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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.20 no.1 São Paulo Jan./June 2017

 

ARTIGOS ORIGINAIS/ORIGINAL ARTICLES

 

Por uma Ética do Cuidado nas políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social

 

Toward an ethics of care on public policies aimed at overcoming social inequality

 

 

Jaisson Rodrigo Costacurta1; Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino2

Universidade de Brasília (Brasília, DF)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo, à luz do enfoque da Ética do Cuidado, tem por objetivo refletir sobre as políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social. Busca-se explicitar alguns entendimentos, ressaltando a importância do cuidado como possibilidade de construção de um novo paradigma ético. Inicialmente, realizou-se um resgate da evolução das políticas públicas nesse campo. Essa retomada da história permite a desnaturalização de concepções, valores e ações, auxiliando a percepção de como essas políticas têm se situado em cada época a partir de suas perspectivas. Tendo por referência o pensamento de Leonardo Boff, destaca-se a Ética do Cuidado como possibilidade de se desenvolverem políticas públicas. Tal pressuposto coloca-se como alternativa possível, pois ao se romper com conceitos e práticas, ampliam-se os espaços de não conformismo e se abrem possibilidades de criação de alternativas que rompam com a lógica do capitalismo, ampliando os espaços de solidariedade coletiva.

Palavras-chave: Ética do Cuidado, Políticas públicas, Desigualdade social.


ABSTRACT

In light of the Ethics of Care's approach, the purpose of this study is to reflect upon public policies that are oriented to overcoming social inequality. It intends to present some perspectives, highlighting the importance of care as a possibility to construct a new ethic paradigm. Initially, the recollection of these public policies' evolution enables the denaturalization of some conceptions, values and actions, bolstering the perception of how these policies have settled themselves in each period through their perspectives. Aiming Leonardo Boff's thought as a reference, the Ethics of Care is emphasized as a possibility of engineering public policies. Such assumption represents a possible alternative, considering that, after breaking with some concepts and practices, the spaces of nonconformity broaden and the possibilities to create alternatives that break away from the logic of capitalism open up, expanding the spaces of collective solidarity.

Keywords: Ethics of Care, Public policies, Social inequality.


 

 

Introdução

O desenvolvimento das políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social, no Brasil, sedimenta experiências que apontam contradições e configuram riscos e, em razão disso, requerem a elaboração de um novo ideal ético para abordar os principais desafios nesse contexto. Nessas condições, é necessário refletir sobre questões éticas de como agir para se configurar um futuro mais otimista em relação aos direitos humanos.

No tocante às políticas públicas voltadas à desigualdade social, evidencia-se a necessidade da desnaturalização de algumas práticas, lugar em que emergem diferentes forças que entram em jogo e que têm produzido, na atualidade, uma "judicialização da vida" (Foucault, 1996). Assim, é oportuno revelar o quanto esse campo tem acolhido o preceito da regulação das condutas e a pacificação da vida, sendo terreno propício à gestão dos corpos pela intenção da proteção, inclusão e participação social.

É nesse contexto que surge o cuidado como novo paradigma e fonte de pensamento primordial capaz de resgatar o sentido da vida e do humano. À luz do enfoque da Ética do Cuidado (Boff, 2002), este artigo promove uma reflexão sobre as políticas públicas, buscando problematizar a sua construção na área da assistência social. Busca-se ainda explicitar alguns entendimentos, apresentando não somente explicações para algumas contradições sociais, mas, sobretudo, formas para superá-las, ressaltando, assim, a importância do cuidado como possibilidade de construção de um novo paradigma ético.

A temática possui significativa atualidade, pois remete à discussão de um campo que vive forte ameaça à garantia de direitos sociais (saúde, educação, proteção social etc.), principalmente agora, em virtude de propostas como a das reformas Trabalhista e da Previdência Social. Tal ameaça também reside na redução (ou ausência) da participação do Estado na oferta de políticas sociais.

