SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 issue1Leisure and humanization: doubts and hopes in the face of new possibilities for leisureTrajectories of women working in small slaughterhouses of animals author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.13 no.1 São Paulo  2010

 

Artigos originais

 

Trabalho, gênero e saúde mental: uma pesquisa quantitativa e qualitativa entre bombeiros1

 

Work, gender, and mental health: a qualitative and quantitative research among fire fighters

 

 

Tatiana de Castro AmatoI; Thiago PavinI; Leonardo Fernandes MartinsII; Telmo Mota RonzaniII; Andréia BatistaIII

IUniversidade Federal de São Paulo
IIUniversidade Federal de Juiz de Fora
IIICorpo de Bombeiros de Minas Gerais, Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou avaliar os indicadores de saúde mental dos bombeiros e os fatores que a influenciam, destacando as diferenças entre as mulheres e os homens. Trata-se de um estudo exploratório que articulou métodos quantitativos e qualitativos. Na primeira etapa, avaliou-se através de instrumentos psicológicos a saúde mental geral, depressão, estresse, ansiedade, desesperança, ideação suicida e consumo de álcool. Participaram dessa fase 303 bombeiros, sendo 277 homens e 26 mulheres. Na segunda etapa, as entrevistas foram avaliadas através da análise de conteúdo, feitas com 37 bombeiros, entre os quais 18 eram homens e 19 mulheres. Os indicativos de depressão, estresse, comprometimentos em saúde mental geral prevaleceram para a amostra feminina. Os discursos de homens e de mulheres se organizaram diferentemente, tanto nas queixas sobre o trabalho e a vida pessoal e social, como nas consequências percebidas para a vida e a saúde. Conclui-se que as influências de aspectos do trabalho, do indivíduo e de sua vida social provavelmente contribuem para a saúde mental de bombeiros, de forma não hierárquica e complexa. Da mesma maneira, cada um desses fatores pode influenciar um ao outro dinamicamente.

Palavras-chave: Gênero, Saúde mental, Trabalho, Bombeiros.


ABSTRACT

This study aimed to assess firefighters' mental health indicators and what it was influenced by, highlighting differences between males and females. The study was exploratory and based on qualitative and quantitative methods. Firstly, indicators such as general mental health, depression, stress, anxiety, hopelessness, suicide ideation and alcohol use pattern were measured with the use of valid psychological tests. The sample comprised 303 firefighters: 277 males and 26 females. After that, 37 out of the total were interviewed (18 males and 19 females). Finally, their answers were evaluated using content analysis technique. The psychological indicators showed prevalence of depression, stress and general mental health higher among females than males. The men's and women's answers content were differed on their complaints about work, private and social lives as well as on their consequences perception on health and life at large. These results indicated that either work or private and social life probably affects firefighters' mental health in a non-hierarchical and complex way. Likewise, work, private and social lives probably affect each other dynamically.

Keywords: Gender, Mental health, Work, Firefighters.


 

 

Introdução

O trabalho faz parte da cultura social desde as civilizações mais antigas que se formaram no mundo (Stearns, 2007). Seu significado para sociedade e para os indivíduos que a constituem variam em função do próprio trabalho, da cultura de valores que o envolve e, ainda, da percepção subjetiva das pessoas (Martinez, Paraguay & Latorre, 2004). Da mesma maneira, as relações de gênero permeiam a atividade laboral, de acordo com culturas e épocas diferentes e influenciam tanto no tipo de trabalho, quanto nas condições em que ele é desempenhado. Por volta do quarto milênio antes de Cristo, por exemplo, quando as civilizações antigas (como Mesopotâmia, Egito Antigo e outras) começaram tomar forma, a agricultura favoreceu o estabelecimento de papéis bem definidos entre homens e mulheres, o que culminou nas sociedades patriarcais, nas quais as mulheres cuidavam da casa e dos filhos e os homens da lavoura (Stearns, 2007).

Nas sociedades contemporâneas ainda existem diferenças acentuadas entre os gêneros, conforme mostraram os resultados de um acompanhamento das tendências de empregos das mulheres nesta última década, realizado pela Organização Internacional do Trabalho (2008). As mulheres estão mais ligadas a setores menos produtivos da economia, recebem piores salários e têm menos acesso a trabalhos dignos que lhes possibilitem expressão e assegurem direitos sociais de proteção ao trabalhador. Na América Latina e Caribe, a maior parte das mulheres trabalha no setor de prestação de serviços (74,8%), contra 48,2% dos homens. A outra parte está empregada nos setores agrícola e industrial. Houve um aumento de 3,9% na proporção de mulheres que trabalham por conta própria, coincidindo com o aumento do trabalho informal, ramo de emprego mais vulnerável por não garantir certos direitos do trabalhador. Isso não é um bom indicador por configurar um futuro instável para as perspectivas econômicas das mulheres. Apesar disso, houve um aumento da participação da mulher no mercado de trabalho de 47,9% para 52,9%.

O contexto que permeia a construção do sentido do trabalho passa a fazer parte da subjetividade do indivíduo, que por sua vez está sob influência do meio, podendo sofrer positiva ou negativamente dependendo da forma como ele é vivido (Martinez et al., 2004). Considerando essas relações, alguns estudos que relacionam saúde e trabalho vêm mostrando seus impactos para a sociedade e a vida das pessoas. O baixo rendimento nas atividades laborais, por exemplo, ocorre com maior frequência em pessoas com distúrbios ansiosos ou depressivos, que, por consequência, precisam se ausentar do trabalho (Adler et al., 2005; Haslam, Atkinson & Haslam, 2005; Sanderson & Andrews, 2006). Segundo dados do INSS de 1998 a 2002, depressão e estresse são os dois tipos de doença mental que mais geram gastos para o sistema previdenciário brasileiro (cerca 27% do montante foi gasto apenas com as doenças depressivas), enquanto o alcoolismo aparece na quarta posição (Barbosa-Branco, 2002).

Vários estudos enfocam a saúde e o bem estar dos trabalhadores através do impacto de variáveis psicossociais, sociodemográficas, socioculturais e do ambiente (Daniels, 2004; D'Souza et al., 2005; Gamperiene, Nygard, Sandanger, Waersted & Bruusgaard, 2006; Ghosh, Bhattacherjee & Chau, 2004; Godin, Kittel, Coppieters & Siegrist, 2005; Nascimento- Sobrinho, Carvalho, Bonfim, Cirino & Ferreira, 2006). Em contrapartida, outros se dedicam às características individuais que podem contribuir para os estados de saúde ou doença no trabalho, tais como: gênero, percepções dos riscos laborais, satisfação, motivação com o trabalho, atitudes e comportamentos de risco, dentre outras (Baruch-Feldman, Brondolo, Ben- Dayan & Schwartz, 2002; Bhattacherjee et al., 2003; Chau et al., 2004a, 2004b; Elovainio, Kivimaki, Steen & Kalliomaki-Levanto, 2000; Gauchard et al., 2003; Ghosh et al., 2004).

