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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.20 no.2 São Paulo jul./dez. 2017

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v20i2p187-201 

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v20i2p203-212

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Pobreza e cidadania no Brasil (1985-2015): olhares a partir das relações entre trabalho e educação1

 

Poverty and citizenship in Brazil (1985-2015): views from the relationship between labor and education

 

 

Fabiana Augusta Alves Jardim2

Universidade de São Paulo (São Paulo, São Paulo, Brasil)

Correspondência

 

 


RESUMO

O ensaio mobiliza contribuições dos estudos de governamentalidade para pensar as configurações da pobreza e da cidadania no Brasil, interrogadas a partir das relações entre trabalho e educação escolar no curso das transformações que o estado brasileiro sofreu nos últimos trinta anos. O objetivo é analisar as articulações entre escolarização, inserção laboral e integração social que geralmente gravitam em torno da cidadania, com importantes efeitos de subjetivação sobre as camadas populares. Nossa tese é que algumas práticas neoliberais permitiram que as racionalidades de governo que se entrecruzam no estado brasileiro alcançassem, finalmente, parcelas do povo – os pobres ativos – que até então estiveram aquém dos direitos de cidadania no país. Tratou-se de um alcance tardio e ambivalente, cujos significados sociológicos ainda precisamos compreender.

Palavras-chave: Políticas sociais brasileiras, Governamentalidade, Estado social, Escolarização, Trabalho.


ABSTRACT

From the perspective of governmentality studies, this essay analyzes how citizenship and poverty are shaped in Brazil. We examine school education and labor market through the processes of change that Welfare State has been suffering during the past three decades. We aim to highlight the specificities of Brazilian processes of citizenship in order to understand how schooling, labor insertion and social integration were put to work together, with important effects to the processes of subjectification experienced by popular classes. We intend to show that neoliberal practices were important to social policies in Brazil in the sense that they allowed Brazilian State to reach a parcel of people – the working poor – that had always been under the line of citizenship. The sociological meanings of these phenomena are yet to be fully understood.

Keywords: Brazilian social policies, Governmentality, Welfare state, Schooling, Work.


 

 

Cidadania social, pobreza e subjetividades no Brasil (1985-2015): olhares a partir das relações entre trabalho e educação

Neste ensaio, mobilizo as contribuições dos estudos de governamentalidade para compreender a configuração específica do Estado Social3 no Brasil e seus efeitos de subjetivação4 sobre as camadas populares, a partir do exame dos nexos entre políticas educacionais e mercado de trabalho, centrais na produção da experiência de cidadania, especialmente a cidadania social5. Trata-se de trabalho que registra parte de minha trajetória de pesquisa e reflexão sobre cidadania no Brasil, bem como esforços mais recentes de compreensão dos efeitos de transformações e reformas do estado empreendidas desde meados dos anos 1990 e que têm alterado profundamente as conexões de sentido entre cidadania e pobreza no país.

Para introduzir o conjunto de questões que proponho pensar, inicio por uma breve memória, que será retomada nas considerações finais. Em 2003, quando pesquisava no espaço que então abrigava o Centro de Solidariedade ao Trabalhador, localizado na região metropolitana de São Paulo6, um jovem se prontificou a falar comigo. Tiago, 26 anos, não atendia ao perfil de desempregado que eu investigava, mas insistiu: queria participar da pesquisa7. Desse modo, pela próxima hora, ouvi seu relato: a narrativa sobre seu desemprego, suas experiências precárias de trabalho, iniciadas dez anos antes, suas dificuldades de encontrar um novo posto; suas peregrinações: a rotina de acordar antes das cinco da manhã para caminhar até o Centro, poupando assim recursos da condução e tentando ser o primeiro a chegar; sobre o dia da semana que reservava – as quartas-feiras – para procurar em outros bairros e locais da região metropolitana; ouvi também sobre a ocasião em que saiu de casa com 120 cópias de seu currículo na pasta e foi de trem até uma região que fica a 55 quilômetros de sua cidade, voltando quase à meia-noite, com apenas três currículos sobrantes. Ouvi ainda sua metáfora sobre o perigo à espreita no caminho de cada desempregado, inclusive no momento da busca de emprego: a serpente venenosa, pronta para dar o bote naqueles que não suportam mais a situação de desemprego duradouro ou o ridículo das dinâmicas de grupo no processo seletivo (uma humilhação adicional, que opera como reveladora da falta de sentido do vivido).

Tantos anos passados e persiste a impressão de ainda não ter acabado de ouvir o que Tiago queria me dizer. Ainda capturam minha atenção sua fala, sua ansiedade em ser ouvido e, sobretudo, a narração dolorosa de sua errância, feita em tom de voz baixo e cadenciado, trazendo até mesmo a figura de José de San Martín e sua campanha pela libertação da América espanhola para justificar sua obstinada ação de caminhar.