 

A evolução das políticas públicas voltadas à desigualdade social no Brasil

As considerações a seguir visam retomar a história para perceber como as políticas públicas se situam em cada momento histórico, para que possamos ler nosso passado e presente e, assim, projetar novas perspectivas ao futuro. É importante resgatar os ideais utópicos e, à luz da utopia, pensar os processos materiais, que são as condições objetivas, as necessidades reais para a preservação da vida. Esse resgate auxilia a compreensão da realidade e a superação da atual explicação justificadora da ideologia única.

A partir de um breve resgate histórico, verificamos que as organizações filantrópicas existem no país há mais de 400 anos. A Igreja Católica e as Santas Casas de Misericórdia, sendo as primeiras formas institucionalizadas, promoviam a assistência a pobres, órfãos e pessoas com deficiência por meio de ajuda material, espiritual, abrigo e serviços ambulatoriais e hospitalares. Tratava-se de práticas filantrópicas e caritativas (Mestriner, 2001).

Entre os séculos XIX e XX, as ações assistenciais caracterizam-se pela abordagem higienista, apoiadas em pressupostos médicos, religiosos e jurídico-repressivos. As práticas são marcadas pela disciplina, pela vigilância e pelo controle dos pobres. A filantropia aparece como um espaço de afirmação da lógica da benemerência e de recomposição da provisão social à população carente, baseada em valores morais da Igreja Católica e relativamente ausente de mediação do Estado (Ferreira, 2012; Mestriner, 2001; Sposati, 2008).

Os termos e as expressões utilizados indicam que os usuários dos serviços assistenciais eram estigmatizados por suas diferenças, privações e infortúnios. Desprovidos de sua identidade de sujeito, eram classificados como delinquentes, alienados, doentes, velhos, inválidos, mendigos e órfãos, aos quais se destinavam os internatos, hospícios, asilos, sanatórios e orfanatos. Essas pessoas eram afastadas do convívio social, pois representavam ameaça à ordem e à moral. Segundo Sposati (2008, p. 41), "os modelos de atendimento assistencial decorrentes da percepção da pobreza como disfunção pessoal encaminhavam-se, em geral, para o asilamento ou a internação dos indivíduos portadores dessa condição".

Para Yazbek (2004) é difícil afirmar que a estigmatização dos usuários e a atuação excludente dessa política pública tenham sido superadas. Afinal, a mudança de nomenclatura não necessariamente significa mudança de concepção referente aos sujeitos e ao lugar que eles ocupam no imaginário da sociedade. Para a autora, é preciso reconhecer que, na atualidade, há uma espécie de "cultura política" que nega a identidade social dos sujeitos e seu pertencimento a uma classe, de modo a ocultar o conflito e a resistência e a legitimar a dominação.

A partir da década de 1930, na Era Vargas, o Estado brasileiro inicia sua atuação mais direta no campo da assistência social, com a criação do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), em 1938, do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), em 1941, e da instituição da Legião Brasileira de Assistência (LBA),3 em 1942. Foi por meio do CNSS que o Estado realizou as primeiras regulamentações na área, buscando não manter as pessoas atendidas afastadas do convívio social, como em períodos anteriores, mas recuperá-las, reintegrá-las, adaptá-las à sociedade e prepará-las como mão de obra para a indústria (Jaccoud, 2008; Mestriner, 2001).

No Estado Democrático Populista (1946-1964) entram em cena também as instituições laicas, tendo destaque o empresariado e os movimentos comunitários. Com o êxodo rural, o aumento do desemprego e a crescente demanda por proteção social, a atuação das entidades religiosas e benemerentes torna-se insuficiente, sendo necessário "um novo aparato social aliançado com a elite industrial emergente" (Mestriner, 2001, p. 117).

Conforme Mestriner (2001), já nas décadas de 1970 e 1980, durante a ditadura militar (1964-1984), dissemina-se o discurso da descentralização, propondo novas práticas relacionadas à organização das políticas públicas. Com isso, a estratégia da descentralização aparece como a solução dos problemas de manutenção do padrão institucional de proteção social vigente, trazendo em seu bojo o pragmatismo e a superação da perspectiva de classe para uma perspectiva individualista na promoção do bem-estar social.

