SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número2Modernidade e globalização neoliberal: a "nova" condição do trabalho e dos trabalhadores no contexto da mentalidade de curto prazoImplicações das políticas educacionais nas vivências subjetivas de professoras de escolas públicas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.16 no.2 São Paulo dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A percepção de profissionais sobre o atendimento a adolescentes ofensores sexuais

 

The perceptions of professionals on the care of adolescent sexual offenders

 

 

Liana Fortunato CostaI, 1; Maria Aparecida PensoII, 2

IUniversidade de Brasília (Brasília, DF)
IIUniversidade Católica de Brasília (Brasília, DF)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apresentamos uma pesquisa qualitativa sobre avaliação de formação profissional e aquisição de conhecimento, realizada com profissionais e alunos de Psicologia que atenderam um Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores sexuais e suas famílias. Os sujeitos: 6 profissionais de Psicologia, 2 estudantes de Psicologia, uma profissional do Serviço Social e um profissional do Serviço Social. O instrumento: questionário aberto enviado por correio eletrônico. A discussão dos resultados foi através de análise de conteúdo. Foram construídos três eixos: Aquisição de novos conhecimentos e a formação profissional; Particularidades no treinamento para atender autores de violência sexual e Necessidades específicas de alunos e profissionais. Os sujeitos confirmaram a importância de participação em experiências práticas e também da necessidade de aprofundamento teórico sobre o tema. Perceberam a importância de treinamento em técnicas de atendimento de grupos de adolescentes. Precisamos ampliar e compreender melhor a qualificação de profissionais para atendimento a esta clientela.

Palavras-chave: Adolescente, Violência sexual, Educação, Equipes.


ABSTRACT

We present a qualitative research about an evaluation of professional education and acquisition of knowledge, developed with professionals and students of Psychology who attended a Multifamiliar Group with sexual offender adolescents and their families. The subjects were: 6 professionals of Psychology, students of Psychology, two professionals of the Social Service. The instrument: an open questionnaire sent by electronic mail. The discussion of the results was made through analysis of content. Three axles were construed: acquisition of new knowledge and professional education; particularities in training to attend sexual violence perpetrators and specific needs of students and professionals. The subjects confirmed the importance of participating in practical experiences and also of the need of deepening theoretical basis on the matter. They realized the importance of training in techniques of attending groups of adolescents. We need to enlarge and understand better the qualification of professionals to attend this kind of client.

Keywords: Adolescent, Sexual violence, Education, Teams.


 

 

Introdução

Este texto apresenta o recorte da avaliação que faz parte de uma pesquisa mais ampla sob o nome de "Grupos Multifamiliares com adolescentes agressores sexuais". O recorte da avaliação trata de questões de formação profissional e aquisição de conhecimento e habilidades específicas, realizada com profissionais de Psicologia e Serviço Social e alunos de Psicologia que atenderam um Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores sexuais e suas famílias em um ambulatório público de atendimento a crianças e adolescentes. O projeto de pesquisa qualitativa, numa perspectiva de pesquisa-ação, inclui o treinamento da equipe e o oferecimento do Grupo Multifamiliar. Nosso objetivo com este texto é avaliar a percepção dos profissionais sobre suas necessidades, seus sentimentos e suas reações ao atendimento desses adolescentes no Grupo Multifamiliar. Esses profissionais e alunos fizeram parte do treinamento e em seguida atenderam o Grupo Multifamiliar.

O tema do treinamento para atendimento a ofensores sexuais, sejam eles adolescentes ou adultos, recebe uma enorme atenção nos países de língua inglesa. No entanto, encontramos diferenças nos aportes a esse tema. Temos textos que se dirigem às questões do treinamento e suas especificidades (Craig, 2005; Marshall, 2001), enquanto outros textos tratam do tema do estresse a que está submetido o profissional que atua com esse tipo de trabalho (vicarious trauma) (Moulden & Firestone, 2007; Scheela, 2001; Way et al., 2004), e outros enfocam as habilidades para o manejo do atendimento a essa população (Forensic Psychology Pratice, 2006; Marshall et al., 2005; Oliver, 2007). No Brasil, ainda estamos iniciando, de forma muito incipiente, esta trajetória de conhecimento das reações e percepções desses profissionais sobre os elementos que compõem esta qualificação específica. O tema do conhecimento do que se passa com o profissional que atende situações de violência vem sendo visto como "cuidado com o cuidador" (Correa, Labronici & Trigueiro, 2009; Machado & Merlo, 2008). Nosso propósito é contribuir para o aprofundamento do conhecimento sobre o trabalho com os ofensores sexuais adolescentes e sobre o profissional que atende esses sujeitos, que merece atenção em estudos específicos, em função de alto grau de estresse presente em sua atividade laboral – porque esta envolve um tema cercado de tabus e preconceitos. Os autores mencionados enfatizam os cuidados necessários e uma qualificação especial para esses atendimentos, já que o ofensor sexual, adolescente ou não, é visto como um sujeito dissimulado que tem capacidade de planejar seus atos cuidadosamente.

Assinalamos que nossa concepção de adolescência refere-se a um sujeito visto em fase de transição de seu desenvolvimento, ainda com grande dependência de sua família, vivendo conflitos de pertencimento e separação desse grupo (Fishman, 1989), e que, portanto, deve ser atendido com privilégio para essa condição de interdependência dos adultos (Timmons-Mitchell, Bender, Kishna & Mitchell, 2006). Também deve ser levada em conta a dificuldade de se apontar um diagnóstico definitivo da transgressão sexual nessa idade (Chagnon, 2008).