Para além de sua trajetória de trabalho, em certa medida típica de trabalhadores brasileiros pobres que alternam períodos de desemprego, períodos de trabalho precário e vinculações com o trabalho formal (Guimarães, 2006), o que mais me impressionou foi o modo com que incorporou um aspecto da nova subjetividade demandada do trabalhador, presente também em outros entrevistados – sua atividade de caminhar sem descanso é reveladora por ao menos duas razões. Primeiro porque opera em si mesma uma crítica ao modo de funcionamento do mercado de trabalho: Tiago andarilhava pelo espaço da cidade mesmo reconhecendo suas parcas chances de conseguir trabalho fora de sua região8, mostrando claramente a dimensão performática da busca para a identificação do desempregado como tal (Jardim, 2009b). Pouco importava que nada resultasse, pois o que valia era a demonstração de adesão aos valores em circulação pelo mundo do trabalho, em especial às ideias de atividade e resiliência. Em segundo lugar, sua errância conferia literalidade à ideia de que o sujeito empregável é aquele disposto a se deslocar. Ao andar, ele manejava de modo radical sua consciência de que num mercado de trabalho em que as qualificações requeridas estão para além de sua escolaridade ou não contam como prometido, a possibilidade de mostrar o próprio valor só pode se fazer no trabalho. Na falta deste, há que se encontrar outras maneiras de gerir seu desempenho e, em tempos de crise, caminhar sem descanso equivale ao exercício da própria subjetividade num emprego, pois demonstra força de vontade, disciplina, disposição... a própria busca por trabalho pretendia demonstrar suas qualidades de bom trabalhador.

Foi a inquietação com essa (nova) forma de subjetivação em relação ao trabalho e o interesse de compreender as linhas de força que reestruturaram o campo de possibilidades no qual passavam a se mover os pobres ativos9 que me levou a enveredar pelo tema das práticas estatais voltadas à regulação da ausência de trabalho, colocando-me em contato com os estudos de governamentalidade. Neste ensaio, mobilizo as contribuições desse campo de estudos para pensar os significados da educação escolar no Brasil no marco da economia de relações em que foi posta no interior da configuração desse Estado Social. Isso significa que o foco não está posto na instituição escolar propriamente, mas nas práticas que a estruturam em sistema educacional, por sua vez articulado a outros focos de experiência (Foucault, 2010).

O ensaio se divide em três tempos. No primeiro, procuro delinear a escolha de tomar a cidadania liminar de pobres ativos como eixo em que se articulam as margens da prática estatal e, por decorrência, da experiência escolar e da experiência salarial no Brasil. No segundo, aponto três momentos na constituição do sistema de proteção brasileiro: os anos 1930, o pós-guerra, e a crise desse arranjo de governamentalidade, no final dos anos 1970. Finalmente, indico algumas inquietações referidas ao presente, no Brasil e na América Latina, em torno de práticas que alguns autores chegaram a apontar como pós-neoliberais10, procurando compreender a ambivalência de uma cidadania que chega a parcelas historicamente marginalizadas num momento em que o próprio pressuposto de igualdade que lhe conferia conteúdo está transformado por uma série de eventos (Lavalle, 2003). Assim, nas considerações finais busco refletir sobre os significados sociológicos das práticas adotadas por governos de esquerda latino-americanos na última década.

 

Pobres ativos e questão social no Brasil

Em texto escrito por ocasião da celebração dos cinquenta anos do livro História da loucura, de Michel Foucault, Le Blanc (2013) afirma que este "pode ser lido como uma história da pobreza na Idade Clássica" (p. 173). Ainda que reconheça que Foucault nunca chegou a se interessar por uma genealogia da questão social, Le Blanc sugere que, na obra citada, o autor teria identificado uma dissociação fundamental ocorrida na Idade Clássica: a delimitação da diferença entre loucos e pobres – figuras centrais no desenvolvimento de séries distintas de racionalidades e táticas justamente por seu lugar marginal. O asilo que permite a individualização do louco em um espaço disciplinar esteve próximo das workhouse e das instituições de assistência social apenas num primeiro momento: logo se constatou que o confinamento de mão de obra nesses espaços era demasiadamente custoso, econômica e politicamente, especialmente nos períodos de crise, e que os objetivos da exclusão do perigo interposto pelos vagabundos e da inclusão dos ociosos no trabalho não se resolviam a contento no quadro dessa tecnologia de poder (Le Blanc, 2013).

A partir desta diferença, Le Blanc destaca o lugar que o pobre passará a ocupar na administração econômica de uma nação:

Essa nova consistência econômica do pobre que conduz à reabilitação moral do pobre torna possível a dissociação entre o louco e pobre segundo o critério da empregabilidade. O pobre é empregável, enquanto o louco não. Desse modo, assim como utilizar os pobres torna-se uma fonte real da riqueza das nações, assim também o louco é aquele que é preciso separar para evitar toda confusão possível com o pobre (Le Blanc, 2013, p. 175, grifos meus).