Do ponto de vista social, a década de 1980 foi de muitas conquistas democráticas, devido às lutas sociais e à elaboração da Constituição Federal de 1988. Não obstante, do ponto de vista econômico, é considerada como uma década de poucos avanços. Com a interrupção do ciclo da industrialização e o aumento da dívida externa, o Brasil entra numa longa crise de desenvolvimento, tendo como consequências desemprego, perda dos direitos trabalhistas, precarização das condições de trabalho, terceirização da mão de obra, flexibilização e desregulamentação do Estado, somadas às dificuldades de formulação de políticas econômicas de impacto nos investimentos e redistribuição de renda (Behring & Boschetti, 2006; Pochman, Barbosa, Magalhães, Amorim & Aldrin, 2004).

De qualquer forma, com a Constituição Federal de 1988, a assistência social é colocada como parte integrante de uma concepção mais ampla de proteção social, isto é, do sistema de seguridade social. A Carta Magna, chamada Constituição Cidadã, passa a conceber a assistência social como política pública não contributiva e universal, trazendo a participação da sociedade como estratégia na formulação e no controle da política. Propõe um reordenamento institucional baseado na descentralização político-administrativa dos serviços estatais e reitera a primazia da responsabilidade estatal na coordenação e execução da assistência social. Além do mais, a Constituição demarcou o fim dos regimes autoritários e instituiu uma nova relação entre Estado e sociedade civil, possibilitando a participação social desta no planejamento, na elaboração e na avaliação de políticas sociais (Correia, 2002; Gohn, 2008).

Na prática, durante os anos seguintes, a política de assistência social se manteve sob o predomínio do privado, "desenvolvendo-se via organizações não-governamentais, numa ambígua relação estatal-privado" (Mestriner, 2001, p. 18). As ações, travestidas de uma pretensa parceria entre Estado e sociedade, são concretizadas por meio do subsídio estatal – convênios, certificações – para as ações sociais do setor privado, de forma insuficiente e precária. Além dos restritos repasses de recursos, o Estado transfere para a sociedade as maiores responsabilidades da política e se encarrega apenas da execução das ações emergenciais (Mestriner, 2001).

Nos anos 1990, a concretização das políticas públicas voltadas à superação das desigualdades sociais, a partir do governo Collor, ocorreu sob a ótica neoliberal, de restrição do espaço público e de reforço do setor privado não mercantil. Nesse sentido, a lógica de redução do Estado e fortalecimento do setor privado estava presente também nessa política, a qual se constituía como um importante fator de reforço e afirmação da perspectiva neoliberal do Estado (Ferreira, 2012).

A Constituição Federal de 1988 passou a reconhecer a assistência social como direito do cidadão e dever do Estado, que, com as políticas de saúde e de previdência, compõe o sistema de seguridade social brasileiro. Porém, foram necessários cinco anos de lutas para homologá-la na Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), em 1993.

Dando continuidade, o "Projeto de Reforma" de Fernando Henrique Cardoso, no período de 1995 a 2002, significou um retrocesso para o direito e para a política, ao reduzir a assistência social a ações de parceria com a sociedade civil. A política adotada reforçou o retorno da assistência para o campo da solidariedade privada, em oposição a todo um movimento de lutas consolidado na Constituição de 1988, que buscou romper com o clientelismo, o assistencialismo e com a lógica privatizante de encaminhamento de recursos às famílias e às organizações filantrópicas.

No tocante à seguridade social, os interesses econômicos e políticos de poderosos grupos fizeram com que não ocorresse a implantação do que previa a Constituição Federal de 1988. Tais grupos apropriaram-se e continuam se apropriando do fundo público que sustentaria a seguridade social, a partir de reduções ou abatimentos sobre contribuições sociais de empresas, como é o caso da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins).

Foi no governo Lula, iniciado em 2003, que surgiu o Sistema Único de Assistência Social (Suas), redesenhando essa política com o objetivo de atender a reivindicações populares e operacionalizar ações.