 

Sobre qualificação profissional

A importância do treinamento específico para atendimento a vítimas de violência sexual ou a ofensores sexuais é sabidamente reconhecida nos países que oferecem intervenções sistematizadas a esses sujeitos, como Estados Unidos (Madanes, Keim & Smelser, 1997; Oliver, 2007; Way et al., 2004), Reino Unido (Craig, 2005; Mandeville-Norden & Beech, 2006), Canadá (Moulden & Firestone, 2007; Seto, 2009), Austrália e Nova Zelândia (Marshall, 2001; Marshall et al., 2005; Ward, Gannon & Birgden, 2007). Sobre a relação entre o profissional e os ofensores sexuais, os estudos mostram que após a participação em treinamento há uma mudança de atitude significativa por parte do profissional para com o sujeito. As mulheres profissionais, em especial, sentem-se mais seguras e mais confiantes para prosseguir nos atendimentos (Craig, 2005). As dificuldades durante os atendimentos, bem como a efetividade dos mesmos, estão profundamente vinculadas ao oferecimento contínuo ou não de qualificação, sendo que profissionais mais experientes na função acabam por apresentar um maior desgaste e podem comprometer o sucesso do atendimento. Essa observação pode representar um paradoxo, pois esses mesmos profissionais, por sua maior qualificação, também podem oferecer maior experiência e melhor aplicação dos conhecimentos teóricos. As comparações entre as reações dos profissionais a ofensores sexuais e não sexuais elucidam a necessidade de se ter um treinamento específico para o primeiro grupo, porque as atitudes negativas e de rejeição são maiores nesse grupo do que para outros tipos de crimes. O treinamento específico capacita o profissional para uma melhor execução da intervenção.

Craig (2005) sugere que o treinamento contenha informações pertinentes sobre violência sexual e seus aspectos teóricos e técnicos, sobre manejo de situações, sobre prevenção e recidiva. Em nosso país, o atendimento a ofensores sexuais ainda sofre de uma carência extrema, o que faz que quase não encontremos exemplos e descrições de ações deste tipo. Podemos indicar a mesma realidade de carência de discussões sobre treinamento e qualificação para atendimentos a adolescentes, seja em contexto clínico ou psicossocial, em modalidade de abordagem individual ou grupal. Mesmo no que diz respeito à atenção ao adolescente em geral, as políticas de saúde são recentes. Vale ressaltar o empenho da área de Saúde do Adolescente e do Jovem do Ministério da Saúde, responsável pela elaboração da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e de Jovens (Brasil, 2005), que assumiu o compromisso de incorporar a atenção à saúde desse grupo populacional, à estrutura e mecanismos de gestão, à rede de atenção, às ações e rotinas do Sistema Único de Saúde (SUS), em todos os seus níveis.

Outra área na qual tem sido encontrada uma literatura sobre adolescentes é a Enfermagem, que parece se preocupar em descrever as experiências de qualificação para seus alunos no atendimento a adolescentes internos em ambientes hospitalares. Souza e Oliveira (2007) mostram que o mais desafiador no treinamento de alunos para o atendimento direto a adolescentes com sérios problemas orgânicos é a mudança de atitude frente a esses sujeitos, ou seja, a mudança no oferecimento de ações de cuidado corretas. Em uma avaliação com enfermeiros, Ferrari, Thomson e Melchior (2006) observaram que o atendimento ao adolescente não é priorizado com relação ao atendimento ao adulto, desrespeitando as orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990): "É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária" (Artigo 4º). Além disso, esse mesmo estudo apontou que os profissionais se sentem despreparados para o atendimento a adolescentes em relação à demanda dessa parte da população ser pouco definida. Também reconhecem suas limitações para esse tipo de trabalho, embora empreendendo ações mesmo sem treinamento específico. Portanto, tais exemplos ilustram nossa constatação de que essa fase de desenvolvimento não tem sido aquinhoada com investimento para a formação de profissionais qualificados em seu atendimento. Os programas acadêmicos têm se mantido distantes dessa população, do mesmo modo que os serviços de saúde.

 

O Grupo Multifamiliar com adolescentes ofensores sexuais

Os Grupos Multifamiliares foram conhecidos inicialmente pela denominação de Terapia Familiar Múltipla, que consistiu em uma adaptação da técnica de grupo ao tratamento de famílias levada a cabo no início na década de 1950 com famílias de pacientes psicóticos (Laquer, 1983). As vantagens dessa abordagem evidenciam que as famílias se sentem mais à vontade reunidas, quando há maior focalização em suas interações. Recentemente, temos sistematizações dessa abordagem para situações de abuso sexual em autores como Costa, Penso e Almeida (2005), Costa, Ribeiro, Penso e Almeida (2008) e Costa, Almeida, Ribeiro e Penso (2009). Essas autoras adaptaram a abordagem grupal como intervenção psicossocial, reunindo famílias numa modalidade de atendimento "sob obrigação", a partir de encaminhamento da Justiça.

Em linhas gerais, a modalidade de Grupo Multifamiliar fundamenta-se nos aportes teóricos da Psicologia Comunitária, da Terapia Familiar, do Sociodrama e da Teoria das Redes Sociais. Tem o formato de quatro ou cinco sessões, com duração de três horas cada uma. Desenvolve-se com ênfase no aspecto lúdico de jogos dramáticos, onde os dramas concretos são intermediados pelos jogos, produzindo a vivência sensibilizada. Preocupa-se com um enfoque de responsabilização dos pais pela presença da violência na família, procurando enfatizar o papel de cuidadora das mães, pois, na maioria dos casos, são elas que estão mais presentes no cotidiano doméstico e assumem cuidados diretos com as crianças e adolescentes.

A metodologia utilizada é uma adaptação da sessão psicodramática (Costa, 1998), que se desenvolve em três etapas bem definidas: a) aquecimento, no qual todas as famílias estão juntas e se procura atingir melhor integração grupal, bem como aquecer todos para o aprofundamento do tema específico daquele dia; b) aprofundamento de um dos objetivos do grupo, por meio da subdivisão em subgrupos de adultos, adolescentes e crianças, utilizando jogos, dramatizações, discussões, conforme a adequação ao subgrupo, sendo que, ao final dessa etapa, cada subgrupo prepara um informe de sua produção para ser apresentado aos demais; c) nova reunião de todos os participantes, a fim de que eles compartilhem essa produção variada, para que todos tenham conhecimento do que cada um pensa sobre os temas daquele dia (Costa et al., 2005).

No caso do Grupo Multifamiliar para adolescentes agressores sexuais, o critério de seleção das famílias é por semelhança de problemática. As mudanças se dão por semelhança, quando as famílias presenciam seus conflitos em outras famílias, e por identificação, quando pais e mães aprendem com outros as soluções já encontradas. O Grupo Multifamiliar para adolescentes agressores sexuais tem como proposta o desenvolvimento dos seguintes temas: "Proteção", "Sexualidade", "Abuso sexual é um crime", "Transgeracionalidade" e "Projeto de namoro futuro". São convidados a participar: os adolescentes, seus familiares (pais, irmãos), a família extensa (avós, tios) e pessoas que tenham participação significativa na vida daquele que está envolvido com o problema.

