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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.20 no.2 São Paulo jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v20i2p159-172 

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v20i2p159-172

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Fui aprovado em concurso público. E agora? Uma análise do prazer e sofrimento no trabalho dos analistas administrativos do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão

 

I have been approved in a public contest. And now? An analysis of the pleasure and suffering in the work of the administrative analysts of the Regional Electoral Court of Maranhão

 

 

Luiz Gustavo Carvalho Assis1; Carla Vaz dos Santos Ribeiro2

Universidade Federal do Maranhão (São Luís, Maranhão, Brasil)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa analisar a dinâmica prazer-sofrimento de analistas administrativos em um Tribunal Regional Eleitoral (TRE) diante dos modos de organização do trabalho. A pesquisa desenvolveu uma metodologia de caráter qualitativo, realizando entrevistas semiestruturadas com roteiro predefinido. Observou-se que o modelo de organização do trabalho vigente propicia o surgimento de estratégias defensivas, de sofrimento e, possivelmente, de menor engajamento e mobilização. No entanto, mesmo diante desse contexto, os servidores vivenciam prazer quando atingem resultados práticos em seu trabalho ou são reconhecidos socialmente. Essa pesquisa contribui para identificar aspectos que podem ser trabalhados visando melhorar a organização, com subsídios para análise, debate e busca de alternativas de melhoria da ação dos trabalhadores, da sua saúde e do próprio TRE/MA.

Palavras-chave: Trabalho, Subjetividade, Saúde, Servidor público, Judiciário federal.


ABSTRACT

This article aims to analyze the dynamic pleasure-suffering of administrative analysts in a Regional Electoral Court regarding the ways of organizing work. The research developed a methodology of qualitative character, performing semi-structured interviews with predefined itinerary. It was observed that the current work organization model favors the emergence of defensive strategies, of suffering and, possibly, of less engagement and mobilization. However, even in this context public servants experience pleasure when they achieve practical results in their work or are socially recognized. This research contributes to identify aspects that can be worked to improve the organization, with subsidies for analysis, debate and search for alternatives to improve workers' action, their health and the TRE/MA itself.

Keywords: Job, Subjectivity, Health, Public servants, Federal judiciary.


 

 

Introdução

As mudanças que vêm ocorrendo no modo de produção capitalista a partir dos anos 1970 trouxeram grandes impactos no serviço público brasileiro que busca se adaptar, principalmente, adotando ferramentas gerenciais utilizadas pelo setor privado para alcançar maior produtividade, eficiência e transparência.

Assim, as consequências dos modos de produção atual, tais como a precarização do trabalho e o enfraquecimento das forças sindicais, não atingem apenas as empresas privadas, mas também as organizações públicas que necessitam, por força da pressão exercida pela sociedade e pelos órgãos de controle, implantar a ideologia e as ferramentas da iniciativa privada no seu modo de produção. Consequentemente, surge uma maior pressão por resultados e eficiência que passam a incidir diretamente na forma de trabalhar dos servidores, trazendo grande repercussão, particularmente, em sua saúde e subjetividade.

Com o judiciário federal não é diferente. A Justiça Federal também vem passando por intensas mudanças em suas formas de gestão e organização do trabalho buscando se adaptar às exigências dos novos modos de produção. Tais exigências encontram-se materializadas em atos normativos, resoluções e metas traçadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Tribunal de Contas da União (TCU) e Tribunais Superiores, como o do Trabalho (TST) e Eleitoral (TSE).

Desse modo, o núcleo deste estudo se propõe à análise da dinâmica prazer/sofrimento dos analistas judiciários: Área Administrativa (analistas administrativos) do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão (TRE/MA), órgão da Justiça Federal, mediante os modos de organização do trabalho. A instigação por essa pesquisa surgiu a partir da prática de um dos autores, servidor da Justiça Eleitoral, ocupante do cargo de analista judiciário – Área Apoio Especializado: Psicologia –e chefe da Seção de Desenvolvimento Organizacional (Sedeo) do TRE/MA.

Vale destacar que grande parte dos trabalhadores que buscam se empregar no setor público e na Justiça Eleitoral, mais especificamente – conforme se pôde perceber pela análise das entrevistas – o faz muito mais levados pelo desejo de estabilidade financeira do serviço público, e não por vocação. Verifica-se, dessa forma, uma corrida para o serviço público impulsionada pela conquista de estabilidade e qualidade de vida. Carreteiro (2014) levanta três fatores como hipóteses para o aumento do número de candidatos a concursos públicos: a atual instabilidade do mercado de trabalho, o aumento do número de vagas oferecidas pelo setor público e, por fim, a busca do reconhecimento social.

No entanto, após a conquista do tão almejado objetivo – passar no concurso – é comum encontrar pessoas, dentro do serviço público, desmotivadas, sem ânimo, deprimidas, ou com algum comprometimento de sua saúde. Conforme Ribeiro e Mancebo (2009):

É comum, depois de decorrido pouco tempo de tão disputada empreitada do concurso, encontrar os novos servidores desprovidos do brilho e da energia comum aos "vitoriosos". O objetivo definido foi alcançado, entretanto, na ânsia de se protegerem das oscilações do mercado de trabalho, não se permitiram realizar uma escolha mais cuidadosa, analisando criteriosamente se as características da organização e do cargo para o qual prestaram exame eram compatíveis com seus interesses e projetos de vida (p. 152).

Além disso, devido às mudanças, o setor público passou, também, a exigir servidores mais autônomos e empreendedores, comprometidos com a gestão, o que aumenta, sobremaneira, a pressão sobre o trabalhador, que não recebe os mesmos incentivos do trabalhador da empresa privada. Mesmo assim, tenta-se imputar as mesmas características do trabalhador da área privada ao do setor público.

