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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.16 no.spe São Paulo  2013

 

ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE

 

Saúde mental e trabalho: limites, desafios, obstáculos e perspectivas

 

Mental health and work: limits, challenges, obstacles, and perspectives

 

 

Maria Elizabeth Antunes Lima1

Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio foi escrito a partir de uma palestra proferida no I Colóquio Internacional de Clínica da Atividade e trata dos limites, desafios, obstáculos e perspectivas que estão postos para o campo da saúde mental e trabalho (SM & T), no Brasil. Esses aspectos foram desenvolvidos considerando-se suas dimensões teóricas e práticas, concluindo-se pela necessidade de ampliação do debate entre escolas e de uma melhor interlocução com outras disciplinas, em especial, a clínica da atividade.

Palavras-chave: Saúde mental e trabalho, Limites, Obstáculos, Perspectivas.


ABSTRACT

This essay is based on a lecture that was pronounced on the first International Conference of Clinic of Activity. It deals with the limits, challenges, obstacles and perspectives that are brought forward to the area of Mental Health and Work in Brazil. These aspects were developed considering their theoretical and practical dimensions, and we concluded for the necessity of expanding the debate among academic institutes and improving the dialogues with other disciplines, specially the clinic of activity.

Keywords: Mental health and work, Limits, Challenges, Obstacles, Perspectives.


 

 

Introdução

Este ensaio baseia-se em uma palestra proferida no I Colóquio Internacional de Clínica da Atividade, realizado na Universidade Federal de São João del-Rei, em outubro de 2010. Na ocasião, abordamos os temas sugeridos aos palestrantes – "limites, desafios, obstáculos e perspectivas" –, considerando o campo da saúde mental e trabalho (SM & T) por ser aquele no qual situamos o essencial de nossas pesquisas.

Nunca é demais lembrar o início tardio (e bastante recente) desse campo no nosso país. Apesar da necessidade bem anterior de ampliar essa discussão, tanto no âmbito acadêmico quanto das entidades representativas de diversas categorias profissionais, tal ampliação só ocorreu a partir da segunda metade dos anos 1980. No entanto, mesmo considerando esse atraso, não podemos negar os avanços notáveis da disciplina, sobretudo, no decorrer da última década. Isso pode ser verificado pela disseminação de grupos de pesquisa e pela quantidade considerável de publicações, além de outras produções acadêmicas, tais como monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado voltadas para esse campo do conhecimento.2

Mas, como pretendemos tratar mais adiante, apesar da relevância de boa parte dessa produção, seu volume não reflete necessariamente um avanço na compreensão e no aprofundamento de questões cruciais para o desenvolvimento desse campo. Observa-se, na realidade, um interesse crescente pelos problemas que o compõem, mas nem sempre acompanhado do devido preparo para tratá-los, resultando disso, uma maior circulação de ideias, sem que, muitas vezes, estas primem pela qualidade ou pelo compromisso com o rigor e com a verdade. Tal compromisso, que deveria fazer parte de toda produção com pretensões científicas, necessita ser reafirmado para que o campo da SM & T, no Brasil, encontre o melhor caminho para seu desenvolvimento, oferecendo respostas mais adequadas para as graves demandas que vêm batendo às suas portas.

 

Os limites impostos ao campo da SM & T

Do ponto de vista teórico, esses limites são inúmeros, mas vamos nos ater àquele que consideramos mais importante, embora não esteja circunscrito ao campo da SM & T. Trata-se de um problema identificado com bastante propriedade por Le Guillant (2006) e que consiste na dificuldade em apreender concretamente como se dá a passagem entre uma situação vivida, seja ela qual for, e o distúrbio mental, propriamente dito. Essa questão permanece em aberto para todo o campo das ciências que tratam dos transtornos psíquicos, não se limitando à nossa disciplina e exige, por isso mesmo, um maior aprofundamento.

