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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.19 no.2 São Paulo  2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Bullying e assédio moral no trabalho: expressões do narcisismo contemporâneo1

 

Bullying and moral harassment in the workplace: expressions of contemporary narcissism

 

 

Vinícius Xavier Cintra Marangoni; Matheus Viana Braz; Francisco Hashimoto

Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis (Assis, SP, Brasil)

 

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta uma análise da literatura a respeito do bullying e do assédio moral no trabalho, a qual fornece dados para um exercício de reflexão e compreensão de ambos os fenômenos por meio de postulações provenientes da psicanálise e da psicossociologia, com ênfase à noção de narcisismo. O viés metodológico adotado refere o estabelecimento de um paralelo entre as ações que caracterizam o bullying e o assédio moral no trabalho com as particularidades da constituição narcísica e seus desdobramentos manifestos. Também é realizada uma articulação entre o narcisismo e o modelo de vida e trabalho dominante nas sociedades capitalistas globalizadas, a princípio mediante uma contraposição entre a modernidade e a contemporaneidade, em que se pretende demonstrar a influência indireta que o modelo econômico-produtivo dominante exerce nos processos de constituição psíquica e, posteriormente, mediante uma articulação entre o narcisismo e as sociedades de consumo.

Palavras-chave: Bullying, Assédio moral no trabalho, Narcisismo, Psicanálise, Psicossociologia.


ABSTRACT

The present work provide data, through a bibliography revision of school bullying and harassment at work, to a reflection and analysis of about of them by postulations derived from psychanalysis and Psycho-sociology with emphasis on the of narcissism. The methodologic way adopted refers to the establishment of a parallel between actions that characterize bullying and the harassment at work with the particularities of narcissism constitution and their exposed developments. Furthermore, we will realize an articulation between the narcissism and the lifestyle and prevailing work in globalized capitalist societies. At the beginning, through a contraposition between modernity and contemporaneity in the intent of demonstrating the indirect influence that the prevailing economic-productive model exercise in the psychic constitution of process and, posteriorly through an articulation between the narcissism and the societies of consumption.

Keywords: Schoolbullying, Harassment at work, Narcissism, Psychoanalysis, Psychosociology.


 

 

Introdução

Com a finalidade de viabilizar um exercício de reflexão crítica a propósito da precarização relacional no contemporâneo, sobretudo em relação à onda crescente de violência, especialmente àquela manifesta no bullying e no assédio moral no trabalho, o presente artigo se reporta sucintamente a elementos históricos que direta ou indiretamente interferiram na organização e transformação da vida, tanto no domínio privado da família quanto no tangente aos determinantes socioeconômicos, com o objetivo de resgatar parte dos acontecimentos associados ao modelo de vida e sociedade atual, em que a violência encontra-se fora de controle. Pretende-se um enfoque que refere uma associação entre as condições gerais de vida e trabalho no contemporâneo, influências pronunciáveis na constituição e desenvolvimento psíquico, com a propagação e a intensificação da violência, principalmente a verificada nos ambientes escolares e organizacionais. Aparentemente, há uma imbricação profunda entre a conjuntura socioeconômica atual e a tipologia psíquica dominante, de modo que o ajustamento certeiro entre uma e outra configura um ciclo crescente cujas consequências traduzem o mal-estar na contemporaneidade, em que se incluem os fenômenos acima elencados.

Em termos da estrutura deste trabalho, primeiro será delineado um percurso sumário em que se dá existência a um contraponto entre a modernidade e a contemporaneidade, com ênfase às transformações operadas em seus reguladores sociais, ao advento da ciência e à reconfiguração da família. Em seguida, se abordará diretamente a realidade do contexto organizacional típico de corporações transnacionais, relacionando-a à conjuntura global e ao desimpedimento da competição agressiva e da deslealdade, que são marcas da precarização relacional no trabalho. Logo, também será dada atenção ao bullying, fenômeno cuja intensificação está gerando debates em âmbito internacional, apresentando-o como uma modalidade de violência similar ao assédio moral no trabalho, dado que deixa ver um crescimento alarmante da violência como um todo e faz pertinente a hipótese de uma gênese comum às suas variadas expressões no contemporâneo. Por fim, e de forma a dar unidade ao texto, será delineada uma conjectura que congloba os fenômenos pautados anteriormente, relacionando-os à propagação e à intensificação do narcisismo, articulado à sociedade hodierna, majoritariamente marcada pelo excesso e o consumo desenfreado.

 

Modernidade e hipermodernidade: uma contraposição

O nascimento da modernidade se processou predominantemente apoiado no advento de representações sobre o homem e o mundo provenientes de um paradigma contrário ao dogmatismo religioso. A ciência moderna, adversária às postulações do misticismo e da fé religiosa (hegemônicas durante toda a Idade Média), ofertou explicações inéditas sobre a vida na Terra e lançou-se na disputa com o trunfo do método, que tornou possível a explicitação linear dos procedimentos de investigação e garantiu a possibilidade de verificação e validação objetiva do conhecimento por ela enunciado. O método, dono de uma transparência constatável empiricamente, foi decisivo na produção de verdades cristalinas, de grande poderio de convencimento. Com efeito, o conhecimento produzido pela ciência moderna obteve tamanha credibilidade que comumente passou a ser tomado como verdade inabalável na esfera social, fato que pulverizou significativamente as estruturas da doutrina dogmática (Justo, 2007).

Com o alicerce abalado, gradualmente o paradigma místico perdeu terreno à ciência, que, por sua vez, avançou como senhora da verdade, reveladora e guardiã de um conhecimento absoluto acerca das leis gerais que regem a natureza, o homem e o mundo. Assentado o embrião da ciência, o antigo regime declinou drasticamente, e foram processadas transformações radicais que, doravante, endereçaram ao homem, e não mais a Deus, as explicações dos empreendimentos feitos em vida, isto é, o trabalho científico do homem moderno destinava-se ao progresso material e social, encabeçado pelos ideais de liberdade e igualdade (Aubert, 2004; Justo, 2007).