 

Método

Contexto: a pesquisa foi realizada em um ambulatório público de saúde mental (Centro de Orientação Médico Psicopedagógico – COMPP, unidade de Saúde Mental Infanto-juvenil que compõe a Rede de Proteção a Crianças e Adolescentes no que diz respeito ao atendimento às vítimas e vitimizadores sexuais no Distrito Federal). O Grupo Multifamiliar teve a duração de agosto a dezembro de 2009, nas seguintes etapas: agosto – treinamento da equipe e entrevistas com as famílias inscritas no Grupo Multifamiliar; de agosto a dezembro – atendimento e supervisão dos Grupos Multifamiliares, com intervalos quinzenais e intercalados com atendimento/supervisão; dezembro – avaliação. Mencionam-se as etapas do desenvolvimento do Grupo Multifamiliar, bem como os critérios para aceitação dos adolescentes, para informar acerca do contexto institucional e grupal, facilitando, assim, a compreensão da tarefa que os profissionais e alunos tiveram de cumprir. No entanto, o recorte deste texto tem como sujeitos os componentes da equipe de atendimento e se limita à aplicação do instrumento descrito a seguir.

Os critérios para a composição do grupo são: sexo masculino; 12 a 18 anos; ser cliente do ambulatório ou ser encaminhado por qualquer entidade pertencente à Rede de Proteção da Criança ou do Adolescente; estar com os vínculos familiares preservados; ter denúncia de envolvimento em situações de violência sexual contra crianças; estar ou não em cumprimento de medida socioeducativa (Liberdade Assistida – LA, Prestação de Serviço Comunitário – PSC ou Semiliberdade).

É importante apontar que o Grupo Multifamiliar, a partir desses critérios, define sua amostragem de atendimento a adolescentes que cometeram abusos sexuais decorrentes de "práticas educativas erradas" (Chagnon, 2008), e não por diagnóstico de patologias observadas. Chagnon chama de "práticas educativas erradas" as orientações aos filhos caracterizadas por autoritarismo e comportamentos violentos, como surras, espancamentos, xingamentos. A presença dessas condutas afasta emocional e afetivamente os adolescentes das figuras de autoridade e acolhimento.

Participantes: os sujeitos foram os componentes da equipe: seis profissionais de Psicologia do sexo feminino, duas estudantes de Psicologia do sexo feminino, uma profissional do Serviço Social do sexo feminino e um profissional do Serviço Social do sexo masculino. Mesmo estando o foco na formação do profissional de Psicologia, serão consideradas as respostas dos assistentes sociais presentes na equipe, visto que o trabalho com esta problemática quase sempre pressupõe a existência de equipe multiprofissional. Além disso, esses profissionais têm conhecimento especializado em família. A Tabela 1 traz maiores informações sobre os sujeitos.

Instrumento: o instrumento constituiu-se de um questionário aberto enviado por correio eletrônico para ser respondido e devolvido da mesma forma, a pedido dos próprios respondentes. Nos questionários devolvidos, deveriam constar dados de identificação, formação acadêmica e experiência profissional do respondente. Os itens constantes desse questionário foram: a) Dados pessoais; Formação; Tempo de atuação com violência; b) Você teve alguma dificuldade na participação no GM em função da presença de um ofensor sexual no grupo? Qual? Por quê? Como você classifica essas dificuldades? (de ordem pessoal, de ordem profissional e emocional etc.); Ou, ao contrário, você não sentiu dificuldade? Por quê? Nesse caso, qual seria o motivo pelo qual foi mais fácil lidar com essa situação? Qual o efeito sobre suas emoções, ao entrar em contato direto com o ofensor sexual no GM? Qual o efeito sobre seus conhecimentos, ao entrar em contato com o ofensor sexual no GM? Qual o impacto sobre sua formação profissional, ao entrar em contato com o ofensor sexual no GM? Qual o impacto sobre sua vida pessoal, ao entrar em contato com o ofensor sexual no GM? Você considera que seus conhecimentos sobre família, violência sexual e a metodologia utilizada foram suficientes para lidar com as consequências da presença do ofensor sexual no GM? Você sentiu necessidade de aprofundar alguma questão teórica ou metodológica para melhor lidar com a presença do ofensor sexual no GM? Como você avalia essa experiência em termos de amadurecimento pessoal e profissional? Sua visão sobre violência sexual, família, agressor sexual, criança/adolescente abusado mudou no decorrer do contato com o ofensor sexual? Em que sentido?; Das questões apresentadas pelo ofensor sexual, alguma o mobilizou mais? Qual? Como? Por quê? Este é um espaço para que você possa colocar alguma informação que ache relevante e que não foi prevista nas questões anteriores.

Procedimentos: após o término do Grupo Multifamiliar, a responsável pela pesquisa enviou os questionários a todos que participaram do mesmo. A responsável foi a pessoa encarregada de cobrar a recolher as respostas. Houve um intervalo de dez dias entre o envio e a chegada de todos os questionários respondidos.

Cuidados éticos: pesquisa foi inscrita no Comitê de Ética da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS) da Secretaria de Estado de Saúde do Governo do Distrito Federal (GDF) e aprovada com o parecer nº 421/2009.

Analise das informações: González-Rey (2005) propõe uma perspectiva da análise de conteúdo que contém três aspectos essenciais: o processo de construção e o caráter interpretativo das informações; a ênfase no aspecto relacional entre a subjetividade do pesquisador e a dos entrevistados; e a produção do conhecimento propriamente dita. Essa proposta configuracional se apoia na expressão de indicadores, que revelam os fenômenos e são unidades processuais que abrangem recortes e ajustes epistemológicos, de acordo com o problema proposto. Os indicadores são produzidos durante o próprio processo de investigação e análise, constituindo ferramentas essenciais para a definição das zonas de sentido. As zonas de sentido são a integração dos indicadores, produzindo sentidos e compondo conjuntos de interpretação – que não possuem a pretensão de generalização, mas produzem um conhecimento que é contextual, próprio da experiência aqui relatada.

