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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.16 no.2 São Paulo dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Modernidade e globalização neoliberal: a "nova" condição do trabalho e dos trabalhadores no contexto da mentalidade de curto prazo

 

Modernity and neoliberal globalization: the "new" condition of labor and workers in the context of brief mentality

 

 

Abraão Pustrelo Damião1; Sueli Andruccioli Félix2

Universidade Estadual Paulista (Marília, SP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo procura refletir sobre a atual condição do trabalho, a partir da análise da dinâmica de vida que a modernidade nos oferece – analisaremos o tipo de projeto que vem influenciando a formação de nossa subjetividade, nossa interação e nossa organização social, bem como o direcionamento de nossas ações. Busca-se, sob um prisma histórico, mostrar as causas e consequências que o processo de modernização teve no desenvolvimento situacional do trabalho e do trabalhador na contemporaneidade. Na condição de instâncias desse desenvolvimento, a globalização e o neoliberalismo são tomados, pois, como objetos privilegiados de investigação.

Palavras-chave: Modernidade, Globalização, Trabalho, Instabilidade.


ABSTRACT

The article aims to reflect upon the current condition of labor. To carry it out we analyzed the dynamics of life that modernity offers us, as a project that has been influencing the formation of our subjectivity, our interaction and social organization, as well as directing ours actions. It aimed to, from a historical perspective, show the causes and consequences that the modernization process had on the development of the labor and the worker contemporaneity. Globalization and neoliberalism, as important instances of this development, are taken as privileged objects of research.

Keywords: Modernity, Globalization, Labor, Instability.


 

 

Introdução

Existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como "modernidade". Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos (Berman, 1981, p. 15).

Nossa discussão não poderia escapar à tarefa de refletir acerca do trabalho a partir da análise da dinâmica de vida que a modernidade oferece – como um projeto que vem direcionando nossas ações, influenciando a formação de nossa subjetividade, nossa interação e nossa organização social. Assim, antes da análise das condições do trabalho e dos trabalhadores na contemporaneidade, dos riscos e perigos de viver o "mundo do trabalho", é necessário realizar uma breve observação do processo histórico que nos trouxe a este estágio.

A modernidade como projeto encontrou as bases para se concretizar a partir da desintegração de instituições e padrões sociais consolidados socialmente nos tempos pré-modernos (Bauman, 2001). Um dos motivos mais fortes para a extinção definitiva de tais instituições e padrões sociais foi a descoberta de novas formas de "regulamentação social" (Santos, 1991) – que, com o advento da razão e da ciência, poderiam ser construídas de modo permanente, previsível e administrável, levando o homem à emancipação dos grilhões feudais.3 Portanto, a modernidade que se formou (desde o antropocentrismo e do racionalismo do Renascimento até o auge do Iluminismo)4 não tinha a intenção de destruir os elementos edificados solidamente (em tempos pré-modernos) para construir um mundo livre desses grilhões, mas, sim, criar novos e aperfeiçoados elementos para uma nova sociedade que viria a existir (Arendt, 2007; Elias, 1994).

Desse modo, em seu projeto, a modernidade pressupunha duas concepções básicas: emancipação e regulamentação (Santos, 1991).5 A regulamentação – que viria a se desenvolver paralelamente ao sistema econômico capitalista – seria constituída pelos princípios de Estado, de mercado e de comunidade, regulamentados por uma burocracia eficaz, racional e objetiva. A emancipação, por sua vez, seria constituída a partir de três lógicas de racionalidade: a racionalidade estética da arte e da literatura, com o Renascimento cultural e todas as suas implicações; a racionalidade referente à moral, à ética e ao direito desenvolvidos pela expansão e pela criação de manuais jurídicos e de regulamentação das ações humanas; e a racionalidade instrumental, pautada pela ciência e pela técnica por meio do modo de produção capitalista associado ao industrialismo.

A racionalidade estética articula-se privilegiadamente com os princípios renascentistas de comunidade, onde se condensam as ideias de identidade e comunhão, intimamente relacionadas à contemplação estética do romantismo, por exemplo. Já a racionalidade moral-ética conecta-se preferencialmente ao princípio de Estado, à sua burocratização e ao aperfeiçoamento dos instrumentos de poder (Weber, 1994). A racionalidade instrumental corresponderia ao princípio do mercado, pois nele se concentram as ideias de individualidade e concorrência – essenciais ao incremento da técnica – bem como a conversão da ciência em força produtiva (Marx, 1960).

Com a articulação desses princípios entre si e a proposta de maximização das potencialidades inerentes a cada um deles, "a modernidade construiu um ambicioso e revolucionário projeto cultural, que buscou transformar a face da Terra pela confiança na ciência e na técnica aplicadas às forças produtivas; nas relações liberais de mercado como capazes de estabelecer um Estado justo e próspero; na positividade do progresso e na sua constante renovação e superação" (Oliveira, 1999, p. 24).6

Entretanto, como apontam diversos autores,7 o projeto moderno teve efeitos colaterais. "O que se observou é que, ao invés de os princípios de regulamentação e emancipação conviverem harmoniosamente, eles se impuseram uns aos outros, induzindo o processo a um desequilíbrio" (Oliveira, 1999, p. 24). Sua lógica parece ter entrado na contramão, abrindo terreno para o desenvolvimento de novos paradigmas não previstos na sua origem – e que nem poderiam sê-lo.

Fundamental para esse desequilíbrio foi a progressiva libertação da economia de suas amarras tradicionais, políticas, éticas e culturais, o que possibilitou a sedimentação de uma nova ordem, definida principalmente em termos econômicos. Isso não significa que, uma vez instalada, a ordem econômica capitalista tenha colonizado, reeducado e convertido para seus fins todo o restante da vida social. Segundo Marx (1960), essa ordem dominou a totalidade da vida humana, porque tudo que pudesse ter acontecido ou que viesse a acontecer em nossas vidas tornar-se-ia insignificante e ineficaz frente à implacável e contínua reprodução da ordem econômica, que aumentava sua força na mesma proporção que diminuía a distância entre os espaços a serem "colonizados": esse é um ponto chave para o processo de globalização.

No período do capitalismo liberal, houve um desenvolvimento sem precedentes do princípio de mercado, atrofiando-se o princípio de comunidade, e vendo-se o Estado pressionado a uma ressignificação de seu papel. O princípio de comunidade, como formulado por Rousseau (2008), baseado na igualdade entre os homens e na organização soberana da sociedade, reduziu-se a um complexo jogo de interesses particulares organizados dentro de um conceito empobrecido de sociedade civil – manipulado pelas forças de mercado. Ademais, ao contrário da que se imaginava, o modo de produção capitalista, como fundamento da economia moderna, engendrou um empobrecimento cada vez maior nas áreas periféricas do mundo (e continua a fazê-lo), sendo a concentração de renda cada vez mais evidente (Jameson, 1997).

