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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.20 no.2 São Paulo jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v20i2p99-110 

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v20i2p99-110

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Produzindo modos de pesquisar em clínicas do trabalho

 

Building ways to research in between the clinics of work

 

 

Cibele Vargas Machado Moro1; Fernanda Spanier Amador2

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda aspectos relativos à especificidade da pesquisa em clínicas do trabalho, notadamente, a pesquisa que discute o trabalho enquanto atividade no escopo da abordagem da clínica da atividade. Para tanto, trata-se, inicialmente, de clínica, de clínicas do trabalho e de pesquisa em clínica do trabalho. A seguir, são tecidas considerações a respeito da dialogia e da cartografia em clínica da atividade e, ao final, apresentam-se aspectos referentes ao percurso experimentado pelas pesquisadoras no âmbito de uma pesquisa realizada com gestores operacionais de uma empresa pública brasileira.

Palavras-chave: Clínicas do trabalho, Atividade, Pesquisa.


ABSTRACT

This paper discusses aspects concerning the research specificity in clinics of work, notably, the research which discusses work as activity in the clinic of activity approach. In order to do so, we will initially deal with clinic, clinics of work, and clinic-research of work. Then, we will weave considerations regarding dialogy and cartography in clinic of activity. Ultimately, we will present aspects related to the course taken by the researchers during a research carried out with operational managers of a Brazilian public company.

Keywords: Clinics of work, Activity, Research.


 

 

Introdução

O campo das clínicas do trabalho3 reúne uma diversidade de abordagens que se ocupam dos modos como os trabalhadores experienciam o trabalho. Operando com ferramentas conceituais e estratégias metodológicas diversas, as pesquisas, intervenções e pesquisas-intervenção nesse campo operam por estratégias analíticas coletivas entre e com os trabalhadores e trabalhadoras, de maneira que aí se destacam instigantes questões no que tange à própria experiência da pesquisa em clínicas do trabalho.

Para nós4, a partir da influência da clínica da atividade (Clot, 2010), em que o sentido da clínica se liga, na esteira de Spinoza (Amador & Neves, 2016; Clot, 2010), à expansão do poder de agir, fazer a clínica do trabalho implica, sobretudo, propor dispositivos pelos quais os trabalhadores e trabalhadoras encontrem novos meios de viver o, no e pelo trabalho, expandindo aquilo que já é, de certo modo, experimentado nas situações laborais ordinárias: os meandros do processo renormativo ante as provas do real5. Trata-se, portanto, de lançar mão de estratégias que favoreçam a criação de novos territórios existenciais (Passos & Barros, 2001), expandindo as possibilidades de agir "com" os outros, mediante a analítica das linhas de problematização abertas pelos trabalhadores quando do enfrentamento daquilo que os desafia a pensar no curso de seu trabalho.

Assim, em nosso ponto de vista, a pesquisa em clínicas do trabalho consiste em pesquisar-intervir, remetendo, também, à ideia de que conhecer-problematizando não se separa de conhecer-transformando. Contudo, seu interesse não recai, necessariamente e apenas, sobre a produção de novos modos operatórios de trabalhar (ou pesquisar), já que não bastaria trabalhar diferentemente. Importa que essa produção se associe à expansão do poder de agir no e pelo trabalho, poder de agir que enquanto potência de ação expande meios de existência e afirma modos diferenciantes e coletivos6 de viver e trabalhar.

Quando falamos de clínica, não é incomum pensarmos a partir do modelo médico e das práticas que visam a recuperação de um estado de saúde perdido, ou seja, pela concepção de uma saúde que, muitas vezes, é compreendida enquanto oposição a doença. Contudo, pensamos a clínica a partir do médico e epistemólogo Georges Canguilhem (1992), o qual sustenta que a saúde implica no exercício de criação de normas para viver. Para ele, ser sujeito da norm(atividade) do trabalho, e não apenas se adaptar às situações é o que produz saúde.

 

Considerações metodológicas em clínica da atividade: de cartografia e dialogia

Clot (2010) refere que a atividade, não se limitando a um objeto de estudo, se torna um importante instrumento clínico. Entendendo a clínica não apenas como um quadro, mas como ação, ele propõe que, na clínica do trabalho, trata-se de alimentar as condições de os trabalhadores transformarem o que fazem habitualmente. A possibilidade de transformação do trabalho – passando pela dimensão coletiva das contribuições genéricas, essas relativas ao gênero profissional que consiste em uma memória transpessoal do ofício e as estilísticas, essas relativas às transformações nos modos de trabalhar diante das imprevisibilidades do meio – associa-se, assim, à abertura à criação, que não transforma apenas o próprio ofício enquanto história que é de todos, mas também, indissociadamente, o próprio sujeito, na medida em que permita a expansão de seu poder de agir.

