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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. v.11 n.2 São Paulo dez. 2008

 

Manda quem pode, obedece quem tem juízo: prazer e sofrimento psíquico em cargos de gerência

 

Those who are aloud order, those who are smart obey: pleasure and psychic suffering in management positions

 

 

Letícia Laurino Almeida; Álvaro Roberto Crespo Merlo

Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva abordar o tema do prazer e do sofrimento psíquico presentes no trabalho dos gerentes, dando-lhes voz para falar sobre o conteúdo do seu trabalho, as relações que atravessam sua rotina profissional e o papel que o trabalho desempenha em suas vidas. Assim, primeiramente encontra-se um referencial teórico sobre o tema e após isso são apresentados os resultados de uma pesquisa realizada através de entrevistas semi-estruturadas com 20 gerentes. Os resultados foram tratados segundo o método da análise de conteúdo e apontam uma grande demanda por autonomia e reconhecimento, o ressentimento pelo tempo em demasia dedicado ao trabalho, o desequilíbrio entre vida pessoal e profissional e chamam a atenção para a importância das relações interpessoais no trabalho como algo capaz de fazê-los pender para uma vivência positiva ou negativa. Concluiu-se, então, que é bastante sutil a fronteira entre o prazer e o sofrimento no trabalho e que encontrar esse ajuste deve ser o grande desafio para os cientistas da administração e do trabalho, para os indivíduos que trabalham e para as organizações, que precisam assumir que os efeitos de suas ações passam pela saúde física e mental dos trabalhadores e influenciam a própria forma como a sociedade está organizada.

Palavras-chave: Psicologia, Trabalho, Gerente, Prazer, Sofrimento.


ABSTRACT

This article aims to approach the theme of psychic pleasure and suffering present in the managers work, allowing them to talk about their work contents, about the relations involved in their professional routine and about the role work represents in their lives. Thus, first is provided a theory basis and then are presented the results of a research developed through semi-structured interviews with 20 managers. Its results were treated according to the content analysis method and indicate a great demand for autonomy and recognition, the resentment for the too much time dedicated to work, the unbalance between personal and professional life and call the attention for the importance of the interpersonal relations at work as a factor that can make it tend to a negative or a positive experience. As a conclusion, it was founded out that the frontier between pleasure and suffering at work is a very thin one and that finding its adjustment should/might be the big challenge for management and work scientists, for working individuals and for organizations, that must admit that the effects of its actions affect workers physical and mental health and have influence on the way society is organized.

Keywords: Psychology, Work, Manager, Pleasure, Suffering.


 

 

Introdução

O homem é um ser genérico, que faz a si mesmo ao fazer o mundo, e é um ser transcendente, só se realiza quando se torna um outro. O homem também é um ser que produz significados. Onde buscar a compreensão do homem se não na forma como o homem produz sua própria vida? O trabalho é o momento significativo do homem, é a possibilidade da felicidade, da liberdade, da loucura e da doença mental (Codo, Sampaio & Hitomi, 1993, p. 267).

Acredita-se que a citação acima, emprestada de Codo, Sampaio e Hitomi (1993), apresenta de maneira sintética, porém abrangente, uma possível justificativa para os esforços daqueles que se dedicam à pesquisa do tema trabalho, pois entender a forma como o Homem significa sua atividade produtiva possibilita uma maior compreensão do próprio Homem, uma vez que, construindo através dela, ele, ao mesmo tempo, também constrói a si mesmo.

Essa atividade produtiva (o trabalho) pode proporcionar vivências tanto de prazer, quanto de sofrimento psíquico, uma vez que, a partir da forma como é organizado e das relações que tomam forma em seu espaço, apresenta tanto situações que libertam e emancipam, quanto experiências que levam à opressão e à alienação.

É essa relação do trabalho com o prazer e com o sofrimento que será abordada neste artigo, no qual, em função da própria experiência profissional de um de seus autores, optou-se por investigar essa relação, de forma mais específica, em um grupo de gerentes.

Afinal, acredita-se que esse grupo vivencia uma situação peculiar, uma vez que a figura do gerente representa um intermediário na estrutura organizacional e, assim, alguém que tem relativa liberdade para mandar, mas que também precisa obedecer. Tal estudo foi a base de uma dissertação de mestrado, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Então, a fim de conferir atenção a esse grupo, o estudo aqui apresentado propôs-se a investigar as condições e relações que, presentes em seu trabalho, fazem-no pender para o prazer ou para o sofrimento. Dessa forma, o presente artigo apresenta de forma resumida algumas considerações teóricas que embasaram o estudo, a metodologia utilizada na sua condução e seus resultados, a fim de contribuir para o conhecimento acerca do trabalho, fornecendo subsídios qualitativos para que uma maior compreensão do tema – e, quem sabe, do próprio Homem – seja possível.

 

Objetivos

Teve-se como objetivo geral apontar vivências de prazer e de sofrimento psíquico relacionadas às atividades profissionais de um grupo de indivíduos que ocupam cargos de gerência no âmbito administrativo de grandes empresas privadas.

Para que isso fosse possível, buscou-se, enquanto objetivos secundários que nortearam a busca pela identificação dessas vivências: definir o conteúdo do trabalho dos sujeitos entrevistados a partir de seus relatos, compreender o papel do trabalho na vida dos profissionais pesquisados e identificar as condições e relações de trabalho que atravessam sua rotina.

 

Metodologia utilizada

A coleta de dados da pesquisa de campo que norteou este estudo foi realizada a partir de vinte entrevistas semi-estruturadas, sendo que privilegiou-se a fala dos indivíduos expressa nestas ocasiões como material para análise.

Os sujeitos do estudo foram vinte trabalhadores (formalmente contratados) que ocupavam posições de nível gerencial em empresas privadas de grande porte, sendo que houve a participação de um gerente de cada empresa. Esse grupo foi composto por gerentes que tinham suas bases em três localidades do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, Rio Grande e Caxias do Sul.

Cabe ressaltar aqui que o convite para que participassem da pesquisa foi feito aos próprios sujeitos, sendo que não houve neste estudo o envolvimento direto das empresas em que trabalhavam na época das entrevistas.

No que se refere à distribuição por gênero, tem-se que o grupo de entrevistados foi composto por 60% de sujeitos do sexo masculino e 40% do sexo feminino. Já no que se refere à idade dos gerentes entrevistados, 55% encontram-se na faixa entre os 31 e os 40 anos, 25% entre os 20 e os 30 anos, e 20% entre os 41 e os 50 anos.

Para o tratamento e a análise dos dados coletados nestas entrevistas optou-se pelo referencial da análise de conteúdo, à luz de Bardin (1977).

 

Considerações teóricas

O trabalho e seus atravessamentos

São muitos os teóricos que se dedicaram a investigar e aprofundar as questões sobre o trabalho e seus atravessamentos na vida de diferentes categorias profissionais. Alguns desses teóricos foram abordados na dissertação de mestrado que deu origem a este artigo, no qual, devido às limitações óbvias de espaço, serão abordadas somente os pontos indispensáveis ao entendimento dos resultados da pesquisa que será apresentada oportunamente.

Um desses atravessamentos que merece ser comentado reside na relação entre o trabalho e a família. Sobre esse ponto, salientam-se as considerações de Seligmann-Silva (1994) quanto à questão temporal presente na relação trabalho-família: a autora ressalta que um maior tempo dedicado ao trabalho necessariamente resulta em menor tempo para a família, bem como prejudica a qualidade desse convívio em função do cansaço. Por esse motivo, também Gasparini (1996) defende que se faz necessária a conciliação entre o tempo do trabalhador e o tempo da organização como um fator determinante para sua qualidade de vida.

