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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.2  São Paulo Dec. 1999

 

MESA REDONDA - MERCADO INFORMAL, EMPREGABILIDADE E COOPERATIVISMO: AS TRANSFORMAÇÕES DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

 

Desemprego e autogestão*

 

 

Luigi H. Verardo1

 

 

Eu acho que esta mesa nos prepara para comemorar o primeiro de maio, o Dia do Trabalho. Aliás, há um tempo, nós reivindicávamos o direito de chamar o primeiro de maio de Dia do Trabalhador porque nós buscávamos destacar a questão do direito do trabalhador, a busca pelos seus direitos. Hoje, voltamos a falar, normalmente, Dia do Trabalho, todos usam o mesmo nome que se consagrou. As centrais sindicais falam do mesmo jeito, os sindicatos falam do mesmo jeito. Acho que até já há alguns falando em Dia do Emprego. Tem gente fazendo um alvoroço político em termos de empregar mais pessoas. Fala-se em promover milhares de contratações dos menos qualificados ao estilo das Frentes de Trabalho.

Para começar, eu quero tentar discutir essa questão do desemprego. Gostaria de lembrar que há um tipo de desemprego que aparece no meio desse processo, que é um desemprego que não tem volta. Quando se fala de uma retomada econômica, dá a impressão que essas questões virão a ser resolvidas, mas há coisas que estão definitivamente mortas. Por exemplo, só na cidade de São Paulo, eliminaram-se, de 1994 para cá, 553 mil postos de trabalho. Não sei se esses dados significam muito em si, mas temos que pensar que são dezenas de fábricas que encerraram suas atividades e que milhares passam para o mercado informal, para a precarização, para o desemprego. Infelizmente, esse processo está longe de se esgotar. Se fizermos uma projeção, temos 2.768 empresas fechadas nesse processo, são 52 empresas fechadas por mês, podemos supor uma média de 200 funcionários por empresa... se pensarmos nas famílias, temos 2,5 milhões de pessoas com problemas, é uma reação em cadeia muito complicada. Quando pegamos apenas o número absoluto de demitidos, parece que não significa muito.

Eu sei que o drama não é só da parte do trabalho, também é um drama da indústria e eu acho que temos que pensar nessas duas coisas. No Brasil, nós temos hoje na Grande São Paulo, por exemplo, 20% de desempregados, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos). Fala-se muito das grandes regiões metropolitanas, mas é bom que se olhe as outras capitais também, onde a situação não é diferente &– se não até mais grave. Por exemplo, em 1998, se São Paulo tinha 17,4% de desemprego, Porto Alegre tinha 17%, a Bahia tinha 16%, o Distrito Federal tinha 19,9%, Recife tinha 20,4%. Então, não é um fato localizado apenas na Grande São Paulo.

Nós temos uma situação dramática. De 1986 a 1996, o desemprego entre os jovens de 10 a 24 anos cresceu 208%. O número de jovens nessa faixa etária com carteira de trabalho assinada caiu 22%, o que também é um número bastante grande. Então, é isso, quer dizer, nós temos 40% da população economicamente ativa que está sem receber ou está desempregada recebendo menos que um salário mínimo.

Se falarmos em termos de crescimento econômico, embora alguns acreditem que o estamos retomando, nós continuamos com muitos de problemas. Acho que alguém já falou aqui hoje, com muita propriedade, que de 1950 para 1980, a média do nosso crescimento foi de 7,4%. Agora, nós temos um crescimento, em 1996, de 2,9%; em 1997, de 3%; em 1998, de 1,5%. Assim, a média desses últimos anos está bem abaixo do crescimento médio que nós tínhamos nos 30 anos anteriores. Por isso, é bom pensarmos um pouco. Às vezes, até acreditamos que as coisas possam melhorar de uma hora para outra. Precisamos, antes, considerar a carência que tem sido acumulada pela seqüência de anos com baixo crescimento econômico. Na recessão do início da década passada, tínhamos atrás um crescimento de mais de 20 anos consecutivos. Hoje não temos um passado de crescimento e tampouco o parque industrial encontra-se estruturado e produtivo. Precisaríamos garantir um crescimento mínimo de 6% ao ano de forma regular só para incorporar um milhão e meio de indivíduos que chegam ao mercado de trabalho por ano.

Quando consideramos o processo de globalização, devemos pensar, antes de tudo, o que significa estar nesse processo sendo um país emergente ou do terceiro mundo. Quando falamos em reestruturação produtiva é interessante o que o professor Ricardo Antunes falou sobre a combinação existente entre o fordismo, taylorismo e, hoje, o toyotismo. Na sucessão das revoluções industriais não se tem uma trajetória linear em que fases mais modernas eliminam, simplesmente, as anteriores. De fato, acontece que as mais avançadas passam a incorporar e explorar aspectos das fases anteriores. O que temos no Brasil? Vemos que as combinações do que é mais “moderno” com os paradigmas anteriores são muito mais perversas para o mundo do trabalho.