A implantação do Suas é um marco fundamental na regulamentação da política de assistência social e crucial para o seu reconhecimento como política pública de proteção social. Resultado de um amplo processo de construção sócio-histórica, o Suas visa estabelecer um padrão de gestão descentralizada que supere a trajetória de centralização, fragmentação e descontinuidade que historicamente marcaram a política de assistência social brasileira. O sistema – que teve vigência nos governos Lula e Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores – é resultado de um processo coletivo de afirmação da primazia do Estado e nacionalização do direito à assistência social.

No final de 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff, durante seu segundo mandato como presidenta eleita, assume a Presidência o governo não eleito de Michel Temer, que ocupava o cargo de vice-presidente. As ações do governo de Temer refletem um retrocesso no reconhecimento dos direitos sociais, ao mesmo tempo em que avançam projetos de caráter neoliberal.

Os recursos destinados à assistência social, setor voltado a programas de proteção e promoção da justiça e redução da desigualdade, vem sendo cada vez mais comprometidos. O programa Criança Feliz, por exemplo, se sobrepõe a ações já executadas nos centros de referência de assistência social (Cras). Com base assistencialista, o programa carece de integração com o Suas.

Preocupante também é a proposta de emenda constitucional (PEC) 241, que ameaça o Suas na redução significativa de investimento. Apesar de o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) ter aprovado uma proposta de 59 bilhões, encaminhada pela Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social (SNAS/MDS), conforme Resolução nº 12, de 19 de julho de 2017, o Ministério do Planejamento definiu o teto de 900 milhões.

Projetos das reformas Trabalhistas e Previdência carecem de discussão. Sem dissimulações, significa o retorno a programas pontuais, ao voluntarismo e fisiologismo político que alimenta o patrimonialismo de Estado e ao aumento da desigualdade e residualidade no papel do Estado. O desmonte do Suas está sendo acompanhado do desmonte do Estado Democrático de Direito, do Sistema de Proteção Social.

Diante do exposto, observa-se que, no âmbito das políticas públicas voltadas à superação das desigualdades sociais, passado e presente coexistem num movimento de tensão e superação/transformação. As atuais concepções e práticas adotadas, seja como direito do cidadão e dever do Estado (pós-Constituição de 1988) ou, ainda, como assistencialismo, caridade e/ou favor (pré-Constituição de 1988), têm suas raízes no mesmo passado; ocupam lugares diferenciados no presente e apontam para o futuro, em construção.

Tais políticas ainda sofrem de imprecisão e distorção conceitual, definidas muitas vezes a partir de suas expressões fenomênicas, ou seja, a partir da aparência imediata de suas ações, o que as coloca em posição antagônica com as noções de cidadania e direitos sociais.

Na vida real – e não no plano ideológico, do discurso – por mais que se afirmem os direitos humanos, a cidadania, a justiça etc., esses se encontram extremamente limitados, dada a perpetuação do direcionamento neoliberal à política econômica, com o consequente resultado de se produzir uma política social pobre para os pobres.

Conforme aponta Ferreira (2012), esse universo constitui-se num campo cheio de antagonismos e afinidades, assim como os discursos que o circundam. Portanto, o necessário conhecimento da realidade passa pela desmistificação e desvendamento dos discursos praticados na conjuntura. Torna-se necessário não só compreender o caráter ideológico dos discursos, mas, acima de tudo, aproximar-se de seus aspectos contraditórios.

 

Por uma Ética do Cuidado

A noção de cuidado remonta a dezenas de séculos da história, a partir de obras literárias da Antiga Roma e fontes mitológicas e filosóficas. Portanto, não é de hoje que a essência do cuidado e suas peculiaridades são motivo de interesse entre os estudiosos da vida humana. A Fábula de Higino (poeta latino, 50-139 d.C.), também conhecida como Mito do Cuidado, narra o papel do cuidado na estruturação do ser humano, anunciando que

certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro e teve uma inspiração. Pegou no barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava a sua obra, apareceu Júpiter e Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito sobre ela. Júpiter assim fez. Mas, quando Cuidado quis dar um nome à criatura que tinha moldado, Júpiter proibiu-o e exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. E ela também quis conferir o seu nome à criatura, pois esta foi feita de barro, material do seu corpo. Originou-se uma discussão generalizada. Finalmente, de comum acordo, pediram a Saturno que fosse o árbitro nesta questão. Saturno tomou a seguinte decisão: Tu, Júpiter, deste-lhe o espírito. Receberás, pois, o espírito de volta por ocasião da sua morte. Tu, Terra, deste-lhe o corpo. Receberás, portanto, de volta o corpo quando ela morrer. Mas, como tu, Cuidado, moldastes a criatura, ela ficará sob os teus cuidados, enquanto viver. E ela se chamará homem, isto é, feito de húmus, que significa terra fértil. (Boff, 2002, p. 46)

A fábula carrega um entendimento de que o ato de cuidar é central para o ser humano. O cuidado dá forma à criatura, que é corpo e espírito, e se torna responsável por ela enquanto viver. É o cuidado que humaniza e dá o contorno humano. O cuidado é compreendido a partir de sua dimensão ético-ontológica, o que possibilita construir uma ideia de Ética do Cuidado que se torna inteligível a partir de diferentes ações realizadas no cotidiano.

Para Leonardo Boff (2002), o cuidado é suporte real da criatividade, liberdade e inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental do humano. Nele identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir. Fazer dele um modo de ser no mundo, engendrando solidariedade na esfera pública, é um farol nos labirintos que tem no horizonte a coletividade. O cuidado diz respeito a uma atitude de abertura a toda alteridade. Por isso, distingue-se da racionalidade instrumental e abre perspectiva para uma nova ética que se ocupa com o sentido da vida.

O pressuposto da Ética do Cuidado é um horizonte utópico que nos mostra que "outro mundo é possível"; que há outras formas de pensar e executar políticas públicas. Portanto, riscos e possibilidades são os desafios que temos como realidade e que precisam ser enfrentados.

Na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976), um dos mais originais e influentes filósofos do século XX, a noção de cuidado é um dos eixos centrais em sua reflexão. Sua compreensão de cuidado quer dizer "o ser do Dasein antecipando a si mesmo por já ser [no mundo] como ser junto a [os entes que vêm ao encontro dentro do mundo]" (Heidegger, 2001, p. 192).

A filosofia heideggeriana coloca a pergunta sobre o sentido da existência. Inspirado nessa filosofia e preocupado com o futuro da vida neste planeta, Boff (2002) propôs o resgate da ética e do sentido da responsabilidade humana. Para o autor, a Ética do Cuidado tem a ver com a preocupação e a responsabilidade para com o outro. Trata-se de um elemento constitutivo do ser humano, essencial nas relações que este estabelece consigo, com o próximo e com o meio em que vive.

Por essa razão, pensar a Ética do Cuidado como alternativa para a compreensão dos processos presentes nas políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social configura um caminho para ajudar a construir os processos de transformação qualitativa, na promoção da cidadania e no alcance dos direitos humanos.

 

Pensar as políticas públicas à luz da Ética do Cuidado

A negatividade do excluído e oprimido manifesta, para além de qualquer justificativa da lógica produtiva, uma advertência ao que resta de consciência humana ainda sensível à exigência. A atualidade desse quadro dramático de pobreza e exclusão, que se contrapõem a uma inversão do que denominamos progresso, desenvolvimento e civilização, é um convite a "uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro" (Boff, 2002, p. 33).

Segundo Boff (2002), as políticas públicas não podem limitar-se à redução da pobreza e das desigualdades sociais em sua universalidade – em concepção kantiana. Elas devem pertencer à atitude do cuidado material, psicológico, físico, ecológico e até mesmo espiritual, que subjazem a todo desenvolvimento ético em seu sentido filosófico.

