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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.9 no.1 São Paulo June 2006

 

ENTREVISTA

 

Entrevista: Josep Maria Blanch

 

 

Nesta edição dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, apresentamos a entrevista com Josep Maria Blanch, professor Catedrático do Departamento de Psicologia Social, da Faculdade de Psicologia da Universidade Autônoma de Barcelona. Aproveitamos sua estada no Brasil, como professor visitante, quando esteve vinculado a programas de pós-graduação em diversas regiões do país (Brasília, João Pessoa, Natal, Porto Alegre, São Paulo). Em São Paulo, trabalhou nos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP e do Instituto de Psicologia da USP. Nesta entrevista, Blanch fala sobre sua trajetória acadêmica e sobre Psicologia Social do Trabalho. A entrevista foi concedida a Leny Sato em junho de 2005, no Instituto de Psicologia da USP.

 

 

Leny: Blanch, de início, gostaria que você nos falasse sobre sua formação.

Blanch: Minha formação vem basicamente da psicologia e da sociologia (ciências sociais), porque foram dois campos que me interessaram desde o princípio. Além disso, minha dedicação profissional também teve relação com isso. Tenho dado aulas de psicologia para estudantes de sociologia, aulas de sociologia para estudantes de psicologia e aulas das duas disciplinas para estudantes de serviço social, que são os que se ligam mais com as práticas, com a intervenção social concreta. Isso tem colaborado na formação de minha visão e na minha compreensão do que é a psicologia social e de que maneira a entendo: como uma disciplina que precisa de “duas pernas para andar”, que são a sociologia e a psicologia. Ainda que tenha uma maneira de olhar específica e toda uma caixa de ferramentas própria, a psicologia social necessita olhar em direção à psicologia, por um lado, e em direção à sociologia, por outro. Comecei a graduação nos anos sessenta e a terminei nos anos setenta. Uma faculdade terminei em 1972 e a outra em 1973. Depois fiz o doutorado em psicologia.

Leny: E o que você estudou no doutorado?

Blanch: Eu comecei uma tese de doutorado e quando estava por terminar – foi numa época, nos anos setenta, de pleno domínio do positivismo na sociologia e na psicologia – eu tinha começado um tema relacionado com a clássica Psicologia dos Povos, que exigia um trabalho qualitativo com entrevistas. Buscava os auto-estereótipos regionais através do discurso das pessoas bêbadas.

Leny: Que interessante!

Blanch: Então, o trabalho de campo eu fazia de noite em cervejarias e bares. Eu o fazia na Espanha, ia pelas diferentes regiões. Eu buscava a alma do povo, como ela se expressava através desse discurso. Os catalães falavam de negócios, os castelhanos falavam de um passado épico, nobre, enfim, de sua família. Na Andaluzia, simplificando, existem basicamente duas Andaluzias: a Andaluzia do queixume, que é de angústia, de um “flamenco” puro que sai do coração, falavam dessa alma de dor e de angústia. Por outro lado, existe a Andaluzia que é de alegria e, com esses, passávamos a noite falando e cantando. Mas quando a tese estava bem avançada, meu orientador disse que eu teria que procurar outro porque ele não queria apostar no tema. Não era um tema politicamente correto na época. Então decidi fazer uma tese puramente literária, de ensaio, de leitura, pois já tinha feito suficiente trabalho de campo. Escolhi um tema que me possibilitasse trabalhar sozinho e que me obrigasse a ler coisas que até então tinha deixado de lado, como a psicanálise sócio-cultural. Escolhi um dos temas que essa tradição da psicanálise trabalhou mais, que é a religião e a moral, e me obriguei a ler as obras completas de Freud, Jung, Reich e Fromm e todas as conexões do freudismo com o culturalismo, com o marxismo etc. E sai um pouco com a idéia de que a religião não é apenas um fator do passado, mas que tinha um potencial de futuro. Mas também não teve muito êxito, a tese. Foi aprovada, mas também os comentários que a banca me fez foram os de perguntar como uma pessoa jovem como eu tinha escolhido um tema tão arqueológico? Alguns anos mais tarde, Khomeini e o islamismo me deram, por desgraça, a razão de que a religião continuava pesando e continuava sendo uma força histórica.

Leny: Então, no primeiro trabalho para o doutorado, em que você entrevistava pessoas bêbadas, você estava construindo uma articulação com a Psicologia dos Povos do Wundt?

Blanch: Sim, o segundo Wundt. O psicólogo que depois de seus experimentos de laboratório, dedicou boa parte de sua obra a Völkerpsychologie, à Psicologia dos Povos. A mim interessava, naquela época, a etnopsicologia, no aspecto relacionado com os estereótipos locais e nacionais. Eu estava muito conectado com o tema da democracia, o pluralismo, a auto e a heteropercepção. A Espanha saia de uma longa, longuíssima ditadura, que tinha alimentado os estereótipos regionais e, de certo modo, inclusive os conflitos inter-regionais. Para desarticulá-los era preciso antes conhecê-los e confirmá-los. E reconheço que foi um tema com o qual me diverti e aprendi muito fazendo, ainda que reconheça que algumas vezes acabava eu explicando minha vida [risos] às pessoas entrevistadas, porque algumas delas, até entrarem na fase expansiva de falar, podiam passar três horas e em três horas, se eu os acompanhasse no ritmo de beber, chegava um momento em que era eu quem lhes contava meus auto-estereótipos.

Leny: [risos] Isso foi em que época?

Blanch: Em meados dos anos setenta. Conclui o doutorado em 1978.

Leny: Você me falou outro dia da importância que teve para você a sua vivência em 68. Você poderia falar disso?

Blanch: Minha juventude aconteceu nos anos sessenta, e nos setenta foi um pouco uma juventude tardia, mas sempre tive a impressão de ir contra a corrente de minha geração. Durante um tempo partilhei com minha geração certo idealismo e a ilusão de mudar o mundo facilmente (quase que bastava desejá-lo). Eu estava me preparando para ir a Nanterre, na França, para estudar sociologia, negociando com o governo espanhol para ver se me davam o passaporte (eram tempos de ditadura...). Então, estourou “maio”... Quando reabriram as fronteiras eu me instalei na França (eu tinha companheiros em Nanterre), um pouco com a idéia de tocar o futuro. Quer dizer, os primeiros momentos davam a impressão de que algo estava mudando e parecia que mudava pelo simples fato de que muita gente junta dizia que o mundo estava mudando, com a imaginação ao poder e todas aquelas coisas... E eu estive na França também em junho e em julho. Quando nos apresentam uma determinada geração como “geração de 68”, eu me sinto de 68, mas quando falam de maio, eu digo que não, que eu sou de julho.

Leny: O que ocorreu entre maio e julho?