Seligmann-Silva (1994) alerta, ainda, que a própria tensão presente no trabalho também afeta o núcleo familiar, que é atingido pela programação das jornadas e pelos calendários da organização com pouca antecedência, prejudicando o lazer e os planos familiares em prazos mais extensos.

Assim, a preocupação da autora parece residir nos conflitos que se criam a partir dos ressentimentos criados por essas marcas que o trabalho pode deixar no seio da família, provocados por situações de desgaste mental de um dos membros, pela falta de paciência demonstrada pelo trabalhador cansado, pelo seu isolamento (voluntário ou por iniciativa da família) e pelo desconhecimento, por parte da família, das condições a que esse membro está submetido no âmbito de seu trabalho.

Já quando se fala sobre um outro atravessamento, a relação entre o trabalho e o tempo, é importante mencionar que Antunes (1999) alerta para o fato que o tempo, hoje, é o elemento regulador, coercitivo e disciplinador da atividade humana, de cuja estratégia onipresente não se pode fugir. A ansiedade que se experimenta em relação à coerção do tempo faz com que se busquem satisfações imediatas.

O que vale então é o momento presente, pois, conforme afirmam Bauman (2000) e Sennett (2002), a satisfação adiada perdeu o sentido em um contexto de mudanças constantes e inesperadas, e de conseqüentes sobressaltos: se não se pode esboçar o futuro, se não se tem garantias de que o amanhã nos permitirá conquistar algo, é preciso que se assegure hoje o que se pretende, antes que outros o façam e nos privem das possibilidades de conquista.

O elemento inesperado, inclusive, é algo que Sennett (2002) destaca ao afirmar que a instabilidade e a incerteza, que sempre estiveram presentes na história humana, nos dias atuais aparecem mesmo sem nenhum desastre iminente: a tensão está ao lado dos indivíduos diariamente, constituindo o que o autor denominou ansiedade trivial.

E, nesse sentido, as experiências passadas não servem de proteção para as novas situações, que surgem revestidas de roupagens muitas vezes inéditas até para os mais experientes. No âmbito do trabalho, essa busca da satisfação imediata e da sobrevivência em um ambiente mutante, muitas vezes exige esforços que demandam dedicação total e a própria supressão de valores afetivos e éticos por parte do trabalhador, fomentando o individualismo em escala social. Afinal, se as possibilidades de sobrevivência em um contexto tão turbulento são escassas, instala-se o “vale tudo”, o “salve-se quem puder”: não há garantias e, portanto, não há espaço para padrões éticos, para a cooperação ou a temperança.

Uma outra relação importante, atrelada, muitas vezes, aos demais atravessamentos, refere-se a interação entre o trabalho e a saúde.

Sobre tal relação, Dejours, Dessors e Desriaux (1993) mencionam que quando o indivíduo consegue reagir às frustrações que enfrenta nos ambientes em que transita, como o de trabalho, normalmente dando vazão aos sentimentos que tais frustrações desencadeiam, elas não significam uma ameaça à sua saúde. Porém, na impossibilidade de isso acontecer, o sujeito encontra-se em uma situação de risco de abalo psicológico, principalmente se a exposição a essas situações for recorrente.

Esse abalo pode não ser somente de ordem psíquica, pois, como comenta Dejours (1994), “observações clínicas mostram bem que há uma circulação entre os setores psíquico e somático. (...) O medo, a angústia no trabalho, mas também a frustração e a agressividade, podem aumentar as cargas cardiovasculares, musculares, digestivas etc.” (p. 29).

Chanlat e Bédard (1996) também mencionam que as realidades psíquicas, sociais e fisiológicas de um indivíduo não estão desvinculadas uma da outra, mas se encontram sim em constante interação. Por isso, defendem que “o sofrimento psíquico tem o mais das vezes uma contrapartida física” (p. 136).

Assim, Dejours et al. (1993) salientam, ainda, que a doença surge quando algo penoso, de ordem psíquica ou afetiva, ocorre na vida de um indivíduo, trazendo conflitos ou impasses insustentáveis. Porém, afirmam que nem toda angústia experimentada pelo indivíduo é negativa: aquela angústia que o impulsiona em direção à ação, que está presente porque há uma luta onde ele vê sentido, permite-lhe então construir um espaço em que é possível dominá-la.

Mas, quando isso não ocorre, a conseqüência física vem na forma da mobilização corporal através da liberação de adrenalina na corrente sanguínea, que deixa o corpo em estado de prontidão para possíveis movimentos de defesa ou fuga, ao mesmo tempo em que provoca a aceleração cardíaca. Esse estado também é marcado pela secreção de corticóides, que contraem o sistema vascular e aumentam dessa forma o risco de hipertensão, acidentes cardíacos e aneurismas, bem como contribuem para a baixa da condição imunológica do indivíduo, deixando-o vulnerável a agentes agressores externos.

O que demonstra que, vivências de trabalho marcadas por atravessamentos diversos, quando negativas e não elaboradas, podem conduzir o indivíduo ao risco de desenvolver doenças de ordem física e psíquica.

O trabalho dos gerentes

Também sobre questões relativas ao trabalho, porém, de forma mais específica, sobre o trabalho dos gerentes, Lima (1996), em Os equívocos da excelência: as novas formas de sedução na empresa, apresenta importantes contribuições.

Entre elas, vale ressaltar uma consideração observada no estudo que deu origem a essa obra: que a figura do gerente sofre de uma vulnerabilidade ainda maior do que as classes de trabalhadores mais operacionais, uma vez que estas últimas, ao entrarem em contato com as ideologias da organização, contam com a mediação do gerente como alguém que filtra a influência dessa ideologia. Porém, esse mesmo papel de filtro não é exercido, pelo que Lima (1996) constatou, pelos superiores hierárquicos dos gerentes.

Desse modo, a vulnerabilidade a que a autora se refere em relação aos gerentes que pesquisou, ocorre justamente por esse papel de intermediador da ideologia, aliado a outros fatores que acentuam sua fragilidade, como: “o extremo individualismo, a grande fragilidade psíquica, a redução considerável senão a ausência de relações verdadeiramente afetivas, característicos dessa categoria” (Lima, 1996, p. 184).

Lima (1996), inclusive, afirma que essa sujeição à ideologia e aos interesses da empresa, em detrimento dos seus próprios interesses, é um pré-requisito para aqueles que desejam ocupar um posto de chefia. Ou seja, a sujeição consiste em um preço a pagar pelas contrapartidas que prometem os cargos de gerência, principalmente na forma de benefícios materiais.

Também Nakayama (1987), em sua tese de doutorado, dedicou especial atenção ao trabalho desse grupo. A autora destaca, por exemplo, que alguns incômodos relatados por gerentes que estudou estão relacionados ao convívio e à demanda por um talento especial para o jogo de cintura nessas interações. O que remete às palavras de Candeias (citado por Nakayama, 1997), quando esse autor menciona que ser responsável por pessoas é muito mais estressante do que ser responsável por coisas. Sobre tais interações, a autora afirma ainda que o

que se pode constatar é que a administração intermediária pode ser uma das áreas mais frustrantes da vida da organização. Gerenciar pessoas é uma tarefa muito difícil. Exige alto grau de maturidade e equilíbrio pessoal, fora o profundo conhecimento da natureza humana. E mesmo dotado de tais qualidades o gerente pode e costuma ser levado a um grande desgaste, em função das mudanças que ocorrem no ambiente organizacional e social (Nakayama, 1997, p. 44).