Diferenças no comprometimento da saúde entre os gêneros são comumente encontradas na literatura nas diversas atividades laborais (Evans & Steptoe, 2002; Rocha & Debert-Ribero, 2001; Marcondes, Rotemberg, Portela & Moreno, 2003; Marklund, Bolin & Essen, 2008). Alguns encontraram aspectos de saúde mental mais comprometidos entre mulheres (Evans & Steptoe, 2002; Rocha & Debert-Ribeiro, 2001), especialmente em trabalhos em que são numérica ou culturalmente a minoria (Evans & Steptoe, 2002).

A presença de homens no meio militar foi historicamente predominante. O trabalho militar caracteriza-se, dentre outros fatores, por hierarquias bem definidas, procedimentos de risco, transferências de tropas entre unidades ou batalhões, afastamento temporário da família, treinamentos físicos disciplinados e intensos. Tal ambiente contrasta com o perfil da mulher frágil e envolvida emocionalmente, típico da época em que as mulheres ingressaram na carreira militar. Inclusive, a mulher como cuidadora do lar e da família era incompatível com a possibilidade de afastamento da família e dos filhos, o que no caso do homem aceitava-se com maior naturalidade (D'Araujo, 2003). Apenas em 1993 a profissão militar feminina foi reconhecida no Corpo de Bombeiros, com admissão inicial de 80 bombeiras (CBMMG, 2008). Atualmente, até 10% do efetivo de Minas Gerais é destinado a oficiais e praças mulheres, aproximadamente 800 vagas (Minas Gerais, 2006).

Tendo em vista o aumento da participação ativa da mulher no Corpo de Bombeiros, faz-se necessário o desenvolvimento de pesquisas e políticas de saúde que garantam a equidade na atenção à saúde e nas condições de trabalho feminino (Leão & Marinho, 2002). Com base nas evidências da literatura, a pesquisa teve por objetivo avaliar indicadores de saúde mental dos bombeiros e os fatores que a influenciam, destacando as diferenças entre as mulheres e os homens.

 

Método

O presente trabalho é um estudo exploratório que articulou métodos quantitativos e qualitativos. A partir dos resultados quantitativos (por testes psicológicos), foi elaborado um roteiro de entrevista a fim de levantar hipóteses que dessem direção para estudos mais aprofundados sobre a temática estudada. Esse método foi considerado pertinente ao objetivo do estudo, uma vez que a metodologia qualitativa permite um meio de levantamento de dados adequado à formulação de hipóteses (Bardin, 1977; Minayo & Sanches, 1993). Portanto, partiu-se de métodos quantitativos com um breve levantamento qualitativo.

Esta pesquisa foi parte de um projeto mais amplo intitulado “Avaliação da Saúde Mental dos Bombeiros”, desenvolvido em Juiz de Fora, MG, entre os anos de 2005 e 2007. A implementação do modelo de avaliação contou com pontos favoráveis à sua adequação e aceitação por parte dos trabalhadores (Ronzani, Pavin, Batista, Lourenço & Formigoni, 2007).

Participantes

Participaram do estudo os bombeiros do 4º Batalhão de Bombeiro Militar de Juiz de Fora, Minas Gerais. A pesquisa abrangeu todo o batalhão, que contava com um efetivo de 384 militares.

Instrumentos

Para a etapa quantitativa foram utilizados quatro testes psicológicos validados para a população brasileira. Todos os instrumentos avaliaram diferentes aspectos do estado da saúde mental dos bombeiros, sendo que cada um teve por base o pressuposto teórico adequado ao fator que se propunha avaliar.

Os instrumentos utilizados foram: o Questionário de Saúde Geral de Goldberg (QSG) (Pasquali, Gouveia, Andriola, Miranda & Ramos, 1996), utilizado com objetivo de avaliar aspectos gerais do estado de saúde mental; as Escalas Beck (Cunha, 2001) de Depressão (BDI) e Ansiedade (BAI), para averiguar indicativo da presença ou ausência de transtorno depressivo e de ansiedade; o Inventário de Sintomas de Stress de Lipp para Adultos (ISSL) (Lipp, 2000), para verificar a presença de sintomas que pudessem indicar estado de estresse; e o Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT) (Babor, Higgins-Biddle, Saunders & Monteiro, 2003), para identificar padrões de uso de álcool.

Para o estudo qualitativo foi elaborada uma entrevista semiestruturada. A entrevista foi organizada por eixos temáticos, quais sejam: 1) Aspectos da vida pessoal e social, contendo dois subtemas: “aspectos negativos” e “aspectos positivos”; 2) Aspectos da atividade de bombeiro, sendo três subtemas: “aspectos positivos”, “aspectos negativos” e “trabalho feminino no bombeiro”. Tanto para o tema 1, como para o 2, seguido dos subtemas de “aspectos negativos e positivos”, questionou-se os entrevistados sobre qual a percepção de influência desses aspectos em suas vidas e saúde. Tal divisão foi elaborada visando uma análise mais objetiva, apresentação clara dos resultados e maior facilidade na discussão.

Os fatores que envolvem a vida do bombeiro além de seu trabalho também foram explorados, por considerá-los envolvidos no processo de saúde/doença desses sujeitos (Jacques, 2007). Dessa forma, os aspectos da vida pessoal e social compuseram uma temática da entrevista e, portanto, foram mais bem explorados nas perguntas, como pôde ser observado. Outras variáveis relevantes também foram incluídas no roteiro de entrevista, quais sejam: participação na renda familiar, estado civil e atividades fora do expediente de trabalho.

Procedimentos

Todos os bombeiros do 4º BBM foram convidados a participar da pesquisa voluntariamente, uma vez havendo o aceite inicial, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, como orientou o comitê de ética em pesquisa. Primeiramente, foi realizada a coleta de dados quantitativos, entre agosto de 2005 e dezembro de 2006, com a aplicação dos instrumentos psicológicos em duas sessões coletivas, com agendamento prévio em local e horário de trabalho.

Os dados foram digitados e organizados em banco de dados estatístico, sobre o qual foram realizadas as análises de dados. Para as análises, foram realizados procedimentos estatísticos descritivos (frequência, porcentagem, média (m) e desvio-padrão (dp)) e inferenciais. Na estatística inferencial foram realizados os testes do Qui-Quadrado e o teste exato de Fischer (quando havia mais de 20% das células com frequência esperada menor que cinco). O objetivo dos testes foi avaliar a diferença da distribuição de frequências entre bombeiros femininos e masculinos, para as variáveis categóricas, nos aspectos de saúde mental avaliados pelos instrumentos psicológicos, adotando p<0,05. Cada instrumento psicológico classifica o estado de saúde mental a partir de uma metodologia peculiar. A categorização fornecida pelos testes foi adotada para as análises estatísticas e exposição dos resultados.