No caso específico da SM & T, o máximo que temos avançado consiste em explicitar um paralelismo estreito entre certas experiências de vida e de trabalho e a emergência de transtornos mentais específicos. Mas talvez a dificuldade maior esteja na prevalência da ideia de uma causalidade linear entre transtorno mental e trabalho e, junto com ela, a exigência de se estabelecer o peso exato das experiências pessoais em relação às experiências no trabalho. Segundo aqueles que aderem a essa perspectiva, somente após o estabelecimento desses parâmetros é que estaremos em condições de afirmar a origem ocupacional de um dado transtorno. Diante da impossibilidade de se resolver essa questão, sobretudo nos termos claramente equivocados em que ela está colocada, torna-se difícil responder adequadamente às solicitações que nos chegam.3

Assim, do ponto de vista prático, temos nos deparado, no Brasil, com demandas crescentes por parte dos trabalhadores e de suas entidades representativas, além de profissionais da área do direito e da saúde, pelo estabelecimento do nexo entre transtornos mentais e trabalho. Trata-se de um problema grave, sobretudo se levarmos em conta que os transtornos mentais ocupam os primeiros lugares nas estatísticas em torno dos motivos de afastamentos do trabalho pelo nosso sistema previdenciário (Machado, Soratto & Codo, 2010).

Como consequência da dificuldade para se estabelecer o nexo entre seus transtornos e a atividade profissional que exercem, permanece também em aberto a questão do atendimento adequado a ser oferecido a esses trabalhadores sem cair na armadilha do neo-higienismo, tão bem denunciada por Yves Clot em alguns momentos de sua produção teórica recente (Clot, 2008, 2010a, 2010b), mas com especial veemência na sua última obra (Clot, 2010a). Nessa publicação, o autor expõe os limites da prática do psicólogo nos contextos de trabalho francês, constatando, além de um retorno ao "higienismo", o risco de se construir certa "ortopedia social". Ou seja, a psicologia estaria novamente entrando nas empresas por um caminho equivocado: o de oferecer um atendimento psicológico aos empregados com o intuito de permitir que suportem melhor o que é de fato insuportável. Segundo ele, essa "nova higiene do comportamento" consiste basicamente no "trabalho de gestão individualizada da doença profissional". Ela propaga como nunca as virtudes da "boa escuta" e de sua "função social", sendo que o "acompanhamento comportamental assume nova função" e "encontra seu lugar no organograma". O resultado mais evidente disso consiste na prática da "vigilância generalizada dos 'frágeis'", por meio da chamada "gestão dos riscos psicossociais", resultando em um movimento que ele qualifica, muito apropriadamente, como o de um "despotismo compassivo" (Clot, 2010a, pp. 156-158).4

Isso significa que a ideia ainda bastante veiculada de que os problemas no mundo do trabalho têm sua origem em questões estritamente pessoais tem levado à disseminação de outra ideia que lhe é complementar: a de que o tratamento psicológico individual deveria saná-los. Com isso, corremos o sério risco de perder de vista a importante premissa defendida por Le Guillant (2006) ao propor que, antes das pessoas, é precisamente do trabalho que se deve cuidar em todos os sentidos do termo. E cuidando do trabalho não estaríamos, ao mesmo tempo, cuidando das pessoas que o realizam?

Outro limite de ordem prática que enfrentamos na nossa disciplina consiste no fato de permanecermos presos ao plano da denúncia dos problemas que estariam na origem dos transtornos mentais no trabalho. O pressuposto é o de que basta identificar e denunciar esses problemas para que sejam sanados. No entanto, como Ivar Oddone (1977/1981) já demonstrou, desde os anos 1970, na Itália, isso não conduz a avanços significativos, já que não possui qualquer poder resolutivo. Ao que parece, estamos vivendo aqui o mesmo impasse identificado pelo autor na Itália de sua época: a ênfase quase exclusiva na crítica e na denúncia em relação às condições inaceitáveis de trabalho, sem ações efetivas para transformá-las.