Essa soberania do econômico também acabou levando à conversão da ciência em uma força produtiva intrinsecamente associada e a cargo do mercado. A utilização da técnica na esfera econômica, com a mecanização e a racionalização da produção, fez os competidores mais fracos se submeterem ao domínio das grandes empresas. Apesar de o desenvolvimento tecnológico implicar uma democratização das funções dentro do processo produtivo, essa democratização acabou se convertendo em hierarquia no sistema capitalista. Ao que parece, na conjuntura econômica dominante, o aparato tecnológico corresponde à aplicação da técnica com a finalidade de dominar e controlar as relações sócias para a manutenção do status quo (Marcuse, 1999). Não podemos esquecer, ainda, que a conversão do desenvolvimento tecnológico para fins de mercado foi usada na criação de eventos muito traumáticos para os seres humanos, como a industrialização da guerra, as bombas atômicas, as armas biológicas, os genocídios e o terrorismo.

Por outro lado, no domínio do princípio da emancipação, observou-se a elitização da cultura, com uma forte hierarquização de saberes (Bourdieu, 1982), onde alguns deles – a exemplo dos conceitos de medicina, direito e economia – se tornaram muito mais importantes que outros. E, devido à lógica capitalista, a cultura, de esfera revolucionária do pensamento e da ação, transformou-se em cultura de massa (de entretenimento) e, principalmente, de consumo. "Já no âmbito da racionalidade moral e prática, consolidou-se a microética liberal que contribuiu para a legitimação de um estado legalista e a serviço do mercado" (Oliveira, 1999, p. 25).

Assim, os diversos princípios que interagiam entre si não foram adequados para desempenhar propostas modernas que apontavam, entre outros objetivos, à prosperidade social a partir da ampliação da técnica, da ciência consagrada e do livre mercado. Se, por sua vez, a ciência e a técnica avançaram – quiçá, além do imaginado –, a correspondência de prosperidade social e cultural não se consolidou. "Avaliar se esses objetivos ainda são pertinentes e se a modernidade ainda tem condições de cumpri-los é uma tarefa árdua que necessita ser feita, para que se possa compreender a existência, configuração e mesmo a necessidade de um novo paradigma" (Oliveira, 1999, p. 25).8

Portanto, torna-se extremamente valioso o estudo sobre o referencial de mundo (de modernidade) que chega a nossos dias e que se expressa, por exemplo, em uma cultura de globalização e ideologia neoliberal, com todas as implicações que esses fenômenos vêm trazendo para as sociedades ou mesmo para os sujeitos.

 

Globalização e ideologia neoliberal: expressões contemporâneas de um modo de (re)produção da vida social

Moro em Portland, Oregon, onde a Nike tem a sua sede empresarial. Precisando de tênis novos, comecei a procurar. Pegava um tênis atrás do outro e lia "Made in China", "Made in Korea", "Made in Indonesia", "Made in Thailand". Comecei a pedir tênis fabricados nos EUA aos balconistas. Os poucos que não ficaram confusos me disseram que não existem tênis fabricados nos EUA. Telefonei para a Nike e falei com o responsável pelo atendimento aos clientes. Ele me disse que a empresa ainda está manufaturando na Indonésia e em vários países da região. Liguei para a sede da L.A. Gear em Santa Mônica e disse: "Os tênis que vocês produzem são fabricados nos EUA?". "Fabricados aqui?", perguntou, espantada, a pessoa que me atendeu. Ela me disse que seus tênis são produzidos no Brasil e na Ásia (Tisdale, 1994).

Um carro esporte Mazda é desenhado na Califórnia e financiado por Tóquio; o protótipo é criado em Worthing (Inglaterra) e a montagem é feita nos Estados Unidos e no México, usando componentes eletrônicos inventados em Nova Jersey e fabricados no Japão. O Ford Fiesta é montado em Valência (Espanha), mas os vidros vêm do Canadá; o carburador, da Itália; o radiador, da Áustria; os cilindros, as baterias e a ignição, da Inglaterra; os pistões, da Alemanha; e o eixo de transmissão, da França. Uma campanha publicitária de cerveja, feita pela Saatchi & Saatchi, é concebida na Inglaterra, rodada no Canadá, editada em Nova York. Um "filme-global", realizado para um público-alvo mundial, é produzido por uma produtora de Hollywood, dirigido por um cineasta europeu, financiado pelos japoneses, contém no elenco vedetes internacionais, e as cenas se passam em vários lugares do planeta. As roupas japonesas, consumidas no mercado americano, são fabricadas em Hong Kong, Taiwan, Coreia do Sul e Cingapura; já a indústria de confecção norte-americana, quando inscreve em seus produtos "Made in USA", esquece de mencionar que eles foram produzidos no México, no Caribe, ou nas Filipinas (Ortiz, 1994, pp. 10-15).

A globalização não deve ser entendida como algo novo, mas sim como um processo histórico de origem secular, que teve início no século XVI, com a formação e a expansão do modo de produção capitalista – desde suas origens mercantilistas, amparado pelas grandes navegações e a descoberta de novas áreas do mundo pelos europeus. Nesse contexto, a incorporação da Ásia e da América à economia europeia e a consequente formação de uma economia "atlântica" constituiu um ponto de inflexão e de relevância inquestionável para a dinâmica expansiva do capitalismo, que, associado ao novo espírito intelectual e político da época, impulsionou a abertura de novas fronteiras de acumulação de capital.

Na gênese do capitalismo global, a primeira Revolução Industrial (século XVIII), que dotou de renovado dinamismo esse processo – com o desenvolvimento da técnica e sua aplicação na produção –, e, no último terço do século de XIX, a segunda Revolução Industrial, que estimulou massivos deslocamentos populacionais da Europa para América, África e Oceania, foram fundamentais, pois permitiram que grandes correntes migratórias se somassem aos fluxos de capital e do comércio (Vilas, 1999).

Portanto, a globalização moderna constitui a expressão atualizada da convergência multissecular engendrada pela expansão do capitalismo, desde suas origens mercantis, com o surgimento e a consolidação de um modo de organização econômica e social que assume um caráter exploratório mais racional, sistemático e disfarçado – por meio de empresas organizadas com regras de produção e funcionamento de mercado –; e se apoia em uma revolução tecnológica permanente dos meios de produção, de transporte e comunicação "que possibilita materialmente a amplitude territorial atingida por seus interesses" (Maglioli, 1999, p. 59). Isso ocorre quando ela incorpora real ou potencialmente os países subdesenvolvidos à economia dos países capitalistas centrais.

