SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número1Entrevista com Danièle Linhart: a instituição da expropriação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.19 no.1 São Paulo  2016

 

RESENHA

 

A face oculta do ouro negro: trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera da Bacia de Campos

 

 

Edith Seligmann-Silva2

Universidade de São Paulo (São Paulo, SP, Brasil)

 

 

Endereço para correspondência

 

 

Na competição pela acumulação de capital – feita em nome do crescimento econômico – a dimensão humana vem sendo esquecida e invisibilizada, submersa pelas forças que buscam o imediatismo de lucros crescentes. O deslumbramento despertado pelo brilho da alta tecnologia, por outro lado, concorre para tirar do foco a complexidade e os limites dos seres humanos que produzem a riqueza – nas fábricas, nas minas e nas plataformas marítimas de petróleo de que trata este livro. Além da dimensão humana, na mesma irresponsável regressão acionada pela hegemonia da ideologia neoliberal, a Natureza também vem sendo ferida em seus mais importantes âmbitos e fluxos. O livro A face oculta do ouro negro: trabalho, saúde e segurança na indústria petrolífera offshore da Bacia de Campos3, escrito pelo pesquisador brasileiro Marcelo Figueiredo, ilumina essa grave questão.

A extrema clareza com que o autor nos expõe uma temática permeada por múltiplos entrelaçamentos de fenômenos de diferentes ordens é marcante. Marcelo Figueiredo introduz o leitor a um amplo acervo de conhecimentos sobre as interfaces que vinculam gestão da organização do trabalho, saúde e segurança em sistemas de alta complexidade vinculados a processos contínuos. Opera notáveis contextualizações e incorpora nas análises das transformações de uma área extremamente técnica a visão sócio-histórica e das mudanças culturais, contemplando aspectos ergonômicos e processos psicológicos em que confere atenção especial à subjetividade dos trabalhadores, sem deixar de lado aspectos de ordem coletiva. É possível identificar que a consciência da urgência de fixar parâmetros para diretrizes preventivas eficazes está no cerne dos propósitos que mobilizaram Marcelo para a realização desse trabalho.

As pesquisas que fundamentaram os conhecimentos e aspectos críticos a respeito de sistemas de produção contínua de alta complexidade foram realizadas em diferentes países e as principais conclusões são sintetizadas pelo autor. Resulta uma leitura esclarecedora que prepara o leitor para, após tomar conhecimento de alguns aspectos essenciais, acompanhar Marcelo em sua pesquisa na Plataforma da Bacia de Campos. O referencial teórico-metodológico é multidisciplinar e constitui-se principalmente dos conhecimentos desenvolvidos pela Ergonomia da Atividade e pela Psicodinâmica do Trabalho, enriquecidos pela perspectiva ergológica. Nesta visão desenvolvida por Yves Schwartz, os saberes científicos e os gerados pelas experiências dos trabalhadores se nutrem reciprocamente. Mas Marcelo também revê importantes aspectos biopsicossociais associados aos reflexos do trabalho adotado nas plataformas marítimas de petróleo, como o regime de turnos alternados, assinalando repercussões para a saúde e vida social derivadas desse aspecto que altera os tempos do organismo e da sociabilidade, afetando de modo especial o sono e o convívio dos trabalhadores com os demais, inclusive durante seus períodos de folga em que o reencontro com a família sofre influência dessa repercussão.

O autor expõe análises de grandes acidentes, que foram estudados internacionalmente, detendo-se de modo aprofundado nas catástrofes que envolveram plataformas da indústria petrolífera. Além dos variados riscos inerentes à atividade nas plataformas, aos quais todos os seus trabalhadores estão expostos, tornou-se grave preocupação levar em conta os efeitos externos – ambientais e populacionais, com danos humanos, bem como à fauna e à flora, constatados como impacto dos chamados acidentes maiores ou ampliados.

Após rever e comentar as análises destes casos, Marcelo volta-se para o cenário brasileiro e dedica especial atenção a um significativo retrospecto para depois mergulhar na exposição do que verificou ao longo de muitos anos de pesquisa nas plataformas e de interlocução com trabalhadores que haviam ou não testemunhado acidentes de diferente porte, inclusive os mais dramáticos.

O autor proporciona uma visão da companhia brasileira Petrobras, em que aspectos históricos da empresa e características da gestão são expostos, sem perder de vista a importância que o setor petrolífero representa na economia nacional.

No Brasil, a inquietação relacionada ao assunto, remonta a 1984 – quando ocorreu o acidente com a plataforma de Enchova, no qual 37 petroleiros perderam a vida na Bacia de Campos – e penetra nos anos 2000, durante os quais o autor desenvolve os achados de sua pesquisa, sendo reavivada recentemente, pelo desastre ocorrido na costa do Espírito Santo (ES) em fevereiro de 2015, com o navio plataforma Cidade de São Mateus, no qual 9 trabalhadores vieram a perder suas vidas, além de outros terem sofrido ferimentos graves. Um capítulo de análise especialmente acurada é dedicado à explosão da plataforma brasileira P36, em 2001, na qual ocorreram onze mortes.

O autor descreve o trabalho que observou ao longo de anos de pesquisa nas plataformas de petróleo: em sistema de alta complexidade, realizado em processo contínuo, sob regime de turnos de 12 horas. O perigo inerente às atividades – produzir e processar material altamente inflamável – está imerso em um sistema sociotécnico complexo. Essa somatória representa elevada demanda à vida mental de cada um – tanto no que concerne à dimensão cognitiva quanto à dos afetos (psicoafetiva). Lembrando que a vida mental é indissociável da social, e, portanto, no caso, das relações sociais e interpessoais vividas no cotidiano de trabalho, remete a diferentes modalidades de relações e laços – desde as relações de poder que permeiam a administração até os vários níveis da gestão, a organização do trabalho e as comunicações internas, tanto inter-hierárquicas como interpessoais.