 

Discussão dos resultados

Após uma leitura de todos os questionários devolvidos e o levantamento dos indicadores, construímos três zonas de sentido que refletem a importância do conhecimento teórico e metodológico sobre a temática da ofensa sexual, a centralidade da formação específica para realizar atendimento com essa população e a necessidade de apoio e suporte gerada pelo contato com o tema. Todas estas reflexões se dirigem ao questionamento da atuação em intervenção com agressores sexuais. São elas: 1) Aquisição de novos conhecimentos e a formação profissional; 2) Particularidades no treinamento para atender autores de violência sexual; 3) Necessidades específicas de alunos e profissionais. Nas falas que serviram de base para a discussão, a letra P e as letras SS indicam respectivamente o profissional da Psicologia e o do Serviço Social.

Aquisição de novos conhecimentos e a formação profissional

Identificou-se a necessidade de formação profissional e de ampliação de conhecimentos, incluindo a questão do trabalho com ofensores sexuais, tanto para alunos como para profissionais. Uma das conclusões dos sujeitos diz respeito à necessidade de estudar mais, de aprender outros aspectos teóricos, refazer conceitos:

Preciso estudar mais, preciso repensar "as minhas verdades absolutas", preciso acreditar, preciso trabalhar mais em grupo, que preciso permitir que o grupo tenha a sua voz ativa... A cada família atendida, nascia a necessidade de procurar, de ler, de trocar experiências e estudar mais, de poder ajudar mais, de poder fazer a diferença e aproveitar cada momento de uma maneira adequada, eficaz (Profissional P, feminino, 40 anos).

Pude perceber o quanto tenho ainda que aprender sobre esse universo... repensar e desfazer concepções errôneas sobre o assunto... O projeto me ajudou a abrir mais os olhos sobre as diferentes formas de violência que é vivenciada não apenas dentro de casa, em família... (Aluna P, feminino, 22 anos).

Estudar mais sobre violência sexual em meninos e sobre abusadores (Profissional P, feminino, 31 anos).

Há duas menções relativas ao desejo de voltar a estudar Psicologia do Desenvolvimento e rever aspectos do desenvolvimento normal do adolescente.

Desestabilizou o que pensava no início, abriu espaços para necessidade de outros conhecimentos e de uma atitude menos preconceituosa... necessidade de rever conhecimentos, principalmente na área de Psicologia do Desenvolvimento (Profissional P, feminino, 61 anos).

As discussões teóricas, que ocorreram anteriormente ao grupo, foram fundamentais para uma boa atuação... Para tanto, acredito que o aprofundamento das questões do desenvolvimento do adolescente se faz necessário durante a fase preparatória (Aluna P, feminino, 22 anos).

A experiência com o grupo parece ter servido também como alerta para o fato de a temática da adolescência ser pouco estudada nos cursos de graduação em Psicologia.

Estou refletindo melhor sobre as escolhas que fiz durante a minha graduação, investi muito pouco em atendimentos com crianças e adolescentes. Penso que isso tem a ver com questões pessoais minhas, de dificuldade de comunicação e de relacionamentos. E que esse trabalho com os adolescentes e também com as crianças do grupo me trouxe reflexão também pessoalmente sobre as maneiras como me relaciono e como as pessoas se relacionam comigo, sobre o relacionamento em grupo (Profissional P, feminino, 27 anos).

Nessa primeira zona de sentido, parece haver coerência entre o que dizem os alunos e os profissionais. Reconhece-se que é importante o estudo de tópicos específicos como violência sexual e adolescência, como preconizam os autores que avaliam os produtos de treinamentos nessa área (Craig, 2005; Moulden & Firestone, 2007; Sanderson, 2005; Way et al., 2004). Há um consenso entre esses autores de que os profissionais que atendem vítimas ou perpetradores de violência sexual estão mais expostos ao estresse advindo da relação com tais sujeitos do que outros clínicos que atendem pessoas ou criminosos com outras temáticas. Portanto, a inclusão de conteúdo teórico específico no treinamento dos profissionais auxilia na condução do processo terapêutico com maior segurança e na efetividade da intervenção.

Convém ressaltar que todos os profissionais e alunas da equipe que responderam ao questionário vêm atuando em contextos clínicos e de intervenção psicossocial. É interessante o fato de apontarem a necessidade de resgatar conhecimentos básicos que entram na graduação, como as disciplinas de Psicologia do Desenvolvimento. Uma aluna indica uma questão que foi o fato de haver evitado, durante a graduação, a realização de estágios e experiência no trato com adolescentes. Parece que a própria aluna avança um pouco, responsabilizando-se por limites e competências em sua formação teórica e metodológica bem como em sua espontaneidade. Nesse ponto, essa observação fala a favor de um investimento por parte dos Cursos de Psicologia para incentivar ou oferecer recursos, além de proporcionar condições para que os alunos se qualifiquem. Verifica-se que existe certa surpresa ao se constatar que determinados conteúdos não foram bem assimilados ou não foram devidamente valorizados. Ou ainda que a atuação com adolescentes desperta dúvidas e requer mais segurança na aquisição de conhecimento.

Vale refletir, neste caso, se a questão principal não está na construção do currículo do curso. É necessário que o currículo contemple conteúdos que abarquem a realidade prática na qual o aluno irá intervir futuramente. Este tem sido um tema recorrente nas discussões sobre a formação do psicólogo. Em suma, no que diz respeito à aquisição de conhecimento e à formação profissional, o Grupo Multifamiliar, em suas maiores temáticas de atuação – violência sexual e adolescência –, coloca tais temas em foco. No entanto, ressalta-se a necessidade de que a formação profissional de Psicólogos abranja esses pontos, que se configuram como desafios práticos no oferecimento de serviços de atendimento psicológico para a população – e, mais especificamente, para a população que frequenta os ambulatórios de saúde pública, para onde são encaminhados pelo sistema de justiça a maioria dos ofensores sexuais.