Nesse cenário histórico ou geo-histórico, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BIRD), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e as corporações transnacionais pressionam Estados nacionais a promover reformas políticas, econômicas e socioculturais, envolvendo amplamente instituições jurídico-políticas destinadas a favorecer a dinâmica das forças produtivas e as relações capitalistas de produção. Para que os países subdesenvolvidos evoluam e suas burguesias se integrem à burguesia internacional – por meio da junção direta de empresas ou do mercado financeiro, que leva ao fluxo permanente de capitais, tanto setorial quanto espacialmente, das sociedades anônimas de capital aberto –, é exigido deles uma gama de medidas econômicas que, na globalização atual, são aquelas referentes ao neoliberalismo.9 Para escapar de surpresas políticas, que podem gerar saídas dos países emergentes desse receituário, também lhes são estabelecidas regras políticas, jurídicas e comerciais concernentes ao neoliberalismo. Desse modo, os países subdesenvolvidos são mantidos sob dominação dos países capitalistas centrais, sem necessidade de impérios políticos organizados nem uso da força militar – que, no entanto, pode ser "útil" ocasionalmente.

Segundo Ianni (1999), o fim da Guerra Fria foi fundamental para a intensificação e a expansão do capitalismo atual. As antigas nações soviéticas transformam-se ou foram incorporadas ao mercado mundial, no qual predominam as empresas, corporações e conglomerados transnacionais. Engendrando um novo ciclo do capitalismo global, que atinge tanto América Latina e Caribe como Ásia, África e Europa Central e Oriental. Por trás dessa política, há uma clara intenção de realizar a reestruturação dos Estados nacionais, destinada a criar o Estado mínimo e decretar a formação dos "mercados emergentes", levando à destruição dos projetos de capitalismo nacional e de socialismo nacional, assim como às transformações dessas nações em províncias do capitalismo global. Em lugar do projeto nacional de país, encontra-se em curso a ideação de um capitalismo transnacional, administrado desde o alto e desde fora. E manter as fronteiras territoriais abertas, destruindo aquelas que ainda teimam em permanecer fechadas, parece ser o propósito da política neoliberal.

Nas variadas formas de promover a desestabilização e a desregulamentação econômica do Estado e a abertura dos mercados – que facilita as negociações e associações de corporações transnacionais com empresas nacionais, paralelamente promovendo a privatização de empresas produtivas estatais, sistemas de saúde, educação e previdência –, ocorre uma reordenação das políticas estatais. Estas, seguindo a cartilha do Banco Mundial, devem levar a cabo "reformas econômicas amistosas para o mercado", blindando a propriedade privada, gerando economias de importação, estimulando a internacionalização de seu mercado. Nesse contexto, as agências estatais mais diretamente vinculadas ao mercado – Banco Central, Ministério da Fazenda, Secretaria de Finanças etc. – ganham força, enquanto reduz-se a importância das agências mais ligadas aos atores em retrocesso – secretarias ou ministérios do trabalho, previdência social, assistência à saúde e educação etc. Nesse processo, não poderia deixar de ocorrer uma redefinição das conquistas operárias, pautadas por palavras de ordem como "mercado", "produtividade", "competitividade", com graves prejuízos para os trabalhadores. Verifica-se, assim, uma "crescente e generalizada dissociação entre Estado e Sociedade Civil" (Ianni, 1999, p. 131).

Graças aos "ideólogos da globalização" – de uma ideologia conservadora que encobre a realidade para inibir a vontade de transformá-la –, a globalização neoliberal já foi introduzida na fala cotidiana dos sujeitos e parece predominar a concepção de que ela é algo extremamente poderoso, que obriga os países periféricos a assimilá-la se quiserem alcançar o prometido desenvolvimento socioeconômico que dela advém. Não é por acaso que "a globalização atual costuma ser apresentada, por exemplo, como uma nova versão do 'trem da história' ao qual devemos pegar, pois do contrário permaneceremos abaixo para sempre vendo como o progresso nos escapa" (Vilas, 1999, p. 24).

Esse discurso simplista e determinista baseia-se num conjunto reduzido de proposições que se assumem como autoevidentes, quais sejam: a globalização é um fenômeno novo que pressupõe uma homogeneização do mundo, cedo ou tarde seremos todos iguais, inclusive os países subdesenvolvidos serão iguais aos países capitalistas centrais em desenvolvimento cultural e bem-estar; a globalização conduz ao progresso e à melhoria de vida da humanidade; a globalização econômica leva a uma globalização da democracia popular que conduz, consequentemente, à redução progressiva do Estado ou a uma perda da importância por parte deste.

Vilas (1999), contrapondo-se aos "ideólogos da globalização", desmente essas ideias falsas sobre a globalização. Em primeiro lugar, a globalização não é algo novo;10 muito menos é um processo homogêneo.11 Na verdade, ela diz muito mais respeito a um desenvolvimento desigual em seus diferentes níveis – comercial, informacional e cultural – do que a um desenvolvimento igualitário. Apesar da passagem do tempo, ela não vem levando a uma superação entre desenvolvimento e subdesenvolvimento e entre regiões ricas e pobres; ao contrário, ela não permite aos países atrasados entrar progressivamente no "primeiro mundo".

Vejamos. Os países que o Banco Mundial (1996) considera pobre – que têm em média sujeitos que vivem com até um dólar por dia, e que, juntos, representam mais da metade da população do mundo – captam 7% do produto mundial, enquanto os países ricos, com 8% da população mundial, concentram 85% do produto mundial e 80% do comércio – dos quais dois terços são comercializados entre países desenvolvidos –, além de receberem mais de 80% do investimento da burguesia internacional.12 Portanto, ao contrário do que afirmam seus defensores, a globalização neoliberal não é a chave para o progresso e o bem-estar, muito menos promove o acesso dos grupos menos favorecidos a crescentes níveis de bem-estar e qualidade de vida. Registram-se, inclusive com agravamento, disparidades socioeconômicas e educativas na América Latina, África e Ásia (Vilas, 1999). Ademais, a mundialização do capital é um processo submetido às tensões e pressões recíprocas de seus principais protagonistas, fundamentalmente Estados Unidos, União Europeia, China e Japão, e a suas tensões, conflitos e acordos recíprocos, e não é regida pelos atores coadjuvantes – os países subdesenvolvidos.

Outra postura equivocada dos ideólogos da globalização é aquela que diz que a globalização da economia leva à globalização da democracia. Na verdade, o que ocorre é que o democrático para a burguesia internacional significa "uma relação com determinadas garantias institucionais à livre expansão do capital e à institucionalização dos ajustes macroeconômicos neoliberais, muito mais que com um conjunto de direitos e garantias individuais e sociais" (Vilas, 1999, p. 44).

Por fim, a globalização não causa o desaparecimento do Estado, mas leva-o a uma ressignificação.13 O que seria da burguesia internacional se os Estados dos países subdesenvolvidos não levassem a cabo as recomendações dos "ideólogos da globalização", que são expressas em órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional etc.? Para usarmos nosso país como referência, quem foi o responsável pela privatização – entre 1990-2006 – de mais de 45 grandes empresas nacionais,14 entre elas a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce, a Telebrás e a Eletropaulo? Quem abriu as inúmeras concessões de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos brasileiros? Quem é o responsável pela entrega/omissão das áreas de saúde, educação, infraestrutura e previdência pública ao mercado de capitais; pelo aumento gigantesco da dívida externa nacional com os grandes órgãos mundiais e pela defesa da propriedade privada? Por fim, quem possibilitou a união da burguesia nacional com a internacional por meio da abertura do mercado financeiro e das multinacionais? A resposta é simples: o Estado brasileiro. Mesmo que contraditório, o papel do Estado ainda é muito forte em vários aspectos da economia global, pois ele é o intermediário entre os interesses nacionais e as aspirações da burguesia internacional, e poucos são os líderes ou países capazes de enfrentar essa lógica.