Blanch: Passaram-se dois meses, mas em dois meses houve uma mudança de experiência, de sentido, de tendência histórica. Maio é uma época de retórica criativa... Parecia que paralisando um país já se estava em condições objetivas de levantar uma nova ordem histórica e mundial. Mas conforme foram passando as semanas de intensa agitação social, política e cultural, com mercados desabastecidos, hospitais e transportes coletivos em marcha lenta, escolas fechadas, as crianças em casa, muitas empresas com manifestações, greves ou assembléias diárias, também nas universidades... Vão se acumulando semanas, já passou um pouco a novidade e as pessoas começam a esperar que as promessas e as palavras se convertam em algo visível e palpável! Junho é um mês de transição, é um mês em que a primavera (no norte) já muda de cor, passa do verde a uma cor mais queimada, do trigo que deve ser recolhido. Junho é uma época de colheita e julho é um mês de fechar o balanço. Cheguei até julho e, para mim, um dia chave foi o dia 14 de julho, o dia da festa nacional francesa, ocasião em que alguns de meus companheiros de maio já estavam nas praias. É uma festa que tradicionalmente reúne muita gente nas ruas de Paris: figuram protagonistas e resistentes da Segunda Guerra Mundial, patriotismos e reacionarismos diversos. Então, no dia 14 de julho, lá pelo final da tarde, houve a maior manifestação da história da cidade depois da que aconteceu no dia da sua liberação pelas tropas aliadas. Naquele dia eu estava nas ruas de Paris com alguns colegas: um sueco, um americano, um italiano, uma moça holandesa e outra espanhola. Estávamos em Paris um pouco com a mesma idéia. Tínhamos nos instalado no Quartier Latin e estávamos ali para observar bem de perto o futuro. Mas em julho já estávamos um pouco mais perplexos e desconcertados: as pessoas que estavam naquela impressionante manifestação estavam pedindo ordem e funcionamento das instituições (o mercado, as escolas, os hospitais, o transporte...). E diziam-no com um tom que se subentendia que pediam que o viesse a organizar a direita, que estava há dois meses retirada, vendo e esperando, deixando o terreno aos movimentos alternativos, que em dois meses não programaram nada de concreto sobre como gerir um país no dia seguinte àquele que saíram às ruas e o paralisaram. Quando passou o grosso da manifestação, com aqueles colegas bastante deprimidos, fomos fumar um cigarro americano, que acendemos na chama do monumento ao soldado desconhecido, debaixo do Arco do Triunfo, que tinha ficado sozinho. E aí, esse gesto simbolizava um pouco o futuro que estávamos tocando. Quer dizer, todos estávamos desencantados, com a impressão de haver perdido a inocência ideológica. Eu regressei a meu país um pouco com a idéia de que as palavras sozinhas servem para encantar serpentes, mas não para transformar o mundo e que qualquer proposta alternativa exige um programa concreto, um plano de viabilidade e uma gestão avaliável. Se não, tratam-se de música celestial e palavras levadas pelo vento. Alguns anos antes de minha decepção com certa maneira de praticar a ideologia política, eu já tinha entrado em crise com o sistema religioso católico, em Roma, em 1963. Estive lá como um jovem idealista recrutado pelo cristianismo e percebi que o catolicismo romano, que estava em pleno Concílio do Vaticano, parecia saído de um filme de Fellini, mais que do Evangelho. Depois dessa experiência, cinco anos mais tarde, em Paris – tinha que ser –, perdi a fé numa certa maneira de conceber e de fazer política, baseada em algo que me parecia um discurso verborrágico, com pouca ligação com a realidade e pouco operativa. Desde aquela noite parisiense de 14 de julho, na vida social e em meus posicionamentos acadêmicos, tenho seguido ativamente comprometido (à minha maneira) com a crítica utópica “anti-sistema”, mas, ao mesmo tempo, sou profundamente cético, inconformista e crítico com respeito aos múltiplos discursos alternativos esquerdistas “neomodernos” e “pós-modernos”. Nenhum deles explica de modo convincente – porque a promessa de mudança estava saturada de determinismo idealista – o motivo pelo qual a revolução não aconteceu, nem porque o fracasso da sua estratégia não tinha sido adequadamente previsto e não o haviam prevenido. O esquerdismo neomoderno racionalizou a sua incompetência teórica e a sua inoperância prática invocando o capital e seus poderosos dispositivos de produção de sujeitos submissos. A justificativa do esquerdismo pós-moderno para si próprio foi mais atrevida: a revolução não aconteceu, não porque tenha sido mal planejada e executada, mas porque ela era “impossível”, era uma pura quimera “moderna”, um simples reflexo idealista. O “poder”, com seus tentáculos onipresentes e onipotentes, abarca, encobre e penetra tudo, de modo que não há possibilidade de “emancipação”, mas tão somente uma mínima “resistência”, o que não é grave, pois tampouco existe realmente um “sujeito” a quem “liberar”, nem propriamente “historia”, nem “passado”, nem “futuro”, mas um pouco mais que jogos de linguagem e retórica vaporosa. Durante alguns anos, em minhas aulas de sociologia e de psicologia social, pus a dialogar Marx e Durkheim, o anarquismo clássico e as novas formas de radicalismo com os funcionalismos sociológico e psicológico, porque entendia que uns tinham muito o que aprender e a criticar com os outros. E consegui que os alunos não me expulsassem das aulas, mas que entrassem um pouco nessa lógica. Eu mesmo me converti em uma pessoa menos à “esquerda” que a maioria dos meus colegas, também não estava à “direita”, mas sempre entendi que o discurso tem que pactuar com algo da realidade, se não é simples ilusão, pura semântica do desejo, como dizia Paul Ricouer, que agora nos deixou. Essas duas experiências juvenis – a desilusão religiosa em Roma e a política em Paris – marcaram-me pessoalmente e influenciaram minha maneira de entender a psicologia, a sociologia e a psicologia social: a necessidade de articular teoria e prática, de refletir, mas ao mesmo tempo atuar... Prefiro uma má solução para uma boa definição de um problema, do que uma pura retórica abstrata, que não serve para pensar nem fazer nada.

Leny: E que significa, nesse contexto, a sua opção no doutorado de fazer finalmente um estudo da psicanálise, no âmbito da psicanálise sócio-cultural, tomando a religião como tema?

Blanch: A religião canalizava parte das utopias em meu país quando estávamos em plena ditadura. Tinha que canalizar o idealismo pela religião porque era a única expressão ideológica tolerável. E graças às instituições religiosas, as pessoas podiam pensar e fazer a política. Importantes sindicatos e movimentos políticos alternativos na Espanha franquista se forjaram nas sacristias ou nas igrejas.

Leny: Tendo você essa formação em psicologia e sociologia, tendo entrado pela temática da Psicologia dos Povos, tendo transitado e se aprofundado efetivamente, no doutorado, na psicanálise sócio-cultural, como você passa a se dedicar ao quê você denomina de psicologia social do trabalho, presente fortemente no seu currículo?

Blanch: No princípio dos anos oitenta, em meu departamento trabalhava com meu colega e amigo Tomás Ibáñez que, como eu, é catedrático. Com ele procuramos fazer uma divisão de funções. Entramos em acordo que ele iria até a estratosfera e eu desceria à terra. Ele estruturou, e muito bem, uma maneira de enfocar as coisas e de pensá-las. Ele pode ir até os problemas imediatos a partir do que ele sabe fazer melhor, que é a metateoria, a teoria, a epistemologia e, a partir daí, pode-se iluminar todo o concreto que se queira. Eu tratei de partir de problemas concretos, mas sempre com uma idéia de investigação e intervenção guiada pela teoria e não por simples demandas etéreas. Minha tese de doutorado foi, por um lado, um pretexto para entrar em contato sistemático com a psicanálise sócio-cultural e, por outro, serviu um pouco como um ajuste de contas epistemológicas e teóricas com meu passado, com meu passado de idealismo e de ilusão, fosse de promessas religiosas ou políticas. O tema do trabalho é o futuro ao qual me dirigi.

Leny: E como você voltou-se para o campo temático do trabalho?

Blanch: Após registrar meus passos num livro publicado em 1982, intitulado Psicologías Sociales. Aproximación histórica, editado pela Hora, em Barcelona, eu entrei no tema do trabalho como poderia ter entrado no da saúde ou no do bem-estar, os quais, de fato, formam um triângulo no qual tenho estado me movimentando. A idéia, quando em 1980 e 1981 fizemos com Ibáñez aquela espécie de bifurcação, o que eu fiz foi o seguinte: por um lado, me propus a investigar “problemas sociais” e “qualidades de vida”, que era o que mais me atraía da psicologia social e a fazê-lo em campos em que eu não estabelecesse uma competição desleal com os psicólogos que começavam honradamente a ganhar sua vida como profissionais. Portanto, deixei de lado todo o campo dos recursos humanos, comunicação, publicidade e todos esses temas nos quais as pessoas já iam abrindo caminho. Para entrar no tema dos problemas sociais, eu fiz o seguinte: comecei escrevendo cartas a responsáveis políticos pela gestão das respostas práticas a determinados problemas sociais, como os de saúde mental, dependência de drogas, delinqüência, desemprego, pobreza etc. Eu lhes oferecia um acordo bem simples: eu trabalharia de graça as informações que eles geravam e, em troca, essa informação teria um duplo uso: eles, a partir de suas organizações, a utilizariam para seus fins e eu tiraria algo que servisse para a construção teórica e metodológica, para que meus estudantes de pós-graduação pudessem aprender teoria e metodologia e para que pudéssemos devolver algo à sociedade, porque, a princípio, o Estado me paga para pensar e para fazer algo. Então, foi um jogo de circunstâncias.

Leny: E como foram seus primeiros passos nesta orientação “aplicada”?

Blanch: No campo da saúde e trabalho, comecei uma experiência que continuo até hoje com uma equipe liderada por um colega latino-americano. Eu fui o “promotor” e neste momento sou o presidente de uma ONG, de uma fundação de reabilitação biopsicossocial de pessoas que no início dos anos oitenta encarnavam o que era o protótipo do viciado em heroína. Além disso, o perfil das pessoas com as quais trabalhávamos era o de pessoas que tinham fracassado em outros programas, os que tinham problemas orgânicos associados (AIDS, por exemplo), problemas com a justiça, famílias desestruturadas, problemas pendentes com a polícia etc. Propusemos um desenho que é uma espécie de mistura entre cooperativa de trabalho e comunidade terapêutica. O objetivo inicial era mostrar que o recurso público nesse campo da reabilitação podia ser utilizado de maneira melhor, no modelo que propúnhamos, do que nos modelos convencionais, nos quais se instalavam as pessoas em equipamentos já bem acabados e as pessoas que lá estavam internadas não tinham outra coisa a fazer durante o dia, além de tomar sol, fumar e beber. Nós nos dedicamos a recuperar patrimônios arquitetônicos com recursos públicos, com a idéia de que, enquanto os recuperávamos, as pessoas viveriam nesses espaços que iam se construindo e se reconstruindo e, quando os tivéssemos bem restaurados, seriam devolvidos à sociedade. E assim dedicamos vários anos a restaurar um balneário modernista, que estava há oitenta anos em desuso, um balneário de quatro andares, com cento e vinte quartos, teatros etc. Pegamos o balneário em ruínas, com árvores que cresciam por dentro e o devolvemos em plenas condições. Posteriormente, o perfil das pessoas assistidas pela fundação se modificou. Atualmente predominam pessoas com “síndrome de exclusão social”, com patologia mental subjacente e sintomas associados à dependência de drogas.