O cargo de gerente

Conforme indicam as constatações de Nakayama (1997), lidar com pessoas parece ser uma das características mais marcantes do trabalho dos gerentes. Então, para um maior entendimento do que envolvem esses cargos, é importante também esboçar uma definição das demais atividades inerentes à função de gerência.

De forma geral, as posições de gerência consistem em atividades de planejamento, organização, direção e verificação daquilo que foi executado, para que sejam atingidos os objetivos da área sob a administração do gerente – o que contribui para o alcance dos objetivos da própria organização.

Esse panorama vai ao encontro do que comentam Codo et al. (1993), pois para eles é função da gerência administrar a força de trabalho, bem como os demais materiais necessários à produção de capital, de forma a maximizar o desempenho dos recursos.

Mas, na busca pelo alcance dos objetivos, encontra-se uma outra característica importante desses cargos: o gerente atinge os objetivos sob sua responsabilidade através do trabalho de terceiros. Ou seja, para que as metas com as quais se comprometeu sejam atingidas, é necessário que o gerente possua a habilidade de coordenar o trabalho de outras pessoas – principalmente o de seus subordinados.

Porém, nesse sentido, Chanlat e Bédard (1996) afirmam que é importante salientar que no meio administrativo privilegia-se mais as qualidades técnicas do responsável por determinada área da empresa do que suas qualidades humanas necessárias a esta gestão e a manutenção do clima da área sob sua gestão.

Mas essa habilidade de um superior hierárquico, assim como o ambiente de trabalho decorrente dela, são fatores determinantes para o desenvolvimento, ou não, das pessoas sob sua gestão. Pois, como afirmam Mazzilli e Lunardi Filho (1995), baseados em Chanlat e Bédard, “parece não existir nada mais eficaz do que uma outra pessoa que, por meio de seu olhar, gesto ou comentário, auxilie o desenvolvimento de um indivíduo ou, ao contrário, aniquile a realidade de sua existência” (p. 22).

Ainda sobre as funções de um gerente, Mintzberg (1986) também ressalta a tarefa de fazer contatos, muitas vezes externos à relação com seus subordinados e superiores, como com os seus pares, clientes e fornecedores. Esses contatos objetivam, segundo o autor, a obtenção de informações, que podem auxiliar no desempenho de sua função.

Assim, como se percebe, lidar com pessoas é realmente algo inerente aos cargos de gerência. E essa característica reside, principalmente, na interação com as pessoas subordinadas. Nesse sentido, também Mintzberg (1986) ressalta o fato de que o gerente é responsável pelo trabalho das pessoas que formam a unidade sob seu comando. Essa responsabilidade engloba ações como o treinamento desses funcionários, sua motivação e seu alinhamento aos objetivos da organização.

Porém, a fim de enriquecer o panorama sobre a função de gerência, esse mesmo autor acrescenta que a responsabilidade dessa função também estende-se às inovações e às adaptações ao meio organizacional, à alocação de recursos necessários a essas ações, à solução de problemas e conflitos, à tomada de decisões e às negociações.

O prazer e o sofrimento no trabalho

Ao se propor estudar a presença de prazer e sofrimento psíquico ligados ao trabalho, a dissertação de mestrado que deu origem a este artigo norteou-se pelas concepções dejouriana de prazer e sofrimento psíquico.

Sobre o sofrimento, primeiramente, Dejours (1987) fornece a seguinte definição:

o sofrimento começa quando a relação homem-organização do trabalho está bloqueada; quando o trabalhador usou o máximo de suas faculdades intelectuais, psicoafetivas, de aprendizagem e de adaptação. Quando um trabalhador usou de tudo de que dispunha de saber e de poder na organização do trabalho e quando ele não pode mais mudar de tarefa: isto é, quando foram esgotados os meios de defesa (...) a certeza de que o nível atingido de insatisfação não pode mais diminuir marca o começo do sofrimento (p. 52).

Assim, Dejours (1987) defende que, quando insatisfeito em relação ao conteúdo significativo da tarefa, o trabalhador experimenta um sofrimento mental que pode, inclusive, levá-lo a desenvolver doenças somáticas.

Mas o autor argumenta ainda que, segundo suas pesquisas, o trabalho também pode ser fonte de prazer e, portanto, “um possante instrumento a serviço da emancipação, bem como do aprendizado e da experimentação da solidariedade e da democracia” (Dejours, 1999, p. 141). Afirma também que o trabalho pode ser “um espaço de construção do sentido e, portanto, de conquista da identidade, da continuidade e historicização do sujeito” (Dejours & Abdoucheli, 1994, p. 143).

Para Dejours (1994), o bem-estar e a satisfação ligados ao trabalho advém, principalmente, de uma livre articulação do sujeito com o conteúdo da tarefa: quando há liberdade de escolher o trabalho a executar e de expressar-se através da atividade de trabalho, o autor afirma que esse trabalho é um fator equilibrante, pois permite a descarga da energia psíquica do trabalho, podendo até levar ao relaxamento.

Isso porque, como afirma Merlo (1998), é sempre necessário que o trabalhador utilize seu conhecimento, sua capacidade inventiva e sua inteligência para adaptar o que estiver prescrito, em termos de atividade, às reais condições de executá-la. Essa inteligência é de um tipo específico, obtida pelas experiências individual e coletiva, e a impossibilidade de exercê-la, como afirma Merlo (1998), inevitavelmente conduz ao sofrimento psíquico.

Afinal, como afirmam Codo et al. (1993), “trabalhar é impor à natureza a nossa face, o mundo fica mais parecido conosco e, portanto, nossa subjetividade depositada ali, fora de nós, nos representando” (p. 190). Essa possibilidade, então, constitui-se em um importante fator de prazer e satisfação no trabalho.

Assim, na concepção dejouriana, o sofrimento tende a aumentar à medida que maior é a rigidez da organização do trabalho, pois assim o trabalho é menos legível ao indivíduo e, portanto, é mais difícil modificá-lo. As estruturas e normas rígidas, ao tolherem a liberdade do exercício de alguma autonomia, podem tornar-se fatores de sofrimento.

Outra questão importante, quando se pensa a insatisfação e o sofrimento ligados ao trabalho, é mencionada por D’Amorim (1998). Segundo a autora, a exposição dos indivíduos a situações de tensão afeta não só a produtividade, mas também a sua satisfação em relação à organização.

Segundo a autora, um dos fatores capazes de provocar tensão é a sobrecarga de papéis no trabalho. Essa tensão configura-se pela percepção do trabalhador de que lhe são demandados atenção e rendimento maiores do que sua capacidade ou do que o tempo de que dispõe. Assim, existe uma estreita relação entre a sobrecarga de trabalho e a insatisfação em relação a ele.

A mesma autora descreve também outros tipos de tensões ligadas ao papel do profissional no âmbito da organização, como o conflito e a ambigüidade de papéis, e afirma que são encontrados freqüentemente em gerentes de nível médio. Isso ocorre justamente por sua posição hierárquica intermediária, uma posição de conflito entre seus superiores e seus subordinados, tendo de lidar com os limites de seu poder.

