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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. v.13 n.1 São Paulo  2010

 

Artigos originais

 

O trabalho infantil na rua

 

Child work in the street

 

 

Maria de Fátima Pereira AlbertoI, 1; Ana Cristina Serafim da SilvaI, 2; Gabriel Pereira de SouzaI, 3 ; Taiana da Silva NunesII, 4

IUniversidade Federal da Paraíba
IIUniversidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta dados de duas pesquisas sobre o trabalho infantil na rua, nas quais se identificam os riscos a que crianças e adolescentes estão submetidos. Na primeira pesquisa, feita com uma amostra de 26 crianças e/ou adolescentes, de ambos os sexos, utilizou-se a metodologia qualitativa e como técnicas a territorialização, a observação sistemática, e entrevistas semiestruturadas. Estas últimas foram examinadas a partir da análise de conteúdo temática de Bardin (1977). Na segunda, com uma amostra de 81 crianças e adolescentes de ambos os sexos, utilizou-se a metodologia quantitativa e como instrumento um questionário, que foi tratado através do software SPSS e da estatística descritiva. São identificadas em ambas características semelhantes no tocante às tarefas, aos perfis e aos riscos. Os fatores de riscos mais comuns são: físicos (temperatura); químicos (poluição); biológicos (vírus); ergonômicos (posições corporais forçadas e ritmos intensos); sociais (o trabalho não dará formação profissional para o futuro); psicológicos (cognitivos: dificuldades com o acompanhamento e o desempenho do processo escolar, e afetivo: sentimentos de incapacidade).

Palavras-chave: Trabalho infantil, Crianças e adolescentes, Riscos.


ABSTRACT

This article presents data of two researches into child work in the street which identify the risks that children and adolescents are submitted. In the first research, performed with a sample of 26 children and adolescents of both sexes, the qualitative methodology was used and the territorialization, the systematic observation and semistructured interviews were used as techniques. These last ones were analyzed according to the thematic content analysis of Bardin (1977). The second research was performed with a sample of 81 children and adolescents of both sexes, and the quantitative methodology was used. As an instrument, a questionnaire was used and treated through the software SPSS and through the descriptive statistics. Both researches have presented similar characteristics regarded to the tasks, to the profiles and to the risks. The more common risks are: physical (temperature); chemical (pollution); biological (virus); ergonomic (forced corporal positions and intense rhythms); social (the work won't give professional formation for the future); psychological (cognitive: difficulties with the accompaniment and the acting of the school and affective process: feelings of inability).

Keywords: Child work, Children and adolescents, Risks.


 

 

Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar dados de duas pesquisas que investigaram o trabalho infantil informal na rua, nas quais se identificam os riscos a que crianças e adolescentes estão submetidos. A primeira pesquisa foi realizada na cidade de João Pessoa (PB), com uma amostra de 26 crianças e/ou adolescentes, de ambos os sexos. A segunda, realizada na cidade de Guarabira, com uma amostra de 81 crianças e/ou adolescentes, de ambos os sexos. São identificadas em ambas as pesquisas, realizadas com diferentes métodos, características semelhantes quanto às tarefas, quanto aos perfis dos inseridos precocemente no mercado de trabalho informal e quanto aos riscos.

A concepção da infância, tal como se aceita hoje, no século XXI, surgiu no século XVIII, quando se começou a fazer uma nítida separação entre a criança e o adulto, e a família passou a ser o núcleo por excelência, responsável pelo cuidado e educação (Ariès, 1981).

A adolescência também é uma construção histórica (Ozella, 2002). Ela deixa de ser analisada como algo abstrato, algo natural em si, e passa a ser vista como uma etapa que se desenvolve na sociedade. Essa concepção “despatologiza” o desenvolvimento humano, na medida em que o torna histórico, pois a adolescência, na forma como se constitui, é entendida no seu movimento e em suas características, compreendidos no processo histórico de sua constituição.

Mas, se por um lado a forma de se conceber a infância e a adolescência mudou, por outro lado, as análises que têm sido feitas sobre ambas centram-se no enfoque das características das dinâmicas do desenvolvimento individual, que pouco levaram em consideração os fatores históricos, sociais e culturais. O trabalho infantil é uma das formas que permitem entreolhar e analisar a construção social da posição da infância e da adolescência na sociedade. Tal análise possibilita a compreensão de que essa é uma dimensão de classe social, de modo que há um grupo significante que continua exposto aos riscos do trabalho, semelhantes àqueles identificados por Marx (1987) no início da industrialização, século XVIII.

A mudança na forma de conceber a infância e a adolescência provocou alterações na forma de tratamento, pelo menos do ponto de vista legal. Há mudanças na legislação, decorrentes principalmente de movimentos sociais, inclusive em âmbito internacional, que foram responsáveis pela criação de diversos instrumentos de defesa e proteção: a Constituição Federal (1988); Estatuto da Criança e do Adolescente ECA – Lei 8.069/1990; Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989); Convenção 138 e Recomendação 146 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – sobre a idade mínima de admissão a emprego (1973); Convenção 182 e Recomendação 190 da OIT – sobre a proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil (OIT, 1995).