Leny: E vocês o fazem com apóio técnico de alguém?

Blanch: Incorporamos à nossa fundação alguns políticos do campo da saúde, do bem-estar social e do trabalho; mobilizamos alguns arquitetos e engenheiros amigos para trabalhar voluntariamente, que nos elaboram planos e, quando não temos recursos, buscamos ajuda com pessoas físicas para financiar um projeto sustentável. Essa instituição tem vinte anos de funcionamento e acreditamos que é uma modesta contribuição no campo desse triângulo saúde-trabalho-bem-estar. Por meio do trabalho e de práticas ativas, as pessoas se reabilitam melhor do que se forem deixadas simplesmente assistindo televisão. Aprendem e desenvolvem a convivência cooperativa. É um ambiente facilitador e enriquecedor de processos psicológicos e sociais positivos. As pessoas sentem-se hábeis, sentem-se úteis, comunicam-se por necessidade, porque precisam fazê-lo e não por obrigação, não porque se lhes diga que precisam se comunicar, que precisam avaliar, que precisam se expressar e se interessar pelos demais. Tudo isso seria uma aproximação muito teórica e muito prescritiva, terapêutica tradicional. No entanto, se você os põem a trabalhar, eles precisam se comunicar espontaneamente e se ajudar mutuamente, valorizam a si mesmos e valorizam o resultado de seu trabalho.

Leny: E foi por esse caminho que você se interessou e focalizou mais o tema do trabalho?

Blanch: Não exatamente. Simplesmente, apenas por cartas, fizemos um primeiro contato com responsáveis de hospitais psiquiátricos, com chefes da polícia e de penitenciárias, com responsáveis pela gestão de políticas de emprego e desemprego, que na Espanha chama-se INEM (Instituto Nacional de Empleo). Houve instituições que não responderam à minha proposta, algumas outras me procuraram, apresentei projetos e, ao fim, decidiram que os realizariam eles mesmos, o que me pareceu muito bom, e outras me procuraram e me deixaram trabalhar. Um dos lugares que me deixou trabalhar foi o INEM de Barcelona, que naquele momento gerenciava de 350 a 400 mil desempregados e muitas outras coisas, num mundo que estava mudando muito rapidamente...

Leny: Em que ano?

Blanch: Isto era 1983/84. Fazia pouco tempo que os socialistas estavam no poder central na Espanha. Em Barcelona já estavam há seis anos no governo municipal. Na Europa também havia uma atmosfera positiva de mudança, no sentido de que era necessário estudar a nova problemática social do desemprego – que era vista como caldo de cultivo de muitos outros problemas sociais – orientar e avaliar políticas concretas. Então, o diretor geral do INEM de Barcelona simplesmente deixou-me trabalhar e depois avaliar o que eles faziam. Acredito que eles gostaram do trabalho que eu fazia e eu mesmo me senti muito bem, então, comecei a estender meu campo de investigação à medida que outras instituições públicas me pediam informações e que eu desenvolvesse as investigações para elas. Isso foi uma espiral virtuosa: Eles me faziam pedidos e eu lhes propunha condições e lhes exigia meios. Eu disponibilizava equipes de estudantes dos últimos anos de graduação (quase profissionais), doávamos nosso trabalho e eles tinham que nos fornecer os meios. Depois de um ano de investigação, felizmente, chegávamos com propostas concretas de melhorias de suas organizações ou de seus programas. Eu mesmo lhes propunha que as pessoas que podiam gerir, dirigir ou assumir a responsabilidade desses novos serviços ou programas eram as pessoas que tinham feito a própria investigação: recém-formadas. Com isso, eu ia permanentemente inserindo técnicos num campo emergente. Nesses dez anos foram muitos que se inseriram em postos-chave das administrações públicas, dos órgãos das áreas de trabalho, de bem-estar, indiretamente da saúde etc. Foi um processo quase não pensado, mas que encontrei pesquisando o desemprego. O desemprego como fonte de problemas e o emprego como via necessária de soluções de problemas. Na Espanha houve duas ou três etapas bastante claras. Quando eu comecei esse trabalho era um período de profunda crise (de 1982 a 1986), o mundo estava em crise, mas a Espanha estava mais e Barcelona, ainda mais. Lá existe uma economia muito interdependente: quando o mundo vai bem, lá vai melhor, e quando a coisa vai mal, lá vai pior. Tentei relacionar estes campos: trabalho, bem-estar e saúde. A princípio tentei estudar a relação entre desemprego e patologia: depressão, mal-estar, auto-estima negativa etc. Introduzíamos variáveis psicossociais intervenientes, como o que hoje se chama centralidade do trabalho, valores, ideologias, representação social do trabalho. E esse trabalho permitiu desenvolver algumas coisas no terreno teórico e metodológico. Desse trabalho resultaram publicações1. Com esse trabalho constatamos que cerca de 40% das pessoas desempregadas oficialmente não se ajustavam perfeitamente ao perfil de “desempregados” segundo as normas internacionais da OIT e da Eurostat, pois encontramos um tipo de irregularidade e um perfil um pouco híbrido. Com esses achados, propusemos um plano de melhoria de dados e de re-categorização de desempregados. Consegui, modestamente, que alguns políticos, juristas e sindicalistas com responsabilidades de gestão sobre o problema do desemprego, assumissem a idéia de que os desempregados não são um número abstrato, não são mutuamente intercambiáveis, mas que existem perfis e perfis de desempregados.

Leny: Que quer dizer exatamente?

Blanch: Que uma coisa é conceber que juridicamente são todos sujeitos com os mesmos direitos, e outra é pensar que não exista variabilidade psicossocial entre os sujeitos. Então, inicialmente, tentei estudar essa variabilidade e esse perfil psicossocial como variável interveniente entre o desemprego e a depressão. Existiam desempregados que se deprimiam e existiam desempregados que estavam bem e isso tinha a ver com a maneira como viviam o trabalho e também com a maneira pela qual enfrentavam a vida, organizavam seus valores etc. Depois começamos a procurar variáveis que fizessem a mediação entre o desemprego e esse perfil psicossocial. Algumas dessas variáveis eram: representação social do trabalho, valores, estilos de vida etc. Mas essa linha de pesquisa foi concluída.

Leny: Mudaram as circunstâncias?

Blanch: Exatamente. Entre 1986 e 1990, dá-se um novo ciclo econômico e social: do desemprego estrutural massivo entrou-se num circulo virtuoso de alta taxa de criação de empregos. Nesse contexto, minhas preocupações mudaram. Tratei de observar quais eram as variáveis psicossociais que facilitavam o acesso ao emprego. Se num lugar onde se criam muitíssimos postos de trabalho existem pessoas que passam dois anos sem encontrar emprego, isso significa que não sabem, não podem ou não querem encontrá-lo; quer dizer, ou falta-lhes ou sobra-lhes algo. Então aí começamos a estudar mais detalhadamente os componentes de um perfil psicossocial. Construímos um modelo que culminou na publicação de um livro2, nos anos noventa, que teve certo impacto nas esferas de decisão política. Nessa pesquisa (um estudo transversal e longitudinal) analisamos, em janeiro de 1998, cerca de mil pessoas oficialmente desempregadas e que, por isso, deviam se apresentar a cada três meses em uma agência do INEM e outras mil pessoas que eram desempregadas e conseguiram emprego. Todas responderam um amplo questionário com perguntas relativas ao que hoje chamaríamos de centralidade do trabalho, uma escala de valência do emprego (para averiguar para que se quer o emprego: para obter dinheiro, para servir à família, para sentir-se útil, para sentir-se uma pessoa realizada etc.), outra de estilo de atribuição do emprego/desemprego (a causas externas ou internas, a variáveis controláveis ou incontroláveis etc.), uma escala de atitudes em relação à disponibilidade ao emprego (o quão dispostas as pessoas estão para encontrar um trabalho com determinadas características, com condições determinadas de espaço e de tempo, de responsabilidade, de risco, de exigência, de aprendizagem etc.) e uma escala de atividade (a fim de verificar quão ativas ou quão passivas as pessoas estavam no momento de procurar emprego). Em uma comparação transversal, observamos certas diferenças de perfil entre pessoas “desempregadas” e “empregadas”. Posteriormente, em dezembro de 1988, fizemos um seguimento longitudinal das mesmas pessoas que em janeiro estavam desempregadas mediante um duplo controle: informático (através da base de dados do próprio INEM, que reflete suas trajetória laboral durante o ano) e telefônico (entrevistas em que se buscou conhecer a situação atual de trabalho). Com os dados obtidos nessa segunda fase de dezembro de 1988, classificamos as pessoas em três categorias: os que estavam empregados num emprego formal e regular, os que tinham emprego informal e irregular e os que estavam absolutamente desempregados. Mediante regressão logística, buscamos identificar se haveria um perfil psicossocial das respostas que nos deram em janeiro que permitia predizer a situação ocupacional em dezembro, um ano mais tarde. Constatamos o seguinte: as pessoas que um ano mais tarde encontraram emprego tinham um perfil de empregabilidade algo significativamente diferente dos que não tinham encontrado. Deixe-me fazer um parênteses: eu trabalhei muito com o tema da empregabilidade e por isso estou, acredito, qualificado para dizer que em épocas de desemprego massivo não se pode utilizar esse conceito, mas em épocas de intensa criação de emprego, se existem pessoas que arrumam trabalho em dez dias e pessoas que demoram três anos, aí pode-se aplicar conceitos como esse. Voltando à pesquisa: constatamos que as pessoas que arrumaram emprego em dezembro de 1988 (T-2) haviam valorizado mais o trabalho em janeiro de 1988 (T-1) do que as outras. As que tinham emprego em dezembro haviam se mostrado, em janeiro, com maior disponibilidade para aceitar as condições do emprego, e mais ativas no momento de ir buscá-lo: levavam currículos, saíam de casa, olhavam os classificados de jornais, informavam aos amigos que procuravam emprego etc. No que se refere às atribuições ao desemprego, ainda que todos tivessem a mesma tendência geral (todas davam muita importância às causas externas), as pessoas que haviam encontrado trabalho em T-2, um ano antes (T-1) valorizavam um pouco menos as variáveis externas (a “crise”, o mercado, os empresários etc.) que explicavam o desemprego e um pouco mais as variáveis internas (esforço, formação, especialização etc.). Os resultados dessa pesquisa foram comentados e discutidos. Mais tarde foram realizadas réplicas dessa investigação em outros lugares. Na Andaluzia realizou-se essa pesquisa com jovens e chegou-se ao mesmo resultado. Em resumo, esse modelo permitia predizer a possibilidade de se conseguir emprego em épocas de criação de empregos para o contexto espanhol de economia expansiva ao final da era fordista. A partir daí eu dediquei um tempo ao desenho e à avaliação de programas de orientação e inserção laboral baseados no reforçamento de variáveis e competências que faziam as pessoas mais empregáveis naquele contexto determinado.