Isso tudo permite que a nova elite política e administrativa do mundo global domine, mande, coloque sob rédeas grupos de pessoas15 e até países,16 sem se preocupar com as agências políticas locais. A aliciação ativa da população subordinada não é mais necessária. Os executivos das grandes empresas multinacionais ou os especuladores das bolsas de valores ao redor do mundo baseiam suas conquistas e riquezas na exploração dos seres humanos mais pobres do mundo, na depredação da natureza, no progresso de uns com as desventuras de muitos, no êxito com o desalento, na abundância de poucos com o empobrecimento de muitos.

Em suma, a globalização, em sua configuração atual, pode ser percebida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. Ela se apresenta na dialética entre as decisões do dia a dia e os resultados globais juntamente com seu oposto, a relevância das ações globais sobre a vida individual. Caracteriza-se por um processo amplo de transformações políticas, sociais, tecnológicas e culturais, que estão reestruturando, de maneira muito profunda, o modo como vivemos e vemos o mundo. Ela vem criando um novo paradigma: o da ação a distância. A "ausência" das causas predomina sobre as consequências e rumos que nossas vidas tomam. A globalização também age sobre as comunidades locais, é razão do ressurgimento das identidades culturais e do nacionalismo, atua sobre o destino econômico de inúmeras localidades e das formas de governo nos mais variados modos. Mas ela também transforma nossas vidas em suas áreas mais íntimas, como a família, o casamento e as relações pessoais (Bauman, 2001; Giddens, 1991, p. 69).

 

A "nova" condição do trabalho e dos trabalhadores no contexto da globalização neoliberal: o fim da mentalidade de longo prazo

Nas sociedades pré-modernas, espaço e tempo coincidem amplamente, na medida em que as dimensões espaciais da vida social são, para a maioria da população, e para quase todos os efeitos, dominada pela "presença" – por atividades localizadas. O advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo, fomentando relações entre outros "ausentes", localmente distantes de qualquer situação dada ou interação face a face. Em condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a "forma visível" do local oculta as relações distantes que determinam a sua própria natureza (Giddens, 1991, pp. 26-27).

As sociedades tradicionais sempre relacionaram tempo e lugar. No entanto, a globalização moderna, ao causar um "esvaziamento" (Giddens, 1991) do tempo por meio das altas tecnologias de comunicação (celular, internet, satélites etc.), criou as bases para que o espaço fosse reordenado, uma vez que a coordenação do tempo é a base para a coordenação do espaço. Agora, as ordens que influenciam um lugar podem vir de outro, a quilômetros de distância, e, com um "click", é possível ditar as regras de um lugar sem que o sujeito que apertou o botão esteja lá. Essa separação penetra na interação entre a atividade social local e as "instituições estatais ultrapassadas" (Giddens, 1991), abrindo múltiplas possibilidades de mudanças da tradição, liberando os indivíduos de hábitos e práticas locais. Há um deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação por meio de extensões indefinidas de tempo-espaço.

Nesse contexto, o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, quando deixam de ser, como eram nos séculos pré-modernos, entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida. Atualmente, eles podem ser pensados como categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação. Pautada pela tecnologia, pelos meios artificiais de transportes e de comunicação, a relação espaço-tempo assume um novo significado, pois permite passar, atravessar e conquistar quase que instantaneamente um lugar a partir de outro bem distante.

Desse modo, a "flexibilidade" e a "expansividade" do tempo moderno tornaram-se poderosas armas na conquista do espaço. O espaço, que antes era o elemento concreto que batia de frente e era um obstáculo ao tempo, bem como as mudanças que o tempo trazia, se enfraqueceu diante da atual conexão simultânea de inúmeras áreas do globo (Bauman, 2001).

A separação entre tempo e espaço é fundamental, pois é a condição principal das novas formas de poder e dominação do capital. A velocidade do movimento e o acesso aos meios mais velozes de mobilidade – tanto pessoal quanto informacional – alçou o tempo moderno como um dos principais atores do poder e da dominação. Agora, o poder (o capital) pode se mover com a velocidade do sinal eletrônico. Em termos práticos, "o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial, não mais limitado, nem mesmo desacelerado, pela resistência do espaço [...] isso dá aos detentores do poder uma oportunidade verdadeiramente sem precedentes: eles podem se livrar dos aspectos irritantes e atrasados das técnicas de poder Panótico"17 (Bauman, 2001, p. 18).

Aquela vigilância que antes era necessariamente presencial – o que tinha de ser vigiado tinha de estar à vista – foi substituída por uma vigilância a distância, que foge do alcance dos vigiados. Esse distanciamento tempo-espaço, que tem na vigilância um de seus caracteres, é o arauto para o "fim do engajamento mútuo" entre supervisor e supervisionados, capital e trabalho, líderes e seguidores. "As principais técnicas do poder agora são a fuga, a astúcia, o desvio e a evitação, a efetiva rejeição de qualquer confinamento territorial" (Bauman, 2001, pp. 17-18). Hoje, mover-se rápido é o recurso do poder. Antes, os grandes senhores da economia buscavam vincular de modo durável seu poder ao tempo, suas construções e feitos deveriam durar para sempre, ou, ao menos, por muito tempo.18 No entanto, os empresários modernos agora desejam o transitório.19

Mas essa lógica só se tornou possível porque aquela produção planejada fragmentou-se. O modelo fordista do estágio sólido – especialmente até as grandes crises econômicas da década de 1970 – da modernidade, um lugar sobre o qual se erigia toda uma visão de mundo e a partir do qual ele se sobrepunha majestaticamente à totalidade da experiência vivida, se estilhaçou. "O fordismo era a autoconsciência da sociedade moderna em sua fase pesada, pois capital, trabalho e administração estavam condenados a ficar juntos por muito tempo (Bauman, 2001, p.162)". As pessoas se uniam em torno da fábrica e do modelo de gerenciamento que ela propunha, criavam suas identidades e desenvolviam suas capacidades no lugar em que estavam fixadas. O capital estava tão preso ao lugar quanto os trabalhadores que empregava. Os trabalhadores do sistema fordista acreditavam no caminho a que seus guias os estavam conduzindo. Era um trajeto relativamente conhecido, com fins mais ou menos previsíveis. No entanto, hoje, esses guias – juntamente com o capital financeiro – abandonaram a embarcação e navegam sozinhos ou em grupos pequenos, angariando tripulantes onde melhor lhes convier. E os tripulantes, que antes tinham um lugar certo para embarcar, ficam o tempo todo à beira do caminho "pedindo carona".