Um dos efeitos colaterais disso tem sido apontado por autores como Boltanski (2009), que constata, com ironia, que o capitalismo vem se nutrindo das próprias críticas a ele dirigidas, incorporando-as perversamente. Clot (2010a) concorda com o autor, acrescentando que, no caso das críticas relativas à saúde mental, as empresas vêm respondendo com a oferta de atendimento psicológico aos empregados, conforme dito anteriormente.5

Além disso, uma ideia subjacente a certas práticas é a de que as condições objetivas podem ser modificadas pela simples mudança de atitude, sendo resultado de um ato puramente subjetivo. Ou seja, não se considera que estamos lidando com determinações objetivas, cuja transformação só pode se dar na (e pela) prática. Transformação esta que, para ser eficaz, necessita ser efetivada por aqueles que são diretamente afetados por elas.

Acreditamos ser também consequência dessa incompreensão o fato de ainda prevalecer entre nós a tradição da expertise, segundo a qual cabe a um especialista diagnosticar os problemas e, em seguida, apresentar sugestões de mudança. A preocupação maior, nesse caso, consiste em identificar as causas dos problemas, a partir do olhar do expert, que será também o maior responsável por propor ações visando saná-los.

Outro aspecto que limita nossa disciplina consiste na ênfase excessiva que damos ao diagnóstico das causas dos transtornos mentais no trabalho, em detrimento do estabelecimento de ações efetivas para lidar com os mesmos. Nesse caso, só podemos concordar com Clot (2010b) quando diz que se trata de uma questão de vida ou morte, para a psicologia, deixar de se limitar a ser um método de conhecimento para ser um método de ação. Em outras palavras, a conjugação entre ação e conhecimento continua sendo um problema para a SM & T. é nesse sentido que temos de levar a sério a perspectiva da clínica da atividade ao propor que a atividade não se limite a ser um objeto de estudo, podendo ser um instrumento clínico por excelência de restauração da saúde.

 

Os desafios que se apresentam para o campo da SM & T

Entre os grandes desafios a serem enfrentados nesse campo, é possível citar pelo menos um que decorre diretamente dos problemas levantados anteriormente. Ou seja, se concordarmos com a perspectiva acima de que, em vez de oferecer uma escuta especializada aos assalariados, temos de criar as condições para que se reapropriem do trabalho que realizam, uma interrogação parece inevitável: como os trabalhadores podem se reapropriar do seu trabalho se estão encarcerados na posição de vítimas? (Clot, 2010a).

Assim, só podemos concordar com o autor quando este afirma ser esse um problema clássico na psicologia: o de criar um quadro que permita ao indivíduo sair da posição de vítima "para se retornar em direção às forças centrífugas da vida psíquica" (Clot, 2010a). Uma resposta que vem sendo dada pela clínica da atividade a essa questão – e que nos parece bastante promissora – é a adoção dos métodos dialógicos de análise do trabalho, colocando em disputa critérios necessariamente controvertidos em torno do trabalho bem feito.6

Em suma, o que de fato importa é a adoção de uma perspectiva teórico-metodológica voltada para a transformação do trabalho, cuja base seja o conhecimento efetivo da realidade vivida pelo trabalhador, visto como sujeito ativo tanto na produção desse conhecimento quanto na busca de soluções dos problemas identificados.

 

Os obstáculos a serem enfrentados pelo campo da SM & T

Para enfrentar os limites e desafios expostos acima, existe uma grande diversidade de obstáculos a serem transpostos no campo da SM & T, sendo alguns específicos da realidade brasileira. O maior dentre eles é, provavelmente, aquele que remete ao que poderia ser considerado como o marco do seu nascimento no nosso país: a publicação do livro A loucura do trabalho, de C. Dejours, em 1987.7 No nosso entender, ao mesmo tempo em que essa publicação teve o inegável mérito de permitir que passássemos efetivamente a refletir sobre as questões que envolvem a relação entre saúde mental e trabalho, ela acabou por acarretar um novo problema, ao se colocar como portadora da melhor, senão a única, perspectiva válida nesse campo.

A qualquer leitor atento dessa obra não passará despercebido que o autor trata de maneira demasiadamente rápida o legado dos teóricos que o antecederam, qualificando toda a produção teórica anterior como "restrita" e afirmando ser o "conflito que opõe o trabalho à vida mental" um "território quase desconhecido" (Dejours, 1987, p. 22). No entanto, sabemos que isso não é verdade e que, especialmente no caso francês, já existia uma rica tradição no campo da psiquiatria social, bem anterior a Dejours e que trouxe contribuições decisivas, tanto no âmbito da psicopatologia do trabalho, quanto no da ergoterapia.8

Dessa forma, chegamos ao que consideramos o maior obstáculo para o desenvolvimento do campo da SM & T: a ausência de um real debate entre as diversas correntes que o compõem. A esse respeito, temos constatado dois tipos de atitude na chamada "comunidade acadêmica": ou se instaura o que Chasin (2001) chamou de "guerra do silêncio" – e que consiste simplesmente em ignorar as críticas, tentando, por meio dessa atitude, reduzi-las à insignificância – ou se cria uma espécie de simulacro de aceitação do debate, quando, na verdade, ocorre uma recusa em se aprofundar nas verdadeiras questões. Assim, é comum manifestar a abertura ao diálogo, mas com a condição de que o ponto de partida seja uma série de acordos em torno dos problemas tratados. Vemos aí um equívoco fundamental que consiste em se pensar que o diálogo só se efetiva em um contexto onde haja o consenso. Para refutar essa ideia só podemos nos reportar novamente a Clot (2010b) que, ao abordar a perspectiva bakhtiniana, disse que "não apenas o diálogo é possível quando os interlocutores não compartilham as mesmas significações, mas essa é, inclusive, a condição para o seu desenvolvimento" (p. 258). Ou seja, ao contrário do que se pensa comumente, para Bakhtin, do ponto de vista do desenvolvimento, "o que compartilhamos não é tão interessante quanto o que não compartilhamos" (Clot, 2010b).

Assim, um dos maiores, senão o maior, obstáculos que percebemos para a evolução da nossa disciplina se encontra nessa incompreensão do que seja verdadeiramente o diálogo e das condições para que este se efetive. Vale a pena acrescentar que faz parte dessa incompreensão entender toda e qualquer crítica dirigida a uma produção teórica particular ou a uma corrente específica do pensamento como ofensa à pessoa que a adota, transformando o debate de ideias em mera querela pessoal. Mais uma vez foi Chasin (2001) quem tratou disso com propriedade ao dizer que a tendência a reduzir todos os confrontos a questões pessoais revela o homem voltado excessivamente para si mesmo, isto é, o homem "movido por motivos estritamente pessoais, que transforma todo interesse humano em interesses egoístas" (p. 31).

Como consequência de tudo o que apontamos até agora, estamos, atualmente, diante de um quadro lastimável no que diz respeito à produção acadêmica no contexto da "universidade competitiva" (Chasin, 2001), isto é, aquela que é solicitada a produzir mais do que nunca, sendo que a eficiência deixa de ser referida à qualidade do trabalho produzido. Assim, no contexto acadêmico atual, produz-se em escala acelerada um tipo de intelectual que, nos termos precisos de Chasin (2001), é movido por interesses particulares e imediatos, em vez de interesses "humano-societários de caráter universal" (p. 18). O que lhe interessa não é sua ação na (ou contra) a realidade social, mas o sucesso de sua obra. Seu desejo de reconhecimento não traduz nada mais do que a "sede de celebridade" (Chasin, 2001, p. 18).

Para agravar a situação, constatamos, em meio aos problemas já assinalados, o fantasma onipresente do relativismo que, além de propor a equivalência dos pontos de vista, entende a ciência como mero espaço de confronto desses pontos de vista. O saber fica reduzido à opinião pessoal, o que acaba por conduzir ao pluralismo de idéias e à busca forçada de consensos, com consequente desvalorização do debate e da controvérsia como fontes efetivas de desenvolvimento.9

Tudo isso tem levado à produção em série de dissertações, teses ou publicações em que, sob o pretexto de levar em conta as diversas "contribuições", colocam, lado a lado, autores das mais diversas perspectivas teóricas, sendo algumas totalmente incompatíveis entre si. Só podemos invocar novamente Chasin (2001) que, ao criticar o que chama de "falácia da equivalência" ou "pluralismo" entre as vertentes do pensamento, sob a pretensa invocação do antidogmatismo, concluiu que isso acaba por se tornar uma espécie de "camuflagem da ignorância ou um subterfúgio do oportunismo em teoria" (p. 14). Tal falácia acaba tornando-se, segundo ele, "princípio de convivência ou de coabitação acadêmica, jamais critério de verdade ou meio de produção teórica da verdade, a não ser como verdade instrumental, pragmaticamente concebida" (p. 15).10

Além do relativismo, temos o dogmatismo como mais um dos obstáculos para o avanço da nossa disciplina. Ou seja, além daqueles que invocam esse "pluralismo de fachada" (Chasin, 2001), temos ainda os que acabam caindo no dogmatismo, fechando-se a qualquer ideia que contrarie "sua" verdade. A esse respeito, é interessante ver o que pensa Bakhtin sobre o dogmatismo e o relativismo, ao dizer que são mais gêmeos do que inimigos, já que ambos excluem qualquer diálogo autêntico, seja lhe tornando inútil – já que no relativismo não há verdade a ser perseguida –, seja colocando-o como impossível, já que no dogmatismo essa verdade já foi encontrada. Segundo ele, o dogmatismo é certamente um monólogo, enquanto, o relativismo faz apenas multiplicar ao infinito os monólogos até que esses se degradem em solilóquios (Clot, 2010b).

Em suma, acreditamos que não conseguiremos cuidar do nosso próprio ofício sem que haja um real debate entre as escolas, o qual nos permita formar um coletivo sólido, suscetível de nos amparar frente às inúmeras dificuldades, tanto teóricas quanto práticas, que devemos enfrentar cotidianamente. E, se não cuidarmos do nosso próprio ofício, como poderemos cuidar do ofício do outro?11

 

Quais perspectivas para o campo da SM & T?

Após o que foi exposto, o leitor poderia imaginar que antevemos um futuro sombrio, sem avanços importantes para nosso campo de atuação. No entanto, não é essa a nossa perspectiva. Ao contrário, constatamos, atualmente, reais possibilidades de desenvolvimento, tanto no plano prático quanto no teórico.

Em primeiro lugar, temos avançado bastante nos últimos tempos na busca de novas interlocuções, dialogando com disciplinas que poderão efetivamente ajudar o campo da SM & T a se desenvolver teórica e praticamente. Acreditamos, por exemplo, que a interlocução, cada vez mais rica, com a clínica da atividade poderá nos trazer algo que nos falta: a ênfase na ação. Concordamos com Clot (2010) quando este afirma que a psicopatologia do trabalho poderia explorar outros caminhos ao se apoiar em contribuições como as de Vygotsky e Bakhtin a respeito das teorias dialógicas da atividade.

Mas, acima de tudo, temos de ter a humildade de admitir que nosso objeto é difícil para todos, e sem a consolidação de um verdadeiro coletivo profissional não conseguiremos avançar. E mais do que isso, não podemos abrir espaço para o dogmatismo. A última palavra jamais pode ser dita, como enfatiza frequentemente Yves Clot, sob pena de paralisarmos todos os nossos esforços.

Da mesma forma, o relativismo ou o pluralismo de ideias são inaceitáveis, conforme argumentamos no decorrer deste ensaio. Temos de reconhecer que, dentro das chamadas "clínicas do trabalho", existem diferenças e divergências fundamentais que necessitam ser consideradas. A esse respeito, a coletânea recentemente organizada por Bendassolli e Soboll (2010) é, sem dúvida, preciosa, por reunir, no mesmo contexto, as diversas correntes, convidando-as para o debate. Esse tipo de publicação abre novas perspectivas e revela, no nosso entender, um amadurecimento daqueles que fazem parte desse campo.

Em suma, acreditamos que só conseguiremos avançar ampliando a "polifonia da interlocução", para usar a feliz expressão de Clot (2010a). Foi a possibilidade de aprofundar as reflexões e as formas de ação possíveis, através de um real debate entre escolas, que representou a motivação maior dos idealizadores do I Colóquio Internacional da Clínica da Atividade, dando origem a todos os artigos que compõem esta edição especial da Revista de Psicologia Social do Trabalho. Diante disso, só podemos considerar esta publicação outro sinal de avanço, por oferecer ao campo da SM & T uma real possibilidade de aprofundar suas reflexões e suas práticas.

 

Referências

Bendassolli, P. & Soboll, L. (Orgs.) (2010). Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade. São Paulo: Atlas.

Boltanski, L. (2009). De la critique. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Chasin, J. (2001). Rota e prospectiva de um projeto marxista. Ad Hominem, 1 (4), 5-78.

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Clot, Y. (2010a) Le travail à coeur. Pour en finir avec les risques psychosociaux. Paris: La Découverte.         [ Links ]

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Le Guillant, L. (2006). Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do trabalho. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
antuneslima15@gmail.com

Recebido em: 21/08/2012
Aprovado em: 18/03/2013

 

 

1 Professora Associada do Departamento de Psicologia da UFMG.
2 é impossível enumerar aqui as monografias, dissertações e teses às quais tivemos acesso nesse período. Quanto às publicações, apenas a título de ilustração, citamos algumas das mais importantes que apareceram na última década: Lancman e Snelwar (2004), Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho; Codo (2004), O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho; Le Guillant (2006), Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do trabalho; Selligmann-Silva (2011), Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo.
3 A inadequação na forma de propor a questão encontra-se, sobretudo, no fato de se desconsiderar as especificidades do nosso objeto e, portanto, a impossibilidade de se estabelecer, com precisão, o peso dessas experiências. Os desenvolvimentos extremamente interessantes proporcionados pelos métodos biográficos revelam, ao contrário, uma linha de continuidade entre as experiências de vida e de trabalho, sendo que uma realimenta a outra. Nesse caso, o transtorno pode ser decorrente de vivências marcantes ocorridas no ambiente de trabalho, mas cujas ressonâncias remontem a vivências externas ou mesmo anteriores à experiência profissional. Além disso, ele não parece jamais ser súbito (ou instantâneo), mas sempre resultado de um acúmulo de acontecimentos (Le Guillant in Lima, 2006).
4 A esse respeito, é interessante observar que, de acordo com Clot (2010a), existem, atualmente, na França, cerca de 4 mil psicólogos e psicanalistas à disposição das empresas para esse tipo de atendimento. Mas a novidade é que as empresas brasileiras vêm aderindo a serviços desse modelo. Em uma reportagem veiculada recentemente por uma importante rede de TV brasileira, após informar que a depressão, a ansiedade e o estresse ocupam o terceiro lugar na lista das doenças que afastam o trabalhador do emprego por mais de 15 dias, falou-se da criação de centrais de atendimento somente com psicólogos para atender empregados que, do outro lado da linha, podem "desabafar" e falar dos problemas que têm em casa ou no trabalho. De acordo com essa reportagem, 86 empresas de todo o Brasil já contrataram esse serviço na tentativa de evitar afastamentos por transtornos mentais. Um detalhe interessante é que algumas estão localizadas no Nordeste do país e o atendimento é oferecido por psicólogos que se encontram em São Paulo, por meio telefônico!
5 é claro que nem Boltanski nem Clot estão defendendo o menosprezo puro e simples a todo tipo de crítica dirigida contra o capitalismo. A referência aqui é justamente ao gênero de crítica bastante frequente cujo cerne encontra-se no pressuposto de que a mera tomada de consciência a respeito dos processos de exploração já implica uma ação sobre tais processos. De nossa parte, estamos nos referindo também à crítica de natureza escatológica, cujo resultado só pode ser o imobilismo, já que não vislumbra qualquer perspectiva de mudança, limitando-se, como bem coloca Chasin (2001), à "denunciação ideal", sem jamais alcançar "a radicalidade da atividade crítico-prática" (p. 18). Geralmente, ela se fundamenta, segundo o autor, no mero protesto ou recusa das "mazelas da modernidade", baseando-se em uma visão da sociabilidade "como canga repressiva (e) sem brechas", abdicando-se de toda e qualquer possibilidade de "conhecer e agir". Trata-se, enfim, de uma crítica que "imobiliza e desqualifica a capacidade de entender e combater, ou seja, de emancipar" (Chasin, 2001, pp. 9-10).
6 O leitor interessado encontrará na obra Trabalho e poder de agir, recentemente publicada no Brasil, uma exposição detalhada desses recursos metodológicos, bem como dos resultados que vêm alcançando (cf. Clot, 2010b).
7 Publicado na França, em 1980, com o título Travail, usure mentale.
8 Uma boa compilação em torno de uma dessas contribuições já se encontra publicada no Brasil, desde 2006. Trata-se da coletânea de textos do psiquiatra Louis Le Guillant, já citada anteriormente. Tomamos a iniciativa de organizá-la porque concluímos que os pesquisadores brasileiros e todos os interessados pelo campo da SM & T no nosso país deveriam conhecer outra vertente, bastante diversa e, em muitos aspectos, divergente daquela que tem prevalecido entre nós. Acreditamos seriamente que, por meio desse tipo de publicação, abre-se a possibilidade de se pensar diferentemente os problemas apresentados por esse campo, podendo dar início a um real (e bem embasado) debate entre escolas. é claro que outros autores precisam ser trazidos, de modo a permitir o enriquecimento desse debate, dentre eles, François Tosquelles (1967/2009) e Paul Sivadon, que fundou a disciplina, em 1952, ao publicar seu artigo "Psicopatologia do trabalho" (cf. Sivadon, 1993). Uma publicação recente em torno da obra de Claude Veil (2012) ressalta também sua importância no nascimento da psicopatologia do trabalho na França.
9 Em ensaio recente, tratamos desse problema, deixando claro que, sem um debate entre as correntes, iremos continuar cultivando essa espécie de sincretismo teórico que pretende igualar as "contribuições" e acaba por impedir o avanço da nossa disciplina (Lima, 2010).
10 O autor acrescenta ainda que, no pluralismo, "temos opiniões reciprocamente condescendentes, diante das quais não se faz qualquer crítica, impera o silêncio, cortado apenas pelo muchocho de que se trata de contribuição, fórmula abstrata para selar a cumplicidade. Nele não se verifica o cotejo de uma prática teórica, as opiniões não são formulações desse gênero, mas uma conversa entre pessoas, uma deambulação". Trata-se, conclui ele, de reduzir o saber à opinião pessoal (Chasin, 2001, p. 20).
11 Por consolidação de coletivos no âmbito acadêmico, entendemos a criação de equipes interdisciplinares nas quais haja um real debate entre as disciplinas de modo que as diferenças (e mesmo as divergências) encontrem espaço para serem expostas. Nos termos precisos de Lhuillier (2012), a real "cooperação científica interdisciplinar" é aquela que supera o "narcisismo das pequenas diferenças" para alcançar o patamar das "controvérsias autenticamente científicas" (pp. 25-26).