Como nos mostrou Castel, seguindo a problematização da coesão social e da integração de parcelas de indivíduos desenraizados nos sucessivos processos de mudança social, nos séculos XVII e XVIII operou-se ainda outra dissociação, dessa vez no interior da pobreza, entre os pobres incapazes e os pobres aptos ao trabalho, a quem deveria ser garantido o direito a vender seu trabalho livremente: "A verdadeira descoberta que o século XVIII promove não é, pois, a da necessidade do trabalho mas, sim, a da necessidade da liberdade de trabalho" (Castel, 1999, p. 232, grifos no original). Castel demonstra, assim, a importância desse movimento para a modificação da economia moral do trabalho assalariado, que desliza da condição vergonhosa de dependência para definir o valor social e moral de um homem.

Podemos verificar que, no contexto da Europa dos séculos XVII e XVIII, a figura do pobre e – mais do que isso – a figura do pobre pensado como (potencial) trabalhador aparece não somente no quadro disciplinar, mas já se associa ao problema da gestão das liberdades. De fato, a empregabilidade de que fala Le Blanc é uma das dimensões a constituir desde as origens esse trabalhador apto a estar presente no mercado de trabalho, circulando como mercadoria, disponível para onde estiverem as possibilidades de trabalho.

Tal mobilidade não podia ser deixada ao acaso e, entre o final do século XIX e início do século XX, a preocupação em garantir sua ordenação será articulada aos dispositivos disciplinar e biopolítico (Foucault, 2012, 1999, 2000). A instituição escolar, ao lado das regulações sobre o trabalho (em especial a restrição ao trabalho infantil e a definição de regras de reconhecimento do desempregado como portador de uma trajetória de trabalho11), acaba por cumprir um papel importante na inscrição do novo homem moderno no corpo e na subjetividade dos pobres12. Importante sublinhar que não sugiro aqui que haja relação de subordinação entre os dois eixos de experiência, ao reconhecer sua articulação em torno de problemas comuns: cada um deles seguirá racionalidades e desenvolvimentos próprios. Em nível bastante geral, no que se refere à experiência salarial, seu desenvolvimento estará marcado pelas problematizações diversas nos campos da administração, da psicologia e dos seguros sociais; no que se refere à experiência educacional, serão as problematizações nos campos da pedagogia, da psicologia e dos direitos de cidadania que lhe darão configuração.

É somente na medida em que se encontram na origem de processos e práticas sociais que, já no século XX, se rearticularão no que chamamos de Estado de Bem-Estar ou Estado Social13 que destaco esses poucos e conhecidos aspectos em relação ao longo caminho trilhado nas sociedades europeias e ocidentais a partir das cesuras produzidas no interior da população, entre loucos e pobres e entre pobres aptos e não aptos ao trabalho. De fato, a despeito do nível de desenvolvimento econômico e social alcançado por tais sociedades14, que quase faz silenciar a tensa fronteira de delimitação dessas figuras de pobreza, a crise do arranjo do Estado Social a partir do final dos 1970 provoca o pensamento a reconhecer que a organização mesma da sociedade salarial e de suas formas de integração se fez ao custo da marginalização de parcelas da população que, reduzidas durante os "Trinta Anos Gloriosos" do pós-II Guerra, desde os anos 1980 não cessam de engrossar.

Mas se essa narrativa diz respeito ao mundo europeu, como compreender a especificidade que atravessa a experiência salarial e a experiência escolar num contexto como o brasileiro? Para compreendê-la, importa reconhecer que o feixe de problematizações que se encontra na origem de variadas práticas assumidas pelo Estado de Bem-Estar no contexto europeu é estranha às questões que estruturaram o sistema de proteção brasileiro.

Pensemos inicialmente no exemplo mais correlato, da constituição de um mercado de trabalho livre. O longo processo de metamorfose do trabalho descrito por Castel aqui se processou em outra temporalidade e sob condições diversas, que demandam a consideração das heranças das relações sociais atravessadas pela instituição da escravidão, bem como de processos de subjetivação forjados na experiência da escravização para a produção de significados do trabalho (Chalhoub & Silva, 2009; Lara, 1998). Quando a abolição da escravatura veio consolidar o movimento de libertação progressiva da mão de obra negra, já às portas do século XX, lançou ao mercado de trabalho livre, em condições profundamente desiguais, uma população em sua maioria pouco qualificada e, quando qualificada, muitas vezes preterida (Guimarães, 2011)15.

De um "não mercado de trabalho", característico do período de vigência da instituição da escravidão, em cerca de oitenta anos se passa a um incipiente e pouco regulado mercado de trabalho livre16, no qual competiam os libertos e seus descendentes e os imigrantes, tanto no campo quanto na cidade, com as evidentes tensões que daí derivavam.

Vale a pena remeter ao contexto internacional para compreender a especificidade dos termos em que a questão social será, então, formulada no país, na medida em que a coesão e a integração social serão pensadas não somente em relação à constituição do estado nacional e de um corpo de cidadãos que partilham uma identidade, mas serão formuladas também a partir de três problemas: (1) a existência de parcelas da população postas, de modo socialmente legítimo, às margens da cidadania17; (2) a ameaça da guerra social ou da revolução, decifrada na experiência europeia; e (3) a extensão do território, a dispersão e a heterogeneidade das regiões brasileiras, muitas delas rurais e sem nenhuma tradição ou instância de serviços sociais. Esses três problemas marcam a distância entre os termos e ritmos que constituíram a modernidade ocidental e aqueles que articularão a modernização brasileira. Com isso queremos sublinhar que o que chega ao Brasil sob a aura do progresso não é somente um modelo e um conjunto de instituições de organização do mundo político, do trabalho ou de educação de cidadãos das classes populares; o que chega é a configuração final (naquele momento) de séries independentes de problemas de governo, práticas e estratégias longamente forjadas na experiência europeia e inevitavelmente modificadas pelos problemas específicos que estavam postos para a constituição de uma nação de passado colonial e escravocrata.