As inovações na administração pública geraram um modelo de gestão híbrida, que compreende elementos do fordismo, do taylorismo e do toyotismo. Entretanto, "esse 'frankstein' gerencial não oferece contrapartida alguma, de nenhum dos modelos, nem o salário fordista, nem a possibilidade taylorista de crescer na carreira, tampouco a valorização e a autonomia toyotistas" (Merlo, Zanini, Furstenau & Pacini, 2004, p. 374).

Percebe-se, desse modo, que, se por um lado os servidores conseguem estabilidade profissional, por outro, sofrem, pois muitas vezes deparam com grandes exigências, sem contrapartida da organização em que trabalham. É comum, também, ao adentrarem o serviço público, depararem com tarefas e atividades rotineiras e prescritas, sem relação com sua formação e sem grandes possibilidades de intervenção, o que dificulta a concretização de suas aspirações, suas ideias, sua imaginação e seu desejo.

Diante de todo esse contexto, surge o questionamento: como a organização do trabalho do tribunal, as novas formas de gestão e as regulamentações do setor judiciário se constituem como fonte de prazer ou sofrimento no cotidiano desses trabalhadores?

Dessa maneira, cabe aprofundar as reflexões sobre a vida após aprovação no concurso público e suas repercussões na saúde e subjetividade dos trabalhadores.

Escolheu-se esse cargo porque os servidores que o ocupam são colocados para trabalhar, muitas vezes, em atividades completamente diferentes de sua área de formação. Além disso, a partir de pesquisas internas feitas pela área de gestão de pessoas do TRE/MA, esse cargo possui menos vacância, menor rotatividade e menor mobilidade para a secretaria, dentro do Tribunal, o que exige maior adaptação e uso de "estratégias defensivas", além de maior possibilidade de adoecimento e/ou danos à saúde do servidor.

Considera-se, neste artigo, a questão do prazer e sofrimento a partir da concepção da psicodinâmica do trabalho, que busca investigar, sobretudo, as repercussões dos modos de organização e de gestão do trabalho na subjetividade dos trabalhadores, considerando a relação entre o sofrimento decorrente das contradições entre o sujeito e o contexto de produção, no qual o trabalho está inserido, e as estratégias de mediação para superar/ressignificar esse sofrimento e transformar o trabalho em fonte de prazer (Mendes, 1995).

A pesquisa desenvolveu uma metodologia de caráter qualitativo, realizando entrevistas semiestruturadas com roteiro predefinido.

Importa ressaltar que, haja vista os riscos emocionais-psicológicos aos participantes, cumpriu-se a Resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde – CNS (2016), que trata da ética nas pesquisas em ciências sociais e humanas.

Procurou-se entrevistar os analistas administrativos tanto da secretaria quanto das zonas eleitorais, da capital e dos interiores, buscando maior entendimento do objeto de estudo. A princípio, foi enviada mensagem-convite para a lista geral de e-mail do TRE/MA convidando os interessados, que possuíssem o perfil selecionado para a amostra, a participarem voluntariamente.

Desse modo, foram entrevistados treze analistas judiciários: área administrativa, sendo sete mulheres e seis homens, e, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foram colhidos os depoimentos. Ressalta-se que todas as entrevistas foram gravadas mediante autorização dos sujeitos pesquisados, sendo classificados por números aleatórios, por exemplo: Analista 1, Analista 2 etc., não permitindo, assim, sua identificação.

Utilizou-se o critério de saturação, conforme proposto por Minayo (2010, p. 197): "Por critério de saturação, se entende o conhecimento formado pelo pesquisador, no campo, de que conseguiu compreender a lógica interna do grupo ou da coletividade em estudo".

No primeiro momento da pesquisa foi realizada uma revisão de literatura acerca das categorias teóricas escolhidas: subjetividade, saúde, trabalho, prazer-sofrimento, servidor público. Além das pesquisas em fontes documentais, dispositivos legais, legislações, regulamentações e outros marcos regulatórios da Justiça Eleitoral.

Para analisar os depoimentos e tratar os dados, utilizou-se a Teoria Social do Discurso de Norman Fairclough (2001). A proposta de Fairclough de análise do discurso consiste em três princípios metodológicos autônomos, porém, complementares: a) a análise de textos falados e/ou escritos; b) a análise do processo de produção, distribuição e consumo de textos (que o autor denomina de prática discursiva); e c) a análise de acontecimentos discursivos como práticas socioculturais.

Assim, este artigo pretende possibilitar um maior entendimento dos complexos contextos de trabalho na atualidade, permitindo uma avaliação mais crítica da atividade dos analistas administrativos dentro da Justiça Eleitoral. Buscou-se compreender as mediações utilizadas pelos analistas administrativos para manter a saúde, evitando o sofrimento e buscando alternativas para obter prazer. Procurou-se identificar fatores que podem ser trabalhados visando a melhoria dos aspectos organizacionais, fornecendo subsídios para a análise, o debate e a busca de alternativas para o desenvolvimento da ação dos trabalhadores e da sua saúde, suscitando futuras reflexões que proponham novas formas de intervenção e apoio voltados para a realidade das organizações públicas, principalmente do judiciário federal.

 

A Justiça Eleitoral e Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão

A Justiça Eleitoral é um ramo especializado da Justiça Federal. É formada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE); por um Tribunal Regional em cada estado e um no Distrito Federal e territórios; e pelos juízes e juntas eleitorais. A composição desses órgãos é definida pela Constituição Federal e pelo Código Eleitoral Brasileiro.

Entende-se como competências da Justiça Eleitoral, de forma resumida: preparar, realizar e apurar as eleições. Em outras palavras, ela é responsável por todo o processo eleitoral no país, por isso é conhecida como justiça especializada.

Os tribunais eleitorais se diferenciam de outros tribunais, porque, além da função jurisdicional de julgar os processos eleitorais, possui a função administrativa de organizar, executar as eleições e gerenciar o banco de dados de eleitores.

Existem duas carreiras de servidores no TRE/MA: a de analistas judiciários, à qual é exigido curso de ensino superior, inclusive licenciatura plena, correlacionado com a especialidade, se for o caso; e a de técnicos judiciários, em que se exige o ensino médio, ou curso técnico equivalente, correlacionado com a especialidade, se for o caso.

