer que ambas e nenhuma. Segundo Ferreti (1988), o processo para escolha ou não-escolha profissional dá-se através de diferentes níveis de liberdade do indivíduo, de acordo com múltiplos determinantes. Nas classes economicamente oprimidas, o que determinaria a situação de escolha ou não escolha seria a necessidade de sobrevivência, o que não exclui a influência de outros fatores: o que muitos entrevistados denominaram como “jeito para vendas”, ou ainda “gosto por trabalhar com o público” e a influência de familiares e amigos já inseridos na função parecem contar muito para que os depoentes permaneçam em suas atuais funções.

 

Reflexões finais

Percebemos o fenômeno da inserção no trabalho de camelô como um processo, uma decorrência permeada de sentido nas vidas dos depoentes. A partir das histórias profissionais de cada um, pudemos identificar e seguir um caminho multideterminado que culminou na situação presente. Em meio a convergências e divergências, diferenças e semelhanças, as histórias apontaram para determinações sociais e econômicas que os levaram ao mercado informal e, mais especificamente, ao trabalho de camelô.

Entender as escolhas e trajetórias profissionais dos camelôs implica em considerar, entre outras coisas, que eles deparam-se, a todo momento, com a questão da necessidade de sobrevivência. Suas trajetórias de vida são marcadas por: mudanças de um Estado para outro em busca de trabalho, várias trocas de profissão, dedicação a trabalhos totalmente diferentes no decorrer de suas vidas, interrupção precoce dos estudos e, contrabalançando todas estas dificuldades, a presença constante dos familiares e amigos dando auxílio e incentivo &– a chamada “rede de relações”.

A escolarização é valorizada e idealizada pelos entrevistados como sendo um degrau para a ascensão econômica. No entanto, quando se referem à escolarização que já têm, percebem que em nada ou pouco ajudou na conquista de um emprego melhor. Assim, evidencia-se a relação de sua situação ocupacional com a crise de empregos, a qual leva o mercado a fazer exigências cada vez maiores a quem busca uma ocupação, sendo a escolarização utilizada como fator de exclusão do mercado de trabalho. Além disso, a dificuldade de inserção no mercado formal é maior para o migrante nordestino devido ao preconceito presente na cultura paulista em relação a quem vem às grandes cidades em busca de trabalho.

A participação dos entrevistados no mercado formal mostrou-se instável, periódica e em alguns casos inexistente. As possibilidades de trabalho fora da ocupação de camelô mostraram-se, na maioria das vezes, restritas, trazendo uma carga maior de trabalho e menores ganhos.

Os movimentos de terceirização e informalização do trabalho que estão ocorrendo (Singer, 1998), indicam que as maiores chances para estas pessoas estariam no trabalho assalariado informal ou na prestação de serviços. Dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE) e do Seade permitem concluir que, na Região Metropolitana de São Paulo, as empresas estão cada vez mais transformando parcelas de seus empregados em prestadores autônomos de serviços (terceirização) ou contratando o trabalho assalariado sem registro (informalização) como forma de diminuir gastos, aumentando assim sua competitividade. A contratação sem registro depende da cumplicidade do trabalhador, que, numa época de crise, vê-se obrigado a aceitá-la. Tal situação é duplamente desvantajosa para o trabalhador, pois além de inexistirem direitos trabalhistas, o rendimento financeiro é significativamente menor no trabalho informal do que no formal em ocupação compatível.

Assim, tem ocorrido uma transformação estrutural no mercado de trabalho e nas relações trabalhistas a partir da década de 90. Tal transformação diz respeito ao enfraquecimento do vínculo empregatício e conseqüente saturação do mercado informal.

Nesse contexto, a maior parte dos trabalhadores não qualificados, em que se incluem nossos entrevistados, está cada vez mais sujeita à instabilidade e à exploração do trabalho assalariado informal, que muitas vezes não propicia, por si só, condições de sobrevivência a quem a ele se submete. Por isso, o trabalho autônomo de camelô aparece como uma alternativa vantajosa e mais estável. Tal afirmação vem ao encontro de relatos dos entrevistados, que, sem negar o desejo de terem um vínculo empregatício formal, percebem que o trabalho de camelô é a única porta aberta, pelo menos atualmente. Essa atividade, concebida inicialmente como temporária ou como um “bico”, vem constituindo-se como a principal e única ocupação viável em decorrência dos recursos de que dispõem.

É interessante reforçar alguns aspectos observados em relação à caracterização do trabalho de camelô. O comércio ambulante mostrou ser regido por regras tácitas, que são estabelecidas no dia-a-dia e por diferentes agentes. “Empresa rua” foi a denominação dada na pesquisa a esse sistema extra-oficial que caracteriza o funcionamento do comércio informal: o modo de inserção dos camelôs na atividade, sua distribuição pela cidade e o acordo velado entre fiscais, camelôs e lojistas. Esses acordos são concretizados no pagamento das propinas ou das chamadas “taxas”, pelos camelôs aos fiscais. A propina aparece relatada nas entrevistas de forma naturalizada, porém reticente, como se fosse uma regra natural e condizente com a ocupação do espaço mas, ao mesmo tempo, assunto proibido.

A descrença no governo e certa desesperança em relação à situação econômica e social do país, conjugada com suas histórias de vida marcadas por exclusão (migração, baixa escolaridade, dificuldades de inserção no mercado de trabalho), foram elementos constantes nas entrevistas, o que nos trouxe questionamentos acerca da representação que essas pessoas fariam do governo, do regime democrático e da própria cidadania. Entendemos, a partir disso, que há um desconhecimento de direitos e deveres de cidadãos, que ficam, assim, submetidos ao poder irrestrito daqueles que representam o governo: a fiscalização. Parece-nos que a vivência cotidiana da corrupção e a submissão a esse poder informal, concretizado em “leis e taxas”, torna-os distantes e descrentes da validade de seus direitos, comprometendo, dessa maneira, a noção de cidadania.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: mortada@uol.com.br

Manuscrito recebido em: 15/04/1999
Aprovado para publicação em: 20/06/1999

 

 

1 Supervisor: Fábio de Oliveira.
2 Alunos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
3 Aprimoranda do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de São Paulo, Cerest/SP.
4 Parte do setor informal, mais especificamente a economia “submersa” ou “subterrânea”, caracterizada pela ausência de controle legislativo.
5 Fonte: O Estado de São Paulo (1996).
6 Entendemos por trajetória, o processo de construção da identidade social e pessoal do indivíduo, em constante mudança, formadas na rede social, que ao mesmo tempo determinam os caminhos seguidos pelos indivíduos, um horizonte de possibilidades, idéias e visões de mundo (Guimarães, Agier & Castro, 1995).
7 É importante destacar que a escola em muito contribui para a evasão escolar dos estudantes que precisam trabalhar, porque longe de atender à demanda de tal população, acaba por fazer exigências - materiais, temporais - que acabam por “expulsá-los” da escola (Patto, 1990).
8 Todos os nomes são fictícios.
9 Esses bolsões foram distribuídos pelos seguintes pontos da cidade: Metrô Brás, Largo da Concórdia, Praça Fernando Costa, Rua General Carneiro, Praça Santa Cecília, Praça Júlio Prestes, Estação Armênia, Praça Princesa Isabel.

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