Aparentemente, a transição da modernidade à hipermodernidade não refere marcadores tão explícitos, visto que rupturas com a ciência e a vida moderna são operadas ao mesmo tempo em que também se dá existência a uma intensificação das proposições e valores da modernidade. Ao que tudo indica, a ambiguidade e a complexidade próprias do tempo presente se justificam em razão da simultaneidade difusa de elementos do passado e do futuro, que fazem do presente um período de transição, isto é, um período de indefinição (Santos, 1988). É um tempo que "...reúne muita coisa que está aquém ou além dele, mas descompassado em relação a tudo que o habita" (Santos, 1988, p. 46). De qualquer maneira, é difícil não reconhecer que o cenário contemporâneo difere significativamente do período áureo da modernidade e, a julgar pelo lançamento de denominações específicas à época atual – pós-modernidade, modernidade líquida, supermodernidade, hipermodernidade –, seguramente o contemporâneo apresenta formas particulares de organização social, política, econômica e cultural, que o distingue da era pela qual foi precedido (Justo, 2007).

No plano das ciências, em sua relação com o processo produtivo, o projeto de progresso moderno criava as condições para a construção de um sentido à vida, um sentido histórico, não obstante permeado por projeções, em que a possibilidade de planejamento futuro contribuía com a construção de um sentido para o presente. O desenvolvimento científico e os benefícios do trabalho atendiam aos interesses de viabilizar melhorias à vida individual e social. Em contraposição, a tecnociência contemporânea profere um discurso que enaltece sobremaneira o progresso técnico e o sucesso individual, de modo que a aquisição do saber, outrora indissociável da formação humana, se enfraquece e se desloca para a lógica da técnica pela técnica, do ganho pelo ganho, em que prevalece o progresso técnico e o triunfo pessoal, independentemente de suas consequências. Em proporção significativa, verifica-se na sociedade hodierna uma crescente indiferença social em que não mais se veem motivos para travar lutas coletivas, dado este que coloca em evidência a decadência do sentimento de pertença a uma coletividade (Gaulejac, 2004).

Ao dar continuidade ao contraponto entre o moderno e o hipermoderno, também é possível a constatação de transformações no seio da família, em que são verificadas mudanças na composição, nas funções exercidas por seus membros e na qualidade da relação dos membros entre si. Em um histórico bem resumido, da família pré-moderna ou família extensa até a família contemporânea ou a não família, passando pela família moderna ou família nuclear, a evolução evidencia o declínio gradual do patriarcado, até sua completa decadência na contemporaneidade. Em cada uma dessas modalidades de organização familiar, o valor relativo dos personagens e o significado de cada um são modificados de maneira mais ou menos radical no decorrer da história, não obstante a derrocada do patriarcado permeá-las paulatinamente até sua consumação no contemporâneo (Birman, 2012; Roudinesco, 2003).

Na família nuclear, por exemplo, assentada no elevado potencial de intimidação sobre esposa e filhos, a autoridade paterna sufocou em demasia as disposições anímicas e possibilidades de expressão autêntica dos afetos. A dimensão da culpa chegou a um patamar extremo que impediu eficientemente a vazão dos impulsos, com o alto preço, entretanto, de regularmente obstruir a possibilidade de uma vida plenamente realizada. Nesse sentido, talvez o carro-chefe da obra de Nietzsche (1895/2002), filósofo que viveu e investiu crítica dura à modernidade, consista exatamente na identificação da decadência inerente aos valores da moral cristã (moderna). Por exemplo, apontadas pelo autor como inventoras de um ideal de oposição à vida, as noções de "pecado" e "além" produziram a pulverização da força e da criação humana, por meio da oferta de uma vida satisfatória no pós-morte, cuja resultante é a própria fraqueza e a valorização do que é fraco e fracassado. A obra de Franz Kafka, especialmente a Carta ao pai (1919/1997), é uma demonstração viva da força aniquiladora da cultura e da família moderna, visto que o autor reconhece o medo irracional e profundo que sentiu em relação ao seu pai, e atribui também a esse sentimento e aos seus efeitos opressivos determinados prejuízos à sua carreira de escritor e às tentativas fracassadas no matrimônio. As obras do autor transmitem a olhos vistos o quão profundamente enraizado encontrava-se o sentimento de culpa na alma do homem moderno.

De fato, os valores da moral cristã, ainda que profundamente estremecidos pelo advento da ciência e do espírito moderno, conservaram-se ao menos parcialmente na modernidade, e os preceitos religiosos continuaram na base da civilidade moderna. O ascetismo, portanto, foi minimamente amortizado em relação aos benefícios provenientes da fartura material, mas conservou-se imponente na sufocação dos impulsos humanos, principalmente a sexualidade. Uma breve incursão pela obra de Freud oferece demonstrativos suficientes que atestam a repressão demasiada da sexualidade, manifesta na impotência masculina e na frigidez feminina, comuns aos pacientes neuróticos. Atualmente, se bem que o contemporâneo assiste à retomada da fé e do fanatismo religioso, na outra ponta, o ateísmo e agnosticismo encontram-se também amplamente em expansão, de sorte que tudo leva a crer que a religião já não exerce tamanha influência na regulação moral da sociedade contemporânea. Para a era moderna, então, "...civilização significa disciplina, e disciplina, por sua vez, implica controle dos impulsos interiores, controle este que, para ser eficaz, tem de ser interno. Quem fala em modernidade fala em superego" (Giddens, 1993, p. 27). Na denominada hipermodernidade, a situação é diferente e, entre as rupturas consumadas, se inclui o enfraquecimento dessa vigilância interna, cujas decorrências implicam a soltura excessiva da animalidade originária, patente nos inúmeros casos, por exemplo, de violência nos ambientes domésticos, escolares e laborais. Como visto, do ponto de vista emocional, na família nuclear a autoridade paterna sufocava a alma, e mesmo às mães era vexatório portar-se publicamente com ternura e condescendência em relação ao filho. Hoje, porém, essa lógica foi substancialmente reconfigurada. Na família contemporânea há uma defasagem na socialização primária dos filhos, acompanhada pela onda crescente de delegar essa função à escola, a qual por sua vez não deseja e não reúne condições de assumir mais essa responsabilidade. Portanto, a educação de base se transformou em uma terra de ninguém (Birman, 2012). Não é incomum aos pais hipermodernos sentirem-se majoritariamente responsáveis pelo atendimento das necessidades materiais e afetivas dos filhos, deixando de lado a transmissão cultural, que viabiliza o enfraquecimento da condição animal em direção à emergência da condição humana. Portanto, o chamado à cultura, possível garantia de assimilação dos valores indispensáveis à fraternidade social, é posto em plano secundário.