Diferentemente do que ocorre hoje, na época em que Henry Ford criou uma nova ordem racional que se tornou um ideal para a maioria dos empresários, o ideal era fixar capital e trabalho numa aderência que nenhum poder humano poderia desprender. Os trabalhadores precisavam do emprego para sua sobrevivência, e o capital dependia de empregá-los para sua reprodução e crescimento. Seu lugar de encontro tinha endereço fixo: a fábrica. Não surpreende que o intermediário na mercantilização do capital e do trabalho seja o Estado. Este converteu essa mediação em sua principal ocupação política até meados de 1970 (Bauman, 2001).

O Estado de bem-estar social (efeito da Segunda Guerra Mundial, mas filho direto da crise de 1929) era encarregado de que os capitalistas se mantivessem aptos a comprar trabalho e a poder arcar com seus preços correntes. O Estado devia se encarregar de manter o exército de reserva de trabalho apto a voltar à ativa a qualquer momento, para que a relação trabalho e capital pudesse se manter saudável. Essa relação forte entre capital e trabalho criou o que Bauman (2001) chama de "mentalidade de longo prazo", ou seja, a ideia de que as pessoas que compram trabalho e aquelas que o vendem estão inseparavelmente entrelaçadas, e que essa união duraria por muito tempo. Portanto, na construção de um modo de coexistência estável, que atingia tanto a convivência de todos quanto a negociação de regras que pautariam essa convivência, ambos os lados (trabalhadores e patrões) sabiam que sua sobrevivência dependia de encontrar soluções que todos considerassem aceitáveis, e trabalhadores e patrões se relacionavam de maneira mais ou menos previsível. Mas não podemos nos esquecer de que as regras dessa convivência mútua foi objeto de negociações intensas, às vezes com acrimônia e confrontações, outras com tréguas e concessões.20

Entretanto, hoje o capital viaja rápido: com um celular ou computador portátil, ele flui de um espaço para outro quase instantaneamente. Os indivíduos, sobretudo aqueles com poucos recursos, ficaram imobilizados no lugar como no passado, e o lugar em que eles imaginavam estar fixados perdeu definitivamente sua solidez de outrora. Agora, as elites extraterritoriais estão em movimento, enquanto os demais têm a sensação de que o mundo insiste em não ficar parado. Vivemos muito mais a globalização do capital do que da força de trabalho. "O capital financeiro pode mover-se de país em país, buscando as taxas de lucro e as condições de operações mais atrativas, mas os trabalhadores não podem migrar com similar liberdade para usufruir de melhores condições de trabalho e de admissão" (Vilas, 1999, pp. 31-32). Isso fez que a mentalidade de longo prazo fosse substituída pela "mentalidade de curto prazo".

A ascendência crescente do mercado financeiro pôs em xeque as visões estatais de longo prazo em favor do desempenho em curto prazo, da circulação acelerada dos capitais em escala global, das transações econômicas em ciclos cada vez mais rápidos. Por toda parte, as palavras-chave das organizações são flexibilidade, rentabilidade, just in time, "concorrência-temporal", atraso-zero – tantas orientações que são testemunho de uma modernização exacerbada que contrai o tempo numa lógica urgentista (Lipovetsky, 2007, p. 63).

Como vemos, flexibilidade se tornou o slogan do dia e, quando aplicada ao mercado de trabalho, augura o fim do emprego como conhecemos, "espalhando em seu lugar o aparecimento do trabalho por contratos de curto prazo, ou sem contratos, posições sem cobertura previdenciária, anunciando o advento do capitalismo leve, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho" (Bauman, 2001, p.168). Tendo os capitalistas, através da tecnologia, se livrado do maquinário pesado e das enormes equipes de fábrica, o capital agora viaja leve e rápido, com a bagagem na mão – computador portátil e celular. O novo predicado do capital (a flexibilidade) acabou com os compromissos estáveis de trabalho. A habilidade de se mover rapidamente, de evitar o conflito com os trabalhadores e até de fugir, se necessário – esse núcleo da nova política do desengajamento e descomprometimento – é hoje sinal de saber e sucesso gerenciais. Além do mais, o capital se tornou extraterritorial, solto em uma medida sem precedentes, e seu nível de mobilidade é suficiente para fazer pressão às agencias políticas vinculadas a um território e fazê-las se submeter às suas demandas.

"A velocidade do movimento se tornou um fator importante, talvez o principal, da estratificação social e da hierarquia da dominação" (Bauman, 2001, p. 21). O trabalho escorregou do universo de construção da ordem e do controle do futuro e, junto com o capital, agora flutua leve e flexível, fazendo que as estratégias e os planos de vida do trabalhador se tornem de curto prazo. O que conta hoje são os efeitos imediatos do trabalho. Este não pode mais oferecer o eixo seguro em torno do qual envolve e fixa identidades e projetos de vida. Nem pode ser concebido como eixo ético da sociedade ou da vida individual. Espera-se que ele seja satisfatório por si mesmo e em si mesmo, e não mais medido pelos efeitos que traz a nossos semelhantes, ou à nação e, menos ainda, às gerações futuras. O que se vê hoje é que o trabalho virou sinônimo de falta de garantias, de insegurança e de incertezas. Sua função é servir ao capital flutuante, que pode descartá-lo tão rapidamente quanto se movimenta.

O que parece ter ocorrido é uma inversão da relação capital-trabalho, em que os capitalistas apenas pagavam o mínimo necessário à reprodução da capacidade de trabalho dos trabalhadores. As empresas hoje pagam aos empregados o tempo que eles trabalham para elas, mas demandam toda a sua capacidade, sua vida inteira e toda sua personalidade. Os trabalhadores do capitalismo global devem lutar contra os capitalistas e também contra si mesmos. A competição veio para dentro dos escritórios das empresas: "o trabalho significa testes diários de capacidade e dedicação, méritos acumulados não garantem a estabilidade futura" (Lipovetsky, 2007, p. 58).

Desse modo, "a frustração, o isolamento e a competição dominam a condição dos empregados" (Bauman, 2001, p. 116), o que na sociedade capitalista dos trabalhadores inaugura uma nova forma de precariedade tipicamente moderna: a exclusão socioeconômica é o que espera pelos trabalhadores que não se enquadram nessa situação de concorrência, afastamento coletivo e desconfiança em relação à continuidade de seus bens e de sua sobrevivência. Pois, na lógica capitalista, o conforto (material e psíquico) adquirido advém da acumulação de bens e do apego material – dito de outra forma, o "ter" é proporcional ao "preservar" e, portanto, proporcional ao "medo de perder". Dessa forma, "o medo de perder" tem como parâmetro o "medo de não ter", que significa fracasso na lógica do capital. Da mesma forma, a acumulação material cumpre uma meta capitalista engendrada pelo sucesso sustentado pelo consumismo.21 Ora, essa dinâmica de obsolescência programada (dos bens e das pessoas) e o estereótipo de fracassado que o não consumidor e o desempregado adquirem na sociedade atual não podem ser nem um pouco menosprezados se quisermos entender a "nova" condição do trabalho e dos trabalhadores.