Assim, os cargos são divididos em carreiras de nível superior (analistas judiciários) ou médio (técnicos judiciários), sendo classificados de acordo com as áreas de especialidade. Dessa forma, se tem, por exemplo: analista judiciário – área judiciária, cargos de nível superior, bacharéis em direito; analista judiciário – área administrativa, cargos de nível superior, para os quais as pessoas podem ter qualquer diploma de nível superior, que no tribunal executam atividades de apoio administrativo; e os apoios especializados, como é o caso de analista judiciário – área de apoio especializado: psicologia, medicina, análise de sistemas ou engenharia, em que são exigidas as devidas formações e registro nos respectivos conselhos.

Em relação à lotação dos servidores, eles podem ser lotados na secretaria do tribunal (a sede administrativa onde se localiza o tribunal, o órgão recursal, localizado em São Luís) ou nas 105 zonas eleitorais (na capital e no interior do estado).

Ocorre, também, de forma muito usual, que os cargos de analistas administrativos sejam ocupados por pessoas com as formações mais diversas, tais como: odontologia, economia, engenharia, entre outras, mesmo que não haja a menor relação entre sua formação e as atividades executadas no tribunal.

Várias mudanças vêm repercutindo na gestão, na forma de trabalhar dos servidores e, consequentemente, em sua saúde e subjetividade. Entre elas, as principais são as trazidas pelas exigências do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo TSE.

O CNJ, desde a sua fundação em 2004, mais especificamente, vem instituindo normativos para tornar a justiça mais transparente, e a prestação de serviços jurisdicionais mais efetivos para a sociedade. O TRE/MA, buscando atender às demandas do CNJ, ao longo dos últimos anos vem implantando mudanças. Passou-se, portanto, no TRE/MA, a trabalhar com metas, indicadores, planejamento, estratégia, acompanhamento de planos e projetos, e a utilizar métodos e técnicas antes só aplicadas na iniciativa privada.

Atualmente, todas essas mudanças de acompanhamento de metas, indicadores e planejamento das atividades estão influenciando o trabalho e a prática dos servidores do TRE/MA e trazendo maior exigência por resultados, uma pressão maior pela qualidade dos serviços prestados e transparência, o que acarreta demanda por servidores autônomos e empreendedores. O impacto dessas mudanças e das novas demandas na saúde e subjetividade dos analistas será avaliado no próximo tópico.

 

Saúde e subjetividade do analista administrativo: entre as vivências de prazer e sofrimento

Vale destacar que se considera, nesse artigo, o trabalhador como um ser ativo que pensa nas suas relações de trabalho e atribui um sentido às situações, e que é dependente das condições socioeconômicas oferecidas pelo contexto histórico. Por outro lado, as situações de trabalho influenciam e modificam as percepções do trabalhador a respeito de si mesmo, dos outros e do próprio trabalho, o que resulta em uma subjetividade no trabalho que, por sua vez, pode ser diferente da subjetividade do indivíduo. Essa subjetividade permite construir o sentido do trabalho atribuído de forma compartilhada pelo grupo de trabalhadores, que pode ser de prazer e/ou sofrimento (Ferreira & Mendes, 2003).

Cabe reafirmar, ainda, que a concepção de saúde tomada nesse estudo compreende um sentido de luta, de movimento, de enfrentamento, marcada por vivências de prazer e sofrimento. O sofrimento é inerente e inevitável à condição humana. Sofrer, portanto, é constituinte do humano e do trabalho. No entanto, o que irá diferenciar as diversas organizações do trabalho está na margem de autonomia e na liberdade de negociação propiciada para o enfrentamento das adversidades do meio (Dejours, 2011d). O desafio, então, não é eliminar o sofrimento, mas definir ações que favoreçam a transformação e a ressignificação das situações geradoras de desprazer em situações geradoras de prazer (Dejours & Abdoucheli, 1994).

Destarte, para melhor compreender os laços entre a subjetividade e o trabalho dos pesquisados, fez-se o levantamento das principais fontes de sofrimento e prazer no cotidiano desses servidores, realizando, então, uma análise crítica do material identificado. As ponderações e reflexões que se seguem foram construídas a partir da articulação da fundamentação da teoria com a pesquisa de campo, a partir das entrevistas e da observação do trabalho desses profissionais.

Para entender melhor as questões aqui levantadas e devido à diferença da natureza do trabalho e das diversas características laborais, é necessário dividir as causas de sofrimento, assim como de prazer e satisfação no trabalho, em três categorias diferentes: as causas de sofrimento e prazer dos analistas administrativos das zonas eleitorais, as dos lotados na secretaria do tribunal e, posteriormente, as causas de prazer e sofrimento comuns tanto para os lotados nas zonas eleitorais quanto dos lotados na secretaria do tribunal.

O cotidiano do analista administrativo permeado por situações de desprazer e sofrimento

O cotidiano do trabalho do analista administrativo é permeado por situações de desprazer, assim como no dia a dia das diversas categorias de trabalhadores.

Importa reforçar, conforme trazido por Dejours (2011d), que toda organização é de antemão desestabilizadora da saúde e fonte de sofrimento. Assim, não se pode conceber uma organização do trabalho isenta de sofrimento. O que existe, na verdade, são organizações do trabalho mais favoráveis à negociação da superação desse sofrimento. "A saúde, o prazer no trabalho, a realização de si mesmo, a construção da identidade, são ganhos com relação ao sofrimento, componente básico da relação de trabalho" (Dejours, 2011d, p. 434).