Com base neste viés, em que a história da família ocidental se traduz na derrocada simbólica e concreta da autoridade da figura paterna, evidencia-se ainda uma vinculação direta entre a tipologia das organizações familiar e socioeconômica, em uma configuração aparentemente vertical de influência, em que a interferência da instância superior é determinante. Na Idade Média, por exemplo, em que o poder se concentrava na representação e na força de Deus, por um lado, e no comando e na soberania do rei, por outro, a autoridade paterna foi associada à imagem de Deus e o pai era "...visto como a encarnação terrestre de um poder espiritual que transcende a carne" (Roudinesco, 2003, p. 22). A hierarquia monárquica reproduzia-se no seio da família e ao pai era conferida a posição de mando em relação aos demais membros, cabendo-lhe inclusive o arbítrio para castigar a mulher e os filhos (Roudinesco, 2003).

O declínio das monarquias e a emergência da burguesia consequentemente reconfigurou a dinâmica familiar, em que o pai correu o risco iminente de também ser destronado. Na realidade, a abolição das monarquias resultou em uma reconfiguração da soberania patriarcal, pois, embora menor o poderio paterno, diminuído em decorrência da instauração das repúblicas e da redução da influência da igreja católica, o pai da sociedade burguesa, mesmo havendo perdido sua semelhança com Deus, reconquistou sua dignidade como provedor do lar e patriarca do empreendimento industrial (Roudinesco, 2003). Nesse contexto, o feminino dá uma primeira alavancada com a valorização do serviço materno, garantia de proteção à saúde e desenvolvimento dos filhos, posterior mão de obra à grande indústria. Por outro lado, a maternidade foi a alternativa para impedir a irrupção da sexualidade feminina, atribuída como maligna à mulher pelos fundamentos da cristandade (Birman, 2012).

Finalmente se instaura a família contemporânea, sobretudo a partir dos anos 1960. Conserva-se o matrimônio religioso e o casamento civil, mas a união contemporânea refere dois indivíduos doravante interessados em relações íntimas satisfatórias, e a realização sexual emerge como pilar decisivo à manutenção do vínculo (Giddens, 1993; Roudinesco, 2003). O rompimento se tornou um fenômeno comum, e a "...transmissão da autoridade vai se tornando então cada vez mais problemática à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam" (Roudinesco, 2003, p. 19). O pai, autoritário e severo, tornara-se piedoso e agora se vê confuso em suas funções. O amor materno, ora se consuma com excesso, caso em que a mãe toma o filho como objeto de satisfação, ora se consuma com defasagem, caso em que a centralidade do trabalho e o desejo de realização profissional fazem restar pouco investimento afetivo à criança (Birman, 2012). Antes, as vontades eram sufocadas e a obediência resignada ao pai reeditava-se com o patrão, propiciando o combustível à sociedade industrial. Hoje ilimitado, o "querer" é avalanche que se materializa em vontades inumeráveis, e a derrocada da autoridade parental, a qual se junta à sobrevalorização das liberdades individuais, alimenta uma sociedade marcada pelo excesso e consumo.

Pelo exposto, não há dúvida de que o mundo contemporâneo refere distinções profundas se comparado ao mundo moderno e naturalmente também apresenta problemas particulares às circunstâncias atuais. A demasiada restrição das liberdades individuais envelheceu e não se afina com a demanda da hipermodernidade, em que nos vemos às voltas com os problemas derivados da liberdade em abundância. No plano psicológico, à medida que a psicanálise revelou as consequências mutiladoras de uma repressão excessiva, apontando seu nexo causal com as neuroses, passou-se a supor que a psicanálise saiu em defesa de uma ausência de todos os controles, como se advogasse em favor de desimpedir tudo o que está reprimido (Bettelheim, 1982). Como consequência, "...o 'Conhece-te a ti mesmo' converteu-se em 'Faz o que te apeteça'" (Bettelheim, 1982, p. 31). Em outras palavras, se a modernidade representa a marca de um estrangulamento demasiado dos impulsos, em decorrência do qual se produziu os distúrbios neuróticos, na hipermodernidade, a quase ausência de impedimentos faz avançar os distúrbios narcísicos.

Quer dizer, dos bisavós aos bisnetos foram operadas tão profundas mudanças no seio da civilização ocidental que o encontro imaginário entre as gerações mencionadas se desdobraria, com toda probabilidade, em um diálogo de surdos, tamanho o distanciamento que os separa, ainda que a distância temporal seja relativamente pequena. Contudo, constatar as crises que atualmente se processam no vasto horizonte ético, cujos desdobramentos indicam um conjunto lamentável de prejuízos à vida social, faz pensar: tudo isso para chegarmos a esse fiasco?! Acontece, entretanto, que o processo civilizatório não configura uma caminhada regular, uniformemente orientada em sentido único. Assim fosse, categoricamente poderíamos dizer que a civilização se encontra atualmente em sua melhor forma, em todos os registros sociais. Ao contrário, a partir do exercício de comparar presente com o passado, percebe-se que o processo civilizatório registra avanços consideráveis e recuos constantes. Tal ressalva é fundamental, pois no resgate histórico realizado de modo algum se pretende fazer prevalecer uma óptica saudosista, endereçada a um passado superado. A atenção deve se dar, doravante, ao fato de que o retorno à história permite constatar que o processo civilizatório implica um processo simultaneamente evolutivo e involutivo, com ganhos e perdas constantes conforme a sociedade se transforma.