O fato é que, nos últimos quarenta anos, o Estado se tornou um criado da economia global. Não consegue mais exercer sua função de cuidar e proteger seus trabalhadores. As desregulamentações advindas das forças do mercado e a submissão do Estado aos efeitos negativos da globalização (globalização do crime, dos negócios e do terrorismo, mas não das instituições políticas e jurídicas capazes de controlá-los), precisam ser pagas, e o são, por meio da ruptura e da ruína social, "da fragilidade dos vínculos humanos, transitoriedade das lealdades comunais e revogabilidade dos compromissos de solidariedade" (Bauman, 2008, p. 178), dificultando ou até mesmo minando a ação do Estado de bem-estar social. E, com esse enfraquecimento das redes de proteção dos direitos sociais, dá-se uma insegurança na hora de elaborar planos. Os mercados globais crescem sobre essas condições de insegurança, eles se beneficiam do medo, uma vez que solapam o Estado, fazendo que o indivíduo procure soluções individuais para os problemas que foram socialmente produzidos: é nesse terreno que a precariedade do trabalho se assenta e ganha força.

Essa progressiva desfiguração das defesas que o Estado mantinha contra os temores individuais (de que os sujeitos, ao menos, encontrariam meios materiais para sua subsistência) levou o trabalhador moderno a uma situação de desproteção incondicional. Os arranjos para defesa coletiva parecem estar cada vez mais fracos, fazendo que o sujeito procure e pratique sozinho as soluções que vier a encontrar. Contudo, as escolhas individuais (sem base coletiva, de proteção e segurança) engendram surpresas e desafios, o que pode propiciar um volume crescente de incertezas.

Essa desfiguração das defesas que o Estado mantinha contra os interesses capitalistas, bem como o enfraquecimento de sua estrutura de apoio social e econômico aos indivíduos, fez que a precarização do trabalho, atualmente, se apresente no deslocamento da esfera da segurança – ou seja, da autoconfiança e da autossegurança – para a da proteção – do abrigo e exposição às ameaças (Bauman, 2008). A primeira esfera, quando foi despida progressivamente de seus mecanismos institucionais que eram apoiados e garantidos pelo Estado, se tornou refém das incertezas do mercado e transformada em um parque de diversões das forças globais que operam no espaço dos fluxos que fica fora do alcance do poder político – e, desse modo, também distante da capacidade de suas vitimas de reagir de modo apropriado, e menos ainda de revidar de maneira efetiva. As políticas de ordem coletiva, que eram endossadas contra as desgraças individuais, e que no último século receberam o nome de Estado de bem-estar social, estão agora tão reduzidas que não podem mais validar e sustentar a segurança. O que podem fazer é tentar, e com muito esforço, prevenir-se contra as próximas aspirações e interesses das elites econômicas globais.

O neoliberalismo (essa aposta no mais forte, no melhor preparado) apresenta-se como a ideologia possível e viável ao planeta. E poucos são os líderes capazes de enfrentá-lo. A sociedade não é mais protegida adequadamente pelo Estado, o Estado-nação perdeu grande parte de seu poder de vigília. A maior parte de suas ações é relegada a políticas individuais – um Estado de proteção pessoal. Contudo, o foco sobre a precarização do trabalho e da vida dos trabalhadores – que ameaça suas vidas e condições sociais – se revelou intimamente ligado ao sentimento de vulnerabilidade social, advindo (não de modo claro para nossos políticos) da desregulamentação econômica e da correspondente substituição da solidariedade social pela autoconfiança individual, derivada da lógica competitiva exacerbada imposta pela globalização neoliberal aos trabalhadores, especialmente os de países periféricos.

E essa dinâmica de obsolescência programada (dos bens e das pessoas) – bem como o estereótipo de fracassado que o não consumidor e o desempregado adquirem na sociedade atual – incita vários outros medos e inseguranças nos trabalhadores. No mundo do capitalismo globalizado – da globalização negativa – é a insegurança do e no trabalho que importa e que domina em face de um futuro incerto; de uma lógica da globalização que se exerce independentemente dos indivíduos; de uma competição liberal exacerbada; de um desenvolvimento desenfreado das tecnologias da informação; de uma precarização do emprego; ou de um aumento ou estagnação do desemprego (Charles, 2007, p. 28).

 

Considerações finais

Na era pré-moderna, a massa de pessoas que estava livre e perdida com o fim do feudalismo, que buscava um novo horizonte a seguir e estava facilmente sujeita a outra dominação que não mais a feudal, foi capturada pela grande transformação que a revolução capitalista (pautada no industrialismo) trazia. O novo modo de produção acabou por decretar o fim do campesinato, que estava enfraquecido, e com ele a ligação natural entre terra, trabalho humano e riqueza (Marx, 1960). As consequências dessa separação – dos trabalhadores em relação a suas fontes de existência – foram fundamentais para que a produção e a troca deixassem de se inscrever num modo de vida indivisível, onde produtores e produtos estavam intrinsecamente ligados, e assim criaram-se as condições para que o trabalho (junto com a terra e o dinheiro) fosse considerado como mera mercadoria e tratado como tal.

Ao descobrir que o trabalho era a fonte da riqueza, a razão capitalista tinha de utilizar e explorar essa fonte de modo mais eficiente do que nunca. A libertação da economia de suas amarras tradicionais – políticas e éticas –, o desenvolvimento sem precedentes do princípio de mercado, em detrimento do princípio de comunidade, as pressões para o fim do Estado de bem-estar social e a utilização da técnica, na esfera econômica, com a mecanização e a racionalização da produção, tornaram isso possível.

O fim da Guerra Fria e a fragmentação dos projetos nacionalistas de Estado adicionaram um componente político decisivo para a exploração definitiva da força de trabalho e a unificação do mercado mundial, consolidando a globalização neoliberal pautada na revolução técnico-científica da produção e gerencial do trabalho que, por sua vez, possui dois objetivos indissociáveis: aumentar a produtividade do trabalho ao passo que diminuiu custos de produção, e provocar a derrocada das principais instituições trabalhistas (sindicato, partido etc.).

Fundamental nesse contexto foi a crise de acumulação capitalista dos anos 1970, que levou à derrocada o Estado de bem-estar social. Por meio de uma ofensiva político-cultural da política neoliberal – do governo Reagan nos EUA, Thatcher na Grã-Bretanha, Khol na Alemanha e Nakasone no Japão – e do modelo cultural toyotista de produção, foi possível reordenar o processo de acumulação capitalista à custa da precarização das condições de vida e de trabalho das massas populares, bem como de sua habilidade de intervenção política.