Assim, considerando a função das políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social, torna-se imprescindível pensá-las em relação de interdependência como uma nova ética, a Ética do Cuidado. Tal pressuposto se apresenta como uma alternativa possível para a mudança que se espera alcançar, pois ao se romper com a lógica da "indústria cultural",4 ampliam-se os espaços de não conformismo e se abre a possibilidade para a criação de alternativas que rompem com a lógica do acúmulo individual, ampliando os espaços de solidariedade coletiva.

Na perspectiva da Ética do Cuidado, o critério fundamental é o do engajamento em defesa da vida para além de toda divergência política ou ideológica. O Estado, além do cuidado consigo, é convidado a pautar-se pelos pressupostos do cuidado em relação aos seus governados (instituições e cidadãos). Tal prática aponta para um horizonte distinto daquele assumido por algumas políticas que enfatizam apenas um único e certo modelo de racionalidade e instrumentalização hierárquica.

Nessa perspectiva, o planejamento de políticas públicas inicia-se pela escuta sensível e multirreferencial, que deve considerar a valorização dos diferentes sujeitos implicados. Compreender as necessidades do ser humano significa superar uma noção homogeneizante e naturalizada, passando a percebê-lo como sujeito com valores, comportamentos, visões de mundo, interesses e necessidades singulares.

Além dos grupos historicamente excluídos (negros, mulheres, população LGBT,5 pessoas com deficiência), há ainda aqueles cuja discriminação é tão grande que mal conseguem ser ouvidos pelo restante da sociedade, como é o caso de populações em situação de rua, em situação de acolhimento institucional, em regime prisional, adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, entre tantos outros.

Diante disso, evidencia-se a necessidade e importância de tornar as políticas públicas um espaço de fortalecimento da participação individual e coletiva, que reconheça e valorize todos os diferentes grupos. A Ética do Cuidado é uma forma de reposicionar compromissos nacionais com a fomentação de sujeitos de direitos e de responsabilidades, podendo influenciar na construção e consolidação da democracia.

Morin (1998, p. 341) lembra que é preciso "comunicar em vez de isolar e separar", pois, desse modo, pode-se reconhecer traços singulares e originais, concebendo a unidade e multiplicidade da realidade. Mais do que afirmar "assim está dito, assim diz a lei", é preciso confrontar o campo teórico com o campo empírico, suscitando outros horizontes para aquilo que se busca. É isso que possibilita exercitar a mudança na forma de planejar e executar políticas públicas: o exercício de considerar a multiplicidade na unidade e a unidade na multiplicidade.

O enfoque das políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social, quando enquadradas somente na legislação em vigor, corre o risco de limitar suas atividades à "gestão da pobreza", sob a ótica da individualização e de um viés moralizante das situações sociais. Portanto, não deve restringir a intervenção dos profissionais dessa área às abordagens que tratam as necessidades sociais como problemas e responsabilidades individuais e grupais (Pereira, 2000).

Nessa linha, Morin (2000) nos convoca a compreender e questionar a origem dos processos de construção de conhecimentos, indicando que as ações e aprendizados humanos não podem ser compartimentados, mas analisados sob a ótica da complexidade, das multidimensões.

Portanto, pensar em políticas públicas na perspectiva da Ética do Cuidado significa considerar os cidadãos comprometidos com o ato de cuidar da vida, em todas as fases, pensando no hoje e nas próximas gerações. A questão perpassa o entendimento crítico, individual e coletivo de viver em rede e de pensar, refletir e agir acerca de produção e consumo consciente, qualidade de vida, alimentação saudável, economia solidaria, agroecologia, ativismo social, cidadania planetária, ética global, valorização da diversidade, entre outros.

Para tal, é preciso buscar o enfoque holístico, sistêmico, democrático e participativo, diante de um entendimento de ser humano em sua integralidade e complexidade, bem como de concepções de políticas públicas interdisciplinares, intersetoriais, processuais, cíclicas e contínuas.

Nesse sentido, as ações dos diferentes profissionais que atuam nessas políticas precisam centrar-se numa perspectiva preventiva, comprometidas com as transformações sociais que evidenciem as contradições entre as práticas e as demandas dos sujeitos nesse contexto. O foco de compreensão e intervenção deve deslocar-se para uma visão institucional, coletiva e relacional, contextualizada nos processos de subjetivação que dialeticamente ressignificam os diversos atores e suas ações.