Mas a Lei não tem sido suficiente para assegurar todos os direitos, como, por exemplo, para erradicar o trabalho infantil. Isso é de tal monta que a PNAD 2005 revelou um ligeiro crescimento na Taxa de Ocupação das pessoas de 5 a 17 anos de idade. Em termos absolutos, o número de trabalhadores, no Brasil, de 5 a 17 anos, saltou de 5,30 milhões para 5,45 milhões, no período de 2004 a 2005. Em 2004, a Paraíba ocupava o sexto lugar no ranking no País (em termos proporcionais) entre os estados com maior número de trabalhadores crianças e adolescentes na faixa de 5 a 15 anos, passando a ocupar, em 2005, o terceiro lugar. Em 2005, a Paraíba possuía 104.133 crianças e adolescentes trabalhadoras na faixa de 5 a 15 anos. O Estado saía de uma taxa de ocupação de 10,94%, em 2004, para 13,32%, em 2005, representando um aumento de 2,38 pontos percentuais (IBGE, 2005).

Por trabalho infantil adota-se a definição da OIT (OIT, 1995), como sendo atividades desempenhadas por crianças de até 18 anos de idade. Significa o desempenho de uma tarefa ou uma atividade econômica, com o objetivo de receber pagamento, garantir seu sustento, contribuir no orçamento da família. Acrescenta-se a esta definição o exercício da atividade socialmente útil ou esquemas de profissionalização divergentes e que tenham como objetivo obter pagamento, que pode ser em espécie ou em gênero (Alberto, 2002).

A temática trabalho infantil não é nova. Os autores que trataram dessa temática, no Brasil, pesquisaram-na sobre vários aspectos: o trabalho de crianças e adolescentes no setor formal, no setor informal, no setor urbano e no setor rural; o trabalho de meninos na rua; a divisão sexual do trabalho precoce nas ruas; a relação entre trabalho precoce e saúde e a relação entre trabalho precoce e psiquismo. Dentre os autores, destacam-se: Alberto (2002), Botelho (1995), Centro Josué de Castro (1993), Cervini e Burger (1991), Ferreira (1979), Forastieri (1997), Hutz e Koller (1997), Kassouf (2004), Moreira (1995), Rizzini e Rizzini (1991), Sampaio e Ruiz (1996), Schwartzman (2004). Todavia, ainda se encontram pouco explorados os riscos do trabalho infantil nas atividades informais na rua.

Por riscos, está-se considerando a possibilidade de perda, dano ou perigo. A noção de riscos está associada tanto à presença de máquinas, ambiente de trabalho, substâncias ou situações perigosas, quanto à probabilidade de um acidente, doença ou sofrimento (Forrastieri, 1997; Reis & Ribeiro, 2003). É preciso considerar que os riscos não são estáticos e aliam-se aos contextos nos quais se inserem os indivíduos (Brito & Porto, 1991; Porto, 2000). A OIT (Forrastieri, 1997) usa a categoria riscos para se referir a um risco material, concretizado num agente particular ou em uma dada situação perigosa.

O termo risco também tem sido, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, associado aos estudos sobre desenvolvimento humano (Horowitz, 1992). Por situação de risco pessoal e social entende-se a condição em que se encontram crianças e adolescentes que, devido às condições de vida estão expostas a um conjunto de experiências relacionadas a privações de ordem afetiva, cultural e socioeconômica, que desfavorecem o pleno desenvolvimento biopsicossocial (Lescher, 2007).

Trabalho pesado em idade precoce tem várias consequências diretas no desenvolvimento físico e mental de crianças e adolescentes. O corpo delas sofre os efeitos da fadiga, devido ao dispêndio excessivo de energia, mais do que em adultos. A maioria das crianças sofre também de má nutrição devido à ingestão de comidas inadequadas, que baixam sua resistência e as tornam ainda mais vulneráveis às doenças. A prevalência de anemia, nutrição pobre e longas horas de trabalho facilitam a redução da capacidade de trabalho de crianças. A fadiga também contribui para a frequência de acidentes e enfermidades (Forastieri, 1997). No caso dos trabalhadores infantis, a noção de risco deve estar relacionada com sua condição de crescimento, não se focalizando apenas os fatores imediatos, mas aqueles que ameaçam o seu desenvolvimento ao longo do tempo.

 

Metodologia

Na primeira pesquisa, feita na cidade de João Pessoa (PB), com uma amostra de 26 crianças e/ou adolescentes, de ambos os sexos, utilizou-se a metodologia qualitativa e adotouse, para delimitação da amostra, o critério da saturação (Sá, 1998). Usaram-se como técnicas três conjuntos de procedimentos: a territorialização, feita in loco, técnica específica de aproximação ao espaço da rua, seguida sucessivamente pela observação sistemática, descrição das atividades de trabalho e realização das entrevistas semiestruturadas. Estas últimas versaram sobre dados sociodemográficos, condições de trabalho e de vida, escolaridade e riscos.

As entrevistas individuais foram examinadas a partir da análise de conteúdo temática de Bardin (1977), enfatizando-se a ausência ou a presença do tema a despeito de sua frequência. Em seguida, procedeu-se à tabulação, à codificação, à categorização, à inferência e à interpretação dos dados.