Nesse processo os maiores beneficiários são a oligarquia financeira e as empresas multinacionais. É o capital financeiro que mais pressiona a abertura das fronteiras nacionais, por meio da privatização das empresas estatais e da desregulamentação das relações de trabalho. Por outro lado, as multinacionais, com seu poderio político e econômico, leva a produção a adquirir uma lógica urgentista, flexível e altamente predatória dos trabalhadores e dos recursos naturais.

Para finalizar, podemos dizer que o capitalismo, em sua forma atual, apresenta-se como um parasita dos países subdesenvolvidos e de seus trabalhadores precarizados. Disfarçado sob um discurso positivo – o dos ideólogos da globalização –, ele adentra e se estabelece nessas áreas. O Estado é o corpo – o organismo como um todo – que ele vai atacar primeiro. Os trabalhadores (as células desse corpo) são seu nutriente, seu abrigo e seu meio de transporte. E, caso esse organismo e suas células não sejam capazes de exercer tais funções, ele logo os destruirá, buscando uma nova área a ser explorada, e deixando, em seu caminho, um rastro de destruição.

Nossa vida tem se mostrado diferente do estilo de vida que os sábios do Iluminismo e seus discípulos e herdeiros avistaram e procuraram planejar. O trabalhador contemporâneo está sendo chamado a se tornar o centro de suas próprias referências e assim encontrar seu lugar na ordem do universo. Entretanto, essa não é uma tarefa fácil para aqueles que são frutos da geração do capitalismo neoliberal, do individualismo exacerbado, do egoísmo radical, do delírio consumista, da cultura do hedonismo, do desinteresse no social e do desinvestimento na política e no político.

 

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Endereço para correspondência
dirceudamiao@hotmail.com, sueli.felix@uol.com.br

Recebido em: 20/08/2012
Revisado em: 02/04/2013
Aprovado em: 04/04/2013

 

 