Centrando-se na análise do trabalho enquanto aquilo "que os homens fazem com as provações pelas quais passam e das soluções que eles encontram, ou não encontram, a fim de enfrentá-las" (Clot, 2007, p. 127), a clínica da atividade volta seu interesse a uma psicologia prática, construída pelos trabalhadores no sentido de buscar compreender e interpretar seu meio de trabalho. Considerando, ainda, que qualquer situação de análise do trabalho deve envolver e reconhecer os trabalhadores como analistas de sua própria atividade, já que somente eles podem falar de seus esforços e problematizações diante do real, o autor propõe que essa coanálise, realizada com o pesquisador, se dirija às metamorfoses da atividade ao longo do tempo, incluindo-se aí as metamorfoses provocadas pela própria análise. Partindo, assim, de situações de trabalho vividas (trabalho realizado) e contadas pelos trabalhadores, na "tentativa" de acessar a atividade passada, os trabalhadores se veriam convocados a uma nova atividade, servindo-se da presença do pesquisador para "enfrentar todas as outras vidas possíveis que lhes parecem devidas, redescobrindo. . . às vezes de maneira inesperada para eles, os obstáculos e os recursos de um real que lhes escapa" (Clot, 2007, p. 129). Com isso, fica claro não se tratar de uma tentativa de retomar o trabalho tal qual realizado, mas de, nesse esforço se reativar a experiência vivida, torná-la "meio de viver outra experiência" (p. 140). Nesse sentido, nunca é o realizado que retorna, mas uma versão dele, já que sobre ele incidem transformações provocadas por um olhar que se dá agora desde outro lugar.

Clot (2007), então, compreende que a análise do trabalho não se separa de sua transformação e cita Vygotsky (1994): "a ação passada pelo crivo do pensamento se transforma noutra ação, sobre a qual se reflete" (p. 26). Nesse movimento, o autor destaca que, enquanto o real da atividade é algo que não se pode observar diretamente, é necessário um método dialógico que permita acompanhar suas transformações, as quais estão em relação direta não somente com o objeto imediato da ação, mas também com o interlocutor. Desse modo, é fundamental considerar, como o autor nos indica, que "o destinatário da verbalização é constitutivo dos conteúdos desta" (Clot, 2007, p. 138), interferindo nas problematizações produzidas pelo trabalhador no curso de sua atividade. Ressaltando o caráter colaborativo da análise da atividade, Clot (2007) menciona, destacando, ao mesmo tempo, um importante aspecto relativo ao pesquisador clínico do trabalho:

A ação do psicólogo, do formador ou do especialista em resposta à ação do sujeito é decisiva na produção de descrições do trabalho. Ela circunscreve, ainda que sem o saber ou o querer, as possibilidades que o sujeito mantém ou não na apresentação de sua ação. Longe de simplesmente recuperá-lo, ele modifica o desenvolvimento da ação (p. 140).

 

O caráter dialógico em clínicas do trabalho

O caráter dialógico assume, assim, centralidade na metodologia de análise da atividade proposta por Yves Clot (2007, 2010). Como o autor refere, a análise da atividade, passando pelo diálogo, a desenvolve, já que, ao se transformar em linguagem, a atividade acaba por se reorganizar, modificando-se. Comportando a potência de problematizar o feito, outros desenvolvimentos possíveis da ação são descobertos no espaço de elaboração da linguagem, de modo associado à criação psicológica. Nesse sentido, Bakhtin (1984, citado por Clot, 2007) refere ser necessário ao pesquisador fazer à atividade dos sujeitos novas perguntas que eles mesmos não se fariam, possibilitando a formulação de novas interrogações que contribuam à expansão de seu poder de agir.

Em outro texto, Clot (2010) refere que as análises da atividade têm como objetivo que os trabalhadores se liberem o máximo possível de suas maneiras habituais de pensar e dizer suas atividades, bem como de agir, sendo necessário ultrapassar a esfera do funcionamento, da mera descrição do que se faz. Até aqui, então, por meio das contribuições de Clot, percebemos que a linguagem em seu caráter inventivo está no cerne das clínicas do trabalho – linguagem como atividade que está no centro da atividade (Faïta & Durrive, 2007) –, extrapolando sua dimensão meramente representacional. Considerando que o real do diálogo ultrapassa o diálogo realizado (o dito), Clot (2010) chama atenção para o inacabamento do diálogo, uma vez "que está sempre repleto de possibilidades não realizadas" (p. 230).

Inclui-se aí, em nosso ponto de vista, a dimensão impessoal da linguagem, aquilo que escapa às formas identitárias, as quais remetem a uma repetição do mesmo, daquilo que já nos é familiar. O real do diálogo, ao ultrapassar o dito, remete ao caráter de "acontecimento do dizer". A esse respeito, Tedesco (2008), referindo a potência criacionista da linguagem, aponta a íntima relação existente entre a subjetividade e os signos linguísticos, especialmente a dimensão não linguística da linguagem, a qual, estando "além e aquém das formas-signos", remete a "um campo de diversidade intensiva, irreverente aos compartimentos representacionais" (Tedesco, 2008, p. 183). A autora refere que esse plano intensivo da linguagem, responsável pela potência infinita de novos signos, coexiste com a regularidade, o que indica que as formas são sempre provisórias e suscetíveis à diversidade das atualizações conceituais. Assim, apostando na potência do inacabamento da palavra e da ação, que enseja a abertura para sua transformação, para o devir do trabalho – o que diz do diálogo como possibilidade de resistência –, a pesquisa clínica do trabalho exige um movimento dialógico enquanto tentativa de abertura a esse plano do real da linguagem.