A segunda pesquisa foi realizada na cidade de Guarabira, distante 74 km da capital do Estado, João Pessoa (PB), foco do projeto Catavento da OIT5. Compôs-se de uma amostra de 81 crianças e/ou adolescentes, de ambos os sexos. Utilizou-se a metodologia quantitativa e como instrumento um questionário no formato do Diagnóstico Rápido, aplicado em campo. As questões versaram sobre dados sociodemográficos, família, atividade de trabalho, escolaridade e riscos. Os questionários foram tratados através do software SPSS e a análise feita por estatística descritiva. O desenvolvimento de ambas as pesquisas seguiu a orientação da Resolução CNS/Ministério da Saúde do Brasil, nº 196.

 

O trabalho infantil na atividade informal na rua em João Pessoa, PB

Os dados dessa pesquisa referem-se a 26 crianças e/ou adolescentes entre 7 e 14 anos de idade, trabalhadores nas atividades informais na rua. São vendedores nos sinais, vendedoras nas noites, vendedoras de quentinhas, olheiros de carro e meninas em situação de exploração sexual comercial, que começaram a trabalhar em torno dos 6 a 10 anos e tinham entre um e seis anos de trabalho nas ruas. Todos têm uma defasagem escolar que varia de um a sete anos. Os que estudam frequentam o Ensino Fundamental, I do 1º ao 7º ano. Há, nas ruas, uma divisão social e sexual do trabalho, por isso encontraram-se mais meninos do que meninas.

Os dados empíricos mostram que esses sujeitos vão para as ruas trabalhar para ajudar na sobrevivência da família. A maioria volta para casa todos os dias. Alguns dormem nas ruas nos finais de semana porque, segundo eles, as chances de trabalho são melhores.

As condições de trabalho expõem a vulnerabilidade dos meninos e meninas a dois agentes agressivos: vida precária, com alimentação e moradia inadequadas, e situações de riscos psicológicos, sociais, físicos, químicos e biológicos. Para todos os meninos e meninas, as condições de vida são precárias, uma vez que as famílias da maioria dos sujeitos enfrentam dificuldades – mães criando a famílias sozinhas, ou pais desempregados e biscateiros. Parte desses meninos e meninas garante a feira da família e o pagamento de água e energia.

Todos estão expostos a situações de riscos: a exposição ao sol, à chuva e à poluição causada pela fuligem dos carros ou pela poeira do asfalto, à violência nas ruas e às drogas. A violência pode ocorrer por meio de palavras, agressões físicas, assaltos, roubos, brigas, emboscadas, humilhações, constrangimentos e tentativas de incêndio (cujo fogo é ateado enquanto dormem). Os autores da violência são transeuntes, policiais, pares, clientes. Também são vítimas da arbitrariedade da polícia, a qual também os vê como marginais em potencial, e, sob qualquer alegação, “fazem a revista” para ver se têm cola de sapateiro ou ameaça levá-los presos, sem flagrante e sem mandado judicial, principalmente sendo menores (o que é proibido pelo ECA, Artigo 106) (Brasil, 1991).

Outro tipo de violência a que todos estão expostos é a violência institucional, compreendida pela inexistência de políticas sociais e pela omissão do Estado na garantia dos direitos. Há um tipo de violência que é um misto da negligência familiar e da omissão do Estado: uma parcela desses meninos e dessas meninas não existe enquanto cidadãos, pois não têm documentos.

Os meninos vendedores no sinal de trânsito estão expostos à postura em pé o dia todo, ao atropelamento e ao carregamento de peso. Eles também carregam caixotes que pesam entre 15 e 30 quilos. As distâncias do deslocamento variam, podendo ocorrer que se transportem pesos para uma distância de 100 a 300 metros, várias vezes ao dia.

Tanto os vendedores no sinal de trânsito quanto os olheiros de carros estão expostos aos riscos de atropelamento. Para os primeiros, o atropelamento pode ocorrer quando o sinal abre, ocasião em que eles correm atrás dos carros e quando há incidentes (a mercadoria cai em meio aos carros em movimento). Para os olheiros, os riscos decorrem do posicionamento atrás dos carros (as posições desses meninos podem dificultar a visão do motorista) ou da tentativa de parar o trânsito, a fim de o cliente movimentar o veículo.

Os olheiros de carro também estão expostos a situações de riscos decorrentes dos produtos químicos que usam para lavar os carros, como sabão, cera e querosene, e das posturas inerentes à atividade de lavar carros.

Para os meninos vendedores na noite, além dos riscos decorrentes do carregamento de pesos e das longas caminhadas, há os riscos para a saúde provenientes do pouco sono, principalmente o noturno. A média de sono que dormem varia de quatro a seis horas por dia.

As meninas vendedoras de quentinhas estão expostas a posições impróprias exigidas pela atividade, uma vez que permanecem sentadas, com a coluna curvada, durante quase toda a jornada de trabalho. Além disso, estão sujeitas ao assédio sexual, de que são vítimas por parte de clientes e transeuntes.

As meninas em situação de exploração estão expostas a vários tipos de riscos, dentre os quais a violência, que se apresenta sob uma configuração multifacetada: há agentes químicos, biológicos e psicossociais. Os agentes biológicos são as doenças sexualmente transmissíveis e violência de ser abusada e explorada sexualmente em troca de pagamento para poder sobreviver. Estão expostas, ainda, aos riscos da vida em gueto, à estigmatização.