Considera-se o sofrimento como um estado de luta do sujeito contra as forças (ligadas à organização) que o empurram em direção à doença mental, pois a organização do trabalho possui normas e prescrições que não convergem com o desejo dos indivíduos. Dessa maneira, o sofrimento no trabalho surge quando a relação do trabalhador é bloqueada em virtude das dificuldades de negociação das diferentes forças que envolvem o desejo da produção e o desejo do trabalhador, isto é, quando não é mais possível a negociação entre o sujeito e a realidade imposta pela organização do trabalho (Mendes, 2007). A partir disso, o sofrimento se torna patogênico – comprometendo a saúde – quando o confronto se torna intransponível levando à repetição contínua dos mesmos problemas, dos mesmos fracassos, tornando-os insuportáveis (Dejours, 2011d).

No entanto, quando as condições geradoras de sofrimento podem ser transformadas, isso dá lugar à saúde e ao prazer, mesmo que de forma instável.

Observou-se, a partir da análise das entrevistas, que a maioria dos sujeitos pesquisados das diversas zonas eleitorais destaca, entre as principais fontes de sofrimento, a estrutura precária dos ambientes de trabalho a que estão submetidos, isto é, às condições de trabalho. Desse modo, constatou-se que as condições de trabalho da instituição deixam a desejar, sendo potencialmente geradoras de desgaste físico, desprazer e, por vezes, adoecimento.

As queixas, relacionadas nas entrevistas, dizem respeito aos problemas de falta de estrutura física, inclusive predial, do mobiliário, de equipamentos para o exercício das atividades profissionais e falta de pessoal. Devido a isso, muitas vezes, se faz- necessário procurar o apoio da prefeitura da cidade ou do tribunal de justiça.

A respeito das práticas gerencialistas por qualidade nos serviços, metas a serem cumpridas, estabelecimento de prazos para andamentos de processos judiciários, entre outras, materializadas nas exigências do CNJ, do TSE, do TCU e do próprio TRE/MA, percebe-se, avaliando as entrevistas, que tais exigências repercutem muito mais fortemente no trabalho dos servidores das zonas eleitorais que atendem ao público, que executam os processos operacionais do tribunal, do que no trabalho dos servidores da secretaria.

Resta claro, na análise das entrevistas, que muitos deles consideram úteis as exigências por um serviço de qualidade ao eleitor e as metas estabelecidas para o melhoramento do serviço. No entanto, se por um lado aumenta o trabalho e a cobrança para um melhor atendimento, por outro, não melhoram as condições para a execução do trabalho. Desse modo, enquanto a exigência por serviços de qualidade vai aumentando, a falta de pessoal e de uma estrutura mais adequada para atender tais exigências gera grande sobrecarga de trabalho. Essa questão é fonte de sofrimento e adoecimento.

Hoje, tá vindo mais serviço e diminuindo a quantidade de gente. . . Isso tá quebrando com o servidor. Isso é desesperador. Você receber aquele e-mail "tem processo parado há mais de trinta dias", quando tu tenta dar andamento, só que é humanamente impossível de tu dar o seguimento pra tantos processos ao mesmo tempo, com tantas atribuições. . . Porque assim, é cobrado da gente porque tem essa meta do CNJ, os processos não podem ficar parados por trinta dias, né?. . . E aí você começa a acordar no meio da noite lembrando que tu tem um prazo pra fazer uma delegação que um processo, não sei o quê (Analista 12).

Ao avaliar as atividades realizadas pelos analistas administrativos lotados na secretaria do tribunal, descritas pelos entrevistados, percebe-se que o trabalho realizado possui natureza mais administrativa e, em alguns casos, de apoio à prática jurídica. Portanto, em sua maioria, não trabalham diretamente com atendimento ao público e possuem melhores condições de trabalho. As fontes de sofrimento, destacadas nas entrevistas pelos servidores da secretaria do tribunal, dizem respeito à execução de atividades prescritas e rotineiras e à falta de sentido no trabalho.

Dejours, Dessors e Desriaux (1993) afirmam que o bem-estar psíquico provém de um livre funcionamento em relação ao conteúdo da tarefa e o perigo está na repressão e na subutilização das aptidões. Se o trabalho favorece esse livre funcionamento, ele será fator de equilíbrio, se ele se opõe, será fator de desprazer, sofrimento e doença.

Desse modo, um trabalho rotineiro, repetitivo, ou que impossibilite que o trabalhador invista seu desejo nele, quer dizer, um trabalho onde a via de descarga psíquica está fechada, se transforma em fonte de tensão, sofrimento e desprazer, gerando fadiga, fraqueza orgânica ou falta de ânimo e, a seguir, a doença.

A partir da análise das falas dos entrevistados observou-se que é comum que o analista administrativo seja colocado para realizar atividades rotineiras, restritas, atividades administrativas de escritório, que o impede de lançar mão de alternativas criativas e inovadoras. Não raramente, ocupa parte importante do seu tempo na reprodução de despachos formais em processos administrativos, na alimentação mecânica de sistemas, ou gerando informações para processos, o que leva a um sofrimento constante na realização de suas atividades, segundo diversos entrevistados.

As entrevistas mostram, também, que a percepção de falta de sentido no trabalho é comum. Dejours (1992), afirma que o trabalho precisa fazer sentido para o próprio sujeito, para seus pares e para a sociedade – isto é fundamental. Importante ressaltar que, conforme argumentos de Dejours, Dessors e Desriaux (1993), quando o desempenho das funções se confunde com a simples execução de procedimentos prescritos, o trabalhador tem suas atividades suspensas, contrariadas ou impedidas, podendo ficar reduzido a uma simples peça de engrenagem, certamente a atividade laboral não cumprirá sua função psicológica, o que gera grande desprazer e sofrimento, comprometendo a saúde do trabalhador.

Assim, muitos entrevistados afirmam não ter motivação para realizar suas atividades na secretaria do TRE/MA ou para contribuir com ideias novas, sentem-se, "sufocados" pela organização do trabalho, o que é agravado pela falta de perspectiva de crescimento profissional e de reconhecimento da gestão quanto ao trabalho realizado – causas de sofrimento e desprazer comuns ao trabalho de analistas administrativos da secretaria e das zonas eleitorais.