Pereira (2000) destaca que o sentido de proteção social extrapola a possibilidade de uma única política social e requer o estabelecimento de um conjunto de políticas públicas que garantam direitos e respondam a diversas e complexas necessidades básicas da vida social. Desse modo, não se pode atribuir à assistência social a tarefa de realizar, de forma exclusiva, a proteção social. Esta compete, articuladamente, às políticas de saúde, educação, emprego, previdência, habitação, transporte, dentre outras. Tratar, portanto, as políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social separadamente da política econômica é cair na ilusão de que uma é possível sem a outra.

Os caminhos escolhidos e os fatos que compõem o cotidiano das políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social têm sempre inscrições ideológicas, uma vez que as formas de pensar e fazer estão permeadas por relações de poder e ideologias que necessitam ser problematizadas e compreendidas como um produto de relações sociais e históricas que tendem a naturalizar e reproduzir desigualdades. Portanto, observar essa realidade para mapear espaços, tempos, fazeres, crenças, concepções e dinâmicas e desenvolver sensibilidade de escuta dos discursos institucionais e das "vozes da comunidade" pode provocar a ressignificação das demandas e criar novos espaços de interlocução.

Essa nova concepção de ser humano, pautada na Ética do Cuidado, pode ser vista como um instrumento de superação das relações de poder autoritárias e do controle social, contribuindo para a sua emancipação por meio do acesso aos seus direitos, assegurando a eles, também, o exercício do poder, dada a partir da participação da população na elaboração, execução e avaliação de políticas públicas.

Ao trabalhar em prol da conscientização dos sujeitos, intervindo em processos subjetivos, os profissionais que atuam nesse campo estão se colocando como mediadores do desenvolvimento humano em diferentes contextos. A complexidade dos arranjos sociais, políticos, econômicos e ideológicos atuais reflete nas estruturas organizacionais, que se apresentam cada vez mais diversificadas, tanto em relação a seus objetivos, missão e finalidades quanto à natureza de suas ações.

Além disso, é preciso reconhecer a função política nas políticas públicas voltadas à superação da desigualdade social. Elas são espaço singular e fecundo, ainda que pautado por incoerências, para o exercício da cidadania e da luta em prol de uma sociedade mais justa, um espaço que, dialeticamente, desafia os diferentes profissionais. A atuação frente a tais políticas requer a construção não somente de novas metodologias, mas de uma reflexão crítica referente à própria atuação profissional, diante de um cenário de desigualdades sociais, relacionada com a constituição da sociedade no sistema capitalista, das políticas que prometem mudanças improváveis de acontecerem.

Dada a relevância dessas questões, compreende-se a necessidade do desenvolvimento e da atuação no exercício cotidiano dos direitos humanos. Trata-se, portanto, de elaborar políticas públicas que articulem dialeticamente igualdade e diferença, pois os direitos humanos não podem ser articulados a partir de uma concepção de igualdade que não incorpore o tema do reconhecimento das diferenças, o que supõe lutar contra todas as formas de preconceito e discriminação. Ou, na conhecida frase de Santos (1999, p. 44): "temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza".

Para isso, tais políticas de assistência social precisam organizar-se em torno de relações sociais menos hierarquizadas, mais dialogadas e cooperativas. Ao promover a articulação entre as áreas e diferentes práticas, o Estado contribui para a promoção de uma visão menos sincrética, caótica e mais elaborada do conhecimento, reelaborando-a numa síntese qualitativamente superior (Saviani, 2008). Nessa perspectiva, abre-se espaço para experiências, saberes, práticas que protagonizam e compartilham saberes e experiências construídas em espaços sociais diversos. Nesse sentido, abre-se espaço à Ética do Cuidado.