Entre os meninos vendedores, há dois tipos de relações de trabalho: aqueles que trabalham para um patrão e aqueles que trabalham para a família. No primeiro caso, eles são contratados por dia de trabalho. O patrão fiscaliza intensamente o trabalho. No segundo caso (quem trabalha para a família), as mercadorias e o instrumental de trabalho são da família e eles recebem uma espécie de mesada pelo trabalho que fazem. O controle da atividade é feito pelo próprio menino ou por um membro da família. Recebem entre 2 e 5 reais por dia, com uma renda mensal que varia entre 40 e 80 reais. Trabalham uma média de 10 a 14 horas por dia, sendo que a jornada semanal varia entre cinco a sete dias por semana, enquanto a maioria dos meninos vendedores na noite trabalha seis dias por semana com uma média de seis a oito horas por noite.

Os meninos olheiros trabalham para si ou para um familiar. A remuneração tem uma grande variabilidade, pois depende do que o cliente quer dar, no caso da guarda do carro e negociação da lavagem dos carros. A jornada de trabalho varia de seis a dez horas, dependendo do estudo e do horário da escola. Trabalham, em média, de cinco a seis dias por semana, incluída a noite.

No caso das meninas vendedoras de quentinhas, trabalham para um patrão. A jornada varia entre quaro e oito horas, seis dias por semana. Elas também trabalham em casa, diferentemente dos meninos que, não desempenham atividades domésticas. A jornada delas pode configurar-se como dupla jornada de trabalho.

Com exceção das meninas em situação de exploração sexual comercial, em todas as outras atividades, o recrutamento se dá por uma rede de recrutamento, entre amigos e familiares.

No concernente às meninas em situação de exploração sexual comercial, a inserção se dá, na maior parte das vezes, a partir de uma situação de abuso sexual ocorrida no contexto intrafamiliar, o que provoca o rompimento com essa família e a ida para a rua. Uma vez nas ruas, o aprendizado das meninas se dá com outras meninas, podendo ser, inicialmente, explorada ou não por um cafetão, que pode ser até mesmo um membro da família, namorado ou uma amiga. A jornada é variável: elas não contam por horas trabalhadas, mas pelo número de clientes que atendem. Normalmente, os “programas” se dão à noite. A média é de dois programas por noite. Entretanto, como vivem na rua, podem, a qualquer momento, ser solicitadas por um cliente, a quem elas atendem prontamente.

Os dados empíricos revelam que todas as atividades desenvolvidas pelos meninos e meninas afetam o corpo e provocam sensações que são expressas no sofrimento no corpo e do corpo. Cada uma dessas atividades desencadeia nos meninos e meninas um sofrimento específico, considerando-se as exigências de esforço físico e desgaste provocados pelo conteúdo das tarefas e pela postura do corpo.

O sofrimento é expresso por ambos os sexos como cansaço ou dores no corpo. Essas dores relacionam-se, por sua vez, com as situações de riscos, pressões e exigências das atividades, dos conteúdos das tarefas, posturas repetitivas que põem em risco a saúde física e mental dos meninos e das meninas.

Os meninos olheiros como também lavam carros, queixam-se das pernas cansadas, dormentes, dos músculos doloridos, das dores na coluna. As meninas vendedoras queixam-se de cansaço, sonolência, dores na coluna e nas pernas. As queixas dos meninos vendedores no sinal são dores nos braços, mãos, pernas, cabeça e coluna, além de cortes nos dedos (decorrentes de segurar as mercadorias). As meninas em situação de exploração sexual comercial queixam-se das posturas incômodas demandadas pelos clientes, o que, segundo relatos, causa dores nas costas, no baixo ventre, nos ovários, coceiras e ardências na genitália. Todos sofrem e reclamam das humilhações e maus tratos que sofrem na rua. O sentimento de ambos os sexos, em termos do futuro, revela a perda das expectativas de futuro, mas não da capacidade de sonhar.

 

O trabalho infantil na atividade informal na rua em Guarabira, PB

A maioria significativa dos sujeitos identificados nesta pesquisa encontrava-se na faixa etária de 8 a 14 anos (80,2%). A média foi de 12 anos. Com relação à idade em que começaram a trabalhar, identificaram-se crianças com 3 anos de idade, mas a maior concentração encontrava-se na faixa de 8 a 12 anos com (87,7%). No que diz respeito à raça/etnia, 64,2 % são afro-brasileiros, 30,9% são brancos e 4,9% amarelos.

Os motivos pelos quais a criança e o adolescente se inserem precocemente no trabalho são, predominantemente, “necessidades financeiras” (63,3%), “rede de relações que oportuniza” (25,3%), “cultura” (7,6%) e “prazer no trabalho” (3,8%).

A família desses trabalhadores tem uma renda mensal que varia de menos de meio salário mínimo (o salário mínimo na época era de R$ 260,00) até 3 salários mínimos. No que diz respeito à renda per capita, os dados mostram que os trabalhadores precoces recebem valores semanais que oscilam de 1 a 50 reais, com uma maior concentração entre 1 e 10 reais.

As formas de remuneração no trabalho infantil informal urbano são: dinheiro – 69,1%, dinheiro e outros – 29,6%; e 1,2% só comida. É significativo que mais de 30% dessas crianças e adolescentes não recebam pagamento.