Há ainda um ponto a ser valorizado que diz respeito à aquisição de habilidades e qualidades pessoais fundamentais para o manejo de atendimentos com esses ofensores. Craig (2005), Marshall (2001), Moulden e Firestone (2007), Way et al. (2004), Oliver (2007) e Marshall et al. (2005) enfatizam o papel das atitudes acolhedoras e empáticas para o tratamento do ofensor sexual. Esses autores apontam que as medidas confrontacionais, ou a criação de um clima de confrontação entre sujeitos e terapeutas, são prejudiciais para a continuidade da terapia ou da intervenção psicossocial. A formação de um vínculo generoso e caloroso entre adolescente e terapeuta é fundamental para o sucesso do atendimento. No caso de grupos, Jennings e Sawyer (2003) acrescentam que as ações em grupo são recebidas de forma mais efetiva por essa população. Mais uma vez, reconhecemos a necessidade de formação específica para a atuação nessa área, seja em relação à atuação com grupos, seja em relação ao atendimento desses sujeitos.

Particularidades no treinamento para atender autores de violência

Nesta segunda zona de sentido, aborda-se a questão da especificidade do atendimento a autores de violência. Aparecem depoimentos sobre a necessidade de estudo do tema e da articulação entre teoria e prática, bem como o vislumbre da possibilidade metodológica de trabalho com esta problemática:

O impacto é inovador, no sentido de visualizar como é possível realizar trabalhos com adolescentes que cometeram abuso e ver, na prática, possibilidades de mudança na vida deles... Senti necessidade de conhecimento teórico sobre abuso sexual cometido por adolescentes (Profissional P, feminino, 24 anos).

O efeito gerado é de agregar à teoria e à conceituação sobre o tema um panorama mais palpável, ilustrativo, que confronta e, ao mesmo tempo, enriquece meus conhecimentos prévios sobre o assunto. São dois temas ainda carentes de diversos aportes teóricos e metodológicos e sua união em um único espaço enriqueceu bastante minha formação profissional (Profissional SS, masculino, 25 anos).

Surge também a reflexão sobre o acesso à informações que somente a experiência prática pode oferecer. Nesse sentido, torna-se muito importante a participação de alunos atuando junto a profissionais. As informações dos participantes dizem respeito à dinâmica familiar do adolescente ofensor sexual pertencente à classe socioeconômica de baixa renda, onde as responsabilidades são imputadas aos filhos muito cedo, conforme constatação de uma das entrevistadas.

As cobranças de seus familiares, o excesso de responsabilidades atribuídas a eles. A dificuldade de seus familiares em protegê-los. Quando o filho cresce, tem que assumir o papel dos pais com as responsabilidades do lar e o cuidado com os irmãos (Profissional P, feminino, 50 anos).

O estudo dessas dinâmicas familiares tem atraído tanto alunos do Curso de graduação em Psicologia como de pós-graduação. Como supervisores de estágio e orientadores de pesquisas acadêmicas na pós-graduação, entendemos que a qualificação deva ser continuada, e que os núcleos de estudos e serviços que promovem ambientes organizadores de inovações temáticas e metodológicas devam estar abertos para acolher os interessados em se qualificar. Isso deve ocorrer para que haja um retorno à rede pública de assistência – na saúde, no Serviço Social ou na Psicologia, como acontece com o serviço no qual esta pesquisa foi realizada.

Este tópico apresenta aspectos pouco conhecidos da dinâmica familiar que acabamos de citar, e que surpreenderam aqueles que participaram da pesquisa. Todas as famílias integrantes desse Grupo Multifamiliar eram de religião evangélica. Essa explicação é necessária para que possa fazer sentido o espanto – tanto da aluna como do profissional – com o fato de a religião determinar as ações punitivas levadas a cabo pelas famílias. A religião também justifica a permanência da ofensa sexual restrita ao ambiente da casa, e o fato de os adultos responsáveis pelo adolescente promulgarem e executarem a sentença – que foi o recolhimento ao lar, o afastamento de qualquer diversão e do contato com pessoas fora da família. Alguns adolescentes já se encontravam há três ou quatro anos nesse "castigo".

Uma questão que me mobilizou muito foi a questão da religião. Como ela é inserida na família após o fato da violência sexual. Em algumas surge como castigo, penitência, em outras, como forma de salvação (Aluna P, feminino, 22 anos).

A questão de o adolescente após o cometimento do abuso sexual ser visto pela sua família como um delinquente e assim excluí-lo (Profissional P, feminino, 24 anos).

Esse tribunal familiar parece se constituir com base em um fato que mobiliza e instiga alunos e profissionais, porque o adolescente é visto apenas como delinquente ou pecador. Essa resposta da família à questão da violência sexual perpetrada pelo adolescente traz uma dimensão paradoxal que mobiliza os profissionais, pois também constitui uma violência, mesmo sendo uma atitude tomada com a perspectiva de proteção, já que a família não precisa denunciar a infração do adolescente, fazendo ela mesma o papel da justiça. A aplicação do castigo independe da gravidade da violência. Compreendemos que a família sente-se extremamente envergonhada pela ocorrência do fato, assim como aponta a literatura sobre o tema (Baker, Tabacoff, Tornusciolo & Eisenstadt, 2003), e empreenderá esforços no sentido de manter em segredo os eventos violentos acontecidos em suas interações. Esses autores mostram como essa particularidade é mais observada nas famílias com violência sexual contra crianças e adolescentes.

O trabalho do profissional com o segredo familiar implica saber manejar as interações contraditórias que a família promove para comunicar e esconder a violência. O profissional pouco experiente ou o aluno mais ingênuo terá grandes dificuldades em conseguir manter o processo do atendimento terapêutico diante desses impasses, pois revelar a trama violenta significa interromper um jogo perverso, complexo e contraditório de sentimentos e afetos. Romper o silêncio é obter proteção para a vítima e desvelar uma dinâmica familiar controversa (Miller, 1994).

A forma como alguns pais resolveram realizar o seu "castigo" ou o seu julgamento particular, as penas que as famílias imputaram aos adolescentes... a falta de "contato familiar", a dificuldade de carinho... a rigidez das famílias... o sofrimento "enjaulado/aprisionado" de alguns adolescentes... (Profissional P, feminino, 40 anos).

Uma profissional indica que, num grupo assim constituído, é fundamental a presença de profissional do sexo masculino.

Acho importante a presença masculina no trabalho com adolescentes agressores sexuais (Profissional P, feminino, 61 anos).