Em relação à falta de reconhecimento por parte da gestão, é relevante observar, conforme relatado por Dejours (2011a), que, tirando os indolentes e desonestos, os que trabalham se esforçam por fazer o melhor, investindo no trabalho muita energia, paixão e investimento pessoal, portanto, é justo que essa contribuição seja reconhecida. Quando o reconhecimento não ocorre, quando a contribuição passa despercebida em meio à indiferença geral ou é negada pelos outros, isso acarreta um sofrimento perigoso para a saúde mental. Nesse sentido, o reconhecimento não pode ser considerado uma reinvindicação secundária dos trabalhadores, pois é decisivo na dinâmica da mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade no trabalho, que se denomina comumente de "motivação no trabalho".

O trabalho é mais que retribuição financeira, ou seja, não se trabalha somente pela sobrevivência, trabalha-se pela realização pessoal e constituição da identidade: "O trabalho é ainda um mediador essencial da construção da identidade psicológica" (Dejours, 2011c, p. 208).

É na dinâmica contribuição e retribuição que o trabalho ganha ressignificação, sendo capaz de gerar vivência de prazer. Conforme Mendes (2007), a subjetividade entra no processo dinâmico de prazer-sofrimento exigindo do trabalhador "o processo de atribuição de sentido construído com base na relação do trabalhador com sua realidade do trabalho, expresso em modos de pensar, sentir, agir individuais e coletivos" (p. 30). Dessa forma, se tem viabilizado por essa mobilização a dinâmica de reconhecimento que, por sua vez, é "um modo específico de retribuição simbólica dada ao sujeito como compensação por sua contribuição aos processos da organização do trabalho, pelo engajamento da subjetividade e da inteligência" (Mendes & Duarte, 2013, p. 19).

O reconhecimento passa pela reconstrução rigorosa dos julgamentos. Esses julgamentos dizem respeito ao trabalho realizado. . . O julgamento de utilidade, proferido essencialmente pelo outro na linha vertical, ou seja, pelos superiores hierárquicos e os subordinados. . .; e o julgamento de estética, proferido essencialmente na linha horizontal, pelos pares, pelos colegas, pelos membros da equipe, pela comunidade (Dejours, 2011b, pp. 86-87).

Importa destacar que os analistas administrativos das zonas eleitorais se referem, especificamente, à falta de reconhecimento pela gestão do tribunal, e não ao reconhecimento do seu trabalho por parte dos usuários do serviço – os clientes –, algo que contribui sobremaneira para a construção de sua identidade e do sentido do seu trabalho, e que será tratado posteriormente.

Desse modo, os processos de reconhecimento do TRE/MA são deficitários. A falta de reconhecimento pela gestão impede os processos de atribuição de sentido e fortalecimento da identidade no trabalho. Os servidores sentem que as suas contribuições para a organização do trabalho não são reconhecidas.

Às vezes você tem raiva. . . Mas, motivação? Não. Motivação não. Porque eu gostaria de ter um canal pra ter o meu trabalho reconhecido. Fazer alguma coisa que fosse reconhecida. Qual é o estímulo que você tem?. . . Isso incomoda? Incomoda! Sério. Isso é muito chato! São essas situações, assim, de não reconhecimento. De trabalho. E tudo (Analista 4).

É claro que existem exceções, analistas que relataram que conseguiram certo reconhecimento do seu trabalho ao se mobilizarem para superar as dificuldades, mas a grande maioria dos analistas relata a falta de reconhecimento como fonte de desprazer e sofrimento no trabalho. Percebe-se que o reconhecimento se dá em ocasiões pontuais, esporádicas, não como algo que acontece rotineiramente.

Conforme mencionado anteriormente, o sofrimento pode tomar vários caminhos, isto é, pode seguir o caminho do adoecimento, o destino de doença, ou até mesmo de enfrentamento e ressignificação levando a uma prática de experiências prazerosas, conforme será visto à frente, no tópico que trata da busca de vivências de prazer e sentido na atividade laboral.

Dejours (2011a) apresenta o conceito de "normalidade sofrente", pois a normalidade não implica a ausência de luta (individual e coletiva) contra o sofrimento no trabalho, mas pode ser interpretada como o resultado de uma composição entre o sofrimento e a luta (individual e coletiva).

Desse modo, constata-se que, apesar da exposição às vivências de sofrimento, a maioria consegue manter uma "normalidade sofrente" resultante da luta contra a desestabilização psíquica provocada pelas adversidades do contexto de trabalho.

As estratégias de defesa como alternativa frente ao sofrimento

Diante das adversidades do trabalho, as estratégias de defesa funcionam como uma alternativa paliativa ao sofrimento e ao desprazer. Segundo Dejours (2011d), quando a dinâmica do reconhecimento se encontra paralisada, isto é, quando o sofrimento não pode mais ser transformado em prazer e não se consegue mais encontrar sentido, isso é capaz de gerar acúmulos que levarão o trabalhador a uma dinâmica patogênica de descompensação psíquica ou somática. Nesse contexto, entre sofrimento e doença, podem intercalar-se as estratégias defensivas.

Desse modo, na falta de reconhecimento os indivíduos, engajam-se em estratégias defensivas para evitar o adoecimento. Portanto, essas estratégias funcionam como uma alternativa paliativa com sérias consequências para a organização do trabalho, que corre o risco de paralisia, uma vez que as estratégias se limitam a negar ou minimizar a percepção de situações desprazerosas: "a operação é estritamente mental, já que ela geralmente não modifica a realidade de pressão patogênica" (Dejours & Abdoucheli, 1994, p. 128).

A partir da análise do material pesquisado foi possível identificar o emprego de comportamentos defensivos nas mais diferentes situações.

Uma estratégia de defesa muito comum no TRE/MA, entre os analistas administrativos, é a racionalização. Foi comum, na fala dos analistas, atribuir as mazelas por que passam as características próprias do setor público. Assim, se há falta de perspectiva de crescimento profissional ou de conseguir uma função comissionada, se não conseguem mobilizar as pessoas nos projetos, ou se não conseguem fazer com que seu trabalho se torne mais interessante, se não conseguem se desenvolver profissionalmente, racionalizam e aceitam tal condição alegando que isso acontece não porque não são capazes, mas por conta das características intrínsecas do próprio serviço público, e que não conseguirão mudar tal estrutura.