A coleta de dados qualitativa foi realizada nos meses de abril e maio de 2007 com homens e mulheres. O critério para participar dessa fase qualitativa foi ter participado da avaliação psicológica. Sendo assim, todas as mulheres que responderam aos testes responderam à entrevista. A amostra masculina foi definida por estratificação a partir do perfil sociodemográfico e de características do trabalho do universo feminino, para que os grupos fossem equivalentes. Seguindo esse critério, a estratificação considerou as características de: local de trabalho (sede ou postos avançados), patente, estado civil, setor de trabalho e escolaridade. Todos os homens da amostra que preenchessem as características correspondentes da população feminina foram selecionados e sorteados aleatoriamente com o objetivo de obter-se um número amostral equivalente ao da população feminina.

A coleta dos dados qualitativos foi feita individualmente no ambiente de trabalho. As entrevistas foram realizadas por duas acadêmicas de psicologia, devidamente treinadas, supervisionadas pelos coordenadores da pesquisa e que já haviam participado de todo processo de coleta de dados quantitativos. Esse aspecto proporcionou segurança aos entrevistados, uma vez que um vínculo de confiança havia sido estabelecido. As entrevistas foram gravadas para que fosse feita a transcrição literal. A técnica utilizada para tratamento qualitativo dos dados foi a análise de conteúdo, especificamente a análise temática e estrutural (Bardin, 1977). Os procedimentos para a análise de conteúdo foram realizados por apenas uma das entrevistadoras, quais sejam: 1) Transcrição literal das entrevistas; 2) Análise vertical: seleção dos trechos de cada narrativa que continha as ideias principais dos temas explorados e categorização dessas ideias; 3) Análise horizontal: reagrupamento das ideias repetidas nos temas, formando as categorias, que possibilitaram a análise de frequência. Assim, foi possível unir as informações dos discursos relativos aos temas avaliados e comparar a perspectiva feminina com a masculina.

 

Resultados

A descrição dos resultados está dividida em duas partes. A primeira tem como foco os resultados da etapa quantitativa do estudo, que corresponde à avaliação da saúde mental por instrumentos psicológicos. A segunda parte apresenta os dados qualitativos, com exploração das diferenças entre os gêneros, a partir da análise de conteúdo das entrevistas.

Responderam aos testes psicológicos 303 bombeiros, que correspondem a 79% do batalhão, entre os quais 91,4% eram homens e 8,6%, mulheres. É importante ressaltar que apesar do número pequeno de mulheres, todas as militares do batalhão aceitaram participar da pesquisa. Portanto, o resultado feminino reflete a população de mulheres do 4º BBM. Sobre o estado civil, 61,1% eram casados, 23,4% solteiros, 8,3% amasiados, 5,6% separados e 1,7% com outra situação de estado civil. A idade dos participantes variou de 21 a 52 anos (m=34, dp=6); a maioria, 71,6%, possuía ensino médio completo e 26,4% tinham escolaridade maior.

 

 

A prevalência de estresse entre bombeiros femininos foi de 73,3%, de acordo com o ISSL. A porcentagem de mulheres com indicativo de depressão foi de 26,9% e, assim como o estresse, foi quase três vezes maior do que entre os homens. Com relação à ansiedade, não houve diferença entre os grupos (Quadro 1).

Mais da metade das mulheres (65,4%) apresentou estado grave/gravíssimo no Questionário de Saúde Geral (QSG). O consumo de álcool foi o único aspecto no qual a relação se inverteu. Os homens apresentaram prevalência três vezes maior do que as mulheres, sendo 29,0% considerados consumidores de risco (Quadro 1).

Os dados obtidos através da avaliação psicológica apontaram o comprometimento da saúde mental do efetivo feminino do batalhão. Apesar dos homens também terem configurado um perfil de saúde com pontos comprometidos e altas prevalências, o que chamou a atenção foi que as mulheres estavam com desgaste ainda mais acentuado e com mais aspectos da saúde comprometidos.

Na etapa qualitativa da pesquisa, cinco mulheres que participaram da avaliação psicológica tinham sido transferidas, uma não teve disponibilidade de horário e uma entrevista feminina teve que ser descartada por erro na gravação. Por esses motivos, não foram entrevistadas todas as 26 mulheres que participaram da primeira fase. Todos os homens convidados aceitaram participar da etapa qualitativa. A duração das entrevistas foi em média de 15 minutos.

Foram entrevistados 37 bombeiros, com idade variando de 20 a 47 anos, sendo 19 mulheres e 18 homens. Todos os participantes trabalhavam na sede do batalhão. Sua graduação variou entre soldados, cabos, sargentos e subtenentes. Na amostra feminina, havia 5 mulheres com segundo grau completo e 14 com escolaridade maior; sobre o estado civil, 8 mulheres eram solteiras, 7 casadas, 1 amasiada e 3 separadas. Os homens apresentaram uma distribuição similar devido aos extratos, sendo que 7 tinham segundo grau completo, 11 haviam estudado mais que o segundo grau. Quanto ao estado civil, 9 eram solteiros, 7 casados, 1 amasiado e 1 separado.

Mais da metade da amostra, tanto a masculina como a feminina, relatou ser arrimo de família ou contribuir com pelo menos metade da renda. O mesmo aconteceu com os entrevistados que responderam ter outra atividade além da profissão de bombeiro, ambos os gêneros descreveram as mesmas como: fazer faculdade, ser responsável por atividade doméstica e/ou ter outra atividade remunerada, seja ela esporádica ou fixa.

No tema 1, referente à percepção da vida pessoal e social (Figura 1), o aspecto negativo relatado com maior frequência entre as mulheres referia-se a “características internas”. As mulheres perceberam como negativo ser perfeccionista, pouco comunicativa, insegura ou ansiosa. Seguido desse aspecto, veio a reclamação de haver “pouco tempo livre”, caracterizada pela dedicação insuficiente a elas mesmas, à família e até mesmo aos amigos. Outros motivos de insatisfação foram ter poucos amigos, estar longe da família e ter muitos problemas familiares (“falta de suporte social”). Apenas as mulheres citaram a insatisfação com a “situação financeira”, por não poderem ajudar outros familiares, como os pais, por exemplo, por terem que arcar com despesas da família e não poderem investir em lazer. Também foram exclusivos do discurso feminino os “problemas de “saúde”, como complicações na gravidez, ansiedade crônica e ganho excessivo de peso em pouco tempo; além disso, a “jornada dupla de trabalho” foi citada por duas mulheres, que tinham família (marido e filhos), por terem que fazer tarefas domésticas e, ao mesmo tempo, trabalhar. Algumas não perceberam pontos negativos em sua vida pessoal e social.