Leny: Programas públicos na área de trabalho e emprego?

Blanch: Sim. Havia programas que se chamavam planos de ocupação, que eram empregos públicos, remunerados pelo Estado, em que se contratavam pessoas desempregadas para trabalhar por um salário mínimo e, ao mesmo tempo, adquirir experiência e especialização profissional que aumentariam sua empregabilidade. Outros programas públicos se dedicavam à formação ocupacional de pessoal desempregado para torná-lo mais empregável, outros de formação e inserção ocupacional com o mesmo objetivo. Naquela época, eu lutei muito, pois os políticos responsáveis por administrar os recursos públicos valorizavam menos os recursos que eram dados para formação do que os que se convertiam em empregos subsidiados puros. A moda daquele tempo era construir obras públicas com o trabalho dos desempregados. Eram trabalhos que os prefeitos agradeciam muito: quando chegavam as eleições, todos os municípios queriam recurso público, então eles ficavam solidários com os desempregados porque nos anos seguintes podiam mostrar esses troféus. Minhas pesquisas dessa época mostravam que o recurso público investido nesses trabalhos servia muito para os prefeitos e para os municípios mas servia pouco para os desempregados, pois os convertia em crônicos, em dependentes dos contratos do Estado. Os políticos eram pouco favoráveis ao investimento em educação e formação ocupacional, mas o que modestamente demonstrei naquele contexto – primeiro em teoria e, depois, pela experiência – foi que os programas de formação ocupacional aumentam a empregabilidade e, além disso, aumentavam, naquele contexto social e histórico especifico, a inserção efetiva no emprego.

Leny: Num contexto em que existe oferta de emprego...

Blanch: Efetivamente. Naquele contexto de forte expansão de emprego, muitas pessoas que em 1986 tinham feito cursos de formação ocupacional, em 1989 estavam quase todas inseridas no mercado de trabalho em empregos regulares, formais. Enquanto isso, os que em 1986 estavam fazendo trabalho por contrato público, arrumando estradas, ruas, cemitérios, essas coisas que se gosta de exibir nas eleições, no ano de 1989 continuavam desempregados, esperando que o Estado os contratassem. Isso alimentou também debates ideológicos entre políticos. Naquela época comecei a trabalhar também pelo governo espanhol, em Madrid, e também em Bruxelas, que é a sede do governo central da União Européia, a partir de onde se estabeleciam políticas públicas para serem aplicadas no conjunto dos países da União. Concretamente era a DG 5 (Direção Geral 5), que trata de assuntos de igualdade. Ali comecei a trabalhar com esse tema, sempre com a idéia de que as políticas ativas são preferíveis às políticas passivas (as políticas ativas são as de formar, acompanhar, orientar, incentivar o auto-emprego, ou as cooperativas, a se movimentarem; as passivas são as que subsidiam simplesmente, ou contratam em determinado período). Então, nessa época intervim bastante ativamente no planejamento e na avaliação de programas desse tipo. Entrei por essa via também ao entrar em contato sobretudo com o núcleo duro do desemprego na época, o desemprego feminino, principalmente numa determinada idade, de 30 a 45 anos – a época em que muitas mulheres, na Espanha, têm filhos pequenos, quando trocam parte de seus esquemas, de seus valores, de suas autopercepções, de suas prioridades, porque são incorporados elementos novos...

Leny: E isso em que ano?

Blanch: Isto era desde o ano de 1988. Já nos anos de 1987 e 1988, nesse período mesmo, o que eu já encontrava era que, por exemplo, em perfis de empregabilidade, havia homens e mulheres jovens que formavam um perfil, e mulheres de meia idade que formavam outro perfil. Portanto, aqui, a variável chave foi “sexo-gênero” combinada com “idade”, o que naquela época soava como uma heresia muito grave em certos círculos feministas que se ocupavam em apontar a igualdade. No início da década de noventa também colaborei com o Instituto de la Mujer espanhol. Desde aquela época tenho sustentado teses que hoje soam menos estranhas, como a de que o gênero ajuda a explicar muitas coisas, mas às vezes atua como obstáculo epistemológico. O patriarcado e o machismo podem explicar muitas coisas, mas não explicam tudo. Eu fazia entrevistas com mulheres de meia idade que me diziam que não trabalhavam fora de casa porque não queriam, porque preferiam estar com seus filhos enquanto eram pequenos, acreditavam que esse era um papel que haviam eleito e não porque suas mães ou suas ideologias as tivessem obrigado. Eu via que certo feminismo da época tratavam-nos com o mesmo estilo pelo qual certo marxismo-leninismo tratava os operários que queriam eletrodomésticos ao lhes dizer que tinham a “consciência alienada”. Eu entendia que essas mulheres não estavam alienadas, mas que tinham um determinado perfil que a perspectiva de gênero impedia reconhecer para ser atendido politicamente.

Leny: Então, nos temas que você foi tratando, você tem uma articulação contínua nesse período com órgãos públicos. E hoje, você continua desenvolvendo avaliações de programas, desenvolvendo pesquisas a partir desses órgãos públicos e assessorando a proposição de políticas públicas sobre trabalho e emprego?

Blanch: Trabalhei intensamente nesses campos numa época de emergência dos socialismos na Europa. E me desvinculei desse tema num contexto de crise do socialismo em meu país e na Europa em geral. O ponto final da posição mais socialista do governo europeu é marcada pelo governo de Jacques Delors, um filósofo humanista, socialista francês, intelectual inteligente, que finalizou seu mandato em 1994 e que deixou como testamento político um livro branco de política econômica e um de política social. Justo naquela mesma época, também na Espanha, mudou o ciclo e entrou a direita. E os governos de direita, na Europa e na Espanha, tendem a ver o problema do desemprego como um problema quase-individual: se existem vinte milhões de desempregados, são vinte milhões de problemas individuais, e menos um problema social que necessite de uma abordagem por meio de políticas públicas. E a psicologia em que esse governo estava interessado em aplicar era mais de perfil clínico, orientada a curar e fazer terapia individual com desempregados, o que não era meu estilo.

Leny: Isso aconteceu?