A partir do sumário anterior sobre a história da família, em resumo é possível inferir que a macroestrutura socioeconômica influencia e é influenciada pela microestrutura familiar e individual, mesmo que em menor proporção. Portanto, o entendimento aprofundado do modelo de família contemporânea, sua origem e desdobramentos, exige um grande volume de informações sobre o capitalismo globalizado que vigora atualmente. Em vez disso, o exercício que aqui se propõe tem por finalidade analisar a precarização relacional detectada na atualidade, problemática que atravessa o corpo social contemporâneo, sem todavia desprezar a direção para qual apontam os vetores de grande influência nesse reduto, razão pela qual foram abordados anteriormente alguns aspectos centrais de interferência na organização social, em um breve percurso histórico.

A delimitação proposta circunscreve dois dos principais espaços sociais em que se processa a convivência cotidiana e em que o dia a dia ao longo de anos deixa transparecer inevitavelmente àqueles elementos passíveis de serem ocultados quando o convívio é parco e passageiro. Com enfoque nos contextos escolar e organizacional, dá-se ênfase a uma tipologia específica de violência entre pares, genericamente marcada pela associação entre um indivíduo "hierarquicamente" mais forte em relação a outro, notoriamente vulnerável e indefeso. Trata-se, sem mais, do bullying e do assédio moral no trabalho (Hirigoyen, 2002; Plan Brasil, 2010). Sem ignorar os determinantes econômicos e socioculturais vigentes, o presente artigo se propõe a problematizar a precariedade relacional explícita em ambos os fenômenos mencionados, com fundamento em saberes provenientes sobretudo da psicanálise e psicossociologia (Barus-Michel, Enriquez, & Lévy, 2005).

 

Metodologia

De forma direta, o procedimento adotado para apresentar as problematizações do presente artigo refere uma conciliação de um volume de informações pertinentes aos fenômenos aqui abordados, encorpados com análises que se apoiam em postulações provenientes da psicanálise e da psicossociologia. Adiante, serão apresentados dados de levantamento bibliográfico, visto que se estabelece uma ponte entre as manifestações de maus-tratos nas escolas e nas organizações com aspectos gerais do funcionamento psíquico predominante nas sociedades capitalistas

Mediante o arcabouço teórico-metodológico da psicanálise e da psicossociologia, será analisada a noção central de narcisismo (e suas consequências), imbricada por sua vez em uma concepção interdependente e irredutível do social e do psíquico, isto é, da mesma forma que o psíquico é produto do social, o social coexiste ao psíquico. Em outros termos, enquanto recurso metodológico, a compreensão de pontos essenciais do narcisismo, espinha dorsal deste trabalho, oferecerá condições para se visualizar o bullying e o assédio moral como fenômenos alimentados pela conjuntura socioeconômica da sociedade atual, mas que em última instância se assenta em um substrato narcisista.

 

O psíquico e o social: bases conceituais de análise

É ponto pacífico que Freud fez uma grande descoberta quando constatou, mediante a clínica das neuroses, que o jeito de o paciente se relacionar com o analista no decurso do processo clínico de análise reproduzia um protótipo de relação estabelecido durante a primeira infância, sobretudo influenciado pelas figuras paterna e materna. No decorrer do tratamento de neuróticos, ao derrubar a resistência e viabilizar uma "escavação da psique", o método psicanalítico abre uma possibilidade para que seja vivenciado um processo de regressão emocional, em que o paciente se vê lançado a recordações remotas, podendo reproduzir e reviver clinicamente aspectos anímicos arcaicos – os quais têm força de lei na determinação do comportamento – e assim reinventar a si próprio. Isto quer dizer que o comportamento do indivíduo no âmbito relacional, no domínio amoroso como em qualquer outro campo de relação, reproduz amiúde os protótipos erigidos na relação primordial do filho com seus pais; pais que são a fonte das primeiras experiências de prazer/desprazer do filho, as quais têm atuação direta em sua constituição psíquica (Freud, 1896/1991a, 1912/1991b, 1905/1992a).

Portanto, a atenção dada até aqui à família e aos elementos que influenciam e modificam-na se justifica na vasta influência que os pais exercem na estruturação da personalidade de seus filhos, visto que é em virtude da vinculação inaugural com os pais que é operada a constituição psíquica dos filhos (Freud, 1905/1992a). Com efeito, o curso crescente da precarização relacional, instalado tanto nos ambientes escolares quanto organizacionais, também pode ser pensado enquanto uma atualização de processos psíquicos primários, abertamente narcisistas, originários genericamente da tipologia psíquica comum à contemporaneidade e, particularmente, da família contemporânea, porque em relação ao "...dilaceramento dos laços, também as mais diversas estruturas do âmbito social foram envolvidas neste processo, inclusive a família" (Seligmann-Silva, 2013, p. 284). Em resumo, uma vez que é na família que se dá a edificação de um protótipo relacional, e os laços familiares também sofrem um processo de precarização, não causará espanto que a precariedade vincular que irrompeu no interior das famílias seja reeditada na escola, no trabalho etc.