Dejours e Abdoucheli (1994), porém, advertem que encontrar somente o prazer, e fugir totalmente ao sofrimento no trabalho, não é algo possível: na interação entre a história particular de cada indivíduo e a organização do trabalho surgem conflitos que tornam inevitável deparar-se com ele.

Mas, como defendem Dejours et al. (1993), pensar a relação trabalho-sofrimento não se trata de escolher entre trabalhar ou não. Para eles, trata-se então de questionar qual trabalho se quer na manutenção do bem-estar e da saúde. E, idealmente, esse trabalho seria aquele em que seria possível empregar-se as aptidões psíquicas e descarregar a carga (energia) psíquica – algo que soa próximo ao conceito de autonomia.

Além da insatisfação quanto ao conteúdo da tarefa e à impossibilidade de exercer certa autonomia para adaptá-la, outros fatores são destacados por Dejours (1999) como sendo capazes de desencadear sofrimento. Como exemplo, o autor cita as relações sociais inerentes ao trabalho. Segundo ele, o ambiente hostil e as relações carentes de cooperação também são capazes de desencadear processos de sofrimento.

Também a falta de reconhecimento é algo que o autor admite como um fator de sofrimento. Uma vez que grande parte dos profissionais empenha-se em empregar esforço e dedicação em sua atividade de trabalho, esperam o reconhecimento por tal empenho, bem como pelo fruto de seu trabalho. Dessa forma,

o reconhecimento não é uma reivindicação secundária dos que trabalham. Muito pelo contrário, mostra-se decisivo na dinâmica da mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade no trabalho (o que é classicamente designado em psicologia pela expressão “motivação no trabalho”) (Dejours, 1999, p. 35).

Porém, o autor adverte que “embora faça parte das expectativas de todos os que trabalham, o reconhecimento raramente é conferido de modo satisfatório” (Dejours, 1999, p. 35).

Então, sua preocupação quanto a essa constatação reside no fato de que o reconhecimento é capaz inclusive de conferir sentido aos desconfortos acarretados pelo trabalho, pois reconhecer o esforço empregado na atividade implica reconhecer os sentimentos que ali também estão envolvidos, como os medos, as decepções, as angústias. Assim, Dejours (1999) argumenta que o reconhecimento constitui-se em um retorno ao investimento subjetivo empregado na atividade.

Esse investimento subjetivo dá-se, em grande parte das vezes, no emprego da criatividade na solução de problemas e, quando isso é permitido e reconhecido, acarreta o fortalecimento da identidade, dando um significado válido ao sofrimento.

Assim, conforme apontam Mazzilli e Lunardi Filho (1995), pode-se observar que o prazer associado ao trabalho é fruto do sofrimento nele existente, uma vez que situações que causam descontentamento ao trabalhador representam uma provocação para que utilize suas habilidades para adequar a realidade de trabalho de forma que lhe traga satisfação.

 

Resultados

A partir dos pressupostos teóricos sucintamente abordados acima, são apresentados a seguir os resultados da pesquisa de campo que deu forma à dissertação de mestrado que originou este artigo. Os resultados estão agrupados conforme os objetivos a que esta pesquisa se propôs.

O conteúdo do trabalho

A função mais citada pelos gerentes como inerente ao cargo foi a gestão de pessoas. Essa gestão, segundo expressaram, consiste em monitorar e acompanhar as atividades de suas equipes, fornecendo recursos e informações necessários para seu trabalho, coordenando esforços e canalizando-os para os objetivos da organização (ou da unidade) e ocupando-se de propiciar um ambiente harmonioso para que o trabalho possa fluir de forma eficiente. Nesse ponto, como nos demais, verifica-se que aquilo que afirmam os teóricos utilizados neste artigo sobre o cargo de gerência encontra respaldo nas descrições dos gerentes sobre as suas funções.

Segundo os entrevistados, o contato com outros públicos também é uma atividade inerente à suas funções. Esses outros públicos aparecem em seus relatos como sendo, principalmente, clientes e fornecedores.

Além disso, os contatos também envolvem, como destacado por Lima (1996), fazer o intermédio entre os escalões superiores e inferiores ao seu – constatação que será comentada posteriormente.

Outra atividade que os gerentes argumentam ser alvo de sua atenção é a própria administração da área da empresa (unidade, departamento, setor) sob sua responsabilidade. Essa gestão envolve a coordenação das atividades da área, ou seja, a definição de estratégias, a gestão das pessoas (como já comentado) e dos recursos, e o acompanhamento das metas. Esse panorama vai ao encontro do que comentam Codo et al. (1993), pois para esses autores é função da gerência administrar a força de trabalho, bem como os demais materiais necessários à produção de capital, de forma a maximizar o desempenho desses recursos.

Entre todas essas atividades que mencionaram, foi bastante recorrente entre os gerentes, independente da área em que atuavam, a afirmação de que não existe uma rotina em seu trabalho. Segundo eles, sua função é marcada pelo inesperado e pela novidade.

Porém, essa constatação ganha um tom de descontentamento na voz de alguns gerentes, que se ressentem por não poderem exercer o devido planejamento de suas atividades, e, conseqüentemente, de sua vida, em função de necessitarem, a cada dia, dedicar sua atenção a acontecimentos inesperados – no que se observam alguns elementos apontados por Sennett (2002) e comentados anteriormente.

O papel do trabalho

Uma das primeiras evidências a chamar a atenção na pesquisa, quando se procurou compreender o papel do trabalho na vida dos entrevistados, foi o fato de que é praticamente unânime entre os gerentes a afirmação de que o trabalho demanda tempo em demasia:

o trabalho, talvez até incluindo a família, é o que eu dedico a maior parte do meu tempo. Porque a partir do momento que você desperta, você já fica ligado e antes de dormir você tá ligado também. Então, metade do meu tempo desperto, acho que metade do dia de 24 horas, é em função dessa empresa (Ronaldo)1.

Como pode-se perceber na fala acima, os sujeitos afirmam que a disponibilidade para o trabalho, ou para a empresa, ocorre em detrimento de outros interesses pessoais, sendo a família o mais citado. Constatação carregada de culpa, pesar e sofrimento por parte dos gerentes, como observa-se nas palavras de Izabel:

eu trabalho também a noite, então, quase não tem vida familiar, sair com amigos. A noite que eu não trabalho é uma festa, a gente faz janta, toma vinho, porque eu tô aqui com eles. Então, pesa, o trabalho ocupa um peso muito grande na vida da gente. E eu acho que isso tá errado, eu acho que a gente devia poder partilhar melhor o tempo.

Além disso, verifica-se também que, no caso de vários gerentes, a necessidade de estar disponível para o trabalho, ou para a organização, faz com que as opções pessoais sejam afetadas pela vida profissional, como é o caso de Cristina:

hoje eu sou casada há cinco anos, não tenho filhos ainda, mas se tivesse numa outra condição eu já teria filhos. Então, hoje, infelizmente, o meu tempo está sendo dedicado mais para o trabalho, para a minha formação profissional, que para a minha vida particular.

Tais constatações remetem ao que comenta Seligmann-Silva (1994), quando ressalta que um maior tempo dedicado ao trabalho resulta em menor tempo para a família, assim como prejudica a qualidade desse convívio em função do cansaço. Nesse sentido, também Gasparini (1996) alerta sobre a importância de se conciliar o tempo do trabalhador e o tempo da organização, como um fator determinante para a qualidade de vida de um profissional.