 

 

A influência desses pontos negativos na percepção das mulheres foi principalmente na “saúde mental”, que engloba estresse, ansiedade, angústia e outros tipos de desgaste emocional. Foram também citadas influências na “saúde física”, como perda de peso e gastrite e, ainda, “comprometimento da vida social”, entendido por limitação no convívio com amigos, falta de tempo para viajar e para ter outros momentos de lazer. Especificamente, as mulheres se queixaram de não terem tempo e condições financeiras para se dedicarem a si mesmas (“compromete o autocuidado”).

Do ponto de vista masculino, o principal aspecto negativo foi a “falta de suporte social”, em especial por estar longe da família, seguido das “características internas” como: ser ansioso, ficar estressado e cobrar muito de si mesmo. Além dessas queixas, os bombeiros também reclamaram terem “pouco tempo livre” para dedicação à família, aos amigos e aos estudos, já que alguns faziam faculdade e inclusive se queixaram de “sobrecarga por estudar” e trabalhar ao mesmo tempo. Alguns homens não descreveram aspectos negativos por não percebê-los.

Nem todos os homens perceberam influências negativas em suas vidas ou em sua saúde. Entre os que citaram alguma, o discurso foi bem próximo ao feminino, ou seja, eles perceberam influências na “saúde mental”, como problemas para dormir e estresse, na “saúde física” (gastrite) e “comprometimento da vida social” com amigos e família.

Entre os aspectos positivos (Figura 1) mencionados frequentemente, tanto por mulheres como por homens, estavam apoio dos amigos e da família (“suporte social”), a autoconfiança e o otimismo (“características internas”). Também foram mencionados pelos dois grupos a conquista de independência financeira, fazer faculdade e comprar apartamento (“objetivos de vida”). Ter boa “qualidade de vida” por morar com a família e ter condições financeiras de se manter foram assuntos abordados apenas pelas mulheres. Da mesma maneira, somente os homens citaram como positivo praticar “atividade física” regularmente e ter uma “situação financeira” que permita planejar os gastos com segurança.

Os entrevistados mencionaram que os aspectos positivos proporcionam motivação, alívio do estresse e bem estar, melhorando a condição de “saúde mental”. Uma mulher citou a influência positiva na saúde física, como a ajuda na recuperação de uma cirurgia.

A segunda temática abordou questões sobre o trabalho de bombeiro (Figuras 2 e 3). Entre um dos principais pontos negativos para as mulheres (Figura 2) estava a “sobrecarga de trabalho”, que surgiu como: cobrança, prazos curtos para a carga de trabalho estipulada e exigência de resistência física sem poder relaxar ou dormir. As atividades para ambos os gêneros durante a carreira militar eram as mesmas. Entretanto, constatou-se que as queixas das mulheres relativas ao trabalho se organizaram de forma diferenciada da masculina, apesar de se tangenciarem em vários pontos.

 

 

 

 

Outra queixa feminina em especial foi a “relação entre subordinado e superior” que envolve um relacionamento interpessoal comprometido, com muita cobrança e pouco reconhecimento, segundo as bombeiras entrevistadas. Embora os homens tivessem mencionado esses fatores, não foi uma preocupação tão presente como para as mulheres.

Do ponto de vista masculino, os aspectos negativos mais relevados foram (Figura 2): a falta de “estrutura física e de equipamentos”, que nem sempre são os mais adequados nem estão em bom estado de uso; a falta de “planejamento e organização institucional”, com decisões centralizadas, falta de prioridades, prazos curtos e dificuldades para dar continuidade ao trabalho uma vez já iniciado, geralmente por frequentes mudanças de funções. As mulheres citaram esses dois fatores, apesar de ter sido em menores proporções.

Tanto os homens, como as mulheres queixaram-se da “falta de reconhecimento interno”, que foi citado por ambos como uma das principais queixas relativas ao trabalho. Eles relataram a ausência de gratificação e de incentivo em suas tarefas, não no sentido financeiro, mas sim no sentido de falta de reforço quando o trabalho é bem feito, por exemplo. No discurso ficou claro que para eles é fácil perceber o reconhecimento do trabalho pela população, contudo, o mesmo não ocorre por parte da instituição.

Outros fatores também foram citados por ambos, embora tenha sido com menor frequência. A “escala de trabalho operacional” (vinte e quatro horas de trabalho por quarenta e oito de recesso) foi um desses fatores negativos, por ser composta por muitas horas de trabalho ininterruptas, sem horários preestabelecidos para atividades rotineiras, como tomar banho ou comer. O relacionamento interpessoal com “colegas de trabalho” não foi bem qualificado, sendo tomado por falta de afinidades, de identificação e, algumas vezes, por estar permeado por intrigas. O sistema militar, nomeado por eles de “militarismo”, foi citado como responsável por proporcionar uma rotina cansativa e por conferir inflexibilidade e rigidez na tomada de decisões. A “insatisfação com o salário”, por não se considerarem remunerados o suficiente pelos serviços prestados, leva alguns bombeiros a procurarem complementar a renda com outras atividades. O “sistema de promoção” de cargos foi criticado por não se basear na habilidade para o desempenho da função e sim no tempo de serviço, além das poucas possibilidades de conquistar cargos de oficial. Também foi apontada a questão das “transferências” para outras unidades do batalhão, no sentido de não proporcionar segurança para se fixar, construir laços e fazer investimentos em uma única cidade.

Apenas as mulheres se queixaram da “escala de trabalho da administração”, por terem que comparecer diariamente ao quartel, não haver folgas durante a semana e ainda serem empenhadas em épocas com ocorrências frequentes de queimadas ou enchentes. Outro aspecto negativo apenas para o gênero feminino foi o compromisso com a profissão mesmo não estando de serviço, nas palavras delas, “ser bombeiro vinte e quatro horas por dia”.

Somente os homens mencionaram como pontos negativos a “insatisfação com o cargo” e a “falta de motivação”. Alguns bombeiros não estavam satisfeitos com o tipo de tarefa que lhes eram designadas, pois tinham maior afinidade com outras atividades ou se achavam capacitados para ocuparem outros cargos. O comprometimento da motivação, da empenho e da empolgação com o trabalho não se referia apenas aos cabos e soldados, mas também ao comando.