Como visto, da neurose moderna ao narcisismo contemporâneo foram processadas mudanças que representam lucros e prejuízos à sociedade e à vida humana, mas no tangente à ampla dimensão das relações interpessoais não subsiste dúvida nenhuma quanto ao retrocesso. A referência à história mitológica de Narciso para explicar o estágio mais primitivo do desenvolvimento humano foi um recurso adotado por Freud para favorecer o entendimento de que o egocentrismo é indesejável, posto que o encanto de Narciso por si mesmo causou sua própria aniquilação. Ao recorrer ao mito, Freud adverte sobre as consequências devastadoras do narcisismo, demonstrando que a centralidade demasiada em nossa pessoa própria resulta em distanciamento para com o outro, para com a vida e com nós mesmos, em um processo de perda de contato com a humanidade, até mesmo a nossa própria humanidade (Bettelheim, 1982). Resumidamente, o "...narcisismo leva a uma vida superficial, sem sentido, destituída de objetivos, de relações recíprocas mutuamente satisfatórias e enriquecedoras com os demais" (Bettelheim, 1982, p. 120) e agencia uma modalidade de sofrimento psíquico marcada pela inanição emocional (Bettelheim, 1982).

Em uma formulação concisa, o avanço do narcisismo beneficia o individual em detrimento do social, visto que estabelecem entre si uma lógica de proporcionalidade inversa. A megalomania narcisista, em detrimento da alteridade, produz a ilusão de que o "eu" pode prescindir do "outro", quando na realidade o ser humano, desde o nascimento, é marcado pela falta, pela necessidade objetiva e subjetiva do outro. "Freud aplicou o termo 'narcisista' ao mais primitivo estágio do desenvolvimento humano, o estágio em que o bebê, inteiramente impotente, compensa sua impotência com um egocentrismo megalomaníaco" (Bettelheim, 1982, p. 119). Ora, com certeza a ilusão de que é possível ser completamente independente do outro repousa em substrato narcísico.

Até aqui, realizou-se um resgate de questões históricas da organização do social, mais especificamente no bojo das configurações familiares, pois no cenário hipermoderno há uma conjuntura de múltiplos processos que aparentemente se coadunam com a propagação do narcisismo, inclusive em razão dos benefícios provenientes de sua generalização, visto que, quanto mais profunda a miséria no campo relacional, maior a necessidade do narcisista em se haver com as irresistíveis ofertas da materialidade (Trinca, 1997). Em linguagem direta, a pobreza interna é compensada com uma overdose externa, notadamente presente, por exemplo, no consumismo. A globalização, em consonância, produz uma homogeneização cultural de tamanha amplitude que inclusive as identidades nacionais encontram-se em declínio. A identidade profissional, ancoradouro de uma posição social meritória, também se encontra em ruínas devido ao requisito forçoso à versatilidade e à facilidade de adaptação às mudanças (Gaulejac, 2010). Como resultado, a pulverização das identidades culturais, parentais, profissionais etc. serve à indiferenciação que se processa nos planos sociocultural e psíquico e cria as condições favoráveis à escalada do narcisismo. Assim, a intensificação dessa conjuntura tende a tornar comum uma tipologia vincular marcadamente pobre, em que o "eu" e o "outro" se associam com interesses puramente objetivos e imediatistas.

 

Discussão

A proposição que aqui se almeja defender postula que tanto o bullying como o assédio moral são efeitos pontuais de uma conjuntura complexa, cuja influência presumivelmente se materializa em todo globo. Além dos indicadores procedentes da bibliografia consultada, a edificação da hipótese aduzida logo acima se tornou possível após a modesta constatação de que ambos os fenômenos são essencialmente a mesma coisa (Moreira, 2010). A similaridade entre ambos indica que são originários da mesma fonte: a versão anímica do capitalismo globalizado – o narcisismo. Destarte, adiante serão analisadas as implicações da equivalência desses dois fenômenos em pauta, para esclarecer o porquê de associá-los aos ditames da conjuntura global.

Parte-se aqui do fato de que o bullying e o assédio moral apresentam características comuns. É dizer, ainda que ocorram em contextos distintos, a similaridade das ações de maus-tratos que os caracterizam dá a possibilidade de considerá-los uma forma específica de violência, que é reeditada em cenários variados, nas escolas e nas organizações. Tanto um como o outro implicam ações de maus-tratos que se repetem frequentemente e se concretizam por meio de ofensas verbais, hostilidade explícita ou velada, sabotagem, exposição a constrangimentos, chantagem, intimidação e/ou ameaça. São ações que afrontam a dignidade e a integridade física e/ou psíquica da vítima, resultando em uma convivência marcada pela ansiedade e pelo medo, que acabam por instituir no ambiente escolar ou profissional um clima de terror e desconfiança, não obstante a possibilidade deste clima passar despercebido pelos não envolvidos na questão. Referem também uma desigualdade de força entre agente e vítima, seja apoiada na hierarquia formal especificada no organograma de uma empresa, seja apoiada em um tipo de hierarquia latente, em que, ao se perceber mais forte e identificar a vulnerabilidade do outro, o agressor sente um caminho aberto para perpetrar sua agressividade (Fante, 2005; Glina, 2010; Hirigoyen, 2002; Plan Brasil, 2010).

Sem dúvida, os ambientes escolares e, principalmente, organizacionais apresentam um viés de funcionamento que contribui e sustenta as condutas abusivas a que se referem os fenômenos aqui tratados. Isto quer dizer que, entre as peças que compõem a engrenagem organizacional, se encontra instituída uma cultura que propicia, colateralmente à exacerbação da competitividade, a eclosão recorrente dos maus-tratos típicos do assédio moral. Está se propagando, por exemplo, nos bastidores do universo corporativo, sobretudo em relação às companhias transnacionais, uma alcunha que denota algo desagradável em relação ao cotidiano de trabalho no interior dessas grandes empresas. São denominadas "empresas panela de pressão" para caracterizar uma rotina (a) de produção exaustiva, em que, em meio ao "cotidiano da urgência", é preciso atender metas inconciliáveis, (b) de competitividade agressiva, em que a perversão e o engodo se tornam aceitáveis, (c) de banalização e naturalização do estresse, em que se difunde o "estresse bom", o "estresse produtivo", cabendo ao funcionário empreendê-lo, isto é, "ter inteligência emocional" para "saber administrar" essa carga nociva, e (d) de centralidade do emprego, de sorte que a valorização demasiada da "excelência" e do sucesso individual resulta em sobrecarga, que serve como justificativa para a desatenção às demais esferas da vida e não raramente se menospreza inclusive os cuidados com a própria saúde (Gaulejac, 2007).