Porém, é preciso que se relacione a constatação sobre o tempo dedicado ao trabalho com a importância atribuída a ele pelos sujeitos entrevistados. Questionados sobre o assunto, foi bastante recorrente entre os gerentes o comentário de que o trabalho é fundamental em suas vidas, por ser fonte de prazer, satisfação, inclusão e desenvolvimento/evolução pessoal:

eu acho que o trabalho é o que valoriza o ser humano, (...) ele te permite auto-realização, tu se sente valorizado, você faz parte de um contexto, de uma sociedade, tu tá interagindo com culturas e públicos diferentes (...) ele te permite crescer como ser humano, em todos os sentidos, seja ele social, seja ele pessoal, seja ele inclusive familiar (Roberto).

Cabe ressaltar que a importância do trabalho como fator de sustento também aparece, mas somente nas palavras de um terço dos entrevistados, em meio a outras falas relativas à sua importância, e sempre no sentido de proporcionar subsistência. O que deixa claro que, segundo manifestam os gerentes, os aspectos sociais e subjetivos do trabalho sobressaem-se quando se pensa sobre o papel do trabalho na vida dos indivíduos entrevistados.

Ao mesmo tempo, esses fatores que o tornam tão importante para os sujeitos (como se observa na fala transcrita acima), dão pistas sobre as vivências de prazer que podem ser encontradas na atividade de trabalho, como o fato de sentirem-se incluídos, de gozarem de valor social e de sentirem que há uma evolução pessoal através do ato de trabalhar.

Além disso, procurou-se identificar outras vivências profissionais que determinam experimentações de prazer e sofrimento para os sujeitos estudados, também ligadas ao papel que o trabalho tem em suas vidas. Para isso, propôs-se que pensassem sobre as características que teria o trabalho ideal segundo suas concepções.

Um fator relevante apontado como característico de um trabalho ideal é o fato de que ele possibilitaria uma relação mais equilibrada entre vida profissional e pessoal. Essa manifestação traz uma importante demanda embutida, e os profissionais argumentam que tal equilíbrio seria obtido tanto por permitir que se dedicassem ao trabalho por uma parcela de tempo menor, quanto por permitir que se estressassem menos. Como aponta Izabel:

[trabalho ideal] é aquele (...) com menos carga de trabalho, que não exigisse tanto, menos demanda. Porque tu vai lá, mas tu continua te ocupando fora de lá. Eu tô em casa eu continuo trabalhando, eu durmo tensa, acordo de madrugada pensando nas coisas que eu tenho que fazer no dia seguinte. Essa parte não precisava ter.

Também deve-se ressaltar aqui a importância dada pelos gerentes à presença do reconhecimento como algo indispensável ao trabalho ideal. Essa demanda por reconhecimento surgiu repetidamente em diferentes momentos das entrevistas, tendo sido esse um dos primeiros. Nessa questão, os entrevistados expressaram que o reconhecimento deve existir, principalmente, na forma de investimento no funcionário, ou seja, na valorização e na possibilidade de crescimento dentro da organização.

Porém, é importante mencionar que somente um quinto dos gerentes estudados aponta o trabalho ou a empresa ideal como o seu local de trabalho no momento da entrevista. Essa constatação também não deve passar despercebida pois, embora possa se tratar de uma insatisfação natural e permanente do ser humano com sua condição presente, também aponta para uma lacuna a ser preenchida pelas organizações para que possam contar com profissionais mais satisfeitos.

Condições e relações de trabalho

Também a fim de se compreender os fatores capazes de fazer o trabalho constituir-se como uma experiência de prazer ou de sofrimento, procurou-se aprofundar o entendimento sobre as condições e as relações envolvidas em suas rotinas.

Nesse ponto das entrevistas, os gerentes destacaram o reconhecimento e a autonomia – fatores recorrentes nas suas falas, aos quais atribuem grande valor e importância, ao mesmo tempo em que se queixam por não encontrarem, em sua maioria, a presença desses fatores nas experiências de trabalho na época das entrevistas.

Primeiramente, investigando-se a presença e a importância do reconhecimento para os sujeitos entrevistados, observa-se que são bastante utilizados, nas empresas em que trabalhavam, formas de reconhecimento ligadas ao valor financeiro. Não só o salário formal, mas também os ganhos indiretos, como os benefícios, as gratificações e as despesas pagas pela empresa.

Outra forma de reconhecimento, não só citada, mas também destacada com entusiasmo pelos gerentes, são os elogios. Segundo eles, ser reconhecido, em especial publicamente, é algo capaz de trazer prazer, satisfação e motivação para o trabalho, sejam elogios verbalizados ou expressos através de gestos:

é muito legal: tu tá lá na frente, na frente de todo mundo, e tu ser a pessoa reconhecida que trouxe maior resultado e tal. Acaba todo mundo te vendo, te enxergando, lembrando de ti. Isso é muito legal, isso é muito importante. Quando eu ganho eu fico bem feliz (Fábio).

Porém – reforçando os comentários de Dejours (1999), quando menciona que, embora seja uma expectativa de todos os trabalhadores, dificilmente o reconhecimento ocorre de forma satisfatória –, um terço dos gerentes, em tom de descontentamento, relatou que isso nem sempre acontecia na época das entrevistas. Pelo menos não de forma construtiva: “a empresa não tem essa cultura (...) e aí muitas vezes quando é pra receber o feedback recebe só o negativo, porque deu uma m... muito grande, daí tão querendo o pescoço de alguém” (Cristiane).

Mas os gerentes afirmam, ainda, demonstrando bastante satisfação em seus relatos, que também se consideram reconhecidos quando observam o investimento da empresa em sua carreira, uma vez que acreditam que esse investimento demonstra que a empresa aposta em sua capacidade de desenvolvimento profissional: “[sou reconhecido] pela minha carreira (...), isso é um reconhecimento que a empresa me deu não explicitamente, ela não disse isso, mas eu sei” (Luiz).

É evidente, então, nos relatos, a grande importância que dão ao fato de serem reconhecidos. Para eles, independentemente da forma pela qual vier o reconhecimento, consideram-no uma fonte de prazer e um retorno fundamental ao investimento intelectual e à dedicação despendida no trabalho. E afirmam que é através do reconhecimento que se mantêm motivados e com vontade de desenvolver ainda mais:

é óbvio que quando você tem um reconhecimento formal, que vem alguém e fala “parabéns, você fez uma coisa bem feita” – era tua obrigação, ninguém tinha que vir dar tapinha nas costas –, mas quando você tem esse reconhecimento, eu acho que a coisa fica mais gostosa, ela te motiva, ela te dá mais força pra você desempenhar mais (André).

Esse vínculo entre reconhecimento e motivação é algo comentado por Dejours (1999) e exposto anteriormente, uma vez que o autor defende que o primeiro é fator decisivo para a mobilização subjetiva na atividade, que seria justamente a idéia de motivação. Além disso, o mesmo autor defende que reconhecer o esforço empregado na atividade implica reconhecer os sentimentos que ali também estão envolvidos, por isso a dimensão afetiva que aparece em falas como a de André, acima.

Da mesma forma, a confiança e a autonomia proporcionadas pela organização são vistas pelos gerentes como formas de demonstrar reconhecimento por sua ética e por seu desempenho profissional. Segundo os entrevistados, o profissional digno de confiança e dotado de competência é julgado pela organização como merecedor de uma maior liberdade na condução de suas atividades e da unidade sob sua gerência.