Acrescente-se a situação de trabalho complexo em que existem riscos inerentes e o perigo deve ser lembrado de modo constante, o peso exercido pelo confinamento e pelo isolamento – aspectos sobre os quais as observações de Marcelo são extremamente significativas.

O pesquisador deixa evidente a importância da liberdade quando aponta para a imprevisibilidade de certas emergências nas quais ela se torna essencial para mobilização da inteligência coletiva e a criação de soluções, acompanhadas de tomadas de decisão com vista à ação imediata. O que é impedido quando a autonomia do pensamento sucumbe à rigidez das imposições e dos controles da organização do trabalho – emanados da direção e veiculados pelos gestores. Pois, em tais circunstâncias, em inúmeras situações analisadas no livro, ocorreu a paralisia do pensamento e da comunicação, em situações emergenciais, o que impediu a prontidão das ações e providências para evitar desastres iminentes.

Em outras palavras, fica bem elucidada pelo autor, a forma pela qual, nos contextos que engessam pensamento, comunicação e ação, surgem ressonâncias negativas para a dimensão subjetiva e para a sociabilidade, acarretando reflexos deletérios para a prevenção que se tornam cruciais e maximizam o perigo nos momentos de emergência.

Por outro lado, o autor demonstra que a segurança nas atividades em sistemas de alta complexidade exige que o ambiente seja propício à densidade do trabalho mental e à qualidade de relacionamentos interpessoais cimentados pela confiança. Esta confiança é construída ao longo da participação em um coletivo no qual estejam integrados o sentido do trabalho e o respeito à vida e à integridade de quem o realiza. Assim, torna-se essencial que os responsáveis pela administração – direção e gestores – definam situações e formas de organização do trabalho que favoreçam tal harmonização. Igualmente indispensável à prevenção é o diálogo permanente e a participação de todos os trabalhadores nas definições e escolhas referentes às transformações da organização do trabalho nesses processos complexos de produção em que as interdependências se fazem sentir de modo permanente.

Numerosos estudos já mostraram que inadequações da organização do trabalho influem de forma decisiva na degradação da saúde mental e dos relacionamentos humanos – o que leva a prejuízos da comunicação e da cooperação, bem como da rapidez nas deliberações e acionamento de intervenções nas situações de emergência. Essa é uma das vias pelas quais essas inadequações assumem papel relevante e às vezes decisivo na deterioração da segurança e origem de acidentes. Confrontando as antigas e preconceituosas atitudes de culpabilização das vítimas em acidentes de trabalho, o autor nos alerta: "o que poderia ser classificado como irresponsabilidade ou desatenção em relação à segurança, muitas vezes, revela-se como consequência do desgaste físico e mental ocasionado pelas condições de trabalho aliado aos conflitos que se exacerbam em meio à multiplicidade de fatores de risco aí presentes".

Marcelo Figueiredo chama a atenção para o fato de que, nas plataformas marítimas da Petrobras, os terceirizados estão expostos a maiores riscos de acidente e morte em uma indústria que, por sua natureza, já configura elevados riscos para todos os que nela trabalham. Essa vulnerabilidade dos subcontratados é evidenciada pelas cifras apresentadas. Por exemplo, entre as 309 mortes ocorridas entre 1955 e setembro de 2011, na Petrobras, 250 foram de trabalhadores terceirizados. A análise de diferentes peculiaridades da condição de terceirizado revela, entre outras desvantagens, a que atinge a duração das folgas – bastante inferior à dos funcionários efetivos. Algo que deveria interessar aos planejadores e gestores também é colocado em foco pelo autor: a terceirização e a elevada rotatividade do trabalho subcontratado, além de serem problemáticos pela sobrecarga de trabalho, falta de aquisição do conhecimento dos detalhes e variabilidade dos sistemas complexos, são também incompatíveis com um comprometimento em que o eu profundo esteja realmente "engajado".

Uma consideração do autor, de ordem mais abrangente, merece profunda atenção: "A gravidade do contexto aqui retratado, embora obscurecida na ‘face oculta do ouro negro’, infelizmente, não se configura como exceção ante a condição degradante que ainda acomete, dia após dia, um segmento expressivo de trabalhadores no Brasil".

A este alerta, vale acrescentar algo que Marcelo Figueiredo, recentemente, voltou a enfatizar: "Entende-se que uma alteração substantiva do contexto vigente, em que inúmeros acidentes graves e fatais continuam a ocorrer, demanda a instauração de um amplo debate entre os representantes das grandes empresas que atuam no setor, os sindicatos de trabalhadores e o poder público. Frente à adversidade do quadro conjuntural, o desafio maior é desenvolver meios e estratégias para que este debate se traduza em avanços concretos".

 

 

Endereço para correspondência
edisel@uol.com.br, marceloparada@uol.com.br

Recebido em: 08/08/2015
Aprovado em: 01/09/2015

 

 

1 Publicado originalmente na revista Laboreal, 9 (1), 103-105, 2015. DOI: 10.15667/LABOREALXI0115ESS
2 Médica psiquiatra e sanitarista, docente aposentada da Universidade de São Paulo.
3 Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense. 2ª edição, 2016. ISBN: 978-85-228-0777-2.

Creative Commons License