Nesse mesmo sentido da perspectiva dialógica, pensando em uma pesquisa em clínica do trabalho, apontamos como interesse a experiência do trabalho na fala e o acompanhando do traçado de seu desenvolvimento dialógico (Amador, 2013). Também Tedesco, Sade e Caliman (2013) oferecem importantes pistas para pensarmos a experiência dialógica na pesquisa, ao ressaltarem a indissociabilidade dos dois planos da experiência, aquele do vivido da experiência, mais afeito às formas, e o plano da experiência prerrefletida ou ontológica, relacionado à processualidade, ao plano do coletivo de forças, de onde advêm os conteúdos representacionais. Na reciprocidade entre os dois planos, coemergem o dizer e o dito, sendo o movimento entre eles pautado pela dimensão de forças da linguagem, o qual provoca desestabilizações, rupturas e desvio.

 

A dimensão cartográfica da pesquisa em clínicas do trabalho

A cartografia é mencionada por Deleuze e Guattari (1995) como um dos princípios do rizoma, o qual, por sua vez, pode ser considerado como um modo de se pensar os processos de subjetivação, por entre organizações binárias, lógicas dicotômicas e reprodução e, de outro modo, a multiplicidade e a conexão com o fora7. Nesse sentido, uma pesquisa de orientação cartográfica aposta na potência da dimensão micropolítica do viver e, no caso que aqui nos interessa, da micropolítica do trabalhar e do pesquisar, nas dimensões intensivas a que a processualidade de seus fluxos desejantes está associada.

A atividade, enquanto relacionada às renormatizações do/no trabalho, remete ao esforço empreendido pelos trabalhadores no sentido de construir um meio de vida para si, superando as limitações impostas pelo real, ao mesmo tempo em que contribuem para a revitalização da história coletiva de um determinado ofício. Essa ultrapassagem, em permanente movimento instituinte, é tão constitutiva do trabalho quanto seu plano organizativo, sobre o qual incide para (muitas vezes, apesar dele) tornar o trabalho possível, vir a realizar o que tem de ser realizado. Centrando-se nessa dimensão do trabalho, do que ele comporta enquanto potência de diferenciação e criação, o trabalho do pesquisador cartógrafo em Clínica da Atividade busca mapear as linhas de força do trabalhar, abrindo-se para a experiência, para a dimensão histórica da atividade permanentemente reconstruída em cada situação de trabalho (Barros, Louzada & Vasconcellos, 2008).

Desse modo, colocar o trabalho em análise, convocando o trabalhador à atividade ao interrogá-lo acerca de seu fazer, se constitui como uma intervenção clínica, como referem Barros et al. (2008):

[Interrogar] de que modo aquele sujeito, no exercício de seu ofício, em meio a um conjunto de regas e valores, assume fazer de tal modo e não de outro, exige uma análise que remete a fazeres coletivos. Desse modo, analisar o trabalho, analisar um fazer, implica em cartografar, em acompanhar seus contornos, acompanhar seus desenhos e movimentos, explorar seus meios e trajetos (p. 18).

As autoras chamam a atenção, ainda, para a dimensão ética da análise da atividade, na medida em que, ao focar não somente as práticas instituídas, mas também os movimentos de criação no/do trabalho, afirma-se a potência instituinte da atividade laboral.

Os métodos de coanálise da atividade, desenvolvidos junto aos trabalhadores e destinados a restaurar/ampliar seu poder de agir em situação real (Clot, 2010), passando pelo realizado, visam acessar o real da atividade, incluindo os debates e as dramáticas envolvidos nas escolhas feitas pelos trabalhadores. A vitalidade dialógica do social é, então, colocada em cena, constituindo-se o diálogo como meio de viver outra experiência.

Se, como refere Clot (2007), a pesquisa clínica da atividade não diz respeito a um método a ser "aplicado" – já que, como em relação a qualquer outro gênero de atividade, não se trata de apenas aplicar normas antecedentes –, mas a uma metodologia a ser reconcebida com os trabalhadores, atendendo às singularidades da situação, perseguimos algumas outras pistas que podem contribuir ao percurso de uma cartografia do trabalho enquanto atividade. Valemo-nos, então, das contribuições de Tedesco et al. (2013) acerca do que comentam sobre o diálogo na pesquisa cartográfica. Deslocando o interesse do dito para a dimensão intensiva do dizer, interessaria muito mais do que a simples descrição de fatos e manifestação de opiniões e informações as modulações da experiência presentes nas variações do dizer. Nesse sentido, eles sugerem alguns indicadores da presença da experiência na fala, como a diminuição do ritmo das palavras, as falas entrecortadas por pausas e silêncios, as expressões de surpresa, desconcerto ou espanto, bem como os ruídos e imprecisões do dizer. Sob nosso ponto de vista, esses movimentos da fala remetem aos momentos de plena atividade, quando um fluxo sofre uma ruptura, sendo perturbado por algo que lhe provoca estranhamento ou faz questão.

Essa performatividade da linguagem diz também do papel do próprio pesquisador nesse processo, já que aí ele intervém. Conduzindo uma pesquisa que visa a produzir intervenções nas instituições que constituem os modos de trabalhar/viver, cabe ao pesquisador cartógrafo em clínica da atividade assumir uma postura problematizante, contribuindo a uma maior abertura à experiência do trabalho, dando passagem às problematizações dos trabalhadores, àquilo que lhes faz questão.