Mas nem sempre vinculada ao reconhecimento e à confiança, como comentado acima, a importância atribuída à autonomia também aparece enfatizada em seus relatos, como sendo ela algo que possibilita a livre expressão de suas habilidades (“dar a minha cara ao trabalho”, como verbalizaram com freqüência). E é recorrente a satisfação expressa ao relatarem a possibilidade de, com a devida autonomia, imprimirem em seu trabalho a sua forma de pensar:

[autonomia] é extremamente importante (...) essa empresa é um pouco da minha cara, e eu faço com que ela seja a minha cara também (...) como, de alguma maneira, eu influencio nesse processo, eu acho que ela tem um pouquinho da minha cara, eu sinto como se ela fosse minha também (Ronaldo).

Observa-se, porém, que apesar de ser considerada uma questão importante por parte dos entrevistados, ter autonomia não é privilégio de todos eles. Nesse ponto, os sujeitos encontram-se divididos: pouco mais da metade do grupo afirma poder gozar de suficiente autonomia em sua função, mas um terço dos entrevistados salienta que gostaria de tê-la de forma menos restrita.

Dando seqüência à investigação das condições e das relações de trabalho vivenciadas pelos gerentes, procurou-se também identificar possíveis conflitos relativos a sua função, a fim de tecer um panorama mais completo sobre a presença de fatores causadores de prazer e sofrimento nas relações pessoais envolvidas em sua atuação.

Segundo os gerentes comentaram ao descreverem suas atribuições, o grande papel de um gestor é conduzir seu grupo de subordinados para alcançar os objetivos da organização ou da unidade, facilitando o trabalho dos empregados através da cessão dos recursos necessários e coordenando seus esforços para fazer funcionar a unidade que comanda.

Afirmam também que, para isso, compete a eles fazer o intermédio entre os níveis superiores e inferiores a eles, transmitindo demandas e ideologias entre esses escalões. Porém, essa intermediação aparece com freqüência como um ponto de conflito para os entrevistados, pois, segundo eles, é necessário que atuem como pára-choques de reclamações e exigências, tanto da diretoria, quanto da equipe. Nesse sentido, essas constatações confirmam o que comenta Lima (1996) sobre o papel de filtro da ideologia organizacional exercido pelo gerente na estrutura empresa e o que afirma D’Amorim (1998) sobre a posição de conflito dos gerentes entre seus superiores e seus subordinados.

Mas, além dos incômodos provocados por sua função, os gerentes relatam com desconforto o fato de ser comum, inclusive, terem que transmitir aos seus subordinados diretrizes e metas com as quais nem sempre estão de acordo:

a gente muitas vezes tem papel de pára-choque, isso que a gente faz, essa intermediação (...). Se não tivesse essa figura do gerente, a situação seria muito mais difícil e conflituosa pra quem trabalha. A gente faz isso, com um custo pessoal e afetivo muito grande. A gente amacia. Muitas vezes vêm coisas absurdas, que tu tem que dourar a pílula pros outros, porque eu me dou conta que tu não pode transformar o ambiente de trabalho numa coisa desagradável, ameaçadora, onde o lado negativo seja preponderante. Trabalho é a vida das pessoas, então a gente tem que ter aquele jogo de cintura, tu tem que ter uma super-habilidade de conseguir fazer essa coisa funcionar, como uma engrenagem que tu tem que estar ali azeitando pro conflito não se instaurar porque é ruim pra todo mundo (Izabel).

Também procurou-se investigar, junto aos entrevistados, os pontos de conflito decorrentes das mudanças ocorridas na organização do trabalho, desde seu ingresso no mercado até aquele ponto de suas carreiras.

A questão mais evidente em suas falas, constituindo assim um marco na evolução da forma de se trabalhar, é a introdução da tecnologia. Grande parte dos gerentes atribui a esse acontecimento o aumento da velocidade e do ritmo dos processos, tanto sociais, quanto no âmbito do trabalho. Relacionam também com o aparato tecnológico o aumento da importância, do ritmo, da velocidade e do volume de informações envolvidas nos processos de trabalho. Em suas palavras:

acho que a tecnologia mudou bastante o nosso trabalho. Antigamente o nosso trabalho era muito mais braçal (...), hoje ele tem o apoio de muitas coisas: informática, de relatório de informação, de satélite, de comunicação, a internet (...) acho que facilitou muitas coisas. Acho que aumentou o nosso controle, o controle sim. A gente passou a ter que ter muito mais controle sobre a situação, mas a gente tem muito mais benefício, no sentido de você ter a informação, ter o acesso às pessoas, às facilidades. Então, é a contrapartida, o que a gente teve de bom numa coisa, a gente acabou ficando escravo da outra (André).

Como se pode observar no trecho acima, embora os sujeitos concordem quanto ao impacto proporcionado pela introdução da tecnologia sobre o ritmo do trabalho e sobre a importância atribuída à informação, não são muitos os gerentes que, como André, demonstram consciência sobre a contrapartida do desenvolvimento tecnológico. A grande parte dos gerentes que destacou o fator tecnologia o fez com uma visão positiva, e até certo deslumbramento em alguns casos, em relação aos dispositivos tecnológicos.

Uma outra mudança no mundo do trabalho destacada pelos gerentes refere-se às exigências imputadas a eles ao longo do tempo. Segundo expressaram, tais exigências, nos dias atuais, podem ser observadas:

- Na grande cobrança ou pressão para atingir prazos e pelo alcance dos resultados: “tu é exigido muito mais coisas do que antes, essa pressão de que tu tem que fazer coisas tudo com data pra ontem” (Izabel).

- No império da competição e da concorrência, seja entre países, organizações ou entre pessoas, pelas oportunidades vislumbradas no mercado de trabalho ou na empresa:

uma coisa é a competição (...) acho que foi muito turbinado, muito dito pras pessoas que elas tinham que ser as melhores, que o mundo é competitivo, que sobrevivem os vencedores, aquela coisa toda. Acho que faz muito sentido, porque realmente é uma selva, é a vida, quem ficar parado vai ficar parado, porque as coisas não caem na cabeça de ninguém (Luciara).

- E na exigência de flexibilidade por parte dos trabalhadores:

eu acho que cada vez mais o mundo exige que a gente se adapte fácil a situações diferentes, não só na empresa (...) tu tem que tá sempre preparado pra mudar, pra te lançar numa coisa nova, pra te adaptar (Fernando).

É importante porém comentar que, diferentemente do tratamento dado à questão da tecnologia, o aumento do nível de exigência destacado pelos entrevistados é visto com certo ressentimento. Como pode-se observar nas falas que ilustram este ponto, não é algo visto com naturalidade e tranqüilidade, tampouco de forma efetivamente positiva, pelos gerentes que participaram da pesquisa.

Ainda para que fosse possível uma melhor compreensão das condições de trabalho a que os gerentes entrevistados estão sujeitos e conseqüentemente identificar outras fontes de prazer e sofrimento ligados a sua atividade profissional, procurou-se também investigar a relação que percebem entre o seu trabalho e as suas condições de saúde.

Quando se questiona, a fim de investigar tal relação, se já experimentaram sintomas físicos ou psíquicos que atribuam ao trabalho, ou a algum momento profissional, os gerentes citaram os seguintes sintomas:

- Cansaço e sensação de esgotamento:

tem dias que eu venho que parece que eu tô terminado, acabado, liquidado. Mesmo adorando o meu trabalho (...) me sinto mentalmente cansado, e acho que essa coisa mental passa pro corpo (...). O cansaço é tanto que muitas vezes os problemas que os filhos apresentam, a mulher apresenta, tu não tem tanta paciência já pra abordar aquele assunto (Daniel).