A principal influência desses aspectos negativos do trabalho em suas vidas (Figura 2), percebida tanto por homens quanto por mulheres, foi na “saúde mental”, especialmente quanto à geração de estresse. Os dois grupos também citaram a “produtividade no trabalho” como sendo negativamente influenciada pela burocracia e pelos recessos semanais, comprometendo a fluidez do trabalho especialmente no setor administrativo. Metade dos homens achou que não tinha influência, ao passo que as mulheres, além da saúde mental, também se queixaram do comprometimento da “vida social”. A maioria delas falou com pesar que seus relacionamentos familiares e conjugais foram prejudicados. Algumas não perceberam influência.

Nenhum homem percebeu a “vida social” afetada, outros acharam que aspectos do trabalho contribuíram para o surgimento de problemas gástricos e maior frequência de adoecimento (“saúde física”). Outro aspecto investigado que não ocorreu para as mulheres foi a percepção de uma influência positiva no “desenvolvimento pessoal”. Um bombeiro relatou que os aspectos negativos o fizeram procurar ser melhor enquanto profissional.

A percepção dos aspectos positivos do trabalho de bombeiro foi praticamente a mesma para os dois gêneros (Figura 2). Quase todos os entrevistados citaram algum tipo de ponto positivo, sendo que o de maior frequência foi a “afinidade com a profissão”. Eles declararam gostar do que fazem e estarem satisfeitos com o trabalho de bombeiro. A questão de “ajudar as pessoas”, de fazer um bem pra sociedade e salvar vidas foi um aspecto bastante elucidado nas entrevistas. Da mesma maneira, a “estabilidade financeira” apresentou-se como um grande atrativo da profissão, possibilidade de planejamento financeiro e investimentos de longo prazo. Um foco especial foi dado à “possibilidade de estudar”, ou seja, investir em algum curso superior e ter a chance de trabalhar ao mesmo tempo.

Apesar de alguns bombeiros não terem avaliado positivamente a relação com os “colegas de trabalho”, outros citaram esse mesmo aspecto como sendo positivo e ressaltaram principalmente a importância da similaridade com ambiente familiar proporcionada por esses vínculos. Os homens ainda acrescentaram que, quando a relação é positiva, a equipe de trabalho se torna melhor, é possível encontrar alguns amigos fiéis, tornando o ambiente de trabalho mais prazeroso e descontraído. O mesmo aconteceu com os seguintes aspectos: “relação entre subordinado e superior”, considerada de qualidade, instigante e motivadora, e a “satisfação com o salário”, por ser uma quantia suficiente e pela pontualidade no pagamento.

Outro fator bastante valorizado nas entrevistas femininas e nas masculinas foi o reconhecimento do trabalho pelo público (“reconhecimento externo”). Tanto pessoas que foram atendidas como aquelas que conhecem a instituição demonstram sua gratidão e admiração pelos bombeiros.

Dois aspectos positivos foram citados pelos homens e não o foram pelas mulheres. Um deles foi a avaliação positiva da “escala de trabalho da administração”, por permitir o desempenho de outras atividades paralelas à de bombeiro. Outro foi a “perspectiva de promoção”, o bombeiro relatou que provavelmente conseguiria melhorar sua patente. Um dos entrevistados não percebeu aspecto positivo.

Quanto à influência desses aspectos na vida e na saúde desses trabalhadores, a percepção também foi semelhante (Figura 2). Metade deles manifestou sentimentos de satisfação, bem estar, gratificação, valorização e alívio de estresse, portanto tiveram a “saúde mental” como influenciada positivamente. A outra metade não percebeu influências dos aspectos positivos em suas vidas ou saúde.

Uma influência citada apenas pelas mulheres foi a melhora da “produtividade no trabalho” e outro aspecto elucidado somente pelos homens foi que o trabalho facilita o “desenvolvimento de atitudes de ajuda” fora do expediente. Como se a atividade de bombeiro preparasse o indivíduo e desenvolvesse o hábito de ajudar as pessoas além do ambiente e do expediente de trabalho.

Especificamente sobre o trabalho feminino no corpo de bombeiros, tanto homens quanto mulheres defenderam que existe relativa “igualdade entre os gêneros” (Figura 3). Segundo os entrevistados, não faz sentido separar o que são atividades masculinas e o que são femininas e até mesmo fazer julgamentos de que um é melhor do que o outro. Ambos consideram as capacidades para o desempenho das tarefas como semelhantes.

A única ressalva quanto a isso feita nas entrevistas foi com relação à força. A “limitação física” feminina foi abordada sob pontos de vista diferentes, apesar de ter sido pontuada pelos dois gêneros (Figura 3). Para as mulheres, essa questão se “limitou à força”, ou seja, restringiu-se apenas a certos tipos de tarefas físicas que requerem esforços além do que elas podem fazer. Em uma entrevista feminina, foi citado que essa limitação, com o passar do tempo, proporciona a elas “desgaste físico mais acentuado” do que aos homens.

Do ponto de vista masculino, também surgiram opiniões como as das mulheres, reiterando a restrição do limite feminino à força. Entretanto, existem homens que defendem que as mulheres deveriam ser “limitadas a algumas funções”. Segundo eles, a atividade operacional não é tão adequada para as mulheres e, portanto, seria interessante o redirecionamento dessas profissionais para outras áreas do bombeiro. Um dos entrevistados complementou que a “formação militar para o efetivo feminino deveria ser diferenciada” e que muitas vezes eles têm que “compensar a força” das mulheres, desempenhando funções além das que lhes são designadas. Dessa forma, a “produtividade no trabalho” operacional ficaria comprometida em determinadas situações.

Outro aspecto exposto por diferentes pontos de vista foi que as mulheres possuem “capacidades específicas” para o trabalho (Figura 3). Os homens deram ênfase às características próprias do gênero feminino, que não implicam em força diretamente. Por exemplo, em ocorrências que envolvem socorro de mulheres e famílias, a presença feminina ajuda o estabelecimento de diálogo e conforto para as vítimas e seus parentes. Foi citado também que as mulheres têm capacidade de flexibilidade maior do que os homens e que, portanto, “desempenham melhor o trabalho operacional e administrativo” quando estes exigem essa habilidade. As mulheres reconhecem que podem ser melhores ou tão boas quanto os homens em algumas tarefas. No entanto, no cotidiano do trabalho, elas sentem necessidade de “provar que são capazes” de desempenhá-las, mesmo quando essas atividades não envolvem o uso da força.

As mulheres citaram a existência de “preconceito” contra o trabalho feminino (Figura 3). Elas mencionaram que os “homens se julgam superiores” em determinadas atividades, não gostam de trabalhar na mesma equipe no serviço operacional e não admitem quando alguma mulher demonstra ser mais habilidosa do que eles. Nesse sentido, algumas ainda citaram que “se sentem desvalorizadas” por serem mulheres e que não possuem o mesmo poder de “autoridade” que um homem.