O trabalho de pesquisa de Craig (2005) mostra que essa profissional está correta em sua observação. O autor encontrou, como resultado de sua avaliação pós-treinamento de um grupo de profissionais que atendem agressores sexuais, que existem muitas diferenças nas percepções de profissionais do sexo masculino e do sexo feminino quanto a sua segurança e a de sua família no trabalho com esses sujeitos. As mulheres estão mais preocupadas que os homens em relação a esse aspecto. Isso é muito importante, porque esse autor realizou vídeos que mostram que os profissionais podem se apresentar mais preocupados com sua segurança durante os atendimentos do que com a eficiência na implementação de conversas terapêuticas com o cliente. Nos países nos quais tradicionalmente se dá mais atenção aos agressores sexuais, o que não é o caso do Brasil, os homens constituem o maior contingente de profissionais que atendem a essa clientela.

Na realidade brasileira, são as mulheres (psicólogas e assistentes sociais) que estão atuando nesta área. Way et al. (2004) mostram que aqueles que trabalham com população de agressores sexuais expressam emoções mais intensas do que os que trabalham com outras temáticas, e, entre eles, as mulheres apresentam maior envolvimento emocional com seus pacientes. Nota-se essa proporção quando se observa o fato de que nos países de língua inglesa oferece-se acompanhamento e avaliação da atuação desses profissionais. Nossa realidade não permite que se tenha uma mera estimativa desse fenômeno, pois não conhecemos praticamente nada sobre ele. Esse envolvimento emocional significa expressar sentimentos de pena ou de medo, por exemplo. Quando isso ocorre, a capacidade de tomar decisão e/ou a interpretação de um comportamento do cliente pode ficar comprometida em sua avaliação de risco com relação a um terceiro. A importância desse tema advém de sua ligação com o estresse gerado por esse tipo de trabalho.

Por outro lado, Craig (2005) chama a atenção para as condições especiais dos profissionais com pouco tempo de experiência. Estes podem se mostrar mais impulsivos e cobrar resultados mais prontamente que aqueles mais experientes, porque os profissionais de mais idade sabem que as mudanças necessitam de tempo para serem implementadas e, desse modo, oferecem atitudes mais positivas para os clientes, independentemente do tempo em que eles venham a apresentar as mudanças requeridas. Nota-se, portanto, que profissionais com muita experiência ou pouca experiência podem apresentar entraves para um sucesso na atividade. Isso pode parecer contraditório, porém tanto uma circunstância como a outra podem oferecer estresse, em função de maior desgaste, no caso da maior experiência, ou de maior tensão e preocupação, no caso da menor experiência. Apesar de não se poder pensar na idade e na experiência como aspectos interdependentes, agrega-se valor à frase do profissional na qual se identifica um avanço em seu background teórico e prático, que agrega conhecimentos e não provoca rupturas que podem trazer insegurança.

Entendo que minha visão sobre o tema foi ampliada, agregou valores qualitativos e não necessariamente sofreu rupturas em termos mais objetivos, como mudança de abordagem teórica, por exemplo (Profissional SS, masculino, 25 anos).

Há ainda um ponto importante a ser considerado: os sentimentos de profissionais que atendem às vítimas de violência sexual, sejam estas crianças ou adultos. O atendimento específico a esse público produz sofrimento na forma de angústia, medo ou impotência, porque não se consegue deter os rumos da violência e, assim, não há segurança com relação às atuações profissionais (Correa et al., 2009).

Necessidades específicas de alunos e profissionais

Em razão das especificidades das necessidades de profissionais e alunos em relação ao apoio para realizar o trabalho com os ofensores, optamos nesta zona de sentido por discutir separadamente as duas categorias.

Necessidades específicas de alunos

Que em cada supervisão as coisas ficassem esclarecidas de forma detalhada para que não sobrassem dúvidas entre uma supervisão e o encontro [...] Que sejam designadas previamente funções específicas para alguns membros [...] E, por isso, passei a acreditar mais na possibilidade de se poder mudar essa realidade, antes achava que era algo inato do indivíduo, e que talvez não pudesse haver solução [...] A preparação da equipe e o profissionalismo dela com certeza auxiliaram muito na minha concepção de trabalho de grupo e no meu aprendizado sobre o funcionamento do GM (Aluna 1 P, feminino, 22 anos).

Neste item, observamos a necessidade do aluno de encontrar um ambiente de experimentação que proporcione aprendizagem organizada e sistematizada, para que possa se sentir seguro e encorajado a atuar. Isso significa que a necessidade de orientação precisa é fundamental para a experiência e a aprendizagem. Cremos que esses requisitos são inerentes a tal momento da formação profissional, conforme é previsto nas diretrizes curriculares para cursos de Psicologia já expostas anteriormente. Porém, essa realidade de contato com a violência numa modalidade que envolve crianças e adolescentes ofensores sexuais e famílias caoticamente organizadas torna imprescindível a orientação de estágio, pois esta permite a expressão das capacidades do aluno, que será confrontado com suas possibilidades de criar e tomar iniciativas. Além disso, Craig (2005) acrescenta que o treinamento e a qualificação para atuação com violência sexual requerem que o treinando obtenha informações específicas e diretas quanto ao tema tratado e ao sujeito atendido. A formação de atitude terapêutica frente ao problema não depende só de conhecimento teórico geral. É preciso especialização para atuar nessa área e a atitude mais desejável é o incremento da confiança em si.

Outrossim, os alunos informam que o acompanhamento de todo o processo do Grupo Multifamiliar, no qual puderam perceber mudanças nos sujeitos em face das intervenções, é um incentivo para avançarem do conhecimento teórico à prática. Para isso, é importante a presença de profissionais experientes atuando em conjunto, para que a experiência adquirida no estágio seja incorporada e seus efeitos sejam vislumbrados dali para a frente.

[...] proporciona aquisição de conhecimento teórico, metodológico e prático, que certamente serão utilizados ao longo da carreira, em atuações diversas (Aluna 2 P, feminino, 22 anos).