Os dados revelaram que 45,7% dos meninos e meninas trabalham para a família, 35,8% são autônomos, trabalham para si, e 18,5%, para um patrão. Inexistem as garantias trabalhistas, no caso daqueles que trabalham para um patrão e esse tipo de trabalho é feito muitas vezes em troca de pagamentos efetuados por comida ou presentes.

Os trabalhadores precoces desempenham as atividades de “vendedor” (37%), “fretista” (35,8%), “feirante” (16%) e “olheiro de carro” (11,1%). Os dados referentes a vendedor e feirante dizem respeito a atividades do ramo comercial, que, aqui, somam 53%, enquanto fretista e olheiro estão relacionados ramo de atividades de serviço, que aqui somam 46,9%.

Verificou-se que 91,4% dos trabalhadores precoces são meninos e 8,6% são meninas, o que revela a existência de uma associação entre sexo e atividades de trabalho (Cramer´s V = 0,324) estatisticamente significativa (p = 0,037). Todavia, é uma associação moderada, uma vez que o número de pessoas (sete) do sexo feminino apresenta baixa frequência. Essa dimensão de gênero pode ainda ser verificada quando se constata que há uma divisão social e sexual do trabalho infantil: enquanto a maioria dos meninos executa as tarefas de “transportar em carro de mão” (78,4%), “fazer entregas” (64,9%), “carregar sacolas ou bolsas” (64,9%), “organizar os produtos na feira” (55,4%), “descarregar carros” (51,4%), ou seja, atividades que requerem o dispêndio de força física; as atividades desempenhadas pelas meninas não demandam força física: “vendem” (85,7%) e “oferecem na feira” (85,7%).

Os dados revelam que 69,1% dos sujeitos trabalham de um a três dias; 14,8% trabalhavam seis dias e 8,6%, de quatro a cinco dias. A concentração de um a três dias deve-se às atividades de fretistas e feirantes, que dependem dos dias de feiras, sendo que 85,2% deles trabalham no turno diurno e 14,8% trabalham nos turnos diurno e noturno e a jornada desempenhada por esses sujeitos varia de cinco a oito horas (45,6%) e de nove a 12 horas diárias (27,8%).

No que diz respeito à escolaridade, da amostra investigada, apenas um sujeito não estudava. Já em relação ao nível de escolaridade, 92,5% cursam o ensino fundamental e 7,5%, o ensino médio, com predominância do 5º ano, com 26,3% e do 6º ano, com 22,5%. Dentre os sujeitos abordados, 97% apresentam defasagem escolar de um a oito anos e 45,8% foram reprovados pelo menos uma vez.

Aproximadamente 66,7% sentem-se “muito cansados” ou “cansados” após um dia de trabalho. O cansaço é explicado considerando-se a idade dos sujeitos, e os tipos de atividades que desenvolvem. A jornada diária para 45,6% dos sujeitos que trabalham é de cinco a oito horas. Some-se a isso o horário em que iniciam a jornada: 25,9% dos sujeitos iniciam às cinco horas, o que significa acordar muito cedo, diminuindo o tempo do sono primordial nesta etapa do desenvolvimento em que a maioria se encontra.

Em termos de riscos físicos, os cinco que mais apareceram foram: temperatura (46,9%), umidade (46,8%), radiações (45%), ruídos (34,6%), iluminação excessiva (21%). A radiação é solar; a temperatura referia-se ao calor; a umidade é da chuva ou das águas, ou até de esgotos que rolam a céu aberto, nas feiras livres e mercados públicos, locais onde trabalham.

Dentre os riscos químicos, os mais aparentes foram os fumos (31,3%), que são as substâncias suspensas no ar na forma sólida, tais como a poluição, fuligem e fumaça dos carros.

Os riscos biológicos que mais apareceram foram “vírus” (43,8%), “bactérias” (25,6%), “mordidas de animais” (22,2%), “insetos, cobras e escorpiões” (21%).

Os riscos ergonômicos permitem vislumbrar as exigências físicas da atividade informal na rua, uma vez que esta demanda posições corporais forçadas, com o corpo curvado, presentes as seguintes categorias: “transporte em carro de mão” (72,8%), “vende” (66,7%), “oferece” na feira (62,2%), “faz entregas” (64,2%), “carrega sacolas ou bolsas” (63%), “organiza produtos” (54,3%), “descarrega carro” (46,9%). Além desses aspectos, há de se ressaltar a organização do trabalho a que se submete o sujeito, o que tem a ver com as jornadas prolongadas, responsabilidades e ritmos intensos.

Com relação aos riscos sociais, os que mais apareceram foram: “o trabalho não dará formação profissional para o futuro” (42,9%) e “envelhecer antes do tempo” (35,1%).

Os dados revelaram dois tipos de riscos psicológicos: um, de caráter cognitivo, e outro, de caráter afetivo-emocional, sobressaindo-se o cognitivo. Eles revelaram as dificuldades dos trabalhadores precoces nas atividades informais na rua com o acompanhamento e o desempenho do processo escolar, principalmente naquelas atividades consideradas fundamentais (conforme LDB, Lei Federal nº 9.349; os Parâmetros Curriculares Nacionais): o domínio do cálculo (48,2%), da leitura (38,3%), da escrita (30,9%). Os riscos afetivoemocionais dizem respeito ao sentimento que constroem quanto ao que fazem e o medo que sentem da relação entre o trabalho e o futuro. Destacaram-se os seguintes riscos: “perda do tempo da infância” (36,3%), “sentimento de incapacidade” (25,1%), “dificuldade de expressar sentimentos e emoções” (23,8%).