Outro ponto mencionado por algumas mulheres foi que elas se sentem “restringidas profissionalmente” pela “superproteção masculina” e pela “falta de confiança” no trabalho feminino (Figura 3). Essa queixa está relacionada principalmente ao trabalho operacional. Segundo as mulheres, os homens frequentemente fazem algumas tarefas por elas e não permitem que elas tomem posições de liderança nas ocorrências. Essa atitude algumas vezes está relacionada a uma cortesia e até mesmo ao cavalheirismo; outras vezes, está relacionada à falta de confiança no bom desempenho do trabalho feminino.

De modo geral, houve percepção de que as mulheres “conquistaram espaço” nesse campo de trabalho (Figura 3). Uma delas citou que na ocasião de sua aprovação, entrou para o bombeiro um número superior de mulheres do que nos concursos passados. Os homens reconheceram a conquista de espaço pelas “mudanças no ambiente de trabalho”. Com a presença feminina eles cuidam para que suas atitudes e linguajar sejam mais polidos, por exemplo.

 

Discussão

Os dados de prevalência de estresse entre homens e mulheres em dois estudos brasileiros foram similares aos encontrados nessa pesquisa, sendo maior para o gênero feminino também (Calais, Andrade & Lipp, 2003; Oliveira, 2001). Portanto, o estresse nos bombeiros seguiu o que parece ser uma tendência nacional de prevalência, uma vez que pesquisas em outros países encontram índices mais baixos entre trabalhadores (Cheng, Guo & Yeh, 2001). Também é válido citar que o uso de álcool é geralmente maior para os homens (Carlini & Galduroz, 2007) e a prevalência na população em geral é próxima ao que foi encontrado neste estudo (Babor et al., 2003). Sendo assim os índices para uso de álcool entre bombeiros foi similar aos da população brasileira.

A proporção de homens para mulheres no batalhão é de aproximadamente onze para uma. Dados da literatura sugerem que as manifestações de saúde entre minorias podem diferir, sendo as mulheres mais susceptíveis a terem problemas de bem estar psicológico, principalmente se elas estiverem em menor quantidade (Evans & Steptoe, 2002). Nesse sentido, pode ser que a situação de minoria contribua para o comprometimento no quadro de saúde das mulheres.

Apesar da diferença entre os gêneros ser frequente em estudos que se propõe a avaliála, em cada contexto organizacional as evidências se mostraram associadas a variáveis específicas de saúde, do trabalho e/ou do indivíduo (Cheng et al., 2001; Evans & Steptoe, 2002; Rocha & Debert-Ribeiro, 2001). Nesse sentido, o estudo qualitativo foi estratégico para a exploração de possíveis aspectos que pudessem estar relacionados ao maior sofrimento psíquico feminino.

Constantemente, o papel da mulher está associado ao trabalho doméstico (Marcondes et al., 2003; Rocha & Debert-Ribeiro, 2001). Alguns chegam a relacionar o maior comprometimento da saúde da mulher à dupla jornada de trabalho (Evans & Steptoe, 2002; Marcondes et al., 2003). No entanto, no corpo de bombeiros, parece ser comum ter outra atividade, mesmo entre os homens, como demonstram outros estudos brasileiros com essa população (Monteiro et al., 2007). Apesar disso, o discurso feminino indicou que para as mulheres esse é um fator relevante pelo tipo de influência negativa gerada. Tais evidências apontam para a maior valorização de aspectos da vida social pela mulher, como família e amigos, como apresentou o estudo de Marcondes et al. (2003).

A questão da força física levantada pelos entrevistados, ao que parece, não se limita ao trabalho de bombeiro. Um estudo qualitativo realizado em uma indústria brasileira, também revelou esse dado nos discursos feminino e masculino (Marcondes et al., 2003). Contudo, especificamente no ambiente militar, considerar a mulher mais frágil fisicamente, tem servido de fundamentação para as restrições que são direcionadas a elas (D'Araujo, 2003). A presença de estressores diários que estiveram presentes apenas no discurso feminino, como colocar frequentemente sua competência à prova, sentir-se vítima de preconceito e restringida profissionalmente, podem estar relacionados com o estado de saúde mental dessas profissionais, como sugerem relações encontradas em outros estudos (Evans & Steptoe, 2002).

Segundo Martinez et al. (2004), existe relação entre a satisfação, aspectos psicossociais e saúde do trabalhador. Partindo desse ponto de vista, a lógica da satisfação feminina e masculina com o trabalho pode ser compreendida pelos vários aspectos positivos existentes na profissão, que representam os aspectos psicossociais. O principal deles para os bombeiros é a afinidade com a profissão e a possibilidade de ajudar as pessoas através dela. Além disso, também é possível sugerir influências desse sentido otimista dado ao labor na percepção de benefício à saúde mental e a aspectos individuais, como produtividade no trabalho e crescimento pessoal.

Sobre as articulações entre o trabalho específico de bombeiro e a saúde, as mulheres focaram seu discurso em fatores psicossociais enquanto para os homens o foco foi na organização do trabalho e na instituição. Essa perspectiva diferente entre os gêneros também foi encontrada em outros contextos de trabalho (Cheng et al., 2001). Na tentativa de compreender o resultado das mulheres, partimos da premissa de que estressores psicossociais no ambiente de trabalho estão relacionados aos impactos na saúde (Cheng et al. 2001; Evans & Steptoe, 2002; Martinez et al., 2004). Nesse sentido, torna-se viável sugerir que os indicativos de estresse, depressão e saúde mental geral, mais comuns entre os bombeiros femininos, podem ter ligação com as condições do trabalho feminino na instituição.

Para tentar explicar a mesma articulação entre os homens, tomamos por base a pesquisa de Marklund et al. (2008). Esses autores não encontraram associação entre a escassez de recursos e a saúde mental dos homens propriamente dita, mas sim a outras características do indivíduo e da sua saúde. Nesse sentido, torna-se possível levantar a seguinte hipótese: apesar dos homens terem apresentado comprometimentos pontuais, o fato de terem sido em menor grau do que as mulheres sugere menor relação de aspectos institucionais com a saúde mental. A percepção dos mesmos pontos negativos relativos ao trabalho também foram encontrados em outras pesquisas com bombeiros (Monteiro et al., 2007), assim como em estudos com trabalhadores de diferentes profissões (Marklund et al., 2008). Em contrapartida, os homens também identificaram a falta de reconhecimento como uma carência do trabalho, como no estudo de Monteiro et al. (2007). Portanto, da mesma forma que ocorreu com as mulheres, contudo em menor grau, nota-se a possibilidade da influência de fatores psicossociais mediando os impactos negativos citados pelos trabalhadores homens (Cheng et al., 2001; Evans & Steptoe, 2002; Martinez et al., 2004).