Blanch: Não só na Espanha. Nos Estados Unidos, por exemplo, se alguma vez os republicanos se servem de profissionais da psicologia para lidar com problemas sociais (como pobreza, desemprego ou exclusão social), favorecem perspectivas que minimizam os fatores sociais e maximizam os psicológicos, inclusive em contextos nos quais é difícil questionar o papel determinante de variáveis estruturais. Na minha avaliação, esse é um uso perverso das potencialidades da clínica, cuja aplicação não discuto quando tem por objeto problemas estritamente psicológicos. Na Espanha, em meados dos anos noventa, houve uma debandada geral de políticos e gestores comprometidos com a abordagem interdisciplinar de questões sociais e eu me retirei um pouco dessa esfera. Coincidiu com uma época em que eu era decano e tinha sido diretor de departamento. Dediquei-me alguns anos à gestão acadêmica e a refletir, de forma mais geral, sobre as mudanças no mundo do trabalho em suas implicações teóricas e práticas. Escrevi capítulos de manuais e, nestes últimos anos, coordenei três manuais de psicologia do trabalho e relações de trabalho3. Aí estão os resultados dos temas que mais me preocupam neste momento. Estou um pouco desligado pontualmente da “rua”, por assim dizer, e me coloquei num nível (não é que seja mais confortável, mas simplesmente uma face) que é de voltar a pensar as coisas em abstrato. Em compensação, estou agora mesmo implementando, como diretor, um master em reabilitação psicossocial em saúde mental na minha universidade.

Leny: Você está coordenando uma pesquisa multicêntrica que se chama O novo significado do trabalho e o subemprego, implicações psicossociais, políticas e de gênero. Eu li o resumo dessa pesquisa e o que parece ser algo importante é repensar as diferenças em termos da experiência do trabalho em um contexto que você chama de pós-fordismo e pós-keynesianismo, diferenciando-a da que se dá em um modelo fordista-keynesiano de estrutura laboral e social. Quer dizer, essa sua opção, neste momento, de se dedicar a uma pesquisa focalizando esse tema se dá a partir dessas reflexões que você tem feito mais recentemente? Eu queria que você falasse então o que o conduziu a pensar num tema como esse, focalizando essas diferenças e, se tiver condições, que falasse um pouco desse projeto multicêntrico, sua conformação, seu objetivo e quais países estão envolvidos.

Blanch: Sim. Esse tema foi suscitado por um duplo interesse. Por um lado, é um interesse teórico e epistemológico e, por outro, um interesse empírico e político. Quer dizer, boa parte da linguagem na qual se articulam as políticas públicas de emprego continua utilizando termos e categorias analíticas e operativas dos anos oitenta, que podem ser considerados próprios do final do fordismo como modelo laboral hegemônico e das crises do keynesianismo como modelo de política econômica e social. E assim corre-se o risco de se utilizar conceitos obsoletos, o que o sociólogo Beck chama de conceitos “zumbis”, ou seja, que já estão mortos, mas não estão totalmente e, eu acredito, estão presentes também em boa parte do que se escreve nos manuais de psicologia do trabalho. Esse é um tema clássico nas ciências sociais e que já se discutiu muito dentro e fora do marxismo: se as estruturas mudam, mudam também as consciências? E o papel da linguagem nesse sentido? Stalin (espécie de analfabeto funcional em filosofia) dizia que a linguagem é uma superestrutura e que ela muda quando mudam as estruturas. Alguém lhe fez observar que ele falava a mesma linguagem dos Czares, a linguagem da Rússia pré-revolucionária. Se a linguagem não tinha mudado, ela formaria parte da estrutura? Sem entrar nessa discussão, em um tom menor, podemos assumir que a carga semântica associada aos significantes que estamos usando para significar as coisas pode ter “data de validade”, como os iogurtes, e tornar-se obsoleta. Marcuse já falava da obsolescência da psicanálise nos anos 1950, ele dizia: agora não vamos sair pela Los Angeles liberal procurando pessoas histéricas (por repressão sexual) como as que Freud encontrava nos anos 1890 na Viena puritana, pois encontraremos outro tipo de sintomas e, portanto, é preciso armar-se de novas categorias analíticas. Então, no Ocidente, a linguagem normalizada sobre o trabalho está referida ao emprego moderno, industrial, numa organização fordista, numa sociedade com componentes keynesianos. Refere-se a um emprego para toda a vida, na mesma empresa, no mesmo ofício, numa carreira laboral contínua, previsível e planificável, numa sociedade marcada por retóricas políticas empreguistas, que propõem o pleno emprego como panacéia social. Essa linguagem continua operando em um mundo “pós”, no qual a categoria laboral mais emergente é o subemprego, um trabalho descontínuo, fragmentado, instável, muitas vezes informal, um contexto em que os empregos extintos são fordistas e os que se criam são flexíveis, nos quais muitas pessoas trabalham em postos de categoria inferior em relação à sua própria qualificação, em empresas nas quais sabe-se que se tem os dias contados, em um mundo em que muitas pessoas não podem fazer planos de futuro porque o trabalho só existe no presente. Disso decorre que as atividades de formação para o trabalho, orientação profissional, acompanhamento no emprego, dentre outras, devam ser pensadas hoje de modo diferente das que se fazia há algumas décadas atrás, pois trabalhar nas condições atuais talvez não signifique o mesmo do que naquele tempo.

Leny: E vocês querem estudar essas mudanças.

Blanch: Queremos, modestamente, estudar no plano empírico até que ponto interfere na vivência do trabalho a transição de um mundo dominado por um modelo de organização fordista para outro em que predomina uma organização flexível, que muda sua flexibilidade para o campo das condições contratuais, salariais e temporais de trabalho. Estamos interessados em saber se vive-se o trabalho da mesma maneira que se vivia há cinqüenta ou há vinte e cinco anos atrás. Isso pode nos responder à seguinte questão: de onde se deve partir para preparar as pessoas para este mundo atual, para enfrentá-lo, para compreendê-lo, para resistir a ele, para mudá-lo? De onde estávamos há vinte e cinco anos ou de onde estamos agora? E a opção é tentar ver como se traduzem, no plano da subjetividade, as mudanças objetivas. Esse estudo se desenvolve em cinco cidades de países ibero-americanos: Argentina (Buenos Aires), Brasil (Porto Alegre e Criciúma), Colômbia (Bogotá), Espanha (Barcelona) e México (Puebla). O projeto inicial surgiu de uma rede de teses de doutorado “precárias” que eu oriento, ou seja, é também um caso típico de transformação das estruturas universitárias, do novo mundo da precariedade de bolsas de estudo que são dadas para um ano mas só cobrem um mês; são estudantes que começam um projeto mas ficam sem dinheiro. Tentamos criar sinergias entre esses projetos. Criamos uma espécie de marco teórico comum, uma ferramenta de trabalho comum e cada qual deverá criar seus marcos específicos e trabalhar seus dados específicos, mas também temos os conjuntos. Nesse sentido, o que estamos tentando é, em primeiro lugar, explorar o alcance das mudanças em três níveis: um diz respeito ao significado (representação, valores, centralidade etc.) do trabalho, o segundo aos efeitos percebidos da própria situação de trabalho na qualidade pessoal de vida e o terceiro diz respeito ao futuro percebido num duplo aspecto: a visualização do futuro (como eu o vejo) e a ação em direção ao futuro (como eu o enfrento, passivamente, ativamente, com perplexidade, com planos etc). Para tanto, propusemos perguntas como: “quando você fala de trabalhar, no que está pensando?”, “como você vê o seu próprio futuro no plano do trabalho?”. Abordamos tópicos que nos anos oitenta não se mostravam relevantes porque já havia suficiente evidência acumulada sobre eles. Por exemplo, no MOW de 19874, um macro-estudo transcultural, desenvolvido com muitos milhares de sujeitos e realizado em 14 países de três continentes, utilizaram-se instrumentos com perguntas fechadas porque do mundo investigado existia um conhecimento preciso. Nessa nossa pesquisa estamos vendo como alguns elementos clássicos se repetem, outros desaparecem e outros se reconfiguram.

Leny: Por exemplo?

Blanch: Em todos os países, identificamos que o dinheiro continua sendo importante, mas agora é ainda muito mais. Abarca uma parte central importantíssima e amplíssima do campo semântico do trabalho e quase todo o resto é periférico. O trabalho continua sendo um valor central, mas num sentido diferente. Para os empregados clássicos de tipo fordista, que ainda existem hoje, continua sendo um valor instrumental e também um valor expressivo. Essas pessoas trabalham sentindo-se hábeis, úteis, realizadas e também trabalham para ganhar dinheiro. No entanto, para a maioria das pessoas subempregadas – com emprego instável, em condições contratuais, salariais e temporais precárias e, entre estas, a maioria composta por jovens – o valor expressivo é procurado no ócio, no final de semana ou no consumo e trabalham apenas pelo dinheiro. Mas o trabalho continua sendo importantíssimo para elas, porque é a única forma que têm de aceder ao dinheiro, que é mais importante que nunca para sobreviver e levar uma vida “normal”. Portanto, o dinheiro vai se re-situando, ampliando, reforçando sua posição no centro do espectro. Há vinte e cinco anos, as “pessoas fordistas” pensavam o trabalho em termos de direitos e deveres. Hoje, entre as pessoas com menos de trinta anos de nossa amostra, o componente “direito” está praticamente extinto. Outro componente do significado do trabalhar (meaning of working) nos anos oitenta era o trabalho como base para pensar e projetar o próprio futuro, como referência de expectativas (conseqüências esperadas) e de metas (projetos no plano do trabalho). Há vinte e cinco anos, as pessoas mais velhas esperavam e planejavam a aposentadoria e as pessoas jovens esperavam e planejavam sua carreira. Hoje, o que constatamos é que no entorno do subemprego, o futuro é nebuloso e isso impede a montagem de estratégias pessoais e de trabalho coerentes a longo prazo. Portanto, tudo isso com certeza tem claras implicações para a identidade social, para a orientação profissional e para o planejamento da estratégica pessoal. Como se pode inserir alguém num mercado volátil ou orientar alguém se não se sabe onde está o norte ou se o futuro existe? Como alguém pode fazer um investimento em formação na sua carreira se não sabe se o mês que vem trabalhará como mecânico de automóveis, como professor ou como entregador de pizza? Esse é um campo onde encontramos novidades mais radicais. O futuro é visto de forma nebulosa e isso dificulta uma série de funções que antes dávamos como certas e que permitiam levar uma vida de qualidade, psicológica, inclusive. Quando não se pode fazer planos nem delinear estratégias porque faltam referências claras sobre o futuro, as pessoas funcionam, no mínimo, perplexas, sentido-se sem recursos nesse terreno; quer dizer, refugiam-se no presente e deixam de realizar-se perguntas que não estão em condições de responder.