A dinâmica estabelecida no cenário mencionado encoraja a precarização relacional já enunciada anteriormente, porque o mecanismo reinante no universo corporativo infunde a individualização da responsabilidade – do sucesso, do fracasso e do sofrimento. À medida que há uma convergência ao "eu", se produz a ilusão de que tudo que é mais importante e prioritário se opera e se resolve no plano individual. A individualização do planejamento, do horário de trabalho, da produção e, sobretudo, dos resultados solapa qualquer possibilidade de identificação e reconhecimento mútuo entre os empregados, ademais de condenar definitivamente qualquer possibilidade de edificação de uma consciência coletiva. Ao passo que se naturaliza a indiferença em relação ao colega e se alimenta o desejo de que ele tenha sempre um desempenho inferior, se institui uma competição ultrajante que, não obstante, interessa às companhias, porque a produtividade aumenta substancialmente, visto que o "salve-se quem puder" impele o empregado a dar tudo de si para assegurar sua permanência no emprego, e a rentabilidade das organizações, portanto, alcança cifras astronômicas (Gaulejac, 2011).

Como visto, o mecanismo dominante, mormente nas organizações transnacionais, reúne condições para incitar o aparecimento e a manutenção de comportamentos abusivos entre os pares. Não raramente, a concorrência interna implica condutas perversas, as quais inserem-se a cada dia com mais frequência no cotidiano laboral. Estas condutas moralmente condenáveis ganham espaço, porque geram resultados lucrativos à companhia e minimamente ao indivíduo – o funcionário. Como se tornou uma constante, se processa uma banalização da perversidade, e os efeitos nocivos dessa dinâmica – interna às grandes organizações, mas hegemônica ao capitalismo globalizado – se justificam com a já conhecida ideologia fatalista, isto é, são "ocorrências inevitáveis". Banalização, aliás, que sutilmente se deixa ver na terminologia oportunista – senão irônica – utilizada para referir uma nova ética, particular ao mecanismo pernicioso das organizações multinacionais, a "ética empresarial", a "ética do resultado" (Gaulejac, 2007).

O relato de um ex-funcionário de uma dessas organizações serve para elucidar o mecanismo que rege o cotidiano de trabalho das grandes companhias, conforme enunciado anteriormente: "Quando você sabe a regra do jogo é fácil de jogar. Se um cara conseguir me tirar, ele foi mais capaz, ele ganhou o jogo e eu parto para outra. Essa era uma regra que todo mundo sabia" (Correa, 2013, p. 80). O excerto também ilustra que o referido funcionário se apropriou da cultura de rivalidade predominante entre os pares, em acordo, evidentemente, com determinações superiores. É bem possível que a dinâmica relacional particular ao cotidiano organizacional se torne um hábito natural aos empregados, quando se tornam grandes as chances de ser reproduzida além das fronteiras da organização. Para além do realismo econômico, o imaginário da competitividade banaliza a ideia de que a concorrência produz agressões e justas desigualdades. Naturalizada, a superficialidade e a pobreza relacional dominante no contexto laboral propagam-se para os demais espaços de convivência, e o jogo jogado no emprego, com ganhadores e perdedores, se reedita virtualmente em diversos contextos sociais.

Ao incorporar os ditames do mecanismo produtivista, o indivíduo competitivo, imediatista, amante do supérfluo e da materialidade, produz cada vez mais, com cada vez menos e no menor tempo possível. Assim, padece um emprego que esgota, que não constrói, que não tem outro sentido que não o de ganhar dinheiro. Para sua sobrevivência, o trabalhador põe em ação o superinvestimento no trabalho com a finalidade de proteger seu cargo, ameaçado permanentemente. Aliás, é preciso investir também constantemente na "formação profissional", com vistas à adaptação ao mercado. A competição não para! O trabalhador, agenciado e agenciador do mecanismo hegemônico – algoz multiforme –, tornou-se vítima da dinâmica com a qual compactua, voluntária ou involuntariamente. A conta a pagar envolve, entre outros fardos, sobrecarga de trabalho, esgotamento, proliferação da instabilidade, descartabilidade e insegurança, por um lado, e a coisificação das relações humanas, em que o homem é a mercadoria do negócio, por outro.

Direcionando agora a atenção à escola, onde também se processam ações de maus-tratos entre os pares, as circunstâncias diferem substancialmente daquelas encontradas nas grandes organizações. Todavia, se nas organizações transnacionais o individualismo está institucionalizado e os desdobramentos negativos às relações são recebidos como consequências inevitáveis, na escola existem tentativas de edificação de uma convivência respeitosa e fraterna. Ocorre, entretanto, que na escola as agressões se efetivam talvez mais abertamente que no ambiente organizacional, porque, entre outras razões, neste último existem regimentos e previsões legais que podem coibir os excessos, visto que, se aplicadas, as sanções podem produzir efeitos danosos à carreira de um empregado que esteja assediando o(s) colega(s). Ao que tudo indica, as regras e orientações, formais e informais destinadas à regulação da convivência nas escolas não asseguram um convívio respeitoso e pacífico e referem entraves para punir a violação da boa convivência.