- Problemas relacionados ao sono, insônia ou noites mal dormidas:

tinha noite que eu não conseguia dormir (...), eu deitava na cama domingo e não tinha jeito de dormir, até chegar segunda-feira era um caos. Como era horrível, como me fez mal isso aí. (...) E atrapalha em tudo, né? Relacionamento, atrapalha o corpo, tu não consegue fazer nada, sempre com umas olheiras (Luciane).

- Mau-humor e irritabilidade.

- Dores de cabeça e nas costas (coluna):

eu acabo somatizando. Essa coisa de ter enxaqueca. Ah, eu adoeço. Têm momentos demais de tensão, de muito trabalho, que baixa as defesas, e eu adoeço (...) a gente fica completamente indefeso. E o emocional também, sabe? Em férias, eu nunca tenho dor de cabeça (Izabel).

- Apreensão, ansiedade, estresse e tensão:

quando tem alguma coisa pra acontecer, alguma mudança grande, dá frio na barriga, dá insônia, não adianta, dá tudo. Todos os sintomas físicos e psíquicos possíveis dá quando tem alguma coisa muito grande por acontecer, e tu tá sabendo que vai acontecer contigo alguma coisa. Tu não sabe exatamente o quê, mas teve uma meta que tu não atingiu, que tu sabe que vai sobrar, tudo acontece (Helen).

Certamente, como pode-se imaginar, foi com pesar que os gerentes relataram todos esses sintomas, e não houve sujeito que não tivesse algo a relatar nesse sentido. Além disso, foi bastante comum, e também demonstrando insatisfação, que mencionaram a relação entre os sintomas relatados e a sua interferência na vida familiar, pessoal e social.

Assim, ao afirmarem experimentar sintomas relacionados ao trabalho, o grupo pesquisado confirma outra observação que fizeram de forma praticamente unânime: que o trabalho tem realmente uma relação e interfere na saúde de quem o executa.

Ao mesmo tempo, os sintomas constatados em seus relatos remetem aos comentários de Chanlat e Bédard (1996), quando afirmam que o sofrimento psíquico traz como contrapartida sintomas físicos. Além disso, são indícios de que os sujeitos não têm a possibilidade, como comentam Dejours et al. (1993), de dar vazão aos sentimentos desencadeados pelas situações penosas que enfrentam em seus ambientes de trabalho.

Trabalho: lugar de prazer e sofrimento

Também foi questionado aos gerentes, porém agora de forma mais direta, quais seriam aqueles fatores que consideram ser capazes de lhes trazer prazer e sofrimento em sua rotina profissional. Dessa forma, acreditou-se que essas informações complementariam o mapeamento, iniciado de forma menos óbvia, sobre a presença desses fatores em suas vivências de trabalho.

Procurou-se investigar, em um primeiro momento, os fatores de satisfação e prazer que encontram em sua atividade e em seu ambiente de trabalho.

Os gerentes apontam como um dos fatores de prazer no trabalho a possibilidade de ver a satisfação alheia, seja de colegas, subordinados, clientes, bem como ver tais pessoas desenvolverem-se, vê-las felizes. Principalmente quando têm a oportunidade de ajudá-las a obter tal satisfação:

é importante ver a satisfação dos funcionários que trabalham contigo, né? (...). Sentir que muitas vezes tu consegue levantar pessoas, né? (...). E isso dá prazer, tu vê que uma mexida, uma conversa que tu teve com aquela pessoa, tu fez aquela pessoa desabrochar novamente (Eduardo).

Um outro fator de satisfação identificado também está ligado às pessoas e, segundo os gerentes, é o próprio ato de lidar com elas, relacionar-se, conviver, interagir:

isso é uma coisa que me agrada e me dá satisfação: ter a oportunidade de interagir com gente. Esse é o fim de todas as coisas, né? Quer dizer, a tecnologia pode preencher algumas lacunas das tuas necessidades, agora é com pessoas que você se realiza, né? (Ronaldo).

Também ligada à convivência está uma outra fonte de prazer no trabalho apontada pelos entrevistados: para eles, ver o bom ambiente de trabalho, as boas relações, a cooperação entre as pessoas também é um fator de satisfação:

o que me dá satisfação é isso, ver as pessoas colaborarem com o trabalho, é muitas vezes a gente ficar até meia-noite montando uma feira, um stand, e tu ter pessoas que são tuas parceiras e que tu sabe que tu pode contar. Porque nessas dificuldades também tu acaba agregando, e isso que é legal (Cristiane).

Um quarto fator de satisfação também se refere ao relacionamento interpessoal, e consiste em obter, por parte dos outros, confiança, afeto, reconhecimento, aprovação. Ou seja, para eles é importante serem reconhecidos como pessoas dignas de atenção, de afeto, de ter sua opinião ouvida, seu trabalho respeitado e até de serem tomados como exemplos para os demais:

uma coisa que eu ando me dando conta é que tem coisas que eu falo e eu sou ouvida. (...) O que eu penso, o que eu digo é de certa forma valorizado. Tem pessoas que me têm um pouco como guia. Tem colegas que não tomam determinadas decisões sem antes vir conversar comigo e ver o que eu acho, o que eu tô pensando e tal (...) eu fico emocionada com essas coisas (Izabel).

É importante salientar a constatação de que são muitos os fatores de prazer no trabalho apontados pelos entrevistados que são relativos às relações interpessoais, o que deixa margem para que se pense, inclusive, sobre uma questão expressa na fala de Ronaldo (acima): “é com pessoas que você se realiza, né?”. Assim, acredita-se que essa constatação traz explicitamente uma importante deixa para gestores organizacionais.

Uma última fonte de prazer no trabalho apontada pelos gerentes consiste no realizar. Para os entrevistados, ver as coisas acontecendo, funcionando, ver seus planos sendo atingidos é algo que proporciona satisfação no âmbito do trabalho:

a pior coisa pra mim seria trabalhar num lugar em que tu fizesse, por exemplo, propostas e elas fossem pra dentro da gaveta. Pra mim não serve. Então, o que me motiva é ver o resultado do meu trabalho, vendo as coisas acontecerem (Fernando).

Buscou-se identificar, também, a satisfação dos gerentes em relação à organização em que trabalhavam na ocasião da entrevista, questionando se poderiam afirmar sentir orgulho de trabalhar naquela instituição. Três quartos dos gerentes afirmam que sim, que se sentiam orgulhosos da empresa em que trabalhavam, tanto por sua competência em operar ou atuar no mercado, quanto por possuir características como idoneidade, por possuir valores, por ter uma história exemplar ou por tratar seus funcionários com correção e justiça.

Observa-se também, nesse ponto, que em vários casos o orgulho pela empresa vem acompanhado de um imenso prazer ao vislumbrarem a sua contribuição para a trajetória da organização. Ou seja, quando os gerentes conseguem reconhecer na história e nos resultados da empresa a marca de seus próprios esforços:

eu tenho convicção de que eu faço parte da Empresa Y. A empresa tem uma participação minha pra estar onde está. E aí não tem como não te orgulhar, né? Pô, eu fiz aquilo lá, eu construí, eu ajudei (Luiz).

Prosseguindo, também buscou-se investigar de forma mais direta quais os fatores de sofrimento que os gerentes encontram em sua atividade e em seu ambiente de trabalho.