 

Considerações finais e compromissos futuros

Este artigo, à luz do enfoque da Ética do Cuidado, promoveu uma reflexão sobre as políticas públicas voltadas à desigualdade social. Buscou-se explicitar e materializar alguns entendimentos, ressaltando a importância do cuidado como possibilidade de construção de um novo paradigma ético.

Diante do exposto, fortalece-se a esperança de que há caminhos possíveis para a construção de políticas públicas mais humanizadas. A história não enganou os que lutaram pela democracia, pela liberdade política, pelos direitos sociais, pela independência dos povos, pelos direitos humanos. Apesar das contradições, a experiência contemporânea criou novos espaços de liberdade e de justiça. Se agora sentimos tão profundamente as misérias, injustiças e irracionalidades, é porque sabemos que há outras possibilidades reais de organizar o mundo de modo mais ético e solidário.

Os novos paradigmas e os pressupostos da Ética do Cuidado têm exigido um compromisso social consciente e crítico, posturas que considerem a prática social como ponto de partida para a concretização das políticas públicas. Por meio desse olhar, evidencia-se a necessidade de uma constante articulação dialética de saberes, condições e necessidades, que compreenda que a transformação da prática social se inicia a partir do reconhecimento dos sujeitos no processo.

Embora muitas dessas atitudes já sejam tomadas em determinados lugares e situações, é também papel do Estado fortalecer e potencializar essas iniciativas, de modo que não continuem como atividades isoladas, mas um movimento conjunto, que envolva toda a comunidade na construção de uma cultura baseada no respeito à dignidade do ser humano.

Cabe também aos trabalhadores do Suas intensificar suas lutas aliadas às lutas de forças e movimentos sociais, porque sabem, pelo cotidiano de trabalho, dos efeitos de uma política de austeridade que sustenta os interesses do capital e destrói as conquistas e direitos. Resta aos gestores comprometidos defender o Suas, reagir, articular forças políticas. Resta às organizações da sociedade civil intensificar a defesa do modelo descentralizado e participativo, da democracia participativa, combater as contrarreformas em curso. Resta à população usuária insurgir, com apoio e presença das organizações que defendem direitos, diante do trágico desmonte dos direitos e serviços públicos.

Urge pensar-se em formas de organização das classes populares calcada na compreensão dialética do mundo contemporâneo para que seja atingida a superação do Estado mínimo, em que as políticas públicas reassumam seu papel de atuar no sentido da igualdade social. É preciso acreditar que os direitos humanos e a qualidade de vida podem ser resgatados por meio da solidariedade coletiva, pela luta política e pela real politização do debate, questões que poderão trazer elementos à compreensão e ao enfrentamento da desigualdade social.

Quem sabe esse seja o momento de despedida de um modelo historicamente alicerçado, de lugares conceituais, teóricos e epistemológicos prontos e acabados, não mais convincentes e adequados ao tempo presente. Parafraseando Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 58), este é um momento de "despedida em busca de uma vida melhor a caminho doutras paragens onde o otimismo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde finalmente o conhecimento volte a ser uma aventura encantada".

 

Referências

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Endereço para correspondência
jcostacurta@gmail.com, luciahelena.pulino@gmail.com

Recebido em: 16/08/2016
Revisado em: 01/05/2018
Aprovado em: 17/05/2018

 

 

1 Psicólogo, filósofo, mestre em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília, professor e servidor do Ministério do Desenvolvimento Social, atuando na formulação de documentos técnicos na área de Assistência Social.
2 Psicóloga pela Universidade de São Paulo, mestre em Lógica e Filosofia da Ciência – Epistemologia e doutora em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente, é professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.
3 LBA: Órgão coordenador das ações de assistência social, criado em 1942 para ofertar assistência aos familiares dos pracinhas da Segunda Guerra Mundial. Tornou-se uma fundação em 1969, e em 1977 passou a ser parte do Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social (Sinpas), vinculada ao Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS).
4 A expressão "indústria cultural" foi criada pelos filósofos alemães Theodor Adorno (1903-1967) e Max Horkheimer (1897-1973), a fim de designar a situação da arte na sociedade capitalista industrial (Adorno; Horkheimer, 1985).
5 Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros.

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