Com efeito, a impunidade é considerada, sobretudo por pais de alunos, um dos principais fatores que viabilizam a continuidade das ações abusivas nas escolas, onde, afirmam, falta hierarquia, autoridade e a liberdade é demasiada. A equipe escolar rebate com o argumento de que não há autoridade no lar e que a criança chega até a escola despreparada para o convívio social (Plan Brasil, 2010). Além disso, a grande quantidade de episódios de agressividade e violência e a dificuldade em separar pontualmente a "brincadeira de mau-gosto" das agressões repetitivas entre os pares são obstáculos adicionais à equipe escolar, que consequentemente pode equivocar-se em seus juízos, deixando passar impune um estudante que esteja praticando bullying.

A violência doméstica, especificamente aquela perpetrada pelos pais em relação aos seus filhos, é apontada por Fante (2005) como uma das principais causas de bullying, à medida que a violência sofrida pela criança ou adolescente resulta em novas agressões com os colegas da escola, onde se repete o comportamento violento dos pais. Também existem dados que relacionam a vivência de bullying com o estabelecimento posterior de relacionamentos amorosos marcados pela violência entre os cônjuges, por exemplo a garota indefesa que, mesmo sendo alvo de "brincadeiras hostis", apaixona-se pelo valentão, doravante um carrasco (Middelton-Moz & Zawadski, 2007). Continuando com as hipóteses sobre a gênese do fenômeno bullying, na opinião dos alunos, a violência começa devido à complicação em marcar a fronteira que separa a brincadeira da agressão e também em um provável comprometimento emocional dos agressores, cujo comportamento violento resulta da dificuldade em lidar com problemas particulares (Plan Brasil, 2010).

A complexidade acerca da origem do fenômeno bullying dá a dimensão do quão problemático é sua resolução, como também é problemático responder ao assédio moral, à violência doméstica, à criminalidade juvenil etc. O parentesco entre o bullying e o assédio moral se evidencia com facilidade e, à primeira vista, há também um parentesco com outros tipos de violência, possibilitando assim uma conjectura que indica uma raiz comum ao amplo espectro da violência no contemporâneo. Mas, apesar da visibilidade recente do bullying e do assédio moral, sua existência não é uma particularidade dos tempos recentes. Atualmente, entretanto, os episódios que os caracterizam acontecem com maior frequência e intensidade, e presumivelmente encontram-se fora de controle (Moreira, 2010). Portanto, a questão que se impõe é a de saber: quais são as causas do crescimento da violência entre pares nas escolas e nas organizações? Todavia, como já mencionado, as categorias de violência mencionadas são efeitos pontuais de uma conjuntura de grande amplitude, de maneira que, para efeitos de se pensar a resolução desses problemas contemporâneos, é mais pertinente a questão: quais são as causas do aumento generalizado da violência?

A envergadura dessa interrogação possibilita unicamente uma resposta incompleta, pois não se poderá abarcá-la em toda sua dimensão e complexidade. Mesmo parcial, representa um viés útil para compor um conjunto, certamente com maiores possibilidades de esclarecimento dessa questão. Marca inegável do contemporâneo, a regressão narcísica processada no domínio psíquico se desdobra em comportamentos socialmente inapropriados e/ou condenáveis, necessários à regulação interna do narcisista. É com acerto que vulgarmente se associa o egoísmo ao narcisismo, porque de fato unicamente as demandas pessoais interessam ao narcisista, o que quer dizer que o bem-estar do próximo é amplamente negligenciado. O egocentrismo exacerbado se desdobra em uma atitude geral interesseira e indolente do indivíduo em relação aos seus semelhantes, em que o "dar" e "receber" não se materializa, pois o narcisista enxerga como obrigação do outro atender-lhe incondicionalmente, sem contrapartida, visto que intimamente concebe suas necessidades como soberanas. Retornando à comparação entre o moderno e o contemporâneo, "...o neurótico entende emocionalmente que, em certo nível, precisa se adaptar ao mundo, já que este não se adaptará a ele, o não-neurótico até pode entender isso intelectualmente, mas, emocionalmente, isso é inconcebível" (Minerbo, 2009, p. 86, grifos da autora).

Em uma exposição sumária, o processo psíquico denominado identificação se realiza, a princípio, concomitantemente ao investimento libidinal que a criança direciona sobretudo aos personagens centrais envolvidos em seu cuidado, principalmente as figuras parentais. Isto quer dizer que, ao mesmo tempo em que a criança direciona seu amor aos pais, também opera uma identificação com eles, em uma dinâmica em que amar e identificar-se são inseparáveis. Já a identificação propriamente dita pressupõe a resignação desse investimento libidinal, cujo resultado é a internalização do objeto renunciado. Na dinâmica do complexo edípico, por exemplo, ao renunciar à disposição incestuosa, as figuras parentais convertem-se em parte integrante do universo interno do indivíduo, isto é, passam a habitar-lhe o "eu" (Freud, 1923/1992c). Em Introducción del narcisismo, Freud (1914/1992b) discorre sobre duas modalidades de vínculo, nomeadas "libido narcísica" e "libido apoiada": na primeira, o paradigma de vínculo reproduz o protótipo do "si mesmo", em que o outro da relação é uma variação do "eu", tal qual Narciso de frente ao espelho d'água; na segunda, o vínculo se apoia nas representações internalizadas, mediante o processo de identificação, cuja serventia é desenvolver e preservar os vínculos (Grinberg, 1985). Em outras palavras, o protótipo relacional do narcisista não se sustenta no mecanismo de internalização. Ao contrário, sustenta-se na externalização – agir, atuar –, processo inverso à internalização, em que os mecanismos de regulação interna são transformados em mecanismos de regulação externa, portanto o "eu" precisa expulsar de si os estímulos que lhe causam mal-estar, visto que seus recursos internos são insuficientes para amainá-los. Como resultado, o narcisista necessita agir intempestivamente, visto que é por meio dessas ações impulsivas que reestabelece sua estabilidade psíquica (Grinberg, 1985).