Seguindo as ideias que vimos aqui discutindo, o trabalho de um pesquisador clínico da atividade, ao adotar como foco de interesse a atividade (no/pelo trabalho do outro), deve considerar também sua própria atividade (no/pelo seu trabalho), a qual é convocada diante do real do trabalho de pesquisa. A respeito dessa temática, Barros e Silva (2013) desenvolvem uma interessante discussão, mencionando que a atividade do pesquisador também deve ser analisada, "uma vez que a atividade de pesquisa produz o pesquisador e o campo" (p. 341), participando e intervindo seus atos nas mudanças em curso na pesquisa. Lembrando que a realidade a ser pesquisada é movente e que, portanto, exige constante reformulação e análise do caminho investigativo, eles comentam:

O cartógrafo renormatiza, opera num vazio de normas que o convoca à criação, exerce sua inventividade em meio aos desafios que o campo empírico coloca. Não sabemos de antemão o que vamos encontrar nas situações concretas de pesquisa, é preciso construir normas que deem conta desse vazio que se coloca entre as prescrições e os desafios e variabilidades do real (p. 341).

Para Barros e Silva (2013), trata-se, então, de a aposta metodológica da cartografia na atividade problematizar-se também ela própria enquanto atividade. Nesse sentido, a atividade constituir-se-ia como objeto de análise e, também, como método, colocando-se como análise da própria atividade de pesquisa. Afetando-se pelos problemas colocados pelo campo, o pesquisador se veria, então, convocado a entrar em atividade, estilizando desde as contribuições genéricas de seu ofício.

Nesse processo, em que o pensamento do pesquisador se ativa pelo que faz problema no campo, do mesmo modo que a pesquisa-intervenção contribui à ativação de um pensamento problematizante acerca do trabalhar, falamos de uma pesquisa que, privilegiando os encontros, potencializa a expansão do poder pela mútua afetação. Assim, colocar a atividade do pesquisador em análise permite a problematização não apenas dos efeitos que produz no processo da pesquisa, passando pela análise do seu poder de afetar, mas também de seu poder de ser afetado pelas forças aí em jogo reforçando aquilo que afirma Lhuilier (2006), de que nas ciências experimentais, o que é considerado um obstáculo ao conhecimento – a relação entre a subjetividade do pesquisador e o seu objeto – pode ser considerado justamente um meio de se possibilitar o conhecimento, na pesquisa clínica do trabalho.

 

Meandros de um percurso de pesquisa em clínica do trabalho

A emergência de nosso problema de pesquisa junto a trabalhadores gestores de uma empresa pública brasileira ocorreu por entre a prática profissional de uma psicóloga trabalhadora da empresa que se interessou por colocar em análise o uso que os trabalhadores faziam de si8, por entre as normativas do seu ofício, em face do que o real do trabalho da gestão lhes colocava como problema. Assim, a psicóloga se fazia também pesquisadora.

No primeiro contato com gestores para apresentação de nossa proposta de pesquisa, uma cena nos provocou inquietação, forçando-nos a colocar em análise a condução da pesquisa na produção de uma demanda de análise da atividade da gestão. Trata-se da colocação, bastante efusiva, de um dos gestores: "Tá, o que tu queres é que a gente participe, né?", perguntou, interrompendo a apresentação e, logo em seguida, acrescentando "vou te ajudar! Pode colocar meu nome aí". Esse posicionamento "colaborativo" do gestor em relação à pesquisa – que se fez presente também em outros momentos e na fala de outros participantes – constituiu, para nós, um importante nó problemático: para uma pesquisa que persegue a potência crítico-inventiva da existência, bastaria a aceitação verbal ou a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para que daí se produzisse algo com o outro? Se esses aspectos não bastam, como contribuir para que os gestores passassem da posição de colaboradores (que, como na concepção de colaborador da empresa, guarda certa noção de assujeitamento) para sujeitos ativos nesse processo de construção do conhecimento? Se a pesquisa é, por certo, uma iniciativa de nossa parte e nasce sempre do interesse do pesquisador, como possibilitar a participação do outro sem produzir uma adesão submetida aos nossos interesses?

O processo da pesquisa teve prosseguimento com contatos telefônicos com gestores para agendar uma conversa de apresentação da pesquisa. Nessa conversa, realizada na unidade de trabalho dos gestores, logo ao saberem dos propósitos da pesquisa, já começavam a falar de seu trabalho, das dificuldades que encontravam, dos desafios desse ofício, em geral, relacionados à dimensão da gestão de pessoas (como problemas pessoais "levados" para o trabalho, conflitos interpessoais, não cumprimento do trabalho como preconizado). Em alguns momentos, tínhamos a oportunidade de vê-los "em ato", produzindo a gestão em meio às coisas acontecendo, sendo interpelados repentinamente e convocados a decidir, ao mesmo tempo em que delas iam nos dizendo.