 

Análises dos resultados

O objetivo de apresentar fragmentos de duas pesquisas feitas no mesmo Estado, mas a partir de diferentes metodologias, de diferentes locus de coleta de dados e diferentes contextos, não é fazer um estudo comparativo. O objetivo é contribuir na reflexão do trabalho infantil, principalmente de aspectos até então pouco visíveis e, consequentemente, pouco explorados, de quão expostos aos riscos estão as crianças e os adolescentes inseridos precocemente nas atividades informais na rua, e das possíveis implicações no desenvolvimento biopsicossocial dos mesmos.

Considerando-se as diferenças decorrentes dos procedimentos metodológicos, há alguns aspectos semelhantes que devem ser ressaltados: 1) uma atividade de trabalho infantil que incorpora mais meninos do que meninas; 2) a idade de inserção (entre 8 e 12 anos);3) a idade em que se encontram (7 e 14 anos); 4) o tempo de defasagem escolar (de um a oito anos); 5) o contexto familiar (de privações, necessidades, mães sozinhas, ajuda na manutenção das famílias); 6) a remuneração (entre 40 e 100 reais); 7) a forma de inserção por meio de uma rede de recrutamento; 8) as jornadas de trabalho (de até 13 ou 14 horas, durante cinco ou seis dias); 9) as atividades informais de rua (de fretistas, vendedores, olheiros) e 10) os riscos (biológicos, físicos, químicos, ergonômicos, psicológicos e sociais).

Não é por acaso que pesquisas têm mostrado (Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, 2004; Kassouf, 2004; OIT, 2003; Schwartzman, 2004) que o setor informal na rua ocupa o terceiro lugar entre as atividades de trabalho infantil, só perdendo para a agricultura e para o trabalho doméstico. Esse fato é possível se compreender considerando-se que, no Brasil e no Nordeste, em especial, há um conjunto de fatores facilitadores desse acesso: a cultura, que naturaliza o trabalho infantil como elemento formador e antídoto para a marginalidade; o fato de as atividades informais nas ruas serem de fácil acesso a crianças e adolescentes; a existência de um mercado consumidor de mão-de-obra infantil no setor informal; uma rede formada por familiares e vizinhos e que oportuniza a inserção precoce de crianças adolescentes no trabalho (Kassouf, 2004; Sarti, 1996; Tavares, 2002).

Analisar a existência do trabalho precoce como uma questão cultural não é suficiente se a esta não for combinada uma análise econômica. Tomando como referencial Oliveira (1990) e a sua compreensão do setor informal como modo de produção simples e doméstico, pode-se reconhecer que essa visão cultural interessa ao capitalismo, porque contribui para a sua manutenção e sua estruturação em momentos de crise. Interessa-lhe também que determinadas atividades de que se serve continuem organizadas de modo simples, realizadas por produtores autônomos. Por isso faz-se uso dessa mão-de-obra. Os meninos e meninas barateiam seu trabalho, depreciando-o, abrindo mão dos ganhos.

A idade de inserção em que se encontram corrobora dados de outros autores (Cervini & Burger, 1991; Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, 2004; IBGE, 2003; Kassouf, 2004) que dão conta da vulnerabilidade dessas faixas etárias ao trabalho infantil no setor informal e das consequências do trabalho infantil para a escolaridade (Dauster, 1992; Schwartzman, 2004), bem como das demandas por políticas públicas para essas faixas etárias. Além disso, essa faixa está contida naquela de 7 a 14 anos, cuja escolaridade é obrigatória, o que revela uma violação dos direitos (Brasil, 1991).

Esses dados corroboram os de outros autores de que a criança goza de determinados privilégios no seio da família, os quais são perdidos à medida que crescem e passam a ter condições de fazer algumas tarefas, o que significa que a infância, para as classes pobres, acaba mais cedo (Dauster, 1992; Moreira & Stengel, 2003; Sarti, 1996). O que se configura em forma diferenciada de se conceber e tratar a infância, ou de se negar o tempo da infância e adolescência (Ozella, 2002).

A questão de gênero, no trabalho infantil urbano informal em condição de rua, destaca-se e representa uma tônica comum, presente em diversos autores (Cervini & Burger, 1991; Madeira, 1997; OIT, 2003; Rizzini, Rizzini & Holanda, 1996). Trata-se do fato de que sempre se encontram mais meninos do que meninas neste tipo de atividade. A explicação devese ao fato de que os meninos estão mais nas atividades de rua, enquanto as meninas estariam inseridas nas atividades domésticas (Cervini & Burger, 1991; Madeira, 1997; Tavares, 2002).