Portanto, o estágio tem essa função importante de integrar os conceitos teóricos aprendidos durante o curso de graduação com a atuação concreta com diferentes problemáticas e contextos. No entanto, ao deparar-se com a realidade, o aluno percebe estar despreparado. Penso e Neves (2008), avaliando o impacto que o atendimento a famílias de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual exerce sobre os alunos, encontraram que estes perceberam a experiência como um choque de realidade. Tais alunos concluíram que não estavam preparados para intervir e que possuíam pouco embasamento teórico. Além disso, também relataram ter percebido que a prática era bem diferente da teoria. No entanto, relataram também a importância da experiência, que lhes possibilitou observar na prática o que aprenderam na teoria, além de ter sido uma oportunidade de observar um profissional atuando, já que o Grupo Multifamiliar era conduzido pelas próprias pesquisadoras junto com os estagiários. Esses resultados apontam que é muito importante a existência de um modelo de atuação para o futuro profissional.

Necessidades específicas de profissionais

A metodologia utilizada e o apanhado teórico foram o suficiente para o objetivo proposto (Profissional P, feminino, 50 anos).

Se o aluno identifica uma maior necessidade de aprendizagem teórica sobre o assunto, o profissional é capaz de criticar seu cabedal de conhecimento. No entanto, esses dois grupos se igualam no reconhecimento de suas limitações metodológicas para dar conta do atendimento a adolescentes, com os quais se obtêm melhores resultados em intervenções grupais (Jeolás & Ferrari, 2003). As dinâmicas de grupo realizadas durante os atendimentos produzem discussões mais ricas, nas quais os adolescentes tendem a participar e debater de forma mais espontânea.

Ainda preciso de melhor conhecimento de manejo de grupos (técnicas e instrumentais práticos), uma das razões para meu interesse nesse grupo em particular (Profissional SS, masculino, 25 anos).

Da mesma forma que os alunos, os profissionais, ao acompanhar o processo do Grupo Multifamiliar, reconheceram que a abordagem grupal é capaz de oferecer possibilidades de mudança. Isso é relevante porque, em ambulatórios públicos, não se consegue manter atendimentos individualizados sob pena de se prejudicar enormemente a demanda que se avoluma. De outro lado, foi importante perceber que o atendimento a ofensores sexuais resgatou habilidades e qualidades nas relações entre profissionais e clientes, e também proporcionou oportunidade de reavaliação dos preconceitos sempre existentes nas atitudes de tais profissionais. Para Serran, Fernandez, Marshall e Mann (2003), o trabalho grupal oferece ótimas condições para que a aliança terapêutica se faça em um relacionamento cooperativo de trabalho, contribuindo para a promoção de sentimentos de segurança e confiança entre os envolvidos. Marshall et al. (2005) reconhecem que há muitos modelos de atenção ao ofensor sexual, mas indica que a experiência aponta a presença de alguns aspectos cuja presença é imprescindível nesses modelos: esperança no atendimento, elevação da autoestima, abordagem empática do problema, criação de clima colaborativo entre todos. Em grupos com a temática de violência sexual, a aliança terapêutica incentiva a coesão e traz melhorias para a autoestima do cliente e da sintomatologia. Os sujeitos sentem-se mais à vontade para confiar no terapeuta e nos outros participantes do grupo.

Hoje me sinto capacitada para atender um abusador sexual adolescente, possuo um conhecimento especializado nesta área (Profissional P, feminino, 31 anos).

Não foi fácil montar o grupo, participar, mas ele surpreendeu. Primeiro porque vivenciamos cenas horríveis e lindas... aprendemos muito, nos permitimos estar no grupo, livre de preconceitos e conceitos estabelecidos... conseguimos dar voz para o grupo, permitimos mostrar para eles que o evento não era o fator que determinaria a vida deles, mas que eles podiam daqui para a frente começar... repensando os seus valores, metas, sonhos... que eles podiam e podem. Acho que aprendemos a ser mais humanos... pessoas mais humanas... um grupo mais envolvido, um grupo onde buscamos auxiliar, proteger, mostra como proteger, como quebrar um ciclo, não como "doutores", mas como pessoas... (Profissional P, feminino, 40 anos).

 

Considerações finais

A capacitação de profissionais para atendimento a ofensores sexuais é uma necessidade premente. Os profissionais e alunos da equipe confirmaram a importância de participação em experiências práticas e também a necessidade de aprofundamento teórico sobre o tema. Também perceberam a importância de treinamento em técnicas de atendimento de grupos para atendimento a adolescentes. A inclusão da perspectiva familiar no tratamento é relevante para a sua eficácia (Baker et al., 2003; Zankman & Bonomo, 2004), por ser um agente favorável para evitar a reincidência do ato violento, pela melhora do compromisso do jovem com o tratamento e pela prevenção da violência transgeracional. No caso de violência intrafamiliar, esses autores ainda enfatizam a importância da responsabilização pelo ato violento cometido entre seus membros. E todo esse processo requer muita habilidade do terapeuta durante o tratamento dos jovens ofensores sexuais e suas famílias.

O texto procurou apontar as necessidades de se dar atenção à qualificação específica para o atendimento à violência sexual, particularmente ao adolescente ofensor sexual. Procuramos chamar atenção para a formação das qualidades que os terapeutas precisam desenvolver para o atendimento a esse tema. O oferecimento de treinamento para as habilidades necessárias ainda é bastante limitado. O limite do texto decorre desse ponto: conhecemos pouco acerca das necessidades e competências de profissionais para tratar com esse contexto. Enfim, estamos bastante distantes das propostas de treinamento e avaliação de programas de atendimento a essa clientela que já ocorrem rotineiramente em países do Primeiro Mundo.

 

Referências

Baker, A. J. L., Tabacoff, R., Tornusciolo, G. & Eisenstadt, M. (2003). Family secrecy: a comparative study of juvenile sex offenders and youth with conducts disorders. Family Process, 42 (1), 105-116.         [ Links ]

Brasil (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.         [ Links ]

Brasil (2005). Marco legal: saúde, um direito de adolescentes. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Chagnon, J.-Y. (2008). As agressões sexuais: uma organização de transtornos narcísico-identitários. Paidéia, 18 (41), 495-515.         [ Links ]

Correa, M. E., Labronici, L. M. & Trigueiro, T. H. (2009). Sentir-se impotente; um sentimento expresso por cuidadores de vítimas de violência sexual. Revista Latino-americana de Enfermagem On Line, 17 (3).         [ Links ]