Existem algumas teorias que são mais comumente seguidas na tentativa de explicar a relação entre saúde mental e trabalho. A associação indicada pelos resultados, pode tentar ser compreendida à luz da psicodinâmica do trabalho, proposta por Dejours na década de 80 e bastante explorada em estudos brasileiros por Wanderley Codo (Jacques, 2003), por exemplo. De acordo com essa teoria

A compreensão da maneira como se elaboram duas facetas da organização do trabalho, isto é, aquelas que são, respectivamente, fonte de sofrimento e de prazer, é indispensável para se tentar uma interpretação mais global dos laços entre trabalho e saúde e, também, para se procurarem alternativas satisfatórias (Merlo, 2003, p. 139).

Tanto os homens como as mulheres relataram fatores bastante parecidos, no entanto, a abordagem sobre os temas e o efeito percebido foram diferentes entre os gêneros. Dessa forma, o mesmo aspecto pode ser vivido de uma maneira pelas mulheres e de outra pelos homens, podendo ser fonte de prazer ou sofrimento.

 

Considerações finais

A articulação das metodologias qualitativa e quantitativa levantou evidências sobre a saúde mental desses trabalhadores baseadas não somente na perspectiva epidemiológica da doença. É possível perceber que as características da organização se somam a fatores sociais da vida do trabalhador e que ambos estão submetidos à interação com a subjetividade do indivíduo. Nesse sentido, o estudo possibilitou a descrição do processo dinâmico e o levantamento de algumas hipóteses sobre tais relações. É importante que próximos estudos invistam em metodologias longitudinais e análises multivariadas, no intuito de investigar melhor esses fatores e estabelecer relações de causa e efeito entre eles.

A avaliação psicológica apontou para o comprometimento da saúde mental feminina em mais aspectos do que a masculina. A metodologia qualitativa possibilitou elencar alguns fatores que possivelmente contribuíram para a condição de saúde das mulheres, como por exemplo, os aspectos psicossociais no trabalho. Os aspectos específicos do trabalho de bombeiro, bem como aspectos individuais e sociais subjacentes, provavelmente afetam esses trabalhadores e trabalhadoras de maneira diferenciada, não hierárquica e complexa. Ao mesmo tempo, cada um desses fatores podem influenciar um ao outro dinamicamente e de tal maneira que requer estudos mais aprofundados para serem melhor entendidos.

Os resultados encontrados a partir deste estudo são um primeiro passo no conhecimento das diferenças do estado de saúde mental entre os gêneros no meio militar brasileiro. Além disso, podem ser úteis à instituição na formulação de intervenções organizacionais e de atenção equânime à saúde, com o objetivo de melhorar as condições que contribuem para o adoecimento de trabalhadores homens e mulheres e manutenção daquelas ligadas à sua boa saúde.

 

Referências

Adler, D. A., McLaughlin, T. J., Rogers, W. H., Chang, H., Lapitsky, L. & Lerner, D. (2005). Job performance deficits due to depression. The American Journal of Psychiatry, 88 (2), 209-215.         [ Links ]

Babor, T. F., Higgins-Biddle, J. C., Saunders, J. B. & Monteiro, M. (2003). AUDIT: teste para identificação de problemas relacionados ao uso de álcool – roteiro para uso em atenção primária. Ribeirão Preto: PAI-PAD.        [ Links ]

Barbosa-Branco, A. (2002, 26 de novembro). Cuidem de nós! Correio Braziliense, Brasília, 5.         [ Links ]

Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Coimbra: Lisboa.         [ Links ]

Baruch-Feldman, C., Brondolo, E., Ben-Dayan, D. & Schwartz, J. (2002). Sources of social support and burnout, job satisfaction, and productivity. Journal of Occupational Health Psychology, 7 (1), 84-93.         [ Links ]

Bhattacherjee. A., Chau, N., Sierra, C. O., Legras, B., Benamghar, L., Michaely J. P., Ghosh, A. K., Guillemin, F., Ravaud, J. F., Mur, J. M. & Lorhandicap, G. (2003). Relationships of job and some individual characteristics to occupational injuries in employed people: a community-based study. Journal of Occupational Health, 45, 382-391.         [ Links ]

CBMMG – Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais (2008). Histórico. Lugar comum: Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais. Disponível na Internet: http://www.bombeiros.mg.gov.br/novoinstitucional.htm#historico [26 de julho de 2008]        [ Links ]

Cunha, J. A. (2001). Manual da versão em português das Escalas de Beck. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Calais, S. L., Andrade, L. M. B. & Lipp, M. E. N. (2003). Diferenças de sexo e escolaridade na manifestação de stress em adultos jovens. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16 (2), 257-263.         [ Links ]

Carlini, E. A. & Galduroz, J. C. (2007). II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país. Brasília: Secretaria Nacional Antidrogas.         [ Links ]

Chau, N., Gauchard, G. C., Siegfried, C., Benamghar, L., Dangelzer, J. L., Francais, M., Jacquin, R., Sourdot, A., Perrin, P. P. & Mur, J. M. (2004a). Relationships of job, age, and life conditions with the causes and severity of occupational injuries in construction workers. International Archives of Occupational and Environmental Health, 77 (1), 60-66.        [ Links ]

Chau, N., Mur, J. M., Benamghar, L., Siegfried, C., Dangelzer, J. L., Francais, M., Jacquin, R. & Sourdot, A. (2004b). Relationships between certain individual characteristics and occupational injuries for various jobs in the construction industry: a case-control study. American Journal of Industrial Medicine, 45 (1), 84-92.         [ Links ]

Cheng, Y., Guo, Y. L. & Yeh, W. Y. (2001). A national survey of psychosocial job stressors and their implications for health among working people in Taiwan. International Archives of Occupational and Environmental Health, 74, 495-504.         [ Links ]

D'Araujo, M. C. (2003). Pós-modernidade, sexo e gênero nas forças armadas. Security and Defense Studies Review, 3 (1), 70-108.         [ Links ]

Daniels, K. (2004). Perceived risk from occupational stress: a survey of 15 European countries. Occupational and Environmental Medicine, 61, 467-470.         [ Links ]

D'Souza, R. M., Strazdins, L., Clements, M. S., Broom, D. H., Parslow, R. & Rodgers, B. (2005). The health effects of jobs: status, working conditions, or both? Australian and New Zealand Journal of Public Health, 29 (3), 222-228.         [ Links ]