Leny: E nessa pesquisa vocês têm como sujeitos pessoas de diversas faixas etárias, sexo e diversos níveis de qualificação e escolarização?

Blanch: Sim. Tentamos compor amostras aleatórias, mas estratificadas e selecionadas com uma certa intenção, no que fracassamos em certo grau. Queríamos e conseguimos encontrar um número parecido de mulheres e de homens e, dentro do possível, encontrar mais jovens do que pessoas mais velhas. Isso porque o tema do futuro, a partir dos cinqüenta e poucos anos, já se dá em termos de aposentadoria, enquanto nos interessava muito saber como as pessoas jovens de hoje enfrentavam o futuro. Então temos mais ou menos a seguinte distribuição: 50% de pessoas com menos de trinta anos, aproximadamente 25% de pessoas entre trinta e quarenta anos, e o restante de pessoas com mais de quarenta. Focalizavamos os jovens e também queríamos encontrar o que fosse mais próximo dos tipos “puros”, quer dizer, procurávamos “empregados puros”, “subempregados puros” (com trabalhos precários em termos contratual, salarial e temporal), “desempregados puros”. E o que temos encontrado é que todos são híbridos! Isso porque o mundo mudou e porque nós estávamos desorientados em relação a este mundo. Hoje, muitos empregados vêem também como incerto seu futuro profissional, estudam ou têm dois empregos, um que é um emprego um pouco bom e outro que é um emprego um pouco ruim, mas que ajuda. Muitos subempregados são estudantes ou são multi-empregados e não existem desempregados “puros”, que vivam do “ar”. O que temos são pessoas cadastradas como desempregadas, mas que sobrevivem como podem, fazendo trabalhos na economia informal, estudando um pouco. Com as respostas textuais dos pesquisados, descobrimos que deveríamos reconstruir uma variável muito importante. Nós tínhamos criado sete ou oito categorias ocupacionais, mas os entrevistados assinalavam cinco ou seis categorias: todos tinham algo de estudante, algo de desempregado, algo de empregado, algo de subempregado, em diferentes aspectos. Quando nos explicam suas vidas, temos mais elementos para dizer: este é acima de tudo estudante, que trabalha só para pagar seus estudos, ou este outro é um chefe de família que trabalha como um condenado porque precisa trazer dinheiro para casa, e que, quando pode, estuda um pouco. Então tivemos que reconstruir as coisas assim.

Leny: E porque vocês escolheram estudar amostras de população daqueles países?

Blanch: Estudamos países de cultura “latina” porque acreditamos que nos diferenciamos qualitativamente dos países anglo-saxões, que nos exportam saberes sobre a experiência do trabalho. Em geral, na Argentina, no Brasil, na Colômbia, na Espanha e no México, as pessoas não restringem o espaço de sociabilidade aos círculos da família e do trabalho, mas têm uma rede estável de relações sociais mais ampla. Numa situação de transição para uma nova era de trabalho instável, acreditamos que, talvez, não se deva misturar o que acontece em países como os nossos, com essa característica cultural, com aquilo que ocorre com países mais individualistas. Queremos estudar estes ambientes latinos com suas especificidades e suas diferenças. Atualmente temos processados somente os dados da primeira fase do trabalho empírico. Nessa primeira fase aplicamos o questionário em 700 pessoas (somando quatro cidades). Na segunda fase, estamos perto de superar 1500 novas aplicações acrescentando ao conjunto as cidades de Bogotá e de Criciúma. Nesses dados encontramos uma coisa curiosa que nos impactou: as pessoas de Barcelona e de Buenos Aires funcionam quase como se fossem da mesma cidade e o mesmo ocorre entre as pessoas de Puebla e de Porto Alegre, que também funcionam com um perfil muito similar. Uma primeira hipótese explicativa dessas simetrias poderia ser de que Barcelona e Buenos Aires conheceram uma situação social em que o emprego fordista tinha chegado a ser uma norma social e estatística, enquanto que em Puebla e em Porto Alegre, essa situação sempre coexistiu com uma alta taxa de trabalho informal e com um Estado que, se chegou a implementar políticas públicas, sociais e trabalhistas, não tinha chegado a desenvolver um sistema de bem-estar fortemente arraigado. Então, provavelmente, em Barcelona e em Buenos Aires, a situação atual é vivida com especial tensão, preocupação e angústia, porque é ir de algo bom para algo pior, ou de algo que talvez naquele momento não se vivesse como bom, mas que hoje se vive com nostalgia. Por sua vez, em Porto Alegre e em Puebla (não me atrevo a falar de Brasil e de México), a situação de hoje é pior do que a de ontem em alguns aspectos, mas não tanto, pois, naqueles contextos sempre houve pobres nas ruas, pessoas fora do sistema de proteção social e do emprego formal, na economia informal.

Leny: Pessoas que nunca conheceram o mercado formal de trabalho...

Blanch: Exato. Então, se isso é assim, não vivem a situação atual como especialmente aflitiva em comparação com o passado e isso talvez as prepare melhor para o futuro, para o neoliberalismo. Isso as converte em sujeitos a observar, para ver como enfrentam uma situação de instabilidade que parece ter sido bastante normal para elas. É o que tratamos de ver.

Leny: Aqui no Brasil nós temos tido há alguns anos, acredito que há cerca de dez anos, talvez um pouco mais, o crescimento e o ressurgimento da autogestão e de empresas cooperativas dentro do que se denomina movimento da economia solidária. Num certo sentido, essas iniciativas vieram como uma necessidade posta pelo crescimento do desemprego. Entre nós, a experiência de Mondragón, na Espanha, é muito conhecida, muito comentada e muitas vezes até tomada como parâmetro em alguns aspectos. Teria algo que você ache relevante ser comentado, porque é um complexo cooperativo existente há muitos anos...

Blanch: Mondragón, desde a sua constituição, há meio século, até hoje, mudou. Começou como uma pequena cooperativa de produtores associados e atualmente é um conglomerado de empresas que abarca os setores financeiro, industrial e de distribuição e se alimenta de seus próprios serviços de educação, formação e de pesquisa. Hoje formam parte dessa “corporação cooperativa” mais de setenta mil pessoas empregadas dentro de Espanha e de quase dez mil no exterior. Trata de coordenar seus valores fundacionais (tais como participação, autogestão, cooperação, justiça, equidade e solidariedade) com imperativos funcionais do capitalismo flexível e global (como os de produtividade, eficiência, competitividade, flexibilidade, inovação tecnológica, organizativa e social). Inclui pequenas e grandes empresas, centros de trabalho nos quais existe pouca divisão do trabalho e outros com uma organização muito sofisticada. Tudo isso faz de Mondragón uma organização complexa e fascinante. Transformou-se numa espécie de “multinacional sem capitalistas”, mas que tem que competir num mercado com outras multinacionais e, portanto, com critérios de management equiparáveis aos que funcionam em outras organizações. Isso a torna uma instituição muito especial, que funciona numa escala diferente em comparação com outras empresas cooperativas de tamanho menor. Eu acredito que os processos organizacionais que tornam essa macro-empresa cooperativa interessante são o próprio funcionamento da autogestão, a organização do trabalho, a identidade do pessoal, a planificação, a participação, a disciplina, o poder, o controle, a flexibilização em todos os terrenos (em relação a salários, horários, contratos, competências profissionais, careira, retiradas etc.), a tomada de decisões (no que se refere à redistribuição dos benefícios, à escala salarial, ao re-investimento em capital etc.), a comunicação (horizontal e vertical), a qualidade de vida no trabalho, dentre outras coisas. Eu diria que todo o inventário de tópicos de um manual convencional de psicologia do trabalho e das organizações, deveria dedicar um sub-capítulo especial a esse tipo de complexo cooperativo como Mondragón, porque esses manuais tratam exclusivamente da organização capitalista de trabalho e das relações de trabalho capitalistas em sentido estrito. Mondragón é um bom modelo de referência para as novas empresas autogestionárias que estão surgindo no Brasil e na América do Sul em geral, primeiro por trazer-nos a idéia de que uma empresa como ela tenha sobrevivido e se desenvolvido por todo esse tempo e, além disso, goza de boa saúde. Isso, por um lado, significa que existe um modelo alternativo de organização do trabalho ao capitalismo tradicional. De outro lado, significa que alguns processos que, de modo simplista, consideramos subprodutos das condições e das relações capitalistas de produção, transcendem esse sistema. Esse é o caso da flexibilidade. A flexibilização (salarial, de horários etc.) pode ser vivida de forma mais o menos diferente numa empresa capitalista e numa empresa não capitalista ou não propriamente capitalista. Também pode se falar dos temas da saúde ocupacional. Em Mondragón também existe gente que se estressa pelo trabalho. Portanto, não podemos jogar a culpa de tudo no capitalismo abstrato, mas sim em determinadas características do entorno, ao tipo de trabalho, às exigências (poderíamos dizer auto-exigências) de produção, de rentabilidade, de benefícios. O que me seduz mais no caso Mondragón é, em primeiro lugar, que é possível e viável, o que é um motivo permanente de reflexão. Cada salto qualitativo que fazem para se expandir fora de sua localidade e de funcionar como uma corporação pode ser visto como uma traição a suas origens – ou como competir com o capitalismo em seu próprio terreno –, mas também outra leitura é possível, qual seja, a de que ou fazem isto ou fecham. Talvez, num mundo como o atual, o menos viável seja permanecer num lugar sem se mover. Pode ser que o segredo seja esse. Nesse sentido, vejo Mondragón como uma experiência sugestiva e relevante em termos teóricos e sociais.