Diante do quadro de fechamento de empresas, precarização das condições de trabalho e de desemprego (6,6 milhões da População Economicamente Ativa), começam a aparecer movimentos, iniciativas e organizações autônomas no sentido de buscar alternativas. Neste contexto surge a Anteag &– Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária. A Anteag nasceu em 1991, na implantação de um projeto de autogestão na empresa Calçados Makerly, que havia encerrado suas atividades e eliminado 482 empregos diretos. Mas, de fato, foi no início de 1994 que ela constituiu-se como associação. Hoje, a Anteag acompanha 57 projetos representando mais ou menos 17.500 trabalhadores em todo o Brasil.

Estamos falando de autogestão e estamos discutindo o cooperativismo. Então, há uma diferença? Porque eu não uso o termo “cooperativa” simplesmente? Nós acompanhamos associações, sociedades e cooperativas. A forma de constituição organizacional cooperativa representa a maioria das empresas. Mas temos que fazer distinção, pois em diversos aspectos as cooperativas no Brasil são coisas muito complicadas. A legislação é muito aberta e o controle é extremamente complacente. Ela é tão flexível a ponto de caber coisas muito heterogêneas (para não dizer antagônicas) sob um mesmo nome.

Na crise em que vivemos, existem até empresas especializadas em assessorar outras empresas para tornarem-se cooperativas. Hoje, vemos milhares de cooperativas sendo constituídas e essas cooperativas realmente são coisas assustadoras. As pessoas assinam papéis, sem saber o que estão assinando e entram em uma atividade movidas pelo desespero, pois estão desempregadas; acabam por realizar trabalhos em condições desumanas e não sabem que estão participando daquilo que nós chamamos de “coopergato”, isto é, empresas comuns disfarçadas de cooperativas para usufruírem das vantagens legais destas últimas. Temos exemplo disso em inúmeras cooperativas de apanhadores de laranja, café ou cortadores de cana. Geralmente acontece no setor agrícola, no qual as pessoas estão mais isoladas e menos informadas. No Brasil, a própria idéia de cooperativa tem uma conotação essencialmente agrícola e, curiosamente, é lá que o sistema tem sofrido sérias distorções.

Os simulacros de cooperativas disseminam-se pelo Brasil porque a lei que diz que 20 pessoas podem constituir uma cooperativa não fala sobre qual o limite. Com isso, 20 pessoas podem contratar 20 mil. Existem famosas cooperativas usando essa artimanha. Contratam-se milhares de pessoas e, então, o que têm de diferente essas empresas em relação às outras? Percebem onde a coisa chega? Quando falo em autogestão, estou demarcando, fazendo uma distinção dessas coisas que estão por aí.

E essas cooperativas trabalham essencialmente na prestação de serviços. Esse é um outro problema. Quando estamos nos referindo a autogestão, estamos fazendo referência, prioritariamente, ao setor secundário: a Anteag trabalha essencialmente com autogestão na área de produção industrial. Eu estou focando aqui o que nós fazemos, isto é, não estamos mexendo com cooperativas simplesmente e não estamos tratando da autogestão em geral, mas da autogestão na área de produção industrial em que se assentam nossos projetos.

Como se dá a constituição de empresas autogestionárias nesse setor específico? São empresas que vêm em sua maioria de uma situação de crise profunda: estão em condição de concordata ou falência. Mas, para que se possa chegar a ser uma empresa autogestionária, deve confluir uma constelação de fatores. Aliás, a autogestão é um estágio bastante avançado de um processo que, na verdade, requer um trabalho bem grande, que envolve uma parte de educação, de que falarei daqui a pouco.

O que significa a autogestão para nós? Primeiro, o número de funcionários contratados não pode ultrapassar 1% do efetivo do quadro associativo que está em uma determinada unidade fabril. Isso serve para barrar aquele funcionamento perverso de que eu falei antes em relação às cooperativas de fachada, que fazem uso da possibilidade de contratação ilimitada, por exemplo. Segundo, a reestruturação de cargos e salários deve diminuir o grau de desigualdade existente nas retiradas mensais e deve ser reduzida ao ponto de a maior retirada não ultrapassar em mais de seis vezes a menor. Terceiro, criar mecanismos para garantir que a comunicação, as informações, constituam, de fato, direitos de todos e não privilégio de alguns. Quarto, criar salvaguardas voltadas à prática da democracia e da solidariedade, promovendo participação ativa nos negócios e na gestão da empresa.

Quase todos os trabalhadores vieram de uma situação anterior, em que trabalhavam numa empresa com característica taylorista-fordista, herdaram aquela cultura, visão fragmentária e parcializada do processo de produção que tanto criticamos. Eles carregam normalmente aquilo que poderíamos nomear, em termos bíblicos, de “síndrome do Egito”. Isto é, apesar de a fábrica ter chegado aonde chegou, deles terem ficado à beira do desemprego, mantêm, mesmo assim, saudades da época em que tinham um chefe e um salário. Com isso, pode-se entender porque a contratação de pessoas para administrar e gerenciar o processo de transição da empresa cria condições para que os trabalhadores passem a projetar nelas os antigos papéis de mando. Aqui, pode-se criar um novo problema e esses gerentes contratados podem, naturalmente, aproveitar-se daquela situação.