Costa, L. F. (1998). Reuniões multifamiliares: uma proposta de intervenção em psicologia clínica na comunidade. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Costa, L. F., Penso, M. A. & Almeida, T. (2005). O grupo multifamiliar: um método de intervenção em situações de abuso sexual infantil. Psicologia USP, 16 (4), 121-146.         [ Links ]

Costa, L. F., Ribeiro, M. A., Penso, M. A. & Almeida, T. M. C. (2008). O desafio da supervisão e pesquisa-ação com o tema do abuso sexual: os professores e suas questões. Paidéia, 18 (40), 355-370.         [ Links ]

Costa, L. F., Almeida, T. M. C., Ribeiro, M. A. & Penso, M. A. (2009). Grupo Multifamiliar: espaço para a escuta das famílias em situação de abuso sexual. Psicologia em Estudo, 14 (1), 21-30.         [ Links ]

Craig, L. A. (2005). The impact of training on attitudes towards sex offenders. Journal of Sexual Aggression, 11 (2), 197-207.         [ Links ]

Ferrari, R. A. P., Thomson, Z. & Melchior R. (2006). Atenção à saúde dos adolescentes: percepção dos médicos e enfermeiros das equipes da saúde da família. Cadernos de Saúde Pública, 22 (11), 2491-2495.         [ Links ]

Fishman, H. C. (1989). Tratamiento de adolescentes con problemas: un enfoque de terapía familiar. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Forensic Psychology Practice. (2006). Adolescent sex offenders. A practitioner's portfolio. Boldmere (England): The Willow Clinic.         [ Links ]

González-Rey, F. (2005). Pesquisa qualitativa e subjetividade. Os processos de construção da Informação. São Paulo: Thomson.         [ Links ]

Jennings, J. R. & Sawyer, S. (2003). Principles and techniques for maximizing effectiveness of group therapy with sex offenders. Sexual Abuse: A Journal of Research and Treatment, 15 (4), 251-267.         [ Links ]

Jeolás, L. S. & Ferrari, R. A. P. (2003). Oficinas de prevenção em um serviço de saúde para adolescentes: espaço de reflexão e de conhecimento compartilhado. Ciência & Saúde Coletiva, 8 (2), 611-620.         [ Links ]

Laquer, P. (1983). Terapia familiar múltipla: perguntas e respostas. In D. Bloch (Coord.), Técnicas de psicoterapia familiar (pp. 93-107). São Paulo: Atheneu.         [ Links ]

Machado, A. G. & Merlo, A. R. C. (2008). Cuidadores: seus amores e suas dores. Psicologia & Sociedade, 20 (3), 444-452.         [ Links ]

Madanes, C., Keim, J. P. & Smelser, D. (1997). Violencia masculina. Barcelona: Granica.         [ Links ]

Mandeville-Norden, R. & Beech, A. R. (2006). Risk assessment of sex offenders: the current position in the UK. Child Abuse Review, 15, 257-272.         [ Links ]

Marshall, W. L. (2001). Agresores sexuales. Barcelona: Ariel.         [ Links ]

Marshall, W. L. et al. (2005). Working positively with sexual offenders: maximizing the effectiveness of treatment. Journal of Interpersonal Violence, 20, 1096-1114.         [ Links ]

Miller, D. (1994). Incesto: o centro da escuridão. In E. Imber-Black (Org.), Os segredos na família e na terapia familiar (pp. 185-199). Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Ministério da Educação e Cultura. (2006). Diretrizes curriculares para os cursos de Psicologia. Recuperado em 25 abril, 2010, de portal.mec.br.         [ Links ]

Moulden, H. M. & Firestone, P. (2007). Vicarious traumatization: the impact on therapists who work with sexual offenders. Trauma, Violence & Abuse, 8 (1), 67-83.         [ Links ]

Oliver, B. E. (2007). Three steps to reducing child molestation by adolescents. Child Abuse & Neglect, 31, 683-689.         [ Links ]

Penso, M. A. & Neves, V. L. (2008). Abuso sexual infantil e transgeracionalidade. In M. A. Penso & L. F. Costa (Orgs.), A transmissão geracional em diferentes contextos. Da pesquisa à intervenção (pp. 123-142). São Paulo: Summus.         [ Links ]

Sanderson, C. (2005). Abuso sexual em crianças. Fortalecendo pais e professores para proteger crianças de abusos sexuais. São Paulo: M. Books.         [ Links ]

Scheela, R. A. (2001). Sex offender treatment: therapists' experiences and perceptions. Issues in Mental Health Nursing, 22, 749-767.         [ Links ]

Serran, G., Fernandez, Y., Marshall, W. L. & Mann, R. E. (2003). Process issues in treatment: application to sexual offender programs. Professional Psychology: Research and Practice, 54 (4), 368-374.         [ Links ]

Seto, M. C. (2009). Pedophilia. Annual Review of Clinical Psychology, 5, 391-407.         [ Links ]

Souza, S. R. & Oliveira, I. C. S. (2007). Entre desafios e possibilidades: estratégias para ensinar a cuidar em enfermagem do adolescente com câncer. Revista da Escola de Enfermagem, 41 (3), 508-512        [ Links ]

Timmons-Mitchell, J., Bender, M. B., Kishna, M. & Mitchell, C. C. (2006). An independent effectiveness trial of multisystemic therapy with juvenile justice youth. Journal of Clinical Child and Adolescent Psychology, 35 (2), 227-236.         [ Links ]

Ward, T., Gannon, T. A. & Birgden, A. (2007). Human rights and the treatment of sex offenders. Sex Abuse, 19, 195-216.         [ Links ]

Way, I., Van Deusen, K. M., Martin, G., Applegate, B. & Jandle, D. (2004). Vicarious trauma: a comparison of clinicians who treat survivors of sexual abuse and sexual offenders. Journal of Interpersonal Violence, 19 (1), 49-71.         [ Links ]

Zankman, S. & Bonomo, J. (2004). Working with parents to reduce juvenile sex offender recidivism. Journal of Child Sexual Abuse, 13 (4), 139-156.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
lianaf@terra.com.br, penso@ucb.br

Recebido em: 04/09/2012
Revisado em: 19/03/2013
Aprovado em: 02/04/2013

 

 

1 Psicóloga, terapeuta conjugal e familiar, psicodramatista. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo.
2 Psicóloga, terapeuta conjugal e familiar, psicodramatista. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília.