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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.18 no.1 São Paulo  2015

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v18n1p47-59 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Aposentadoria e trabalho docente: momento de despedidas ou reencontros com o trabalho?1

 

Retirement and teaching work: farewells or new beginnings?

 

 

Marta Luiza Montenegro Lana Jogaib2; Hélder Pordeus Muniz3

Universidade Federal Fluminense (Niterói, RJ, Brasil)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem o objetivo de analisar como professores de psicologia aposentados, que optaram por continuar trabalhando na universidade, estão vivenciando esse novo momento da carreira. A partir da perspectiva ergológica e de conceitos da ergonomia da atividade, foram realizadas conversas dialógicas sobre o trabalho com quatro professores de psicologia aposentados numa universidade pública federal, seguindo-se observações sobre algumas reuniões de trabalho. Conclui-se que os professores continuam trabalhando porque usaram a aposentadoria como estratégia para construir outro modo de fazer uso de si no trabalho, com mais autonomia para decidir sobre que tarefas iriam desenvolver e como realizá-las. Vale ressaltar ainda que, para além da necessidade de reconhecimento social ou receio de perdas salariais, esses professores mantiveram-se ligados à atividade docente por conseguirem desenvolver o trabalho em situações nas quais compartilhavam coletivamente valores do bem comum, tornando possível uma boa articulação entre o uso de si por si e por outros.

Palavras-chave: Aposentadoria, Trabalho docente, Professor universitário, Ergologia.


ABSTRACT

This paper's purpose is to understand how retired Psychology professors that chose to keep on working at the university are now experiencing this new moment of their careers. From an ergological perspective and concepts of activity ergonomics, dialogical conversations about work were held with four retired Psychology professors at a public federal university. Observations about a number of work meetings were also made. We determined that the professors continue to work because they have regarded retirement as a tool for construction of another way to make use of themselves at work, with more autonomy to decide which tasks they would develop and how to accomplish them. It is also important to mention that these professors continued teaching not only for their need of social acknowledgement or to maintain their living standards, but for the opportunity of developing their professional activity under a specific situation where common good values were shared, providing a profitable use of them by themselves and by the others.

Keywords: Retirement, Teaching work, University professor, Ergology.


 

 

Introdução

A aposentadoria é um momento específico da carreira do trabalhador. Para alguns, pode ser vivido simplesmente como uma etapa final da vida profissional; para outros, pode ser um momento de repensar os projetos de vida, decidir se irão ou não continuar trabalhando, refletir sobre como será viver sem exercer a atividade desempenhada por anos. É uma etapa, portanto, vivida de maneira mais conflituosa. Por essa razão, algumas pesquisas têm se interessado em compreender melhor a vivência desse período.

Estudos como os de Santos (1990), França (2002) e Zanelli, Silva e Soares (2010) lançam seu olhar sobre a valorização social atribuída ao sujeito que tem uma colocação no mercado de trabalho e sobre como o afastamento dessa realidade pode ser vivido por alguns como fonte de desvalorização social, passando a ser encarados como pessoas inativas e sem mais a utilidade que antes se apresentava atrelada a sua vida profissional. Tais estudos também destacam a importância da profissão para a construção de uma identidade e de como o desligamento do mundo do trabalho pode gerar uma "perda" dessa identidade.

Além disso, França (2002), Costa e Soares (2009) e Zanelli et al. (2010) também dão ênfase em seus estudos à importância de se planejar para esse momento de vida, possibilitando assim uma preparação mais adequada. Apresentam-nos, então, os chamados "programas de preparação para aposentadoria" (PPA), indicando seus objetivos e métodos de aplicação.

Algumas pesquisas também focam especificamente a aposentadoria de professores universitários, o que auxilia sobremodo este estudo por tratar-se da mesma profissão que abordamos em nossa pesquisa, o que nos ajuda a compreender especificidades que afetam essa carreira em particular.

Deps (1994) desenvolveu sua tese focando a transição para a aposentadoria na percepção de professores recém-aposentados da Universidade Federal do Espírito Santo. Nessa pesquisa, a autora concluiu que o fator que exerceu maior influência na decisão pela aposentadoria desses professores foi o receio de mudanças relacionadas à legislação federal4 que afetariam diretamente o regime previdenciário dessa categoria profissional.

Ao analisar a atividade docente e sua relação com a aposentadoria, Bragança (2004) elaborou sua dissertação analisando a experiência de professores aposentados do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Aponta em seu estudo que os sujeitos participantes da pesquisa faziam parte de um contexto muito peculiar, pois estavam na universidade desde sua fundação. Esse fator influenciou diretamente na vivência da aposentadoria, uma vez que tais professores tinham uma ligação muito forte com a produção acadêmica e com a instituição. Segundo a autora, a aposentadoria ocorreu para evitar perdas salariais, mas os professores continuaram na atividade de docência como professores voluntários.

Ceres (2007) também elaborou sua pesquisa buscando compreender a vivência de professores universitários no momento da aposentadoria. Seu estudo se deu com professores da Universidade Federal da Paraíba. Nesse estudo, procurou mostrar como o neoliberalismo, a globalização e a reestruturação produtiva têm trazido mudanças para o sistema previdenciário – e como, no caso dos professores universitários, as reformas da previdência de 1998 e 2003 levaram a uma avalanche de aposentadorias precoces daqueles que sentiam que podiam ainda continuar suas atividades.

De acordo com Ceres (2007), as maiores perdas identificadas estão relacionadas à redução da rede de relações sociais, como as interações com os alunos e o contato com outras instituições. Os ganhos mais acentuados dizem respeito à liberdade no uso do tempo. Contudo, para alguns, a questão do tempo livre foi negativa, pois, ao se depararem com o tempo livre, desprovidos da antiga rotina, não souberam como preenchê-lo.

Como podemos notar, diversos estudos destacam esse momento específico da carreira e consideram relevante refletir sobre ele. De maneira geral, apontam para o lugar importante que a vida profissional pode ocupar na vida de uma pessoa e como o desligamento dessa realidade pode levar a uma desvalorização social ou a uma perda de identidade. Entretanto, notamos com menos frequência discussões que indicam a vivência subjetiva que o trabalhador desenvolve ao realizar sua tarefa e como essa vivência vai influenciar diretamente no processo de construção de sentido desse trabalho – afetando, por conseguinte, o momento de aposentadoria.

Neste artigo, pretendemos evidenciar como professores aposentados que optaram por continuar trabalhando têm vivenciado esse momento como uma possibilidade de reinventar o seu trabalho. Para isso, apresentaremos primeiramente o nosso referencial teórico, depois a operacionalização da pesquisa de campo e, por fim, uma parte da análise dos resultados e considerações finais.

 

Referencial teórico

A influência do contexto social na vida dos trabalhadores não pode ser compreendida de maneira causalista simples. O que o trabalho significa para cada um, que questões e debates estão envolvidos para aquele sujeito específico num contexto também específico, são questões relevantes para compreender a experiência do momento da aposentadoria.

Para entender melhor essa experiência, precisamos esclarecer primeiramente o que estamos definindo como a ação de trabalhar. Partimos do pressuposto, já apontado pela ergonomia da atividade, de que o trabalho prescrito será sempre insuficiente para dar conta do trabalho real. Até mesmo em organizações do trabalho bem fragmentadas e que exercem grande controle sobre o trabalhador, como no taylorismo, observou-se que as prescrições serão sempre insuficientes para dar conta do trabalho real – por isso haverá sempre uma lacuna entre as prescrições e as situações reais de trabalho, que serão preenchidas pelo trabalhador.

Schwartz (2010a) aponta para a impossibilidade de se estabelecer a priori o que seja o trabalho. Segundo esse autor, sempre haverá uma distância entre as normas antecedentes e o que é vivido nas situações de trabalho. Sobre isso, ele afirma:

Creio que esta distância é universal. Por todo o tipo de razões, particularmente em relação à variabilidade das situações de atividade, e também do que é viver – e, portanto, viver no trabalho – para cada um. Por estas duas razões, que se combinam a outras, essa defasagem me parece universal (Schwartz, 2010a, p. 42).

Além disso, como desdobramento desse primeiro apontamento sobre o que seja o trabalho, Schwartz (2010a) afirma que a forma como se preenche essa variabilidade é sempre, em parte, singular. De acordo com Duraffourg (2010), "trabalhar será sempre questão de confrontação da inteligência humana às incertezas do momento presente" (p. 69), e essas incertezas sempre serão preenchidas por escolhas que o sujeito fará ao realizar sua atividade.

A prescrição tem a sua importância, e caso o sujeito não encontre nada prescrito, tal situação também poderá ser fonte de sofrimento. Além disso, nenhuma profissão se estrutura sem que haja algumas normas, regras e conceitos que formem um saber sobre determinado ofício. No entanto, essa prescrição nunca dará conta de todas as situações que podem ocorrer quando o sujeito realiza sua atividade.

Schwartz (2010a) diz que o sujeito ressingulariza a distância entre o prescrito e o real fazendo uso do que ele chamou de "corpo-si". Segundo ele, o "corpo-si" é uma entidade que racionaliza. Talvez a palavra entidade não seja a melhor, e em nossa cultura nos remeta a outros conceitos e significados, mas serve exatamente para marcar essa construção de algo que é corpo e também é "alma". O autor afirma que o "corpo-si" é algo que não é nem totalmente consciente, nem totalmente inconsciente: "é alguma coisa que atravessa tanto o intelectual, o cultural, quanto o fisiológico, o muscular, o sistema nervoso" (Schwartz, 2010a, p. 44). E o indivíduo racionaliza por meio do "corpo-si", renormatizando as situações de trabalho buscando a saúde, buscando tornar a situação de trabalho vivível.

Para Schwartz (2010b), essa ressingularização das situações de trabalho, além de sempre presente, é sinal de saúde. Ele afirma:

Ser determinado completamente pelas normas, pelas imposições de um meio exterior, não é viver, é ao contrário algo profundamente patológico. A vida é sempre tentativa de criar-se parcialmente, talvez com dificuldade, mas ainda assim, como centro em um meio e não como algo produzido por um meio (Schwartz, 2010b, p. 190).

Anteriormente, Canguilhem (1992) também nos havia trazido contribuições sobre a positividade que há no ato de ressingularizar normas. Ele afirma que "o homem só se sente em boa saúde quando se sente mais do que normal, isto é, não apenas adaptado ao meio e às exigências, mas também normativo, capaz de seguir novas normas de vida" (Canguilhem, 1992, p. 161).

É importante compreender também que esse uso que o sujeito faz do "corpo-si" ao realizar suas atividades será sempre atravessado por um debate de normas, que não são totalmente individuais. Tais debates são consigo mesmo, mas, ao mesmo tempo, também de ordem social, relacionados ao que Schwartz (2010a) chamou de "o bem viver juntos" Ele declara:

A partir do momento em que vocês sabem que a distância entre o prescrito e o realizado é universal, que existem, portanto, no trabalho, outras razões que entram em jogo além das razões dos organizadores, isto quer dizer que a pessoa faz escolhas! . . . e se ela tem escolhas a fazer, é em função de critérios – e, portanto, em função de valores que orientam estas escolhas. Não se pode escapar disso. E então existem debates – o que eu chamo de "debate de normas" – que geralmente não são vistos (Schwartz, 2010a, p. 45).

Portanto, as escolhas que fazemos em nosso trabalho, que determinam como será realizada de fato nossa atividade, passam por esse debate que envolve o uso de si por si – nossa história, nossos valores – e também o uso de si pelos outros – nosso coletivo de trabalho e outras influências sociais (chefias, clientes etc.). Logo, as escolhas que fazemos perpassarão por um debate de normas num mundo de valores que envolvem essas duas dimensões: o próprio indivíduo e o coletivo de trabalho do qual ele faz parte.

É importante destacar também que esse trabalhador não faz suas escolhas sem que esteja atravessado por outros coletivos além do de trabalho. Não podemos esquecer que o sujeito não se constrói sozinho no mundo; "seus" valores também são resultado de construções sociais. Portanto, o uso de si por si já é também permeado por outros coletivos que fazem parte da história de cada um.

O uso de si por si deve ser compreendido, portanto, não como um indivíduo que faz escolhas sem nenhuma influência, mas como um trabalhador que em seu cotidiano terá que escolher esse ou aquele caminho. Não há como delegar esse destino que será vivido por cada um no dia a dia de trabalho. E é assim que se farão as escolhas para dar conta das variabilidades do trabalho, na articulação do uso de si por si e no uso de si pelos outros.

Pode-se perceber, portanto, que os debates com os quais nos deparamos no ambiente de trabalho são complexos e frequentemente envolverão questões que não são fáceis de desembaraçar. Para tentar expressar a complexidade das escolhas feitas no trabalho, Schwartz (2004) usa um conceito que chamou de "dramáticas do uso de si". Para ele, "a negociação dos usos de si é sempre problemática, é sempre lugar de uma dramática" (Schwartz, 2004, p. 25). Talvez essa palavra remeta exatamente para a dimensão da dificuldade em se fazer escolhas no trabalho, quando tantas coisas estão envolvidas.

Nossos debates sempre envolverão essa dramática. Segundo o autor citado:

Essa é a razão pela qual nós dizíamos anteriormente: não existe execução, mas uso. Pessoalmente, fui levado a propor a ideia de que toda atividade – todo trabalho – é sempre uso. Uso de si, mas com esta dualidade às vezes simples e ao mesmo tempo muito complicada, que é uso de si "por si" e "pelos outros". E é precisamente porque há estes dois momentos, ou estas duas polaridades do uso, que todo trabalho é problemático – problemático e frágil – e comporta um drama (Schwartz, 2010b, p. 194).

Remetendo ainda a essa dramática envolvida no uso de si, ele afirma:

É necessário articular permanentemente o uso de si pelos outros e o uso de si por si: pelos outros que cruzam, como foi dito, toda atividade de trabalho; e por si, pois há sempre um destino a ser vivido, e ninguém poderá excluí-lo desta exigência. Tal exigência é uma oportunidade, claro, pois é a possibilidade de "desanonimar" o meio, tentando fazer valer ali suas próprias normas de vida, suas próprias referências, através de uma síntese pessoal de valores. Essa tentativa é também um risco, pois os fracassos são possíveis – daí o sofrimento no trabalho (Schwartz, 2010b, p. 195).

Logo, nossas escolhas podem fracassar; nossa margem para escolhas pode ser muito reduzida dependendo de onde trabalhamos, e tudo isso vai afetar a forma como vamos viver nosso trabalho.

Cumpre ressaltar ainda que esse coletivo de trabalho pode ser nosso coletivo mais próximo, as pessoas que trabalham diretamente conosco e influenciarão nossas escolhas; e pode ser também um coletivo de trabalho mais distante que, de certa forma, também influenciará a nossa atividade de trabalho. Portanto, identificar esse coletivo envolve considerar todo esse contexto mais amplo que permeia as escolhas feitas no cotidiano de trabalho. Segundo Schwartz,

De algum modo, "os outros" podem ser os colegas de trabalho mais próximos, ou aqueles que escolhemos, ou os que procuramos fora da proximidade imediata; mas podem ser também aqueles que avaliam seu trabalho, aqueles que esperam um trabalho de qualidade, aqueles que o julgam ou que lhe pagam (Schwartz, 2010b, p. 192).

Além do que já foi exposto, vale salientar que, ao se buscar analisar situações de trabalho, é preciso considerar as grandes transformações que, sem dúvida, atravessam as situações vividas no trabalho, sem com isso desconsiderar aquilo que os sujeitos fazem com o que os atravessa.

Assim, quando pretendemos entender uma determinada situação de trabalho ou que envolva o trabalho, como é o caso da aposentadoria, é preciso analisar esses dois pontos: as grandes transformações sociais, aquilo que acontece e antecede a realização da atividade; e também o que, de fato, está acontecendo na história e que só pode ser verdadeiramente analisado quando se considera o ponto de vista daqueles que realizam o trabalho, pois eles modificam e singularizam as normas antecedentes.

No caso dos professores aposentados que participaram desta pesquisa, veremos na análise dos resultados que a atividade desempenhada na universidade configurava-se como uma possibilidade de construção de prazer e saúde por meio do trabalho – o que se dava, entre outras razões, pela possibilidade encontrada de agir mais amplamente sobre as situações de trabalho, sendo a aposentadoria um momento favorecedor dessa reestruturação das tarefas desempenhadas.

 

Método de pesquisa

Os resultados apresentados neste artigo são fruto de parte da pesquisa que embasou a dissertação de mestrado de um dos autores. Realizamos a pesquisa com professores de uma universidade pública federal que optaram por continuar exercendo suas atividades já aposentados. Buscamos compreender sua vivência com o trabalho após a aposentadoria: por que optaram por continuar trabalhando? O que mudou nessa vivência com a aposentadoria? Enquanto um dos autores teve contato direto com os professores aposentados no campo, o segundo auxiliou no planejamento da pesquisa e na análise dos dados, seguindo a recomendação de Dejours (2004) de que se estabeleça um dispositivo de pesquisa que tenha pesquisadores que vão a campo e outros que não vão, para favorecer uma discussão com diferentes pontos de vista.

Havia cinco professores nessas condições no instituto onde o estudo se realizou. Destes, quatro puderam participar da pesquisa. Os encontros com os professores ocorreram na própria universidade e, no caso de alguns, em suas residências. O contato foi feito inicialmente por e-mail ou telefone, explicando um pouco da pesquisa e verificando se havia o desejo da participação. Todos aceitaram participar, e marcamos os encontros de acordo com a disponibilidade de cada um. Foi possível fazer um encontro com cada professor – com uma das participantes realizamos cinco encontros. Vale ressaltar ainda que, dos professores participantes, três mantiveram-se ligados à instituição por meio do programa de pós-graduação, e uma manteve suas atividades em um projeto de extensão.

A proposta desses encontros era a de que pudéssemos realizar conversas sem perguntas diretivas ou conteúdo muito estruturado, favorecendo assim a tentativa de compreender a experiência de cada um com seu trabalho e com a aposentadoria, sem que já houvesse um direcionamento muito rígido por parte do pesquisador. A conversa começava com uma explicação mais geral sobre a pesquisa e a partir disso os professores iam discorrendo sobre suas experiências, o período anterior à aposentadoria, os motivos que os levaram a se aposentar e a vivência com o trabalho após a aposentadoria. O pesquisador ia se colocando mais livremente quando percebia a necessidade de que algum ponto fosse esclarecido, ou quando achava pertinente trazer para a conversa algum conceito que percebia estar ressoando de alguma forma naquela experiência.

Posteriormente, as conversas foram transcritas e analisadas. A proposta de análise foi buscar um possível diálogo entre os conceitos e a experiência desses professores. Criamos temas a partir dos conceitos e os apresentamos juntamente às falas dos professores que percebíamos que tinham alguma relação com eles.

Fizemos também observações das reuniões de colegiado da pós-graduação, nas quais os professores aposentados que trabalhavam neste segmento participavam ativamente dos debates. A observação dessa atividade coletiva permitiu apreender como esses professores interagiam com os outros e quais os tipos de problemas que tinham de resolver. Além disso, as questões referentes à política da pós-graduação no país sempre eram debatidas, ficando claro para nós como o debate de normas sobre atividade docente era realizado.

Depois disso, fizemos contato com todos os professores participantes e enviamos por e-mail a análise realizada para que pudessem validar o conteúdo, assim como modificar ou alterar qualquer trecho que achassem necessário. Também os convidamos para um possível encontro em que conversaríamos sobre a análise, caso assim o quisessem. Nenhum professor considerou que mais um encontro fosse necessário, e todos entraram em contato por e-mail. As mudanças solicitadas foram pontuais e diziam respeito mais à forma do que ao conteúdo, como alteração de nomes e datas.

Todos afirmaram ter se identificado com o conteúdo analisado e destacaram a importância dada a essa etapa, valorizando a possibilidade de poder ter acesso ao material e ser participantes também desse momento da pesquisa.

 

Aposentadoria: possibilidade de novo encontro com o trabalho

Propusemos a análise do material observando o que de alguma forma pudesse ressoar ou dialogar com as teorias utilizadas e que se propusesse refletir a vivência do homem no trabalho. Buscamos, dessa forma, inserir os conceitos teóricos, mas de maneira que eles dialogassem com a experiência trazida pelos professores. Assim, foram criados temas com base nos conceitos teóricos e trechos das conversas dos professores que, de alguma forma, refletissem o que eles viviam.

O que apresentamos neste artigo é parte dessa análise. Priorizamos o conceito da ergonomia de carga de trabalho (Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg & Kerguelen, 2001) e o da ergologia de uso de si por si e por outros, assim como o de corpo-si (Schwartz, 2010b), por considerar que eles dialogam com uma experiência importante percebida ao longo das conversas.

Primeiramente, é importante sinalizar que nos parece que os professores participantes da pesquisa conseguiram, ao longo dos anos de desenvolvimento da atividade profissional, construir uma relação positiva com o trabalho, encontrando na realização da atividade a possibilidade de construção de prazer e saúde. Tal processo de construção de sentido por meio do trabalho parece ter sido um dos fatores que influenciaram a decisão de continuar trabalhando.

Sabe... Eu faço as coisas que eu gosto, e eu sempre fiz as coisas que eu gosto. E, eu acho que eu continuo a trabalhar porque eu faço as coisas que eu gosto. Se amanhã eu não gostar mais, o que ia ser uma loucura, porque você gosta por mais de cinquenta anos e depois não gosta mais [risos], claro que eu mantenho todas as minhas responsabilidades, mas eu dou adeus e vou embora (Professora S.).

É, já está na minha história e sempre me deu muito prazer. Sempre me deixou muito feliz e muito alegre. E eu continuo fazendo isso (Professora V.).

Eu achei que de fato algumas pessoas que se aposentaram nunca mais voltaram, mas talvez essas pessoas tivessem alguma razão, algum motivo forte para isso, que não era o meu caso. Eu vivi profissionalmente os melhores tempos, aliás desde que estudei aqui (Professora V.).

Parece-nos ainda que a possibilidade de uma nova vivência com o trabalho docente, após a aposentadoria, foi um fator que pesou consideravelmente na decisão desses professores por permanecer trabalhando.

E eu não trabalho mais como aposentada para minha sobrevida, não trabalho mais para minha sobrevivência. Isso é uma sorte que você tem. Pra mim é uma coisa muito boa, eu poder escolher se eu quero continuar trabalhando, eu poder escolher se eu quero continuar escrevendo, eu poder escolher se eu quero continuar orientando... (Professora S.).

Eu me aposentei justamente, bem, foram por alguns motivos, mas falando de modo mais direto eu queria tempo para estudar. Precisava de tempo para ler . . . . Não foi para fazer coisas novas, não foi por causa do cansaço, é... Foi realmente para ter tempo para eu poder dar uma aula mais bonita. Dar uma aula, é... Como eu gostaria de dar (Professor F.).

Como já apresentamos no primeiro trecho de reflexão deste artigo, as prescrições serão sempre insuficientes para dar conta das imprevisibilidades inerentes ao meio, a toda e qualquer situação de trabalho. O trabalhador, então, se colocará de forma singular, visando preencher as lacunas e, também, buscando formas de realizar seu trabalho de forma mais eficiente, em relação tanto aos resultados como também à busca por uma economia do seu próprio corpo.

Para pensar sobre essa experiência singular no trabalho, em que o trabalhador irá fazer escolhas e agir ativamente sobre o meio, a ergonomia da atividade nos traz a noção de construção de modos operatórios. De acordo com essa perspectiva, o trabalhador irá construir modos operatórios considerando tanto os aspectos mais gerais da produção fixados pela empresa como também seus objetivos pessoais. O trabalhador planeja como atingirá os objetivos mais gerais. Segundo Guérin et al. (2001),

os modos operatórios adotados pelos operadores são, portanto, o resultado de um compromisso que leva em conta: os objetivos exigidos, os meios de trabalho, os resultados produzidos ou ao menos a informação de que dispõe o trabalhador e o seu estado interno. (p. 65).

Ao realizar sua atividade, o trabalhador recebe "sinais de alerta" de agressões (nem sempre visíveis) ao seu corpo, e tais situações o levarão a modificar suas maneiras de trabalhar, ou seja, seus modos operatórios. Contudo, o desafio que se apresenta para o trabalhador é que há organizações de trabalho que são mais rígidas, deixando pouca possibilidade para ele "fazer de outro jeito". A esse aumento ou diminuição da possibilidade de agir, modificando os modos operatórios, a ergonomia denominou "carga de trabalho", e à possibilidade de fazer escolhas, "margem de manobra". Quanto maior a carga de trabalho, maior o constrangimento sobre as escolhas que o trabalhador pode fazer sobre os modos operatórios. Nesse sentido, Guérin et al. (2001) esclarecem:

A noção de carga de trabalho, do nosso ponto de vista, pode ser interpretada a partir da compreensão da "margem de manobra" da qual dispõe um operador num dado momento para elaborar modos operatórios tendo em vista atingir os objetivos exigidos, sem efeitos desfavoráveis sobre seu próprio estado. Uma "carga de trabalho" moderada corresponde a uma situação em que é possível elaborar modos operatórios que satisfaçam a esses critérios e alternar as maneiras de trabalhar. O aumento da "carga de trabalho" se traduz por uma diminuição do número de modos operatórios possíveis (p. 67).

Portanto, em situações em que há um aumento da carga de trabalho e o trabalhador não encontra possibilidade de modificar seus modos operatórios, ele será levado inicialmente a uma busca por atingir os objetivos à custa de seu estado interno, mas posteriormente não conseguirá mais atingir os objetivos e causará danos a sua saúde.

No caso dos professores participantes desta pesquisa, apesar de ainda estarem submetidos a regras e normas, podemos notar, ao analisar as conversas, que a aposentadoria denotou maior liberdade para fazer escolhas sobre seus modos operatórios, apontando para uma possível diminuição da carga de trabalho e um aumento da margem de manobra.

É. Você tem isso e uma possibilidade de um outro tipo de regularidade que antes você não dispunha. Entendeu? Que é um tempo mais para você, você não adia mais, por exemplo, você faz o que tem que fazer, viajar, ir a médico, enfim, você não tem aquela coisa porque amanhã eu tenho que estar lá... Se eu vier aqui para dar aula das 11h às 13h uma vez por semana, uma vez por semana eu vou fazer isso, só não tenho que fazer todo dia. Posso visitar os amigos, posso visitar minha família, minha filha que está lá no Ceará... (Professora R.).

E comecei a ficar sufocado de trabalho e disse: "Não!" Eu quero trabalhar muito serenamente. Eu quero trabalhar, continuar me envolvendo, mas com uma certa... acho que serenidade foi uma palavra equivocada, eu acho que com uma certa alegria, com um certo prazer (Professor F.).

Segundo a ergologia, a saúde não é compreendida como um estado de bem-estar contínuo, fixo e sem alterações. Ao contrário, ela é produzida exatamente quando se encontra a possibilidade de se criar normas que trabalhem a favor da saúde.

A busca por novas normas é uma busca por saúde. O indivíduo procura readaptar as normas segundo seus anseios e necessidades visando à saúde. De acordo com Canguilhem (1992, p. 153), "o doente só é doente por só poder admitir uma norma . . . o doente não é anormal por ausência de norma, e sim por incapacidade de ser normativo". Portanto, "o que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar as infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas" (Canguilhem, 1992, p. 158). A capacidade normativa, a possibilidade de criar normas, é própria do ser humano saudável.

Inspirando-se nessa proposição, Schwartz (2010b) afirma que viver num ambiente de trabalho totalmente determinado pelas normas é invivível e pode ser extremamente adoecedor. Ele vai dizer ainda que o meio é duplamente infiel, pois, além de ser profundamente patológico se manter numa situação totalmente heterodeterminada, é impossível – uma vez que, como apontamos em nossa perspectiva teórica, não será possível prescrever e antever todos os imprevistos que podem ocorrer numa situação de trabalho.

O trabalhador, para gerir essa dupla infidelidade do meio, buscando sua própria saúde e tentando gerir os imprevistos, se colocará de forma singular, fazendo o que a ergologia denominou de um uso de si. Um uso de si por si, "de suas próprias capacidades, de seus próprios recursos e de suas próprias escolhas para gerir esta infidelidade, para fazer algo" (Schwartz, 2010b, p. 190), mas também um uso de si por outros, pois nossas escolhas sempre serão atravessadas por colegas, normas, regras, valores, ou seja, questões que existem em nós, apesar de nós e que afetarão inevitavelmente as escolhas que faremos no trabalho. Nesse sentido, o autor afirma:

Eles estão presentes em você, estão presentes na intimidade de suas escolhas e, consequentemente, há uma dialética muito profunda que não é constitutiva de você, mas que o trabalha profundamente, neste modo pelo qual, escolhendo este ou aquele procedimento ou modalidade de ação, você escolherá, de uma certa maneira, a relação com os outros ou o mundo no qual você quer viver (Schwartz, 2010b, p. 192).

Por essa razão, trabalhar será uma negociação nem sempre fácil de resolver, que envolverá um uso de si por si e um uso de si pelos outros.

Novamente percebemos que a aposentadoria parece indicar um momento em que há mais liberdade para fazer um uso de si por si maior do que em outros momentos da carreira. Podemos sugerir, então, que esses professores aposentados apontam para uma reconfiguração da relação com o trabalho, passando a ter maior autonomia de decidir quais tarefas irão realizar e, portanto, gerando uma mudança no modo como fazem uso de si por si – já que obtêm maior margem de manobra para decidir os seus modos operatórios do que quando estavam na situação de servidor ativo.

Tem outras coisas cuja urgência é uma urgência que vem de fora, agora é uma urgência que você tem para você mesmo (Professora R.).

É claro que você vai dizer: você tinha tanto prazer naquela época como agora? Eu vou te dizer: não. Mas não era importante para o programa? Não eram essas as regras do programa? Então está bom... Vamos lá, eu vou lá... Mas agora o programa já está num outro momento. Por isso que atualmente eu fechei, porque eu acho que isso eu mereço . . . . Eu oriento as coisas que eu posso orientar, que eu gosto de orientar, e cuja, eu vou ler aquela bibliografia e vai me trazer alguma coisa. Tudo que você vai ler vai te trazer alguma coisa, mas sabe? Alguma coisa que seja mais próxima. Isso atualmente para mim está muito tranquilo (Professora S.).

Destacamos ainda que esse debate de normas instaurado pelo uso de si por si e por outros é arbitrado por aquilo que a ergologia chama de "corpo-si". E é nessa negociação, sempre difícil de realizar, que é possível construir algo pertinente no trabalho. Esse "corpo-si" remete sempre a algo biológico, pois certas escolhas se dão no nível de economias do corpo, ajustes de postura, sinalizações sensoriais e visuais, mas também remete a uma história que se constrói num mundo permeado por valores. Como afirma Schwartz (2010a, p. 46), "a arbitragem mobiliza um complexo de valores: o trabalho é sempre encontro de valores".

Quando escolhemos esse ou aquele caminho, escolhemos em última instância o mundo em que queremos viver; tentamos reconstruir minimamente o universo que nos circunda segundo nossas próprias normas. Mas como trabalhar é sempre, em parte, viver coletivamente e fazer um uso de si por outros, às vezes encontramos situações de trabalho permeadas por alguns valores que se chocam com aquilo que queremos produzir, ou fazer valer.

O trabalho é atravessado por questões sociais mais amplas, valores que circulam na sociedade e tomam forma e sentido em nossa atividade de trabalho. Valores sem dimensão, como saúde, educação, trabalho, emprego, e que vão sendo dimensionados de diferentes formas no micro de nossa atividade. Assim, também o trabalhador, ao realizar sua atividade, coloca-se ativamente em seu contexto de trabalho, produzindo história. "Nossas escolhas, mesmo micro, operadas no trabalho, contribuem para dar uma forma à sociedade em que vivemos e vice-versa" (Schwartz & Durrive, 2010, p. 245).

A ergologia compreende esse vaivém entre micro e macro, em que a história se produz a partir de três polos. O primeiro seria o polo político ou dos valores sem dimensão, em que estão em jogo questões como direito à aposentadoria, acesso à educação, como viver bem juntos etc. O segundo seria o polo mercantil, no qual se tentaria dimensionar esses valores sem dimensão, quantificá-los de certa maneira. Segundo Schwartz (2010c),

É impossível dar realidade a estes valores sem lhes atribuir uma dimensão, sem lhes alocar recursos . . . . Como vamos dimensionar a saúde em relação à educação e à cultura? É um problema, e creio ser o objeto mesmo do debate político, do debate no âmago das organizações democráticas: "como fazer a arbitragem entre tais valores" (Schwartz, 2010c, p. 249).

O terceiro polo seria o da atividade, em que é possível se ver mais claramente como estão se dando as trocas entre o polo mercantil e o polo político. Como vimos, o trabalhador não somente executa sua tarefa; ele também faz um uso no trabalho, e segundo a perspectiva ergológica, tal uso é realizado pelo "corpo-si", entidade enigmática que arbitra as tensões, encaminha os debates e faz escolhas no trabalho. Por isso, a forma como a organização trabalha esses dimensionamentos de valores pode se contrapor demasiadamente àquilo que pensamos ou desejamos que seja o que queremos viver, ou que acreditamos que deve ser o "bem viver juntos".

É importante que o coletivo de trabalho no qual se inserem esses professores opte por certos encaminhamentos que sejam coerentes com os valores do bem comum, dando um dimensionamento próprio do coletivo e não apenas proveniente de normas governamentais. Por essa razão, a maneira como o dimensionamento desses valores ocorre também influenciará a opção de se permanecer ou não trabalhando, pois desse ponto de vista "vê-se claramente que a motivação está na escolha – difícil de fazer – ou na difícil articulação entre o uso de si por si e pelos outros" (Schwartz, 2010b, p. 195).

Percebemos, em nossa pesquisa, que outro fator relevante na escolha de se manter trabalhando diz respeito à possibilidade de atuar numa situação de trabalho em que os valores são consonantes com aquilo que esses professores consideram importante, ou seja, quando o "corpo-si" consegue instaurar uma boa articulação entre o uso de si por si e o uso de si por outros.

Os professores que se mantiveram ligados às atividades na pós-graduação apontam como importante fazer parte de um coletivo de trabalho em que os debates sobre as normas da pós-graduação sejam permanentes. Embora se procure cumprir as metas de produtividade da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), tenta-se sempre discutir coletivamente como fazer isso de maneira que não prejudique o coletivo de trabalho e a saúde dos pesquisadores, mesmo que signifique abdicar de alcançar notas mais altas na avaliação. Participar de uma experiência de gestão acadêmica democrática propicia aos professores se sentirem participantes da construção de um meio comum de trabalho, exercendo certa normatividade.

E também o que me faz me manter na pós-graduação não é por ser bolsista, é porque este programa afina com as coisas que desejo, se afina com certos valores acadêmicos que eu tenho. Eu nunca estaria pelo que eu vejo de outros programas aí, eu ia escrever sozinho, sei lá... Porque este programa tem uma grande afinidade com os meus valores. Mas também me apresenta, me ensina coisas . . . . Tem muitas coisas aqui que o programa me provoca (Professor F.).

Eu gosto muito da pós-graduação, que as coisas ocorram de forma colegiada. Eu gosto muito disso, e eu acho que existe uma relação muito respeitosa nestes colegas. Eu acho que isso é uma coisa legal, você poder escutar o outro, você poder ouvir o outro (Professora S.).

Existem espaços que te incitam a lutas estéreis, existem espaços que te incitam a lutas que valem a pena. Então eu acho que este programa me incita um pouco a estas lutas que valem a pena (Professor F.).

Percebemos também que a professora que se manteve inserida na instituição por meio de seu projeto de extensão, mesmo que não pelas mesmas razões ou envolvida nos mesmos debates da pós-graduação, conseguiu dimensionar de forma positiva certos valores do bem comum em relação ao seu coletivo de trabalho. Parece-nos que essa possibilidade também influenciou a forma como podia vivenciar o trabalho, assim como também a decisão por permanecer trabalhando.

Mas eu deixaria este trabalho caso ele não afinasse com as minhas necessidades (Professora V.).

É que na verdade é uma pessoa que afina de trabalho comigo, a equipe é muito bem afinada. . . . Tem carinho, consideração... Mais carinho, mais afinidade, afinidade política, afinidade afetiva, afinidade espiritual, afinidade de trabalho, né? Eu acho que isso foi a fórmula que faz funcionar um projeto que vai fazer 15 anos agora em julho (Professora V.).

No meu modo de trabalhar é sempre dividir as decisões, dividir os problemas, então é uma gestão participativa (Professora V.).

 

Considerações finais

A aposentadoria é um direito historicamente conquistado pelas lutas trabalhistas e que merece ser usufruído pelos trabalhadores. O que notamos, no entanto, por meio de pesquisas como esta, é que o trabalho pode ser um lugar de adoecimento e sofrimento, do qual alguns trabalhadores esperam avidamente poder se desligar, mas para outros pode ser também lugar de possibilidade de ampliação da subjetividade, de construção de prazer e saúde.

Percebemos que mais do que concluir que trabalhar é adoecedor e que a aposentadoria seria um momento de se libertar desse mal engendrado, vale refletir sobre de qual trabalhar estamos falando e quais são as condições que podem levar essa atividade a ampliar a potência de vida do sujeito em vez de miná-la.

Observamos, neste estudo, um exemplo de profissionais que, longe de ser por motivos financeiros, optaram por continuar trabalhando após a aposentadoria por encontrarem nessa atividade a possibilidade de construção de sentido. Apesar de demonstrarem ter encontrado desde o início da carreira a possibilidade de construir sentido a partir da atividade profissional, é importante salientarmos que a aposentadoria possibilitou uma nova vivência com o trabalho, e esse novo encontro foi destacado como fator importante na escolha de permanecer trabalhando. A aposentadoria não foi vivida como uma despedida do mundo do trabalho, mas como uma possibilidade de estarem inseridos na mesma instituição em que atuavam antes da aposentadoria, mas vivenciando o trabalho de maneira diferente.

Notamos que essa nova vivência está associada a um novo momento da carreira, em que – apesar de ainda se submeterem a normas e regras – os professores têm maior autonomia e flexibilidade sobre as tarefas que vão desempenhar. A ergonomia e a ergologia apontam essa margem maior de escolha como um fator positivo para o trabalho, uma vez que o trabalhador tem uma possibilidade maior de escolher que caminhos traçar para alcançar os objetivos organizacionais. Além disso, os professores destacaram a importância de estarem inseridos em uma situação de trabalho que reverbera certos valores que eles consideram relevantes, contribuindo também para a decisão de continuarem trabalhando.

Ao optarem por permanecer trabalhando, a universidade e a sociedade também ganham, pois podem continuar absorvendo a experiência e o conhecimento de professores que muitas vezes dedicaram toda a sua vida profissional ao ensino, à pesquisa e à extensão. O nosso desafio é conseguir produzir reflexões que contribuam para que esses novos modos de inserção de tais profissionais possam ser mais valorizados e legitimados, salientando a qualidade do trabalho desempenhado por eles.

Este artigo não pretende esgotar as questões provenientes dessa atividade docente. O trabalho humano é bastante complexo e nunca é totalmente compreendido por meio de conceitos ou teorias. Assim, algumas questões permanecem em aberto para outras pesquisas, como "quais constrangimentos tornam o trabalho docente antes da aposentadoria mais desconfortável de ser realizado?". Esta é uma questão que outras pesquisas com o trabalho docente na universidade podem esclarecer, mostrando quais as principais dificuldades que os docentes enfrentam para maior normatividade com o seu trabalho.

 

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Endereço para correspondência
martaluizamontenegro@hotmail.com, heldermuniz@uol.com.br

Recebido em: 01/11/2014
Revisado em: 23/05/2015
Aprovado em: 06/10/2015

 

 

1 Este artigo não apresenta conflitos de interesses.
Este trabalho não foi submetido ao Comitê de Ética de Pesquisa porque os participantes da pesquisa são professores aposentados do curso de Psicologia e conhecem bem os procedimentos éticos efetuados. O relatório de pesquisa foi validado por todos os pesquisadores entrevistados.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense.
4 Os professores universitários sofreram alterações importantes em seu regime previdenciário com as emendas constitucionais nº 20/98 e nº 41/03. As principais perdas identificadas foram: fim da paridade entre ativos e inativos, fim da aposentadoria especial e a taxa de 11% para os inativos. Embora a tese de Deps tenha sido escrita em 1994, o receio da perda desses direitos já afetava a decisão de muitos professores, que apressaram sua aposentadoria.

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