1 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Marília.
2 Doutora em Geografia Humana. Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Marília.
3 Em sua constituição, a modernidade propunha uma rejeição à tradição feudal e aos dogmas religiosos como formas de construção do conhecimento e de experimentação do mundo. O conhecimento deveria passar – a partir, principalmente, do regate da filosofia racionalista grega, com Descartes (2008) e o racionalismo mecanicista – pelo contínuo e crescente entendimento racional do mundo. E esse movimento é caracterizado por uma constante secularização da cultura (Weber, 2003), culminando no desencantamento do mundo, uma condição inteiramente inovadora de experiência mundana. Sua intenção – involuntária –, por sua vez, "consistia na profanação do sagrado, num repúdio às amarras tradicionais do passado e no esgotamento das crenças e lealdades associadas às relações de comunidade e de servidão religiosa" (Bauman, 2001, p.8). Não por acaso, os primeiros sólidos habituais a serem combatidos pela modernidade foram "as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas" dos habitantes dos feudos (Bauman, 2001, p. 10).
4 A modernidade encontrou sua base teórica de articulação na herança intelectual e cultural dos projetos Iluminista e Renascentista, que (re)colocavam o homem no centro das atenções, por meio de um resgate da Antiguidade clássica – com suas noções de liberdade individual e Estado republicano – e, sobretudo, da razão como forma de conhecimento e organização social, em contraste com os parâmetros medievais (escolástica, fé incontestável e poder absoluto da igreja), que vinham se deteriorando paulatinamente (Weber, 1996).
5 A discussão desse processo paradigmático da modernidade está, principalmente, em Santos (1991). Também se encontra em Oliveira (1999).
6 Podem ser destacadas algumas causas e consequências desse novo modo de pensar e se portar frente à realidade. A revolução copernicana que deslocou o homem e a terra do centro do universo; a revolução das navegações, que alargou as fronteiras do mundo conhecido e do comércio; a reforma protestante, que sacudiu as certezas dos fiéis em relação à fé e à salvação; o surgimento das primeiras grandes aglomerações de pessoas (cidades), que provocaram o convívio entre indivíduos desconhecidos e balançaram a segurança da vida comunitária e da tradição; a invenção dos primeiros instrumentos científicos sofisticados, permitindo uma abordagem mais técnica do mundo e um consequente questionamento aos dogmas criacionistas da igreja; a redescoberta do mundo greco-romano; e o desenvolvimento dos meios de comunicação, permitindo a circulação e a relativa democratização das novas ideias (Khel, 2009).
7 Bauman (2001), Giddens (1999, 1996), Arendt (2007) Elias (1990), entre outros.
8 Não queremos entrar nessa discussão, pois esse não é o objetivo de nosso trabalho, mas, em caráter de informação, é importante salientar que a crítica da modernidade como projeto parece ter surgido há muito mais tempo do que podemos imaginar. Anderson (1998) aponta o início dessa condenação quando as duas grandes narrativas que davam força aos mitos justificadores dela perdem força. A primeira delas, a Revolução Francesa, que colocava a humanidade como agente heroico de sua própria libertação através do avanço do conhecimento; e a descendente do idealismo alemão (hegeliano), que via o espírito como progressiva revelação da verdade. Lyotard (1979) vai além e vê o enfraquecimento da modernidade a partir do eclipse de outras grandes narrativas, como o socialismo clássico, a redenção cristã, o progresso iluminista, a unidade romântica e o equilíbrio keynesiano.
9 O termo foi cunhado em 1938, no encontro de Colloque Walter Lippmann, pelo sociólogo alemão e o economista Alexander Rüstow. Refere-se a uma redefinição do liberalismo clássico, influenciado pelas teorias econômicas neoclássicas. Segundo Bourdieu, o programa neoliberal "tende globalmente a favorecer a ruptura entre a economia e as realidades sociais". Seria "um programa de destruição metódica do coletivo", isto é, de "todas as estruturas coletivas capazes de interpor obstáculo à lógica do mercado puro" (Bourdieu, 1998), tais como as nações, cuja margem de manobra não para de diminuir; os grupos de trabalho (mediante, por exemplo, a individualização de salários e carreiras em função de competências individuais, com a consequente atomização dos trabalhadores); os coletivos de defesa dos direitos dos trabalhadores, sindicatos, associações, cooperativas; e a própria família, que, por meio da constituição de mercados por classes de idade, perde uma parte do seu controle sobre o consumo.
10 Segundo Migliol (1999, pp. 154-155), desde a Antiguidade o mundo tem apresentado uma tendência à globalização. Essa tendência se expressa nas tentativas de formação de grandes impérios, em geral politicamente organizados sob um comando geral. Nessa perspectiva, temos de pensar em termos de uma integração e uniformização dos povos, situados em diferentes regiões, abrangendo áreas contíguas ou não, de vastas dimensões. O império Assírio (850 a 650 a. C.) talvez seja o primeiro caso relevante dessa tendência. Depois vieram o império Persa (século VI a. C.) e o grego (século IV a. C). O caso mais notável, na Antiguidade, entretanto, foi o do império Romano, que teve seu apogeu no século II a. C. Apesar de na Idade Média essa tendência à globalização perder considerável força, a expansão do cristianismo na Europa, do islamismo na Ásia e norte da África e a constituição de novos impérios nessas regiões, como o Reino dos Francos, o Sacro Império Romano e o Califado dos Abássidas, mostram que o processo não regrediu ao seu esgotamento.
11 Apesar de a tendência à globalização ser notável desde tempos antigos e se acentuar no decorrer da história, e, embora as várias tentativas de integração e unificação dos povos apresentem características comuns, não podemos exagerar na procura de semelhanças entre elas, pois ocorreram em diferentes momentos históricos e em circunstâncias determinadas. Ademais, o processo de globalização não é cumulativo. Se o fosse, considerando sua longa história, estaríamos vivendo agora num planeta completamente unificado e homogeneizado (Ianni, 1992).
12 De acordo com o relatório de 2006 do Banco Mundial, o consumo de um cidadão de Luxemburgo era 62 vezes superior ao de um habitante da Nigéria. Do total da riqueza produzida no mundo, 80% ficava com 1 bilhão de pessoas que vivem nos países ricos, enquanto 5 bilhões de pessoas, quase todas em países pobres, dividiam o restante. A Organização Internacional do Trabalho revelou que: a renda anual de cada pessoa que faz parte dos 20% mais ricos do mundo chegou a 32,3 mil dólares em 2002 e cresceu nada mais nada menos que 183% em 40 anos; já a renda anual por pessoa dos 20% mais pobres foi de 267 dólares, com o minguado aumento de 26% desde 1962. Há 250 anos, a diferença de renda entre um habitante do país mais rico e outro do mais pobre era, talvez, de cinco para um. Agora, a diferença em termos de renda per capita entre a nação industrial mais rica, a Suíça, e o mais pobre país não industrial, Moçambique, é de cerca de 400 para 1. São poucos os países que alcançaram crescimento econômico considerável nas últimas décadas e escapam desses números. É o caso de Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul. Dados da matéria "Cada vez mais distantes", da revista Desafios do Desenvolvimento, de setembro de 2007. Texto recuperado em 21 de janeiro, 2013, de www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=954:reportagens-materias.
13 Segundo Vilas (1999, p. 47), o Estado tem um papel contraditório no desenvolvimento capitalista, o que poderia levar a essa interpretação equivocada. Nos últimos 500 anos, o mundo pressionou a passagem do estadismo mercantilista ao liberalismo dos "burgueses colonizadores", retornando logo ao intervencionismo imperialista de fins do século XIX, passando pelo livre empreendedorismo da década de 1920, que conduziu à crise de 1929, para regressar ao intervencionismo keynesiano e socialdemocrata. Depois, em meados de 1980, com a politica neoliberal, o Estado redescobriu as benesses do mercado, e agora mostra, novamente, sinais de retorno ao intervencionismo a partir da crise de 2008.
14 Dados do Ministério do Planejamento de 01 de setembro de 2006. Recuperado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Privatização_no_Brasil
15 É importante observar como os trabalhadores mexicanos, por exemplo, estão reféns das multinacionais norte-americanas, por meio da política econômica do Nafta (North American Free Trade Agreement, em português: Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), acordo envolvendo Canadá, México e Estados Unidos e tendo o Chile como associado, numa atmosfera de livre comércio, com custo reduzido para troca de mercadorias entre os três países.
16 Os "velhos" Estados nacionais também perdem certos atributos da soberania, seja por processos de integração, como no caso da União Europeia, seja pela aceleração da globalização, com as grandes empresas que tendem a perder suas feições nacionais. Em princípio, quatro ou cinco companhias, a exemplo de Boeing, Microsoft, Martin-Mariette ou Shell, podem impor suas vontades a qualquer governo, especialmente no Terceiro Mundo. O mar Cáspio oferece um exemplo impressionante de todas essas contradições. Os Estados da Ásia Central e o Azerbaidjão aspiram ao desenvolvimento de seus recursos naturais, mas não têm meios para isso. Tornam-se então reféns, por um lado, das grandes multinacionais, e, por outro, dos Estados Unidos (dados apresentados por Oleg Pavlov, jornalista do Le Monde, em matéria de setembro de 2000).
17 Referência ao conceito de "Panóptico", de Jeremy Benthan, utilizado por Michel Foucault em seu livro Vigiar e punir. Trata da vigilância e da ênfase nas mudanças e rupturas fundamentais que presumivelmente ocorreram no século XVII, a partir de arranjos sociais em que muitos vigiavam poucos, para atividades de vigilância modernas, nas quais poucos vigiam muitos.
18 Como Francesco Matarazzo – agricultor italiano que, em 1881, emigrou para o Império do Brasil (1822-1889), tornando-se, neste país, mascate e, posteriormente, empresário. "Matarazzo morreu na condição de homem mais rico do país, com uma fortuna de 10 bilhões de dólares estadunidenses, sendo o criador do maior complexo industrial da América Latina do início do século XX. A riqueza produzida por suas indústrias ultrapassava o PIB de qualquer estado brasileiro, exceto São Paulo" (Moraes, 1994, p. 347) – e Barão de Mauá – considerado o primeiro industrial brasileiro, foi pioneiro em várias áreas da economia do Brasil. Dentre suas maiores realizações, encontra-se a implantação da primeira fundição de ferro e estaleiro no país, a construção da primeira ferrovia brasileira, a estrada de ferro Mauá, no atual estado do Rio de Janeiro, o início da exploração do rio Amazonas e afluentes, bem como o Guaíba e afluentes, no Rio Grande do Sul, com barcos a vapor, além da instalação da iluminação pública a gás na cidade do Rio de Janeiro, a criação do primeiro Banco do Brasil e a instalação do cabo submarino telegráfico entre a América do Sul e a Europa.
19 Eike Batista – empresário brasileiro com atuação em diversos setores, em especial nos de petróleo, logística, energia, mineração, indústria naval e carvão mineral, com patrimônio estimado em 30 bilhões de reais, sendo o sétimo homem mais rico do mundo (Estadão, 7 de março de 2012) – e Bill Gates – fundador, com Paul Allen, da Microsoft, a maior e mais conhecida empresa de software do mundo em termos de valor de mercado, um dos três homens mais ricos do mundo (Forbes, 11 de março de 2009) – provavelmente não sentiriam remorso ao abandonar posses que lhe davam orgulho ontem, se o investimento de amanhã for mais lucrativo.
20 Ao longo dessas negociações entre trabalhadores e patrões, não se pode esquecer das reivindicações que aqueles constantemente faziam e suas consequentes conquistas, como as leis trabalhistas e o sistema previdenciário.
21 "Pode se dizer que o 'consumismo' é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humano rotineiros, permanentes e, por assim dizer, 'neutros quanto ao regime', transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos, desempenhando ao mesmo tempo um papel nos processos de autoidentificação individual e do grupo, assim como na seleção de execução de políticas de vida individuais. O 'consumismo' chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade dos produtores era exercido pelo trabalho" (Bauman, 2008b, p. 41).