Nesse sentido, quais são as dificuldades que os trabalhadores das empresas autogestionárias enfrentam? Eu trabalhei antes no movimento sindical e sempre achava que os trabalhadores, em seu aspecto subjetivo, teriam facilidade de assumir a gestão das empresas em que trabalhavam. Essa foi uma das minhas desilusões. É impressionante como o taylorismo e o fordismo “fizeram e fazem a cabeça” dos trabalhadores. Como é difícil esses trabalhadores assumirem, de fato, a gestão da empresa! Dentre outras coisas, existe um limite que faz lembrar Foucault: as dimensões da disciplina e do poder, quando ele aborda a questão da arquitetura, que acaba sendo instrumento de dominação. As empresas foram montadas dentro da lógica do gerenciamento anterior, com um espaço não apropriado para a autogestão e não se pode criar um novo layout com facilidade. Não podemos fazer uma reforma arquitetônica, então a influência do espaço está presente. O “trono”, se podemos chamar assim, está presente. Isso tudo determina uma dificuldade para o trabalhador abandonar os antigos papéis e atrapalha o processo inicial de implantação da autogestão.

Depois, quando conseguem sair dessa dificuldade inicial, às vezes confundem um pouco o trono e também quem está sentado nele. As pessoas que estão dirigindo o processo de autogestão, ou que são eleitas anualmente para isto, também passam por um processo de desgaste, podendo virar “carne moída”. São elas que vão sofrer com essa crise, que vão ser excluídas e conduzidas de volta à produção.

Eliminar essas determinações anteriores das cabeças dos trabalhadores, que dizem respeito à dimensão subjetiva, faz lembrar um pouco aquela expressão que os militantes dos trabalhadores sem-terra utilizam quando dizem que se tem que passar por um “estado de lona”. Isto quer dizer que a escola é antes de tudo a lona do acampamento dos sem-terra. Na fábrica autogestionária é a própria experiência que eles vivem, a prática do espírito solidário que ensina a combinar o sentido de fazer uma empresa competitiva e, ao mesmo tempo, não ser competitivo com os seus semelhantes, mas sim parceiros e companheiros. Esse é um problema muito difícil e que exige um processo de educação. Nesse processo é que aparece um outro elemento interessante: saber combinar a organização dos trabalhadores com o negócio. Exclusividade de dedicação ou ênfase em demasia a um determinado pólo em detrimento ao outro compromete todo o trabalho. Vale a pena observar que sempre se deve pensar no negócio, pois a empresa tem de ser competitiva, tem que estar inserida em algum segmento de mercado e saber, ao mesmo tempo, combinar a atividade do mercado com a atividade grupal, com o aspecto organizacional.

O acompanhamento desse processo deve ser feito de forma sistemática. Isso pressupõe um processo educativo que objetiva, antes de tudo, “desfazer a cabeça” dos trabalhadores, mais do que “fazer a cabeça”, porque elas já “estão feitas” e é preciso mudar alguns valores, o que é consideravelmente difícil. E como isso acontece? De duas formas: há uma fase inicial, de minuciosa discussão do regimento interno nos moldes da autogestão e do estatuto. Depois desse passo inicial, discute-se sobre o significado da criação de uma cooperativa, de uma associação ou de uma sociedade de trabalhadores, com uma seqüência de oito cartilhas que servem de apoio para o acompanhamento do pessoal da fábrica. Vamos à fábrica e trabalhamos com o pessoal do chão de fábrica. Isso assume a forma de um curso, que é feito em cada uma das fábricas. Há um outro curso, que chamamos de MBA, que reúne mensalmente, numa sexta-feira, sábado e domingo, representantes de empresas de diversas partes do país, do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte, que vêm à São Paulo, onde está a maioria das experiências de autogestão com as quais trabalhamos. Num dia articulamos a rede de negócios entre as empresas autogestionárias e nos outros dias professores universitários e técnicos de diversas áreas fazem um trabalho de preparação e de capacitação dessas pessoas para o gerenciamento do negócio e enfrentamento do mercado. Nosso trabalho está, assim, ligado a outras iniciativas; há todo um conjunto de pessoas que atuam indiretamente. São convidados dois representantes de cada empresa, um é fixo e o outro é rotativo. Fazemos isso para melhor qualificar o pessoal para o negócio.

 

 

* Mesa-redonda "Mercado informal, empregabilidade e cooperativismo: as transformações das relações de trabalho no mundo contemporâneo", organizada pelo Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho do IPUSP em 29 de abril de 1999. Diante de uma situação na qual os índices de desemprego aumentam, observa-se o crescimento do mercado informal de trabalho, das formas cooperativas de relação de trabalho e a emergência da noção de empregabilidade. Para debater esses três assuntos, foram convidados: Ricardo Antunes, Maria Cristina Cacciamali, Sigmar Malvezzi e Luigi H. Verardo, cujas exposições são apresentadas a seguir.
1 Representante da Anteag, Associação Nacional de Trabalhadores em Empresas Autogestionárias, Co-gestionárias e de Capital Misto.

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