Se por um lado essa racionalização ajuda os servidores a evitarem o sofrimento, a se resignarem e aceitarem a dinâmica da organização, por outro lado nos levam a adotar uma postura passiva, de acomodação e apatia, que passa a ser útil para a organização do trabalho, uma vez que suas práticas deixam de ser questionadas e passam a ser aceitas, de certa maneira, como naturais da administração pública. Mendes (2007), tratando sobre a racionalização, afirmou que o trabalhador, ao utilizar essa estratégia de defesa, evita o adoecimento alienando-se das causas do sofrimento e não age sobre a organização, impossibilitando as mudanças da situação vigente.

Vale destacar que, segundo Dejours e Abdoucheli (1994), muitas vezes, o desânimo, o desencorajamento e o desengajamento são defesas utilizadas devido ao fracasso de certas situações de negociação da organização real do trabalho, impedindo o sujeito de transformar ou elaborar suas vivências e, assim, de ter condições de propor e conduzir ações adequadas, com vistas a transformar a organização do trabalho.

Desse modo, como forma de evitar o contato com o sofrimento e na ânsia de se protegerem de experiências frustrantes na sua atuação profissional, é comum alguns analistas administrativos demonstrarem comportamentos de descrença, de renúncia à participação e indiferença. Portanto, optam por se recolher, recuar, ficando à espera de ordens, de comandos e, se fechando, restringem-se, assim, à execução de tarefas prescritas. Isso fica claro na fala de um dos analistas, ao falar sobre o que acontece com alguns colegas:

Querem se limitar. Não querem dar algo a mais. . . Quer dizer, não querem inovar em nada. . . Eu trabalho, se me derem um trabalho. Se não me derem nada eu fico aqui fingindo. Fico aqui sem fazer nada, porque não me dão nada pra fazer. Se me dizem pra fazer isso, eu faço só isso. . . Vou fazer só o meu trabalhinho aqui. E só isso. Mas agora, também, a culpa é do próprio serviço público. . . Não tem o estímulo. E eu, por conta dessa questão, acho que até tão certos mesmos. De eu usar o pouco tempo que eu tenho aqui livre, Eu vou pegar meu livro e estudar. Entendeu? Eu acho que termina sendo por aí (Analista 4).

Fica claro, na análise das entrevistas, que os analistas administrativos procuram vários caminhos para lidar com seus sofrimentos. Por vezes, assumem posturas de indiferença, acomodação e apatia diante das adversidades, em determinadas situações, relativizam as dificuldades, ou chegam mesmo a negar a existência de desprazer no exercício das atividades profissionais. Em algumas circunstâncias, conseguem identificar brechas que favorecem o encontro de algum sentido e prazer no cotidiano laboral, temática do próximo tópico.

O analista administrativo na busca de vivências de prazer e sentido na atividade laboral

No que se trata do prazer no trabalho dos analistas judiciários (área administrativa), convém relembrar o cuidado de não se abordar o prazer e o sofrimento no trabalho como mutuamente excludentes. A atividade laboral, segundo a psicodinâmica do trabalho, pode ser, ao mesmo tempo, fonte de prazer e sofrimento, o que implica em uma contradição guiada por um movimento de luta do trabalhador para busca constante de prazer e evitação do sofrimento, com a finalidade de manter seu equilíbrio psíquico. Essa dinâmica é responsável pela saúde do trabalhador, significando que não é a simples existência do prazer ou do sofrimento o indicador de saúde, mas a diversidade das estratégias que podem ser utilizadas pelos trabalhadores mediante situações geradoras de sofrimento e transformá-las em situações geradoras de prazer.

Desse modo, o dia a dia dos analistas administrativos, apesar dos dissabores, é também permeado por situações gratificantes e pela conquista de algum sentido no exercício do seu labor.

Em relação ao trabalho realizado nas zonas eleitorais, percebe-se que, apesar de todas as dificuldades relacionadas à distância da família e às estruturas das cidades e dos locais de trabalho, a atividade laboral é realizada com prazer, sendo motivo de satisfação, contribuindo para a construção da identidade e trazendo sentido para a vida dos trabalhadores.

Conforme Mendes (2007), o saudável está relacionado ao enfrentamento das pressões e imposições do trabalho que causam a instabilidade psicológica, tendo lugar o prazer quando as condições geradoras de sofrimento podem ser transformadas. E é isso o que acontece nas zonas eleitorais.

A análise das entrevistas mostra que mesmo com todas as dificuldades enfrentadas nas zonas eleitorais relativas à falta de estrutura e de pessoas, os analistas administrativos das zonas eleitorais conseguem encontrar prazer em sua prática, pois conseguem intervir diretamente na organização do trabalho daquele local fazendo uso de sua inteligência prática3 e conseguindo observar os resultados de seu trabalho. Conseguem, assim, transformar o trabalho em algo equilibrante, que possibilita a descarga da energia pulsional, conseguem adaptá-lo aos seus anseios, concretizando suas aspirações, suas ideias, sua imaginação, o que ajuda na construção do prazer.

O trabalho que eu gostei mais foi o tempo que eu trabalhava na zona, mesmo. Eu era o chefe de cartório. Eu tinha uma liberdade maior de imprimir, vamos dizer, minha sistemática de trabalho. Foi uma sistemática de trabalho que deu resultado. Eu tenho muita tranquilidade de dizer isso. . . Então, podia fazer da forma que eu queria. Tive resultados muito positivos. E apesar de que foi a época, o local, onde, vamos dizer, eu tive maior carga de trabalho. Muito processo, era muito eleitor, era muito serviço, era muita demanda. Eu vi que foi um trabalho que deu resultado. Eu conseguia enxergar um resultado. Direto. Eu consegui ver um resultado. Trabalhei. Pronto. Eu gostei muito do trabalho, eu acho que essa amplitude que eu tive na época, com o juiz foi muito salutar, pra mim como profissional e consegui ver bons resultados, lá, na época (Analista 4).