Em outras palavras, nossa questão social se assentou em ao menos três eixos distintos de práticas (discursivas e não discursivas), que instalaram o descompasso de temporalidades heterogêneas no coração mesmo deste moderno problema da conciliação entre igualdade formal e desigualdades socioeconômicas: a democracia racial, a integração social e a violência.

 

Metamorfoses da questão social no Brasil

Um dos primeiros passos para a modificação da estrutura social brasileira no sentido de mais igualdade – ao menos no que se refere à ampliação das parcelas da população portadoras do status de cidadania18 – encontra-se na Abolição. No entanto, como apontam diferentes autores19 tal igualdade formal foi relativizada pela promessa de integração, mediada por ideologias de democracia racial, aculturação ou miscigenação, e negada na prática, remetendo-se a questões alheias à cor ou raça, como a adesão à norma disciplinar ou a qualificação profissional. As relações entre a dimensão social e a racial da questão social em territórios ex-coloniais foram articuladas de distintas maneiras e as respostas formuladas no Brasil até a pouco eram no sentido de silenciar ambas, como problema artificial e "estrangeiro" (Jardim, 2009a; Guimarães, 2012). Inegável, porém, que, a partir do final do século XIX, a dimensão social foi sendo gradualmente enfrentada de modo mais direto que a racial, a despeito da introdução de políticas sociais e sua expansão terem se realizado em períodos de suspensão dos direitos políticos (Draibe, 1993; Santos, 1979).

No início do século XX, nos espaços urbanos e em vias de industrialização, a questão social será formulada em outros termos, entendida como conjunto de problemas ligados à pobreza, às precárias condições de vida, alimentação e moradia, à insegurança do trabalho e advindas da impossibilidade de poupar. Assim, uma série de iniciativas de legislação serão propostas, ainda que raramente aprovadas por conta do conflito entre os entes federativos e sua resistência a uma regulação central.

Vale sublinhar que a "questão social" no Brasil de então concernia principalmente os trabalhadores pobres ligados à produção industrial nos centros urbanos – parcela minoritária da população. Trabalhadores rurais, biscateiros, jornaleiros, profissões que não contam com sindicatos oficiais: a parcela majoritária dos trabalhadores estará fora das margens dessa cidadania social incipiente. É a esse mecanismo de inclusão/exclusão que Santos (1979) chamará de "cidadania regulada", referindo-se ao modelo meritocrático-conservador adotado por Getúlio Vargas nos anos 1930, que vinculava posição ocupacional ao conjunto e qualidade de direitos sociais, não operando conforme um princípio redistributivo20.

Interessante notar que o Brasil optou por um modelo de regulação das relações de trabalho pautado na exaustiva codificação, ainda que reconhecesse a distância entre o ideal proclamado pela legislação e a realidade do presente21. Citando um artigo da Organização Internacional do Trabalho, de 1964, French (2001) aponta o caráter educacional da lei escrita no Brasil e outros países latino-americanos. Assim, as legislações desses países teriam um objetivo "educativo" de apontar o desejável, sinalizando na direção do progresso, do que resulta uma espécie de inflação jurídica. Na medida em que impraticáveis – seja pelos custos, seja pela impossibilidade de fiscalização –, tal modo de legislar acaba por dar ensejo a um amplo conjunto de práticas aquém da norma e do direito, além de consolidar uma cultura política que desconfia das normas, na aprendizagem cotidiana de sua flexibilidade ou disfuncionalidade.

Quando examinamos as informações relativas à trajetória das políticas educacionais no país, verificamos que essa mesma parcela de pobres ativos também estará fora das margens da cidadania social no que se refere à educação escolar. Romanelli mostra que a proporção de crianças de 5 a 19 anos matriculadas no ensino primário ou médio é de somente 9,0% nos anos 1940; vinte anos depois, o aumento é veloz, mas insuficiente: passa a 21,43% (conseguindo, assim, a proeza de triplicar o número de vagas para fazer frente a uma população que aumentou em torno de 22% no mesmo período). Apenas nos anos 1970 é que a taxa de escolarização dessa faixa etária passará dos 53,72% (Romanelli, 1980).

Isso significa dizer que dificilmente se pode imaginar que a instituição escolar ou o sistema educativo poderia produzir os mesmos efeitos de poder e subjetivação que em contextos europeus: o fato de que um esforço mais amplo de universalização do ensino, já no final dos anos 1970, tenha resultado na saída dos estudantes mais afeitos à cultura escolar do sistema público e deixado à escola a tarefa de socializar somente com recursos pedagógicos um conjunto da população cujas experiências se estruturam por fora ou nos interstícios da ordem estatal é indicador dos limites que práticas disciplinares encontram no contexto brasileiro22.