Acreditamos que as visitas às unidades compuseram uma parte importante do método de pesquisa em clínicas do trabalho por nós desenvolvido, no sentido de ter possibilitado, pelo acompanhamento do trabalho da gestão "em ato", diante do real do trabalho, seguir os fluxos percorridos pelas afetações em meio aos aspectos que contribuíram à sua emergência. Assim, chamamos atenção para a especificidade do acompanhamento do trabalho in loco, cuja atividade, tendo o pesquisador como "observador", ganha nuances e sentidos próprios. Segundo Clot (2010), a fala do sujeito, dependendo a quem seja endereçada, muda em razão da atividade daquele a quem se dirige, se tornando "um meio de levar o outro a pensar, sentir e agir segundo a sua própria perspectiva" (Paulhan, 1929, citado por Clot, 2010, p. 146). Além disso, o retorno de uma ação vivida nas unidades e por nós acompanhada, em nova atividade, no coletivo de gestores – que, em nosso caso, ocorreu de modo espontâneo, sendo as situações trazidas livremente pelos participantes – parece ter oportunizado que a ação ganhasse ainda outra vida ao passar pelas discussões do gênero do ofício, contribuindo também à renovação desse último.

Entre tantas tarefas a dar conta, entre tantos imprevisíveis a fazer frente, a gestão operacional ia se produzindo nas falas, muitas vezes ultrapassando a descrição do feito, assumindo certa passionalidade, entremeada pelos desafios, pelas satisfações e frustrações do trabalho. Trabalho esse ao qual nunca se é, nem se pode ser, indiferente, um trabalho que interroga por todos os lados: pela hierarquia, pelos subordinados, pelos recursos escassos e, finalmente, pelas questões que o próprio gestor formula no encontro com todas essas dimensões.

Após a realização de algumas visitas às unidades, iniciamos os coletivos de análise da atividade. No primeiro encontro, o tempo avança e vamos percebemos que, apesar da presença de uma pessoa não participante da pesquisa e de estarmos ainda na expectativa da chegada de outros gestores, o propósito de nosso encontro já está na roda: a discussão do trabalho da gestão. A essa altura, com esse andamento da situação e diante da ausência dos demais participantes, muitas dúvidas tomam conta de nós. Quando "iniciar o grupo"? Mas o "grupo" já havia iniciado! Deveríamos pedir para o outro colega sair, interromper o gestor em sua avalanche de questões, pedindo para utilizar o gravador? Havia tantas combinações a fazer sobre o andamento da pesquisa, questões de ordem prática, ainda o termo de consentimento, que, imaginávamos, deveriam ser tratadas antes de iniciar uma discussão do trabalho. Contudo, se o setting não parecia o "adequado", parecendo haver algo "fora do lugar", era inegável, por outro lado, que algo já estava se produzindo ali. Percebemos que nos colocar de maneira aberta àquela fala, acompanhando seus movimentos, abandonando qualquer expectativa de enquadre, era pista para acessar sua atividade diante de tudo aquilo que se lhe colocava como o real do trabalho.

A realização desse primeiro coletivo de análise trouxe consigo a emergência não apenas de importantes elementos que compõem a atividade da gestão operacional, mas também esteve associada à proliferação de interrogações em nosso fazer de pesquisadora, colocando-nos em plena atividade. Diante do real da pesquisa, dos imprevistos e elementos inantecipáveis com os quais íamos deparando ao longo da conversa, por entre inúmeras questões acerca de nosso fazer, fomos sendo convocadas a escolhas e arbitragens que buscaram se orientar pela tentativa de maior abertura à afetação, no encontro com a atividade do outro, ultrapassando as preocupações iniciais de controle e enquadramento. Encontro entre as questões-atividade do gestor e as questões-atividade da pesquisadora, construindo a pesquisa por entre a vida impossível de ser "enquadrada", amarrada a scripts, ultrapassando qualquer pretensão de controle do que varia ou de um estrito cumprimento de checklists metodológicos. Como referem Barros e Silva (2013), tratando-se de uma pesquisa cartográfica, o pesquisador está submetido à prova do real, sendo convocado permanentemente a renovar e ajustar o método. Parece ser justamente a "falta de enquadre" que convoca o pesquisador à atividade, desestabilizando-o em suas certezas e obrigando-o a fazer uso de si para fazer também frente ao real. Nesse sentido, propomos falar da potência de uma mútua expansão do poder de agir na/pela pesquisa, na medida em que a abertura ao plano intensivo do pesquisar/trabalhar, passando pela problematização de suas formas instituídas, se dê justamente pelos possíveis de uma afetação pelo outro. Em outras palavras, o deixar-se afetar pelas provocações do outro ao seu fazer, acolhendo as interrogações que levam à atividade, nos parece comportar a potência de pesquisador e trabalhador expandirem-se mutuamente no encontro de uma pesquisa, já que, como refere Spinoza (1965, citado por Clot, 2010), o desenvolvimento do poder de agir é inseparável do esforço de ser afetado.