Leny: Aqui no Brasil tivemos, a partir da década de oitenta, uma articulação importante do movimento sindical e de alguns setores dos serviços de saúde pública, que construiu o movimento de Saúde do Trabalhador. Era o momento do ressurgimento dos movimentos sociais na cena pública, momento de abertura política, e os sindicatos, vários sindicatos de trabalhadores, tomaram alguns temas que comporiam a sua agenda de atuação. Isso não significa que esse tema, dentre vários outros, não fossem problemas sentidos pelos trabalhadores, mas o fato é que, com a abertura política eles puderam tornar-se públicos. A compreensão que se forjou é a de compreender o processo saúde-doença como socialmente determinado, a qual conta com o aporte da Saúde Coletiva e da Medicina Social Latinoamericana, que conta com importantes autores mexicanos, argentinos, equatorianos e brasileiros. Para essa leitura, toma-se como categoria central o processo de trabalho e ela tem na leitura materialista-dialética sua sustentação. Por tomar o materialismo-histórico como referência privilegiada, tal leitura compreende que pensar na melhoria de condições de trabalho e saúde implica que os próprios trabalhadores sejam atores na definição de problemas e na definição do que deve ser melhorado. Tem como foco a busca da prevenção, mas a busca da prevenção não através de uma adaptação melhor do trabalhador ao trabalho, mas da mudança nas condições e na organização do trabalho, de modo que as pessoas consigam trabalhar de um jeito mais adequado para elas. E eu acredito que esse movimento da Saúde do Trabalhador tenha também sido um mote, um tema, que canalizou diversas outras questões relativas à dignidade do trabalho. Na Espanha há, ou houve, em algum momento da história uma preocupação específica dos sindicatos com esse tema? Você conhece como se deu ou como se dá, se existe alguma vinculação com órgãos públicos, órgãos de saúde?

Blanch: Sim. Algo parecido, mas não como resultado de um movimento muito concreto e identificável ou de uma determinada orientação filosófica ou ideológica, mas como efeito de um processo histórico complexo em que se combinam várias coisas. Até agora, em praticamente todo o mundo, a profissão médica teve o monopólio da gestão da saúde individual e coletiva e essa corporaçao apenas foi “convidando” a colaborar com ela outras especializações e perspectivas, quase entrando pela porta de trás e em conta-gotas. Apesar desse condicionante, atualmente há um desenvolvimento em direção a uma nova divisão de responsabilidades entre disciplinas e profissionais no campo da saúde no trabalho: entram cientistas do trabalho, de relações de trabalho e da administração, da psicologia, da assistência social, da ergonomia, da terapia ocupacional etc. que facilitam uma abertura interdisciplinar e uma leitura não exclusivamente patologista da relação saúde-trabalho. Os profissionais da medicina e da enfermagem continuam monopolizando o que seja o tratamento de sintomas físicos e a prevenção desses aspectos na higiene e na salubridade do trabalho e também se deixa aos engenheiros a prevenção do riscos que sejam mais de estruturas físicas. Mas, nos últimos dez anos, na Europa em geral e na Espanha em particular, emergiu com muita força a questão dos fatores de risco psicossocial. Risco remete a um campo multidisciplinar no qual figuram saúde (física, mental, social) e acidentes que não só causam problemas às pessoas, mas que também envolvem custos monetários para as companhias seguradoras. Assim, a prevenção de riscos já não é um capricho de sindicatos, de pessoas isoladas ou de disciplinas que buscam um espaço para a intervenção. Hoje, a vertente médica e somática do que são os riscos do trabalho continua ocupando um espaço importante, mas a investigação indica o caráter emergente dos fatores psicossociais do risco no trabalho. Nos estudos dos últimos anos, esses fatores aparecem como importantes para as doenças no trabalho. De acordo como o terceiro e último informe quinqüenal, o European Survey on Working Conditions, elaborado pela European Foundation5, 28% da amostra declara trabalhar sob efeito do estresse, que atribuem principalmente à intensificação do ritmo e à flexibilização das condições de trabalho. Somente as dores nas costas alcança níveis mais elevados (29%), mas essas dores nas costas em geral, das cervicalgias até as lombalgias, podem ser consideradas doenças puramente físicas ou somatizações de tensões psicosociais no trabalho. O burnout alcança 23%. E ainda temos a fadiga geral, dores de cabeça, depressão e a variedade de problemas psicossociais associadas a circunstancias de assédio moral ou sexual ou de discriminação de gênero ou de raça. Frente a essas evidências reiteradas e aos desafios que comportam, a medicina e os enfoques meramente “clínicos” em geral estão tão desamparados quanto a engenharia e aparece muito claramente a necessidade de conhecer melhor o assunto e de abrir o campo da saúde no trabalho para outras disciplinas e para enfoques mais “sociais”. Nos últimos anos, eu mesmo ministrei cursos de formação para dirigentes sindicais sobre prevenção de riscos psicossociais e atualmente sou orientador de uma tese de doutorado, sobre essa questão, de um médico responsável do departamento de prevenção de riscos laborais num grande hospital geral. Uma das instituições que estão entrando na moda na Europa são os observatórios de qualidade de vida no trabalho dentro das organizações, nas quais participam o pessoal técnico do serviço de prevenção de riscos, o pessoal dos sindicatos e outros. Dentre eles, pode-se incluir, segundo a cultura de cada centro, profissionais da medicina, da assistência social, da psicologia, da sociologia etc. Portanto, já se adota um enfoque muito mais interdisciplinar, de maneira que, provavelmente, chegamos ao mesmo ponto por caminhos diferentes. Hoje, na Espanha, o discurso e a prática da prevenção de riscos no trabalho vão sendo referidos à saúde de coletivos mais do que à individual, mais na prevenção do que na cura e na reabilitação. Acredito que nós chegamos por esse outro caminho, mas a nossa preocupação dominante é um pouco a mesma que a de vocês.

Leny: Blanch, você está no Brasil na condição de professor visitante e o seu programa possibilitou que trabalhasse em diversas regiões do Brasil. Você esteve no Nordeste, em João Pessoa e em Natal, no Sul, em Porto Alegre, no Planalto Central, em Brasília, e agora você está no Sudeste, em São Paulo. Neste período que você está no Brasil, o que você pôde aprender sobre o trabalho num país como o nosso, tendo essa diversidade de aberturas e janelas.