Refiro-me a tais processos no momento da introdução de várias das práticas que deram contorno à cidadania social no Brasil para destacar aspectos que, a meu ver, recomendam cautela quando se trata de pensar práticas e efeitos disciplinares ou biopolíticos, tais como tratados por Foucault, na configuração do estado brasileiro. Se, como ele sugeriu, o estado pode ser pensado como efeito móvel de governamentalidades múltiplas23, é fundamental distinguir problemas e práticas tal como se enraízam em contextos nacionais se quisermos, justamente, localizar sua diferença.

Assim, é necessário reconhecer que uma imensa parcela da população não esteve somente aquém da norma e do direito, mas aquém mesmo de práticas estatais de qualquer natureza. Basta mencionar a rarefação de instituições descentralizadas, locais, após dois longos períodos autoritários para compreender que, a despeito da adesão a um imaginário de modernidade, a subjetividade moderna ocidental, europeia, republicana, cidadã, não encontrou no Brasil os instrumentos para alcançar a população de modo geral; ou lembrar que foi apenas nos anos 1930 que se constituiu uma instituição voltada à produção de estatísticas sobre o país24; ou, ainda, mencionar a má qualidade dos registros administrativos, seja em escolas, prisões ou instituições de saúde; ou lembrar que até os anos 1990 ainda era possível encontrar diversas pessoas, mesmo no espaço urbano, sem documentos pessoais. Alguns dos dispositivos estavam aqui, é claro, mas alcançaram um subconjunto restrito da população: forjados a partir dos problemas da coesão, da igualdade e da integração social, articularam-se à experiência brasileira de modo tenso e conflituoso.

Vale remeter aqui, mesmo de passagem, à provocadora análise de Chaterjee (2004), quando distingue entre sociedade civil liberal e sociedade política para sublinhar os efeitos da estruturação de estados nacionais sobre territórios outros em relação àqueles onde a cultura política do Ocidente moderno se forjou: alcançando somente uma minoria dos que são legitimamente reconhecidos como cidadãos ou que dispõem, ao menos, das condições culturais para reivindicar a participação a partir da gramática da cidadania, a experiência estatal acaba por produzir outro tipo de subjetivação política, que ele denomina política dos governados – o repertório de ações e resistências mobilizado por parcelas da população que são alcançadas por práticas do estado menos como cidadãs do que como objetos de governo. Nesse sentido, a progressiva importância das governamentalidades sobre as práticas de soberania ou disciplinares também coloca em questão o peso da sociedade civil liberal e das instituições democráticas que a ela se articulam: para a maior parte da população global, a subjetivação política está atravessada pelo ilegal ou informal e pelo jogo de subjetivação e sujeição em torno de categorias de governo – pobres, vulneráveis, injustiçados históricos... O autor nos auxilia, assim, a deslocar algumas categorias de análise eurocentradas e compreender a especificidade dos conflitos que estruturam nossa sociedade política, na qual se movimentam a maior parte dos pobres ativos cuja experiência de cidadania tentamos compreender.

Traçadas essas linhas gerais da configuração complexa do Estado Social no país, sugiro três momentos recentes, desde o final da II Guerra Mundial, em que acredito ser possível dizer que a maquinaria escolar foi rearticulada em nova economia de relações, ligadas à experiência salarial pelo eixo da cidadania.

I – A introdução de políticas sociais e a expansão da educação escolar (1945-1970)

A partir das contribuições do campo dos estudos de governamentalidade, podemos sugerir que a arte de governo liberal vinha sendo modificada em cada contexto nacional ocidental já ao menos desde meados do século XIX: não apenas a dramatização da miséria nos espaços urbanos ocupa aí papel importante, mas também a mobilização de tecnologias de seguro como respostas possíveis para enfrentar o problema do imenso contingente de pessoas cuja vida se esgota no trabalho duro, sempre sob a ameaça de acidentes, doenças, desemprego e do envelhecimento (Ewald, 1991).

A tecnologia dos seguros nos interessa porque é o campo no qual um acontecimento fundamental tem lugar na experiência ocidental: a emergência das ideias de risco e responsabilidade, tão centrais para tornar possíveis modificações importantes no direito liberal, sendo componentes da passagem do direito de contrato a um direito operário ou direito social. As experiências da I Guerra Mundial e da crise de 1929 contribuíram para construir alguns consensos que viabilizaram reformas capazes de rearticular práticas e tecnologias de governo em torno do que, em linhas bastante gerais, chamamos aqui de Estado Social25.