Um primeiro fator de sofrimento apontado foi o engessamento da organização do trabalho, aquilo que inspira rigidez e formalidade: a cobrança do cumprimento de horários, a burocracia, as atividades monótonas e rotineiras, a centralização das decisões, o autoritarismo, o controle e o foco na questão técnica em detrimento dos fatores humanos. Ou seja, quando é percebido que são poucas as possibilidades (como verifica-se na concepção dejouriana) de interferir na organização do trabalho.

Outro fator apontado como gerador de sofrimento é o que os gerentes chamam, genericamente, de estresse. A partir de suas falas, percebe-se que o uso desse termo vem sempre atrelado:

- À cobrança e à pressão para atingir resultados, tanto a cobrança exercida pelos outros (a empresa, os superiores), quanto a que eles mesmos se impõem:

o trabalho aqui é estressante: todo o trabalho que tem metas se torna um pouco estressante. (...) A empresa te cobra e te fornece a estrutura e as ferramentas pra tu desenvolver o trabalho. Eu tenho que mostrar resultado; tu sabes que qualquer empresa hoje pede resultado (...) na verdade tu tá sempre naquela expectativa de ter que buscar. Tu acaba ligando aquilo à tua garantia de emprego. E às vezes não é. (...) Mas tu acaba te cobrando demais. Acho que a cobrança excessiva em cima de ti mesmo, ela é um fator que pode te prejudicar. A empresa te coloca numa posição de obrigação: não é que ela te force, é que tu te sente obrigado a fazer. Até porque tu tens campanhas de incentivos (...) então, tu acabas te cobrando demais. Isso gera estresse. Independente de ser o que tu gostas de fazer, tu acaba te estressando (Leandro).

- Aos momentos difíceis, como quando é necessário tomar decisões, resolver problemas ou quando os desafios se acumulam e as sensações, conforme descrevem, são de desgaste, vulnerabilidade, instabilidade, o que novamente remete aos comentários de Sennett (2002):

como as coisas surgem muito rápido, é tudo muito dinâmico. Então, tu não consegue fazer uma coisa planejada. (...) Sempre vai surgir as coisas que são de última hora, e aí nem seria interessante ter uma vida totalmente planejada e sempre saber o dia de amanhã. (...) Agora, cem porcento emoção... tem dias que tu acha que tu vai enfartar, que tu vai cair dura, “é hoje” (...) não que eu não goste dessas adversidades, desses desafios, mas matar um leão todo dia deixa de ser desafio, né? Aí tu quer matar uma manada num dia, digamos assim. Então, se tu consegue ter um planejamento e trabalhar mais o planejamento e ter desafios eventualmente, é mais interessante do que tu ter um desafio por dia, porque tu perde o referencial (Cristiane).

Essas questões relacionadas nos itens acima remetem a D’Amorim (1998), quando a autora afirma que existe estreita relação entre a sobrecarga de trabalho – que consiste na percepção do trabalhador de que lhe é demandada atenção e rendimento maiores do que sua capacidade ou o tempo de que dispõe – e a insatisfação em relação a ele.

Mas, além da rigidez e dos fatores de estresse, alguns comportamentos observados nas pessoas com as quais interagem profissionalmente desencadeiam sofrimento, quando percebidos pelos gerentes. Esses comportamentos, conforme relatam, estão associados a falta de comprometimento, indisciplina, acomodação, individualismo, malandragem e inflexibilidade: “tem que ser uma equipe, tem que existir parceria, incomoda a pessoa não vestir a camiseta”(Gustavo).

Essa constatação reflete algumas idéias de Dejours (1999), quando o autor menciona que o ambiente hostil e as relações carentes de cooperação também são capazes de desencadear processos de sofrimento.

Tal questão relaciona-se também com o último fator de sofrimento no trabalho, apontado pelos gerentes como o mais difícil de lidar: a diversidade. Ou seja, o fato de que as pessoas são singulares em suas características, suas histórias, seus temperamentos e expectativas e, por isso, demandam tratamentos diferentes. Então, para os gerentes, lidar com tantas pessoas, únicas em suas maneiras de compreender o entorno, torna-se algo difícil, na medida em que exige o que chamam de “jogo de cintura” e um certo esforço político:

cada um tem seu jeito, não tem receita de bolo. Esse é o problema. Lidar com a fulana e lidar com a beltrana é completamente diferente. (...) Então, tu tem que ter muito feeling e muito jogo de cintura. Eu acho que isso é o mais difícil de lidar com pessoas (Helen).

pra mim, o maior problema hoje é aprender a trabalhar com as pessoas (...) aí tu envolve conhecimentos técnicos diferentes, pessoas com formação particular, a estrutura psicológica da pessoa de base é diferente. Por isso, o grande desafio é trabalhar com as pessoas (Roberto).

Esses incômodos relatados, relacionados ao convívio e à demanda por um talento especial para o jogo de cintura nas interações, lembram as palavras de Candeias (citado por Nakayama, 1997), quando menciona que ser responsável por pessoas é muito mais estressante do que ser responsável por coisas. Da mesma forma, remetem à própria Nakayama (1997), quando ela destaca a dificuldade envolvida em gerenciar pessoas, por ser uma tarefa que exige maturidade, equilíbrio e conhecimento.

Então, nesse ponto, chama a atenção o fato de que lidar com pessoas foi um fator amplamente destacado pelos gerentes. Porém, tanto como uma fonte de prazer, quanto como um fator capaz de gerar sofrimento, o que reforça a percepção de que as relações interpessoais no trabalho devem ser alvo de cuidado por parte das organizações, uma vez que parecem ser determinantes para a satisfação daqueles que nelas atuam.

 

Conclusões

A proposta do estudo que deu origem a este artigo foi, após delinear algumas questões pertinentes à configuração contemporânea do trabalho, apresentar os seus efeitos segundo a ótica de um grupo de gerentes de grandes empresas.

Observou-se, como uma das muitas evidências apontadas pelo estudo, o quanto é sutil e estreita a fronteira entre a vivência do prazer e do sofrimento.

Encontrar esse ajuste fino parece ser, então, o grande desafio para gestores, cientistas da administração e do trabalho, e indivíduos que trabalham, que não podem ser isentados de seu papel ativo nesse contexto.

Para tanto, acredita-se, a partir das evidências que tomaram forma neste estudo, que a busca por um trabalho cada vez mais emancipador e, como tal, fonte de prazer, passe pela via da autonomia, da maior liberdade para que a diversidade humana expresse-se como contribuição através de sujeitos claramente qualificados tecnicamente.

Da mesma forma, essa busca passa pela manutenção do tempo dedicado às atividades familiares e sociais, pelo reconhecimento daqueles que investem seu tempo de vida e sua subjetividade em sua atividade profissional, e pelas relações interpessoais, que podem desencadear tanto vivências de prazer, quanto de sofrimento.

Para que tudo isso ocorra, é imprescindível que a organização também assuma sua responsabilidade pelos efeitos sociais de suas políticas, que passam pela saúde física e mental dos trabalhadores e influenciam a própria forma como a sociedade está organizada.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: leticiala@bol.com.br, merlo@ufrgs.br

Recebido em: 02/10/2007
Revisado em: 30/04/2008
Aprovado em: 12/05/2008

 

 

1 Como forma de se preservar a identidade dos entrevistados, todos os nomes aqui utilizados são fictícios.

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