Em suma, além do egoísmo, o repositório do narcisismo reúne uma variabilidade imensurável de inclinações antissociais, as quais o narcisista precisa lançar para fora a fim de viabilizar a manutenção de seu equilíbrio psíquico. Depois da análise de número significativo de pacientes, em que foi possível retornar ao berço da constituição psíquica, Freud (1905/1992a) nomeou a essência humana – a disposição originária – de perverso-polimorfa, porque constatou uma disposição à maldade, à destruição, haja vista, por exemplo, os desejos parricida e filicida que permeiam as relações entre pais e filhos. Portanto, o conflito psíquico é parte obrigatória da constituição, porque a correnteza anímica é avalanche avassaladora, a jorrar infinitamente com potencial destrutivo, e a defesa certamente se impõe para frear sua vazão, do contrário, a formação de cultura e a civilização seriam impossíveis (Freud 1927/1992d). Isso quer dizer que as formações narcísicas, que referem processos defensivos mais brandos, por assim dizer, viabilizam maior proporção de escoamento dessa torrente agressiva.

No plano social, a disposição narcísica caracteriza um aliado robusto à manutenção dessa máquina absoluta, porque a não imposição de restrições à fruição contínua do prazer material é a tendência do narcisista, certamente propenso à adoção de um estilo de vida ajustado à promessa ilusória de felicidade. Então, o agenciamento da pobreza interior e da precarização relacional, que atravessa a família e doravante é reeditada indefinidamente, rende bons frutos à mecânica do capitalismo globalizado. Entretanto, ao se abrirem as comportas para fazer jorrar a gula em direção à fruição em demasia, também se dá espaço à evasão colateral de aspectos que afrontam a vida em sociedade, por exemplo, a violência, aberta e/ou dissimulada. Em resumo, a alegria do indivíduo hipermoderno, proveniente do prazer irrefreável mediante o acúmulo e a negação do interdito, é a alternativa que resta a quem se encontra amiúde enredado em relações vazias e reciprocamente pobres.

 

Considerações finais

O breve percurso apresentado anteriormente dá demonstrativos de que a constituição psíquica subjaz parcialmente à conjuntura socioeconômica, cujas influências interferem diretamente na maneira de viver a cada tempo. Hoje, as forças globais e irrefreáveis, agenciadoras do narcisismo, intervêm de maneira generalizada nos mais variados cenários em que se processa a constituição psíquica, isto é, permeiam a família, o Estado, a religião, a escola, a organização, e, como é inevitável, o indivíduo. Portanto, é necessário que seja dada atenção ao fato e incluí-lo efetivamente no debate ético e político atual, principalmente em consideração à importância que detém o fenômeno narcísico no âmbito da precarização relacional.

A associação das formações narcísicas com a intensificação da violência, sobretudo aquela que se concretiza no campo relacional, fundamenta-se na proposição de que o paradigma narcisista adere com facilidade ao mecanismo que é regulado pela lei do mais forte. Além do que, o modelo narcísico também se caracteriza pela existência de um processo psíquico defensivo falho, mais propenso, então, à externalização da carga de violência inerente à disposição originária. Conforme já identificado pelo filósofo, "...um olhar imparcial sobre a natureza do homem revela que bater é para ele tão natural quanto morder para os animais caçadores e chifrar para os corníferos: o homem é um animal que bate" (Schopenhauer, 1851/2015, p. 85). Por outro lado, considerando uma esfera de ampla abrangência, a regressão narcísica do contemporâneo afina-se com o imaginário próprio do modelo capitalista globalizado, visto que o imperativo do hedonismo, peculiar à hipermodernidade, ajusta-se ao narcisismo (Marques Neto, 2009).

Tamanha sua proporção, as forças macroeconômicas e sociais que se encontram na base da precarização relacional atravessam a quase totalidade dos indivíduos na civilização ocidental, e até mesmo naqueles em que o comportamento via de regra não apresenta abertamente os indicadores da vinculação frágil e infecunda, jaz o substrato do egocentrismo, o que significa enunciar que também não estão isentos da inclinação narcísica. Tudo leva a crer que a diferença se materializa simplesmente em relação ao aporte quantitativo, em que uns encontram-se alguns pontos acima em relação aos outros na escala do narcisismo, por assim dizer. Então, o gérmen narcisista invariavelmente dá existência à terra fértil em que vem à luz cada um de nós, e o homem médio contemporâneo refere uma tipologia de normalidade de índole narcisista, uma normalidade narcísica.

Se o modelo de vida e de sociedade modernas elevou à condição de ídolo a negação absoluta dos impulsos humanos, viabilizando um sufocamento incondicional da animalidade originária, por meio sobretudo da religiosidade e da moral soberana, a contemporaneidade, por seu tempo, pulverizou os imperativos categóricos de regulação moral, empreendendo uma rebentação que possibilitou a abertura quase completa das comportas anímicas, possibilitando a vazão da essência antissocial e anticivilizatória do ser humano, sem dúvida influentes na materialização de fenômenos como o bullying e o assédio moral no trabalho. Se bem o substrato animal detém capacidade para produzir a barbárie, é também o repositório de onde emana a força para as realizações de profundo valor para a cultura, de valor, aliás, inestimável à sociedade e à vida humana. Portanto, a urgência da atualidade não aponta na direção de um retorno, tampouco na direção de uma permanência, requerendo a ousadia de um novo rompimento, um salto à nova civilização, visto que nesse reduto as sociedades moderna e contemporânea deram provas suficientes de que não constituem caminhos fecundos para a humanidade.

 

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Endereço para correspondência
vxcmarangoni@gmail.com, mvianabraz@gmail.com, franciscohashimoto@gmail.com

Recebido em: 25/11/2016
Revisado em: 26/06/2017
Aprovado em: 30/06/2017

 

 

1 Os autores agradecem os subsídios da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), e também às contribuições do Grupo de Pesquisa (CNPq) "Laboratório Interinstitucional de Subjetividade e Trabalho".

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