A experiência de duas guerras mundiais trouxe outro progresso fundamental: um grande desenvolvimento das estatísticas, em especial sobre os recursos econômicos e humanos. É nesse contexto que podemos compreender a possibilidade do estado coordenador, levando o acompanhamento individual disciplinar a uma escala bastante diferente, propriamente demográfica e biopolítica. As teorias que defendem o papel administrador do estado encontram tal suporte empírico que levam o estatístico italiano Giorgio Mortara, contratado para ajudar na consolidação do IBGE, a afirmar com confiança que esta ciência de governo tornaria impossível um retorno ao liberalismo, na medida em que "os economistas liberais, descobrindo grau a grau, as conexões entre os diferentes elementos da vida econômica, não podiam imaginar que o resultado final de suas pesquisas culminasse na justificação da economia dirigida" (Mortara, 1939, p. 335).

No que se refere à experiência brasileira, algumas práticas de seguros foram assumidas a partir do governo de Getúlio Vargas, ainda que de modo bastante desigual, dependendo da profissão e da força do sindicato profissional, privilegiando as profissões presentes em espaços urbanos (indústria e comércio). Se olharmos para os dados sobre a urbanização, percebemos a restrição com que tais práticas alcançavam os cidadãos: somente 31,24% da população brasileira vivia em espaços urbanos em 1940, com pequeno aumento na década seguinte. Será apenas na década de 1990 que a população urbana passará dos 75,59% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2007). Na década de 1950 foram introduzidas medidas que procuravam trazer os trabalhadores rurais para o sistema previdenciário e de regulação do trabalho; no entanto, as dificuldades de fiscalização limitaram a expansão efetiva de tais direitos.

Do ponto de vista da educação escolar, a situação era um pouco diferente, embora persistissem desigualdades regionais profundas. Um dos primeiros direitos a ser reconhecido, ainda que no quadro dos direitos civis26, a experiência da cidade ampliava a demanda pelo acesso à educação escolar. Sposito (1992), por exemplo, sugere que a pressão popular acabou por expandir a rede estadual de ensino em São Paulo, tanto no nível ginasial quanto colegial – desbloqueando, na prática, a legislação que conformava caminhos que não davam acesso ao ensino superior. Ainda assim, Beisiegel (1986) aponta que, entre 1940 e 1950, menos de 1% da população brasileira estava matriculada no colegial – atual ensino médio.

Note-se que a inclusão das camadas populares na educação escolar era vista por toda uma geração de pensadores como condição fundamental da modernização do país: Luiz Pereira (1976), por exemplo, afirma o lugar da escola "como uma das agências integradoras de um ex-contingente populacional rural e semi-rural, agora citadino, na comunidade nacional brasileira" (p. 131). A escola é locus de tensão e agência de modernização – e não apenas no que se refere à população que a frequenta. De fato, Pereira se preocupará em mostrar como diretores e professores também são ressocializados como funcionários públicos no espaço da escola suburbana, confrontados pelas exigências e cobranças de uma população que se apropria dos termos de uma cultura política orientada pela ideia de cidadania. A escola pública, nesse sentido, justamente por seu caráter burocrático e disciplinar, poderia atuar como agência capaz de modificar os sujeitos, transformando-os em cidadãos no sentido preciso da sociedade civil liberal analisada por Chaterjee (2004): indivíduos modernos, dotado de razão e de uma cultura política que os levam a valorizar a burocracia no que tem de impessoalidade e no que pressupõe acerca da igualdade.

Apesar desse otimismo, o primeiro ciclo de expansão escolar já mostrava seus limites ao final dos anos 1960. Os problemas do "fracasso escolar", resultando em evasão ou repetências, e a consciência dos pais a respeito da qualidade da educação ofertada a seus filhos colocavam a questão das desigualdades no centro das reflexões, transformando a experiência escolar em eixo de reformas políticas e de lutas e resistências (Angelucci, Kalmus, Paparelli & Patto, 2004; Sposito, 2010). Em âmbito mais geral, é mesmo nos anos 1960 que o otimismo em torno da massificação escolar será colocado em xeque, pelo aparecimento de relatórios e estatísticas que comprovam a limitação do papel da escola para fazer frente às desigualdades sociais e econômicas (Brooke & Soares, 2008). Introduz-se, desse modo, um viés de desconfiança, que modifica o lugar da escola não somente no que se refere à igualdade das oportunidades escolares, mas também em relação a essa outra instituição: o mercado de trabalho. Ao articular sucesso escolar e mobilidade social, o mercado de trabalho passa a ser compreendido como espaço de veridicção do valor da escola e do diploma.