A partir desses dados, é possível compreender que o trabalho precoce nas atividades informais na rua tem uma questão de gênero. Na rua, há uma diferenciação que hierarquiza as atividades: isto é de menino, isto é de menina. Tudo o que na rua é hierarquicamente inferior é destinado à menina e o que requer força, “esperteza” é destinado aos meninos. Conforme Kergoat (1992), admitir que existe uma relação social específica entre homens e mulheres significa ter necessariamente práticas sociais diferentes, segundo o sexo. Vê-se a divisão sexual do trabalho como dinâmica, desnaturaliza-se a compreensão do masculino e feminino como ditado pelo biológico e concebem-se ambos como uma construção social, situam-se a multiplicidade, a diversidade de determinações e as contradições. Essas relações sociais são produtos de contextos históricos específicos, que assumem características diferenciadas historicamente.

Há uma inserção concreta – no tempo, no espaço e nas forças produtivas –, diferenciada em decorrência, dentre outros aspectos, do sexo e da idade. Para tal, instala-se, desde a mais tenra idade, um processo de socialização diferenciada. “(...) o corpo é base da percepção e organização da vida humana, tanto no seu sentido biológico como social. Assim, também, se produzem os corpos economicamente úteis. Para tanto são adestrados e lhes são inculcados hábitos primários desde a infância” (Muraro, 1983, p. 23).

Esse é um aspecto histórico-cultural significativo a ser considerado. A história da sociedade brasileira revela o caráter diferenciador que o trabalho assume no contexto do processo de formação étnica, principalmente no Nordeste. Objeto de estudo de sociólogos, antropólogos e historiadores (Freire, 1982), essa relação tem sido mostrada como sendo o trabalho atribuído a negros ou homens brancos pobres. No caso do trabalho infantil, vários autores já haviam identificado que ele tem uma dimensão étnica e racial (Cervini & Burger, 1991; OIT, 2003; Schwartzman, 2004; Tavares, 2002), aspecto esse que referenda a condição da raça-etnia como um fator histórico de exclusão social da pobreza no Brasil.

Com relação à renda, os dados corroboram as fontes que mostram que o trabalho infantil no Brasil, no Nordeste, e na informalidade, se dá sem remuneração ou com baixa remuneração em troca de comida (Cervini & Burger, 1991; IBGE, 2003; Kassouf, 2004). São dados que revelam o caráter de exploração e a violação dos direitos humanos dessas crianças e adolescentes, cuja inserção precoce negará a sua infância e cujas Leis pressupõem garantir direitos e proteção.

Segundo Rizzini et al. (1996), as crianças e adolescentes que trabalham apresentam os maiores índices de evasão escolar. Cervini e Burger (1991) chegam a conclusões semelhantes, apenas diferenciando os percentuais para crianças e adolescentes. Rizzini et al. (1996) acrescenta ainda que a defasagem escolar relaciona-se com o trabalho, uma vez que as crianças e os adolescentes que trabalham progridem mais lentamente na escola.

Tais dados corroboram os de outros autores (Cervini & Burger, 1991; Ferreira, 1979; Forrastieri, 1997; Kassouf, 2004; Schwartzman, 2004): as crianças e adolescentes que trabalham apresentam os maiores índices de evasão escolar; o trabalho precoce impede a escolarização e outras atividades formativas. Estes aspectos constituem-se em graves consequências do trabalho precoce, de modo que o déficit educativo e a falta de capital cultural dificultarão, na vida adulta, a inserção no mercado de trabalho, principalmente naquelas atividades profissionais que requerem níveis mais elevados de escolaridade.

 

Os riscos para a saúde

Para uma análise mais precisa dos riscos, requer-se, dentre outras coisas, a realização de um mapa de riscos, o que, na situação de rua, se tornou complicado, pelas características do locus (Laurell & Noriega, 1989). Todavia, para se verificarem os riscos, na primeira pesquisa, lançou-se mão da observação, nos moldes da análise da atividade de trabalho (Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg & Kerguelen, 1991), e, na segunda, de um questionário. Em ambas as pesquisas verifica-se pelo menos a exposição a fatores de riscos semelhantes, configurando-se uma situação particular ou um agente particular (Forrastieri, 1997), ocorrendo também circunstâncias de vida que expõem a vulnerabilidade biopsicossocial (Horowitz, 1992; Lescher, 2007).

Os fatores de riscos mais comuns foram: físicos (temperatura, umidade, radiações); químicos (poluição, fuligem e fumaça dos carros); biológicos (vírus, bactérias); ergonômicos (posições corporais forçadas com o corpo curvado, levantamento de peso, a organização do trabalho a que se submete o sujeito, o que tem a ver com as jornadas prolongadas, responsabilidade e ritmos intensos); sociais (o trabalho não dará formação profissional para o futuro); psicológicos (cognitivos: dificuldades com o acompanhamento e o desempenho do processo escolar e afetivo-emocional: sentimento de incapacidade).

Portanto, esses fatores de riscos decorrentes do trabalho informal na rua expõem essas crianças e adolescentes a experiências desfavoráveis ao seu desenvolvimento (Lescher, 2007), tais como: temperatura, chuvas e radiações que podem ter como efeitos fadigas, gripes, resfriados, câncer de pele e maior desgaste; o barulho proveniente da agitação do espaço da rua pode provocar, dentre outras coisas, perda parcial ou total da audição e tensão nervosa; a poluição e fuligem podem ocasionar efeitos carcinogênicos, irritantes, asfixiantes e alergizantes; levantamento de peso, posturas corporais forçadas, movimentos repetitivos podem gerar lombalgias, fadigas e comprometer o desenvolvimento (Faria, 2000).