Elovainio, M., Kivimaki, M., Steen, N. & Kalliomaki-Levanto, T. (2000). Organizational and individual factors affecting mental health and job satisfaction: a multilevel analysis of job control and personality. Journal of Occupational Health Psychology, 5 (2), 269-277.        [ Links ]

Evans, O. & Steptoe, A. (2002). The contribution of gender-role orientation, work factors and home stressors to psychological well-being and sickness absence in male- and female-dominated occupational groups. Social Science & Medicine, 54, 481-492.        [ Links ]

Gamperiene, M., Nygard, J. F., Sandanger, I., Waersted, M. & Bruusgaard, D. (2006). The impact of psychosocial and organizational working conditions on the mental health of female cleaning personnel in Norway. Journal of Occupational Medicine and Toxicology, 1 (1), 1-24.         [ Links ]

Gauchard, G. C., Chau, N., Touron, C., Benamghar, L., Dehaene, D., Perrin, P. & Mur, J. M. (2003). Individual characteristics in occupational accidents due to imbalance: a case-control study of the employees of a railway company. Occupational and Environmental Medicine, 60 (5), 330-335.         [ Links ]

Ghosh, A. K., Bhattacherjee, A. & Chau, N. (2004). Relationships of working conditions and individual characteristics to occupational injuries: a case-control study in coal miners. Journal of Occupational Health, 46 (6), 470-480.         [ Links ]

Godin, I., Kittel, F., Coppieters. Y. & Siegrist, J. (2005). A prospective study of cumulative job stress in relation to mental health. BioMed Center Public Health, 5 (1), 5-67.         [ Links ]

Haslam, C., Atkinson, S., Brown, S. S. & Haslam, R. A. (2005). Anxiety and depression in the workplace: effects on the individual and organisation (a focus group investigation). Journal of Affective Disorders, 88 (2), 209-215.        [ Links ]

Jacques, M. G. C. (2003). Abordagens teórico-metodológicas em saúde/doença mental e trabalho. Psicologia & Sociedade, 15 (1), 97-116.         [ Links ]

Jacques, M. G. C. (2007). O nexo causal em saúde/doença mental no trabalho: uma demanda para a psicologia. Psicologia & Sociedade, 19 (número especial 1), 112-119.         [ Links ]

Leão, E. M. & Marinho, L. F. B. (2002). Saúde dos mulheres no Brasil: subsídios para as políticas públicas de saúde. Promoção de Saúde, 3, 31-36         [ Links ]

Lipp, M. E. N. (2000). Manual do Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp: (ISSL) (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Marcondes, W. B., Rotemberg, L., Portela, L. F. & Moreno, C. R. C. (2003). O peso do trabalho “leve” feminino à saúde. São Paulo em Perspectiva, 17 (2), 91-101.        [ Links ]

Marklund, S., Bolin, M. & Essen, J. V. (2008). Can individual health differences be explained by workplace characteristics? A multilevel analysis. Social Science & Medicine, 66 (3), 650-662.         [ Links ]

Merlo, A.R.C. (2003). Psicodinâmica do trabalho. In M. G. Jacques & W. Codo (Orgs.), Saúde mental e trabalho: leituras (pp. 130-142, 2ª ed.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Monteiro, J. K., Maus, D., Machado, F. R., Pesenti, C., Bottega, D. & Carniel, L. B. (2007). Bombeiros: um olhar sobre a qualidade de vida no trabalho. Psicologia: Ciência e Profissão, 27 (3), 554-565.        [ Links ]

Martinez, M. C. M., Paraguay, A. I. B. B. & Latorre, M. R. D. O. (2004). Relação entre satisfação com aspectos psicossociais e saúde dos trabalhadores. Revista de Saúde Pública, 38 (1), 55-61.         [ Links ]

Minas Gerais (2006). Lei nº 16.307, de 7 de agosto de 2006. Fixa o efetivo do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais (CBMMG) e dá outras providências. Lugar Comum: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Disponível na Internet: http://hera.almg.gov.br [26 de julho de 2008]         [ Links ]

Minayo, M. C. & Sanches, O. (1993). Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Caderno de Saúde Pública, 9 (3), 239-262.         [ Links ]

Nascimento-Sobrinho, C. L., Carvalho, F. M., Bonfim, T. A., Cirino, C. A. & Ferreira, I. S. (2006). Work conditions and mental health among doctors from Salvador, Bahia, Brazil. Caderno de Saúde Publica, 22 (1), 131-40.         [ Links ]

Oliveira, J. B. (2001). Stress: diferenças de gênero em amostra de juízes e servidores públicos. In M. E. N. Lipp (Org.), Pesquisas sobre stress no Brasil: saúde, ocupações e grupos de risco (2ª ed.). Campinas: Papirus.         [ Links ]

Organização Internacional do Trabalho (2008). Tendencias mundiales del empleo de las mujeres. Ginebra: Organización Internacional del Trabajo.         [ Links ]

Pasquali, L., Gouveia, V. V., Andriola, W. B., Miranda, F. J. & Ramos, A. L. M. (1996). QSG: Questionário de Saúde Geral de Goldberg. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Rocha, L. S. & Debert-Ribeiro, M. (2001). Trabalho, saúde e gênero: estudo comparativo sobre analistas de sistemas. Revista Saúde Pública, 35 (6), 539-547.        [ Links ]

Ronzani, T. M., Pavin, T., Batista, A. G., Lourenço, L. M. & Formigoni, M. L. O. S. (2007). Estratégias de rastreamento e intervenções breves para problemas relacionados ao abuso de álcool entre bombeiros. Estudos de Psicologia, 12 (3), 285-290.         [ Links ]

Sanderson, K. & Andrews, G. (2006). Common mental disorders in the workforce: recent findings from descriptive and social epidemiology. Canadian Journal of Psychiatric, 51 (2), 63-75.         [ Links ]

Stearns P. N. (2007). História das relações de gênero. São Paulo: Contexto.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
tatiamato@yahoo.com.br, thiagopavin@yahoo.com.br,
leomartinsjf@gmail.com, angebatista@gmail.com, telmo.ronzani@ufjf.edu.br

 

 

Recebido em: 11/11/2008
Modificado em: 15/04/2009
Aprovado em: 17/05/2009

 

 

NOTAS

1Fontes de apoio: este trabalho contou com bolsa de iniciação científica (PIBIC) cedida pelo CNPq e apoio financeiro do 4º Batalhão de Bombeiros Militares de Minas Gerais. Agradecimento: Em especial, agradecemos à equipe de trabalho: Prof. Dr. Lélio Moura Lourenço e aos psicólogos Paula Almeida de Oliveira e Danilo Uba, que colaboraram substancialmente para a realização do projeto.

Creative Commons License