No segundo coletivo de análise, com a presença dos quatro gestores que participariam da pesquisa até sua conclusão, a pesquisadora propõe discutir naqueles encontros o que os gestores percebiam ser questão em seu trabalho, o que se constituía como nó problemático para eles. A partir daí os gestores discutem inúmeros aspectos de seu trabalho, especialmente no que se refere às restrições do dia a dia (seja de pessoal, recursos ou infraestrutura), as limitações impostas pelo excesso de normativas na empresa e, especialmente, o que e como fazem diante dessas dificuldades, passando pelas constantes necessidades de rearranjo no trabalho operacional (seja por parte dos gestores ou dos seus subordinados). Essa discussão é permeada por críticas ao funcionamento da empresa, exemplos de situações geridas nas unidades e mudanças do trabalho ao longo do tempo. A certa altura, diante das referências de um gestor ao que ele considerava o melhor funcionamento da empresa no passado (quando percebia que os gestores tinham mais suporte das áreas de apoio e das chefias para realizar seu trabalho, sendo também mais bem preparados), outro colega inicia um contraponto, mencionando que, antigamente, os gestores eram considerados os "detentores únicos" do saber e que o conhecimento não circulava como hoje, momento em que, em sua opinião, se prima pelo compartilhamento do saber. Diante da tentativa do primeiro de argumentar novamente, o outro gestor diz não querer entrar em debates e, dirigindo-se à pesquisadora, refere ter receio de o grupo atrapalhar a pesquisa, falando de serviço e tornando aquele espaço uma reunião de trabalho. Sugere, então, dividir os próximos encontros por temáticas relacionadas à gestão, cada qual com uma duração definida, de modo a contribuir com o trabalho da pesquisadora. Desse modo, diante, novamente, da emergência do "participante-colaborador", nossa intervenção foi no sentido de voltar a apontar que o interesse de nossa pesquisa era justamente no trabalho da gestão, lançando luz sobre os debates acerca dos modos de se trabalhar, em como faziam diante das dificuldades do dia a dia. Vimo-nos, então, diante do desafio de transformar uma questão de pesquisa que é nossa (da pesquisadora) em uma questão de pesquisa com o outro. Considerando, ainda, a direção dialógica de nossa proposta na análise da atividade, perguntamos: como contribuir à produção de controvérsias entre os gestores (e desses com seus subordinados), ultrapassando a ideia de consensos ou, ao contrário, de disputas de opinião, de modo a, pensando o trabalho conjuntamente, possibilitar a permanente renovação do ofício?

Aqui, encontramo-nos, novamente, com as contribuições de Lhuilier (2006) acerca da produção da demanda na pesquisa clínica. Para ela, a demanda daqueles a quem se endereça a pesquisa é produzida durante e além desse encontro, relacionando-se ao que faz o pesquisador com sua própria demanda na pesquisa, na direção da coconstrução do sentido da experiência e da situação. Desse modo, é necessário criar dispositivos que façam emergir o conhecimento dos trabalhadores acerca de seu fazer, destacando seu lugar ativo na pesquisa ao mesmo tempo em que criam um distanciamento do quadro habitual e induzem uma ruptura em relação ao ordinário. Assim, podemos pensar a relevância dos dispositivos de coanálise da atividade que convocam os saberes práticos, os conceitos elaborados pelos trabalhadores desde o real de seu trabalho. Como a autora menciona, essas análises conjuntas fornecem aos sujeitos a oportunidade de uma verbalização que se transforma em narrativa, dando forma à experiência vivida, em um quadro que favorece a coprodução da compreensão dos sentidos das condutas. Há que se destacar, nessa direção, que essa dimensão ética da pesquisa, tendo como princípios a troca, a cooperação e a aprendizagem coletiva no processo de produção do conhecimento, faz da pesquisa clínica também um empreendimento político, uma vez que sustentada nos esforços de constituição de um projeto comum. Lhuilier (2006) aponta, então, que a confrontação dos sujeitos às questões e dificuldades que eles sustentam e desejam esclarecer e transformar, escolhendo eles mesmos os problemas que querem analisar de modo crítico, é um caminho à contribuição do reconhecimento dos trabalhadores como sujeitos que conhecem (e não meros objetos de coleta de dados).

Seguindo essa pista fornecida por Lhuilier (2006), a aposta que se faz na produção da demanda de uma pesquisa com o outro é pela via da problematização do trabalho, abrindo-se espaços, em nosso caso, à formulação de crítica pelos gestores aos arranjos de saberes e poderes que constituem o trabalho da gestão, abrindo-se aos possíveis da transformação/criação de si e do mundo. Por outro lado, como a autora aponta, a dimensão coletiva dessa problematização tem de ser considerada – e, acrescentaríamos nós, ativada – na pesquisa pela ampliação do que ela chama de "complementaridade entre os trabalhadores" e que nós consideramos como os modos de existência coletivos. Em tempos de poder gerencialista em que o chamado "trabalho em equipe" é estimulado e, paradoxalmente, fomenta cada vez mais os modos de existência individualizantes, essa discussão nos parece de grande importância, inclusive na dimensão do coletivo enquanto resistência. Em nosso ponto de vista, a crítica – compreendida como movimento de interrogação da verdade sobre seus efeitos de poder e esforço de desassujeitamento (Foucault, 1978) –, alcança sua potência clínico-política na medida em que possibilita a expansão do poder de agir dos sujeitos, que, como vimos, se dá pela capacidade de afetar e ser afetado, remetendo a um viver juntos, pela abertura à diferença.