Destaco três aspectos nesse período. O primeiro se refere às frágeis condições de administração estatal no Brasil, o que certamente limita os efeitos disciplinares ou biopolíticos de suas práticas: ainda se trata de um período em que amplas parcelas da população se encontram aquém da norma e do direito e, portanto, sujeitas a outros tipos de tecnologias de poder (e, vale lembrar, especialmente durante os períodos autoritários, menos do que tecnologias de poder, falamos de repressão). O segundo se refere ao lugar que a maquinaria escolar ocupará no quadro de um estado coordenador – a despeito das parcas condições de efetivação, a regularização dos fluxos populacionais estará no horizonte de preocupações, daí o investimento (de saberes e políticas) sobre as trajetórias erráticas de trabalho ou sobre as distorções série-idade no sistema escolar. Daí também a preocupação com todas as chamadas "anormalidades" ou desvios do "caso" brasileiro: os limites à constituição de um alunado típico (e o correlato problema do "aluno trabalhador"); as altas taxas de pessoas sem acesso à escola quando crianças e a escolarização da população já em idade adulta; a espécie de aleatoriedade que marca as trajetórias ocupacionais dos pobres, sujeitas mais às injunções econômicas do que resultantes de uma racionalidade capaz de sustentar uma função econômica à escolarização. Temos aí uma imensa parcela da população brasileira, enfim, que parece refratária a qualquer tipo de ação normalizadora. O terceiro aspecto se refere ao fato, a meu ver pouco considerado, de que essas são questões que emergem do Estado Social justamente como efeitos das tecnologias de segurança que adota: a normação e normalização dos fluxos da vida (em suas dimensões escolar, ativa, biológica) são problemas de governo fundamentais para esse estado, e é nesse contexto que a instituição escolar muda radicalmente de significação. É no contexto do Estado Social e sua articulação a uma cultura do emprego (Jardim, 2009b) que as desigualdades educacionais criam efeitos tão profundos e podem ser um eixo de novas problematizações. Em certa medida, será também pela via do enfrentamento das questões que as estatísticas das desigualdades escolares revelam que as teorias de capital humano poderão engajar novas práticas de governo – em especial nos países "em desenvolvimento" (Jardim & Martins, 2018).

II – Crise de governamentalidade e neoliberalismo (1970-1996)

A massificação escolar, no contexto europeu, e a expansão escolar brasileira trazem, portanto, uma série de efeitos que serão tornados visíveis pelas estatísticas e pelas lutas sociais daqueles que, por meio delas, veem confirmadas suas experiências cotidianas de desigualdade e injustiças.

O quadro se agrava com o término de um ciclo de crescimento econômico que, na Europa e nos Estados Unidos, havia permitido a progressiva integração social de indivíduos pela via do assalariamento e da cidadania social (ainda que o caso dos Estados Unidos seja fundamentalmente diverso em relação aos países europeus). A parcela da população mais fragilmente integrada será a primeira a sentir os efeitos da mudança – e, nesse sentido, podemos compreender de que modo as estatísticas globais transtornaram a própria ideia de igualdade baseada num cidadão abstrato, universal.

A crise do arranjo do Estado Social, que sofria ataques à direita e à esquerda, abriu assim espaços para os ultrapassamentos neoliberais. Como mostrou Foucault (2008), essa arte de governo vai reorganizar completamente as relações entre estado e sociedade civil liberal, e reconstruir, no plano teórico, a impotência do estado para a condução de processos sociais e econômicos, introduzindo na máquina estatal lógicas de gestão empresarial – sem, no entanto, alterar substancialmente os limites da cidadania do ponto de vista formal.

A crise das relações salariais também contribui para reabrir o campo de possibilidades estratégicas, tanto no que impacta as bases de financiamento da proteção social quanto na pluralização de contratos de trabalho, desorganizando o fluxo da trajetória ocupacional "normal". As altas taxas de desemprego, bem como sua distribuição desigual entre setores da população, permitem que o desempregado seja figura privilegiada onde ancorar novos processos de subjetivação, referidos ao mundo do trabalho, mas, em certo sentido, independente de qualquer vínculo efetivo com ele. Castel (1987) observa com precisão que

é ainda mais importante para um profissional carente de emprego, por exemplo, reciclar a vida de modo a exercer o comando e trocar suas competências; é mesmo quase a única coisa que é possível fazer, já que ninguém sabe exatamente para qual posto novo, exigindo quais competências técnicas exatas, ele é suscetível de ser indicado. Através de diferentes tipos de estágios, o carente de emprego tornou-se assim a matéria-prima de uma nova indústria de transformação do capital humano, pois de todos os indivíduos sociais são sem dúvida os desempregados que estão mais bem colocados, se se pode dizer, para aprender a mudar, a fim de constituir uma força de trabalho completamente disponível nas condições ideais de reciclagem (p. 84, grifos meus).

Vemos, desse modo, dobrar-se novamente sobre a figura do pobre o tema da empregabilidade. O problema central, que aqui nos interessa, é que essa empregabilidade não será mais a simples diferenciação entre aptos e não aptos, com a conotação física ou psicológica que tinha no momento da separação entre Previdência e Assistência Social. As experiências escolar e salarial – para ficar apenas nessas – tornam mais complexa a distinção apto/não apto: estar apto, ser empregável, implicará ter aderido a uma série de fluxos organizados – na escola, na vida familiar, no mercado de trabalho. A parcela dos trabalhadores sob maior risco, aquela que se localiza nas margens da sociedade (transitando pelos circuitos mais frágeis do mercado de trabalho ou pelas políticas de enfrentamento do fracasso escolar), será composta por indivíduos "desviantes", cuja trajetória nem mesmo o Estado Social logrou normalizar: aqueles com escolaridade incompleta, mães ou pais solteiros, portadores de trajetórias escolares intermitentes. Será pelas bordas da escolarização e do assalariamento, nesse sentido, que se constituirá uma nova forma de subjetivação do trabalhador. Aparece, assim, um novo objeto que faz deslizar, em vai e vem, as camadas populares do terreno do perigo ao terreno do risco, com importantes efeitos sobre a própria compreensão da pobreza, das desigualdades e dos compromissos públicos que suscitam (Castel, 2010).