Outro elemento gerador de prazer nas atividades dos analistas das zonas eleitorais diz respeito à percepção de um fim útil de suas atividades, de um fim social, que contribui para a construção do sentimento de que o trabalho tem sentido e valor em si mesmo.

Percebe-se, pelas entrevistas, que o reconhecimento do trabalho pela população usuária dos serviços, os clientes, é um dos maiores fatores de satisfação e prazer no trabalho, de acordo com os analistas das zonas eleitorais. Os sentimentos de prazer dizem respeito à satisfação em "servir" o outro, ao emprego de sua capacidade técnica e de sua mobilização subjetiva para atender de forma eficaz e satisfatória a demanda do trabalhador.

As fontes de prazer no trabalho dos analistas administrativos das zonas, nesse sentido, estão atreladas, portanto, ao reconhecimento dos usuários do serviço. A compensação de todo investimento físico e psíquico do trabalhador no ato de trabalhar é encontrado no reconhecimento dos clientes, o que permite justificar o amor pelo trabalho em um ambiente estressante, sem condições estruturais e, na maioria das vezes, longe da família.

Dessa forma, o reconhecimento do trabalho é fundamental para a construção de identidade do trabalhador. Na dinâmica do reconhecimento nas zonas eleitorais, o reconhecimento conferido pelos usuários do serviço é relativo à gratidão e à ajuda. Os servidores atribuem prazer ao trabalho quando lhe é reconhecida sua utilidade, sentem que contribuíram efetivamente com o cliente. É uma das vias de satisfação no trabalho, pois o reconhecimento se inscreve no campo simbólico, não sendo somente da ordem de gratificações financeiras.

Dessa maneira, confirma-se que o trabalho, assim como pode ser fator de sofrimento é, ao mesmo tempo, mediador de saúde e bem-estar, aumentando a resistência do sujeito ao risco de desestabilização psíquica e somática (Dejours & Abdoucheli, 1994). Gernet (2010) destaca que a dinâmica do reconhecimento do trabalho participa da realização do ser no campo social, permitindo entender, de forma particular, como, graças ao trabalho, alguns indivíduos conseguem consolidar a própria identidade e conjurar, por vezes, durante a vida inteira, o risco de adoecimento.

Destarte, encontra-se, em algumas falas, a importância do trabalho e do reconhecimento como fundamentais para o equilíbrio e o não adoecimento de alguns analistas administrativos das zonas eleitorais:

Eu cheguei aqui com uma expectativa assim, de não me adaptar direito, até por conta da distância de casa. Mas depois que eu comecei a trabalhar, aí a coisa ficou totalmente diferente, porque não foi só assim. Existia a saudade de casa, mas a realização profissional. Eu me sentia assim, útil. Eu me senti como se eu tivesse realizada profissionalmente, entendeu? Então, foi muito bom. Eu lidei com o público, pessoas carentes, eu acho que isso foi fundamental pra minha adaptação aqui (Analista 10).

No que diz respeito ao trabalho dos analistas administrativos da secretaria do Tribunal, percebe-se que um dos elementos geradores de prazer acontece quando sentem que conseguiram produzir algo útil, quando se sentem produtivos, isto é, quando há o engajamento físico e psíquico na realização da tarefa, a mobilização subjetiva, a inteligência, direcionados para o confronto com os constrangimentos da organização do trabalho.

Eu gosto do trabalho, sinto satisfeito. Gosto de pensar "ah, tem que dar uma solução aqui, nesse caso complexo". Eu gosto disso. "Ah, lá, eu tô com um problema aqui, vou ter que dar uma solução a esse processo". Gosto de pegar processo complicado. . . Me dá prazer, realmente, produzir um bom trabalho. Saber que ele tem resultado prático, positivo. A questão é: eu poder fazer, eu digo, um canal de levar minha ideia. Isso me dá prazer (Analista 4).

Já entre os elementos geradores de prazer dos analistas das zonas eleitorais e da secretaria estão as questões do relacionamento interpessoal e do bem-estar trazido pela estabilidade financeira advinda do serviço.

No que diz respeito ao prazer nas relações interpessoais no ambiente de trabalho, ele comparece bastante nas falas dos sujeitos pesquisados. Para alguns, as amizades feitas entre os servidores servem de apoio e estímulo para as horas difíceis. Os relatos falam sobre a importância das amizades e de como os relacionamentos e os amigos ajudam, inclusive, na adaptação e na permanência no trabalho.

A estabilidade e a boa estrutura financeira que os analistas administrativos usufruem como servidores públicos se configuram como os aspectos mais valorizados na sua relação com o trabalho, além de funcionarem como as principais razões para o ingresso no TRE/MA.

Desse modo, a maioria dos analistas declarou que a estabilidade e o ganho financeiro, trazidos pela aprovação no concurso, contribuíram sobremaneira para programar suas vidas sem preocupações com uma possível reviravolta. Isso colaborou para a estabilização emocional, para que construíssem planos de longo prazo, para que conseguissem tempo para estabelecer relações familiares mais sólidas e para realizar outros projetos de vida pessoais ou profissionais fora do trabalho.

Percebe-se, no entanto, a questão paradoxal que a estabilidade e a rotina trazem, pois podem acarretar o desprazer e o adoecimento no trabalho – quando não permitem espaço para que o trabalhador possa se colocar, investindo sua energia pulsional –, mas, ao mesmo tempo, trazem um efeito pacificador sobre o caráter dos analistas fazendo que eles se protejam dos malefícios e do desgaste trazidos pela instabilidade do mundo do trabalho atual, em concordância com o que foi exposto por Sennet (2009): "A rotina pode degradar, mas também pode proteger; pode decompor o trabalho, mas também compor uma vida" (p. 49).