Entendendo que a experiência compartilhada não se dissocia da produção coletiva de novos modos de existência, o esforço que empreendemos em nossa pesquisa foi o de investir nessa dimensão coletiva pela abertura à afetação, deixando-se afetar pelo outro, no exercício indissociável da problematização do real do trabalho e da pesquisa, abrindo-se à criação de novos modos de trabalhar/pesquisar. Em nossa pesquisa, como referimos, a abertura à indeterminação foi um esforço a que nos vimos convocadas, especialmente no início, diante do que teimava em escapar de nossas expectativas de condução de uma entrevista. Além disso, buscamos contribuir à ampliação da dimensão coletiva do trabalho na pesquisa pela problematização de seu plano impessoal, buscando mobilizar discussões que tomassem o trabalho da gestão enquanto produção coletiva, de modo a favorecer o fortalecimento do gênero pelos compartilhamentos acerca do saber-fazer e abrindo-se à estilização. Consideramos que essa não é uma tarefa fácil, requerendo constante atenção por parte do pesquisador no sentindo de estar alerta aos movimentos de captura com que depara constantemente, configurando-se também em um desafio a todos os envolvidos no trabalho de análise, já que nos produzimos em meio aos arranjos que, no contemporâneo, reforçam com frequência as estratégias individualizantes da existência.

Em nossos coletivos de análise da atividade, houve momentos em que o que se produziu pareceu estar mais associado a falas com caráter individualizantes do que propriamente diálogos. Explanação de opiniões, referências a perfis individuais de gestores, comparações entre modos de agir, evitação de controvérsias (por entenderem que "entrar em debate" não seria produtivo à pesquisa) e diversos momentos em que as estratégias de assujeitamento no/pelo trabalho da gestão não puderam ser problematizadas, passando "batidas", remetem aos limites de nossa pesquisa na produção/conexão com o plano de forças coletivo. Aqui, a confiança também entre os participantes parece ter grande importância, no sentido de uma maior abertura ao que é compartilhado na experiência do trabalho, não na direção de um fazer igual pela definição de consensos, mas justamente pelo reconhecimento de posições diferentes e fomento à controvérsia como possibilidade de fortalecimento genérico e da estilização, remetendo a um viver juntos na diferença. Embora tenhamos buscado conduzir a pesquisa nessa direção, contribuindo à produção da confiança pela abertura ao real do trabalho/pesquisa em uma postura problematizante (inclusive com intervenções que apontavam o caráter coletivo do trabalho, falando de gêneros e estilos do ofício), atravessamentos importantes pareciam impactar na disponibilidade dos gestores ao compartilhamento de sentidos, como a interferência político-partidária na empresa que parece dividi-los e estabelecer uma lógica de desconfiança entre eles. Alguns gestores, por exemplo, somente teciam críticas em relação ao funcionamento da empresa em nossas conversas nas unidades, optando por não se manifestar a respeito delas na presença de outros gestores. Por outro lado, apesar (e também justamente em função) desses aspectos, apostamos no alcance clínico de nossa pesquisa, que, ao colocar em análise o trabalho enquanto atividade, instaura um espaço inédito de problematização coletiva do trabalho da gestão operacional. Apesar da limitação temporal da pesquisa (e considerando-se que a construção da confiança requer tempo, além de disponibilidade), acreditamos que o modo como as entrevistas e os coletivos de análise da atividade foram conduzidos – interessando-se pela dimensão processual do fazer da gestão, definindo com os gestores o que faz problema para eles, focando-se na experiência compartilhada nesse ofício – contribuiu, ainda que minimamente, para uma produção política calcada nos encontros, nas produções efetivamente coletivas desde o real do trabalho.

Essa direção da pesquisa, buscando colocar em questão as práticas em jogo, pensando juntos e outramente pela problematização, parece ter produzido alguns efeitos interessantes ao longo dos encontros. Um deles diz respeito a certo deslocamento do posicionamento dos gestores em relação à sua participação na pesquisa, como pôde ser percebido em um debate por eles empreendido. Entre manifestações sobre o interesse em "ver a si mesmos" em uma pesquisa, ressaltam os ganhos "imediatos", referentes às trocas e debates suscitados nos grupos, "microrresultados" da pesquisa, como menciona um gestor. Essas colocações, assim como a referência de um gestor, logo no início da pesquisa, sobre o desejo da participação de outros colegas para que pudessem transformar o trabalho, melhorando-o para todos, associam-se, em nossa compreensão, a uma demanda pela pesquisa que já não é mais apenas da pesquisadora, remetendo à dimensão do viver juntos e cuidar coletivamente de seu ofício. Também o alcance macropolítico da pesquisa é mencionado, nessa mesma discussão, de maneira associada à expectativa de que a pesquisa ajude a produzir interferências nos espaços de trabalho, contribuindo a que se coloque permanentemente o trabalho em questão, caso contrário, se tratariam apenas de "palavras vazias", como referiu um gestor. Entre as interferências esperadas pelos gestores, eles mencionam, por exemplo, o desejo de que a pesquisa ajude a empresa a rever os procedimentos da área de treinamento, como a formação de gestores, que hoje é desenvolvida, segundo eles, de modo muito distante do real do trabalho da gestão. Como mencionou outro gestor, é importante pensar o trabalho "não pelo formato que foi escrito para ser a gestão, mas o formato que a gestão está fazendo com o que foi escrito". Desse modo, esses aspectos parecem remeter não apenas à construção conjunta do conhecimento, que produz essas interferências desde um plano ético-estético-político (ou seja, junto com o campo, acionando modos de funcionamento coletivos, abertos à diferença e à criação), mas dizem também da pesquisa que, enquanto obra aberta, pode seguir proliferando sentidos e produzindo intervenções.