A iluminação excessiva é um fator preocupante, pois o sol emite vários tipos de raios ultravioletas, sendo o A e o B os mais perigosos. As crianças estão mais expostas aos riscos da radiação UV, pois têm a pupila maior, além de a córnea e o cristalino serem menos eficientes na filtragem. Some-se a isso o fato de que as pessoas que desenvolvem atividades ao ar livre também são mais expostas. A exposição ao sol e à temperatura mais alta provoca maior produção de calor nas crianças do que nos adultos que realizam o mesmo esforço, porque têm menor capacidade de perder calor por evaporação e por terem menor atividade das glândulas sudoríparas. Logo, há menos suor, com menor capacidade de troca de calor com o ambiente, do que resulta um maior desgaste. A camada superficial não completamente desenvolvida favorece a maior absorção de substâncias tóxicas (Faria, 2000).

Em nenhuma das pesquisas procedeu-se a qualquer investigação de nexo causal, mas em ambas há referências a cansaço, dores no corpo, principalmente nas costas e na cabeça, sofrimento e sentimentos de humilhação. O trabalho pesado em idade precoce também tem outras consequências diretas no desenvolvimento físico e mental das crianças. O corpo delas sofre os efeitos da fadiga devido ao dispêndio excessivo de energia mais do que em adultos. A prevalência de longas horas de trabalho facilita a redução da capacidade de trabalho de crianças e a fadiga contribui para a frequência de acidentes, enfermidades, sofrimento (Dejours, 1987; Faria, 2000; Forastieri, 1997).

O impacto do conteúdo das tarefas é inicialmente no corpo – lombalgias, torsões de coluna por defeito de postura, cervicalgias etc – e, posteriormente, no aparelho psíquico – sofrimento, medo, fadiga (Dejours, 1987).

O sofrimento, segundo Dejours (1987), é concebido como a vivência subjetiva intermediária entre a doença mental descompensada e o conforto ou bem-estar psíquico. Mas o trabalho não ocasiona, necessariamente, doença mental; também pode gerar prazer – o que não significa que, por não se adoecer, não se sofra. A explicação para o fato de não se adoecer está nos procedimentos defensivos (estratégias defensivas). Essas defesas levam à modificação, à transformação e, em geral, à eufemização da percepção que os trabalhadores têm da realidade que os faz sofrer. Mas as defesas também evitam que o trabalhador experimente doenças mentais – o que não significa que não sofram (Dejours, 1987). Tais sujeitos, apesar das pressões que enfrentam, conseguem evitar a doença e a loucura, normalidade que não implica ausência de sofrimento e sofrimento que não exclui o prazer.

A inserção precoce conduz as vivências subjetivas de sofrimento, as quais se apresentam de várias formas: no sofrimento no corpo e do corpo; no sofrimento psíquico, que se expressa na inter-relação com o outro; no sofrimento diante do medo; no sofrimento pela humilhação e no sofrimento diante do assédio sexual. O trabalho precoce, no setor informal na rua, produz efeitos discriminatórios: a criança e o adolescente têm seus direitos humanos fundamentais violados; não têm acesso aos aspectos inerentes e imprescindíveis ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social (Brasil, 1991).

O trabalho infantil violenta os direitos sociais determinados na legislação, conforme a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Violenta o direito ao pleno desenvolvimento humano e social ao cercear-lhe as oportunidades para a educação, para a aquisição de capital cultural, para uma inserção social digna no futuro.

As pesquisas que originaram este artigo além de contribuírem teoricamente também o fizeram do ponto de vista de ações sociais, tanto diretamente como indiretamente. A primeira pesquisa, em João Pessoa, resultou na elaboração de dois cursos de extensão que formou 57 Atores Sociais – Agentes de Direitos Humanos, para atuar no combate ao trabalho infantil. A segunda pesquisa foi financiada pela OIT, que realizou um projeto em parceria com instituições locais do município de Guarabira, tanto governamentais, como não governamentais e que desenvolveu uma série de atividades. Dentre elas, a formação de profissionais, técnicos e Conselheiros Tutelares e Municipais; a geração de renda com as famílias, a retirada do trabalho dessas crianças e adolescentes que participaram da pesquisa; a inserção na escola (para as que não estudavam) e a inserção em atividades sócio educativas, no Programa de Erradicação do trabalho Infantil e, por fim, a inserção de adolescentes (cuja idade permitia) em cursos profissionalizantes.

 

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Endereço para correspondência
jfalberto@uol.com.br, aninhacris000@hotmail.com,
gabrieljp@hotmail.com, taiana_nunes@yahoo.com.br

 

Recebido em: 18/09/2008
Revisado em: 18/04/2009
Aprovado em: 17/05/2009

 

 

NOTAS

1 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Subjetividade e Trabalho e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre o Desenvolvimento da Infância e Adolescência em Situação de Risco Pessoal e Social da UFPB.
2 Mestre em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba. Professora substituta da Universidade Federal de Campina Grande e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras (FAFIC). Pesquisadora integrante do Núcleo de Pesquisa sobre o Desenvolvimento da Infância e Adolescência em Situação de Risco Pessoal e Social da UFPB.
3 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba.
4 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal da Bahia.
5 Esta pesquisa foi financiada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT.

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