Observando-se, então, o contexto de trabalho dos analistas administrativos do TRE/MA, conclui-se que o trabalho deles é fonte tanto de prazer quanto de sofrimento. Nota-se, analisando os relatos dos entrevistados, que nos locais onde é permitido, e até exigido, que esses servidores mobilizem sua inteligência prática, e quando eles conseguem intervir de forma real na obtenção de resultados, existe maior prazer e percepção de sentido no trabalho, mesmo que em condições difíceis e precárias, como no interior do estado do Maranhão. Já quando são colocados para realizar atividades rotineiras, repetitivas, onde não há margem de autonomia de liberdade e negociação e nem reconhecimento do seu trabalho, sofrem e relatam sentir falta de sentido em suas atividades, mesmo que estejam em locais melhores, como na secretaria do tribunal, na capital do estado, que recebam o mesmo salário dos colegas das zonas eleitorais e tenham mais estrutura para trabalhar.

Dessa maneira, confirma-se que a atividade laboral pode contribuir para a construção da identidade do trabalhador, para a saúde e para a realização tanto quanto pode contribuir para o adoecimento, para o sofrimento e para a alienação, sendo que a diferença está na forma da organização do trabalho, principalmente na margem de autonomia e liberdade de negociação propiciada para o enfrentamento das adversidades do meio.

Deve-se considerar, entretanto, o caráter ativo de cada um no seu ambiente de trabalho, uma vez que o homem é, ao mesmo tempo, produto e produtor do contexto no qual está inserido. Desse modo, durante a pesquisa, pôde-se encontrar servidores que, vivenciando a mesma organização de trabalho que os colegas, lutavam para mudar as situações de sofrimento, utilizando-se de sua inteligência prática, buscando construir um sentido para seu trabalho, ou utilizando as estratégias defensivas para preservar sua saúde, assim como aqueles que estavam em sofrimento por terem passado em um concurso e não encontraram sentido, ou prazer, em suas práticas laborais.

O sofrimento no trabalho, portanto – e dependendo da forma como é vivenciado por cada um – pode levar ao adoecimento, à adoção de estratégias defensivas, como a negação deste sofrimento, ou, finalmente, ao prazer, quando o trabalhador consegue encontrar alternativas, por meio de sua mobilização subjetiva, para realizar-se profissionalmente, conforme colocado pela psicodinâmica do trabalho e confirmado por essa pesquisa.

 

Considerações finais

Diante de todo esse contexto, percebe-se a complexidade envolvida nas atividades do analista administrativo. Se por um lado é comum se pensar, até por conta da influência dos ideais neoliberais, que o servidor público é aquela pessoa que busca a estabilidade financeira e que após aprovação no concurso se acomoda, sem dar grande valor ao trabalho, esta pesquisa demonstra o contrário. O trabalho é necessário para a própria construção da subjetividade do indivíduo. Trabalhar representa uma significativa oportunidade de desenvolvimento das potencialidades humanas, atuando como uma importante fonte de autorrealização, de experiências psicossociais e de sentido de vida.

Assim, os analistas administrativos entrevistados, em sua maioria, relatam gostar de trabalhar, sentem-se frustrados quando não percebem um fim útil para seu trabalho, buscam, na maior parte das vezes, construir um sentido para o trabalho, sofrem quando não encontram prazer nas atividades que executam e procuram utilizar sua inteligência prática para modificar as situações que geram desprazer.

Fundamental, portanto, desconstruir a ideia de que toda acomodação é fruto de malandragem ou má fé dos servidores. Muitas vezes, a apatia, a falta de vontade de se desenvolver, o imobilismo, podem ser sinais de sofrimento psíquico ou até mesmo alerta de um processo de adoecimento, fruto de uma dinâmica organizacional que não dá espaço para que o servidor mobilize adequadamente sua inteligência e que não deixa a possibilidade de mudanças, de inovação, de construção de sentido, de liberdade de agir, de forma não prescritiva. É claro que existem servidores que se aproveitam da estabilidade para evitar o trabalho, mas isso não deve ser considerado regra.

Os analistas administrativos e os outros servidores não podem ser colocados à parte da dinâmica organizacional. É fundamental, para isso, a criação de um espaço de deliberação, de valorização, participação, intervenção e negociação nos seus ambientes de trabalho. A criação de espaços deliberativos implica em delegar aos trabalhadores o domínio sob a sua prática reconhecendo que o trabalhador é conhecedor dos processos do trabalho real, legitimando, assim, seu sofrimento e permitindo a ressignificação do sofrimento em prazer pelas modificações na organização do trabalho. Necessário, também, permitir mudanças significativas na organização do trabalho, abrindo espaço para o investimento de energia dos servidores, deixando que cada um imprima sua marca no próprio labor. Desse modo, o trabalho pode assumir seu sentido de conservador da saúde, passando a ser visto como fonte de crescimento, prazer e utilidade, viabilizando uma oportunidade para a atividade laboral ser um fim em si mesma, constituindo-se em uma atividade significativa para o sujeito, para o tribunal e para a sociedade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
gusassis@gmail.com
carlavazufma@gmail.com

Recebido em: 21/09/2017
Revisado em: 06/11/2018
Aprovado em: 10/11/2018

 

 

1 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão. Analista judiciário e psicólogo do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão.
2 Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora adjunta da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
3 Falar em inteligência e saber prático vai muito além do saber-fazer prático, dos conhecimentos informais e de experiências vividas. O que os diferencia é que a inteligência e a sabedoria prática se enraízam no corpo, é desde a vivência corporal do trabalho que estas vão sendo gestadas. Implicam também uma prática ardilosa, um modo astucioso de lidar com os problemas e enigmas do trabalho. Finalmente, são utilizadas em todas as tarefas e atividades para compreender aquilo que resiste às prescrições e saberes atuais e para engendrar estratégias criativas, inovadoras e engenhosas (Lacman & Uchida, 2003, p. 80).

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