Do ponto de vista dialógico, foi possível perceber uma proliferação de questões dos gestores em relação aos funcionamentos organizacionais, as quais nos possibilitaram entrar em contato com seus constantes esforços de renormatização para dar conta do trabalho que havia a ser feito, indicando uma intensa produção pela qual se colocaram os gestores em plena atividade. Por outro lado, percebemos que em poucos momentos as análises foram permeadas pela formulação de crítica acerca dos efeitos das práticas de gestão nos modos de se produzir o trabalho e a relação com o outro (especialmente seus subordinados). Desse modo, nosso desafio foi o de buscar produzir tensionamentos nas falas dos gestores, essas geralmente marcadas por tons de certeza e segurança, com raros titubeios e interrogações ao seu próprio agir no sentido dos efeitos de saber-poder aí em jogo. O "como" faziam ia ganhando espaço na medida em que nos contavam as situações vividas e os esforços empregados para fazer frente a um real que escapava às inúmeras normativas formuladas pela empresa, as quais eram demandados a cumprir e a fazer cumprir.

A pesquisa indicou a potência clínica do diálogo que, como uma atividade em si, pode convocar os sujeitos a colocarem em análise não apenas modos operatórios de trabalhar, mas também a experiência de si entre as práticas que compõem a gestão. Mais do que questões operatórias do trabalho, nossa pesquisa buscou colocar em cena também a dimensão ética do trabalho, possibilitando não apenas viver outra experiência pelo trabalho, mas fazer dela uma experiência ética.

 

Considerações finais

Neste artigo abordamos o tema da pesquisa em clínicas do trabalho e afirmamos o caráter de pesquisa-intervenção, o qual remete à ideia de que conhecer-problematizando não se separa de conhecer-transformando. Analisamos de modo especial as contribuições da clínica da atividade, abordagem clínica do trabalho essa que sustenta o conceito de clínica e de saúde em relação com a expansão do poder de agir. Trata-se de lançar mão de estratégias que favoreçam as possibilidades de agir "com" os outros, mediante a analítica das linhas de problematização abertas pelos trabalhadores quando do enfrentamento daquilo que os desafia a pensar no curso de seu trabalho.

Tecemos considerações a respeito do caráter dialógico e cartográfico da pesquisa em clínicas do trabalho e apresentamos considerações nessa direção no que se refere à pesquisa realizada com gestores de uma empresa pública brasileira. A pesquisa indicou a potência clínica do diálogo que, como uma atividade em si, pode convocar os sujeitos a analisarem não apenas modos operatórios de trabalhar, mas também a experiência de si entre as práticas que compõem a gestão. Mais do que questões operatórias do trabalho, nossa pesquisa almejou colocar em cena também a dimensão ética do trabalho, possibilitando não apenas viver outra experiência pelo trabalho, mas fazer dela uma experiência ética.

 

Referências

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Endereço para correspondência
cibelevm@yahoo.com.br
fernanda.amador@ufrgs.br

Recebido em: 19/01/2017
Revisado em: 26/10/2018
Aprovado em: 08/11/2018

 

 

1 Psicóloga, mestre em Psicologia Social e Institucional.
2 Psicóloga, doutora em Educação, professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 As abordagens que compõem o campo das clínicas do trabalho são diversas. Para fins deste artigo, nos ocupamos da clínica da atividade proposta por Yves Clot tecendo, a partir dela, considerações metodológicas para o campo.
4 Este artigo foi produzido como parte de estudos e pesquisas financiados pelo CNPq.
5 O real do trabalho foi, nesta pesquisa, tomado no sentido de Clot (2010). Assim, refere-se à dimensão nem prescrita nem realizada do trabalho. Trata-se daquilo que diz respeito ao pensamento e às tentativas dos trabalhadores que são acionadas quando ele se confronta com as provas do seu trabalho, com as variabilidades do meio. Portanto, no real do trabalho, pode estar, também, tudo aquilo que o trabalhador procura fazer sem lograr êxito.
6 Coletivos são aqui entendidos como certo modo de funcionamento, modo esse pautado na produção da diferença que se torna a "liga" dos trabalhadores no agir e no viver junto no trabalho.
7 O fora, na obra de Deleuze e Guattari (1995), diz respeito a um plano de virtualidades, desde onde a vida não para de ser recriada, desde onde configurações de saber e poder não cessam de ser rearranjadas, produzindo novos modos de subjetivação.
8 A expressão "usos de si" aqui presente refere-se a Schwartz (2007), quando discute o fato de que ao trabalharmos, mais do que executamos tarefas, precisamos fazer criar os meios para dar conta das variabilidades do meio.

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