Blanch: Aprendi muitas coisas. Existem sociólogos que percebem o Brasil como uma espécie de laboratório de ensaio social do que está acontecendo no mundo sob muitos aspectos. Por isso eu vim. Nos anos noventa, estive aqui um mês como turista e pensei que para alguém que estuda fenômenos e processos sociais este era um bom país para voltar e para vir, e vim acima de tudo para estudar. O Brasil encarna uma questão que é global e que aqui é alarmante, escandalosa e, atrevo-me a dizer, que “clama a justiça divina”. Aprendi, sobrevoando o território em avião, que o Brasil é um país com possibilidades para que todos os seus habitantes (e também potenciais imigrantes de outros países) vivam muito dignamente. Também aprendi, caminhando pelas ruas das cidades e de algumas das suas favelas, que isso não acontece para uma parte significativa de brasileiros. Neste pais existe gente que vive com uma qualidade de vida invejável e muita gente que vive muito mal. No Brasil, as riquezas e todos os recursos que a natureza oferece não produzem efeitos automáticos no bem-estar coletivo da sua população. E aprendi que essas desigualdades e contradições sociais que comportam a pobreza e a exclusão se refletem e se condensam na estrutura social do trabalho. A situação sócio-laboral do Brasil é uma espécie de síntese entre o passado, o presente e o futuro; quer dizer, tem muitos elementos do passado social e neofeudal ou neocolonialista, da fase que uma das minhas doutorandas6 chama de “portuguezação” do Brasil, pois tem componentes da “norte-americanização” do Brasil da época fordista e é isto que lhe dá uma imagem presente de certa modernidade e de país normal. Existe também muito do futuro, no sentido que a flexibilidade que está irrompendo no mercado do trabalho global, aqui é algo crônico, mas talvez esteja se intensificando, embora aqui seja normal sob muitos aspectos. Portanto, o interessante como pesquisador, é ver (e lamentar como ser humano) que aqui se desenvolveram de uma maneira aparentemente “espontânea” e “quase natural”, mas motivadas por estruturas sociais, algumas formas históricas de enfrentar essa situação. Formas de procurar a sobrevivência ante um sistema que não a situa de forma fácil. O Brasil é um país com pouco Estado, com a estrutura política e os personagens políticos que tem e com demasiadas promessas não cumpridas e oportunidades não aproveitadas, mas com muitos movimentos sociais, dos quais algumas vezes emergem experiências sugestivas e interessantes, como os movimento dos sem-terra, da economia solidária em geral e das empresas recuperadas em particular. Eu tinha notícias de empresas recuperadas na Argentina e no Uruguai, mas vejo que aqui existe uma boa tradição nessa área. Além disso, o Brasil tem alguma coisa que apenas podemos “descobrir” os que o vemos de fora. O fato singular e paradoxal de um pais tristemente sub-campeão mundial em desigualdade e discriminação social que é, ao mesmo tempo, acredito, candidato ao pódio em capital social. Talvez facilitado pelo clima, que permite desenvolver um caráter forjado a partir de muita vida na rua, todo o ano e todos os anos da vida. Este país de grandes distâncias entre ricos e pobres parece ter ao mesmo tempo um bom tecido de redes sociais. Os mais ricos quase não são vistos – em São Paulo, vão de helicópteros [risos] –, mas os “do meio” e os “de baixo” compartilham desde a paixão pelo futebol até coisas mais sérias. Na rua se vê um ambiente aparentemente melhor do que seria esperável numa sociedade com tantas tensões sociais. Em todo esse tempo vi pouca gente discutindo ou brigando, demorou quatro meses para que eu visse um brasileiro levantando a voz e falando agressivamente (isso para algumas coisas é bom e para outras talvez não). Então, eu penso que essa característica social é uma variável muito importante para pensar nas possibilidades de um modelo (exportável) de gerenciar a saída da crise ocasionada pela política neoliberal do trabalho. Há uns anos, depois de uma estada no Brasil como a que eu realizo agora, Ulrich Beck7 criou a imaginativa e discutida expressão “brasilização do Ocidente” para referir-se a uma injeção de informalidade na estrutura laboral pós-fordista e a uma lógica do processo implacável de precarização das condições e das relações de trabalho que se produz em escala mundial. Esse sociólogo alemão pensa que o Brasil está se convertendo no modelo geral de referência para o desenvolvimento europeu e norte-americano. Trata-se, disse ele, de uma involução histórica do velho ideal “europeu” de sociedade do trabalho e do bem-estar, baseado no pleno emprego estável como fundamento do progresso econômico, social e político. Constitui, sem duvida, uma metáfora sugestiva, mas que inevitavelmente simplifica a visão do processo referido: o passado europeu e o presente do Brasil não podem ser equiparados ao presente nos Estados Unidos, que é extremamente individualista e socialmente desvertebrado. O presente brasileiro mostra uma sociedade, malgré tout, menos esgarçada e, eu acho, com mais capital social. Por isso, neste aspecto social, talvez melhor equipada para enfrentar o futuro de incerteza e de insegurança que caracteriza a irrupção da sociedade do risco global. A sociedade norte-americana terá um exército mais potente e uma polícia talvez mais onipresente, mas os indivíduos vivem sua vida e seus problemas mais individualmente. Acredito que viver os problemas individualmente é muito mais duro, difícil e complicado do que fazê-lo num país como este, que, apesar de ter uma sociedade extremamente desigual e discriminatória, tem redes de solidariedade mais visíveis. Tudo o que a sociologia e a psicologia social dizem da anomia, das depressões, do isolamento, foram estudados inicialmente, por exemplo, na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos. Eu gostaria mais de ver aqui como se produzem e como funcionam e se metabolizam individual e socialmente esses processos. Com certeza não é bom nem divertido ser pobre e não ter emprego no Brasil, mas acho que, nos Estados Unidos, ser pobre e não ter emprego é viver psicosocialmente pior.

Leny: Quando você fala em capital social você está se referindo ao conceito de Pierre Bourdieu?

Blanch: Estou me referindo em geral a um construto emergente em diversas ciências sociais, que fazem pontuações interessantes, por exemplo, o cientista político norte-americano James Putnam8. O capital social é o conjunto de recursos sociais de que dispõe cada individuo, num momento dado, aquele conjunto de pessoas que todos temos em nossa agenda e que sabemos que podemos ligar e que ajudarão se necessitarmos. Portanto, formam um círculo que ultrapassa o da família.

Leny: Uma rede.

Blanch: Uma rede informal que só existe se a cultivamos, quer dizer, são as pessoas com quem nos relacionamos quase cotidianamente, que vemos no trabalho, no bar da esquina, na rua, falando de futebol, falando da saúde dos filhos. Isso requer um tempo para cultivá-la e mantê-la. É um tempo que nos países anglo-saxões quase não existe. E, ao não existir, não se cultiva e ao não se cultivar, extingue-se. Ao extinguir-se, os indivíduos estão absolutamente sozinhos e, ao estarem sozinhos, as crises são vividas de outra maneira, de forma muito mais profunda e o risco de isolamento em relação a todo o sistema político, social e cultural é mais forte. Trata-se do risco do que a sociologia clássica chama de anomia e do efeito psicológico da depressão, que é uma espécie de reação individual a essa situação social de anomia. Tudo o que sabemos dessas sociedades do norte, provavelmente e afortunadamente, não se pode aplicar automaticamente e da mesma maneira a países como Brasil. E, por mim, tenho vontade de voltar outra vez para explorar mais esse potencial. Os visitantes, que viemos de outra galáxia, vemos e valorizamos, mais do que vocês, a sua estereotípica “amabilidade”. É como se vocês tivessem minas de carvão que permitem pegar o minério próximo ao chão e estivéssemos pensando no carvão das minas de outros países, que é preciso ir a muitos metros de profundidade para pegá-lo. Vocês têm “minas sociais” muito boas e não as exploram intensivamente, provavelmente porque ninguém lhes disse que isso é muito bom e que em outros lugares isso é muito útil e muito caro. Eu acredito que se algum dia vocês acertarem em ter um governo e elites à altura do povo, que lhes gerenciem bem as políticas de trabalho e outras políticas sociais, será possível que encontrem um país melhor equipado para enfrentar estes desafios do futuro. Essa é a imagem que para mim é a mais forte. Acredito que o Brasil, se me permitem, não quero ser indelicado, não tem o melhor Estado do mundo, mas tem uma das sociedades com maior potencial do mundo. E isso, acredito, é bom.

Leny: Ok, Blanch, obrigada pela entrevista. Você traz uma vasta experiência em diversas dimensões. Acredito que os leitores dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, terão muito a aprender e sobre o que refletir com o seu depoimento.

Blanch: Obrigado!

 

 

1 Dentre as publicações, destaca-se o livro: J. M. Blanch (1986). Desempleo juvenil e salud psicosocial. Bellaterra: UAB.
2 Blanch, J. M. (1990). Del viejo al nuevo paro. Un análisis psicológico e social. Barcelona: PPU.
3 Blanch, J. M.(Org.). (2003). Teoria de las Relaciones Laborales (vol. 1: Fundamentos. Vol. 2: Desafios). Barcelona: UOC. Blanch, J. M.(Org.). (2005). Psicología del trabalho e de las Relaciones Laborales. Barcelona: UOC.
4 MOW (1987). The Meaning of Working. Londres: Academic Press.
5 European Foundation (2001). Diez años de Condiciones de Trabajo en a Unión Europea. Luxemburgo: OPOCE.
6 Patrícia Martins Goulart.
7 Beck, U. (1999). Um nuevo mundo feliz. La precariedad del trabajo en la era de la globalización. Barcelona: Paidós. Beck, U. (2002). La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo XXI.
8 Putnam, R. D. (2001). The dynamics of Social Capital. Princeton: Princeton University Press.

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