No que se refere ao Brasil, trata-se de período fundamental, por ter sido quando ocorreu a expansão mais veloz da cidadania social, ao menos do ponto de vista formal, incluídas aí tanto a escolarização27 quanto a relação assalariada formal28, embora ambas com fortes vieses urbanos. Ainda, nos anos 1970 e 1980, consolidam-se investimentos nas metodologias de pesquisa domiciliar em países latino-americanos e africanos, como práticas capazes de superar o obstáculo dos frouxos registros administrativos e, assim, conferir conteúdos mais precisos ao universo da informalidade (Jardim, 2009b) – um modo importante de torná-los visíveis para a ação governamental.

O período de transição democrática no país, a partir do fim da ditadura militar em 1985, tornou tais parcelas da população visíveis também em outro sentido: como o livro de Eder Sader (1995) anuncia, novos personagens entraram em cena, modificando a lógica do estado com suas pautas, demandas e, inclusive, com seus representantes eleitos. A sociedade política aparecia, assim, na cena pública, reivindicando o alargamento das fronteiras da sociedade civil liberal, para retomar os termos de Partha Chaterjee (2004) e, assim, sublinhar as possibilidades inscritas naquele momento histórico.

Embora o período fosse de crises e experimentação da cidadania política, as possibilidades estavam limitadas: se a ideia de "dívida social" apontava para o resgate de séculos de marginalização e integração incompleta, a inflação alta, a fragilidade das instâncias de administração pública e a receita das reformas de estado e de austeridade fiscal complicavam o jogo.

III – O estado alcança os pobres ativos (1996-2015)

Embora medidas de reforma do estado tenham sido introduzidas desde o governo de Fernando Collor de Mello, foi na gestão de Fernando Henrique Cardoso que mudanças importantes e mais sistêmicas foram implementadas, com novo ciclo de expansão de políticas sociais e, principalmente, com a introdução de práticas que transformaram a prática política e a prestação de serviços sociais aos cidadãos.

Alguns consensos, porém, em especial no que se refere ao enfrentamento da situação dos pobres ativos, puderam ser forjados: a ideia de que seria possível (economicamente viável, socialmente desejável, moralmente legítimo) enfrentar as desigualdades brasileiras persistentes por meio de políticas distributivas, por exemplo, se consolidam mais ou menos nesse período29. No problema expresso enquanto dilema na fórmula "dar o peixe ou ensinar a pescar?", a educação escolar será mobilizada, ao mesmo tempo, para fazer deslizar a ideia de benefício, transformando-o numa espécie de investimento de médio prazo no capital humano do país, e de gratuidade, já que a matrícula e a frequência escolares serão também contrapartidas, ativando o pobre que já não pode se inserir no mercado de trabalho.

É a gestão Lula da Silva que amplia as possibilidades de uma política dessa natureza. De fato, e articulada a outras políticas que têm como alvo e beneficiário justamente os pobres ativos (refiro-me aqui ao Benefício de Prestação Continuada, por exemplo), o Bolsa Família se afirma como um programa que transforma de maneira incisiva as relações estado – cidadão, tanto mais naqueles espaços sociais que, ao longo de décadas, permaneceram aquém da norma e do direito. As diferenças nos impactos do Bolsa Família nas zonas rurais e urbanas podem ser parcialmente compreendidas nesse sentido.

Mas, a despeito de todas as inovações e mudanças, que não são de modo algum desprezíveis, é necessário compreender de forma mais clara em que medida essa possibilidade de alcançar, pela primeira vez, essa parcela de pobres ativos se vincula às práticas neoliberais e a tecnologias de segurança e só produzem efeitos tão intensos entre nós na medida em que foram pensadas para gerir riscos em sociedades nas quais se abandona a perspectiva da igualdade. Os pobres ativos são incluídos no rol da cidadania, assim, num momento em que o cidadão que se produz está menos próximo do ideal da integração social do que da sua inclusão no jogo, isto é, da redução das políticas sociais à manutenção da competitividade do cidadão nos mercados, onde deve provar seu valor.

 

Considerações finais

Na primeira parte deste ensaio, procurei trazer as contribuições dos estudos de governamentalidade para identificar as problematizações que estruturaram os termos de nossa questão social e sugerir outra narrativa a respeito da formação das políticas sociais brasileiras: escapando de uma concepção normativa de cidadania (Lavalle, 2003), mobilizei elementos para compreender a experiência de cidadania que se conforma a partir dos efeitos das ações do estado. Tal movimento me parecia importante para sugerir que as desigualdades abissais com as quais convivemos, mesmo durante períodos democráticos, não se desdobram da ausência de estado, mas só se sustentam política e simbolicamente por meio de sua atuação – embora seja importante sublinhar que, nos períodos democráticos, o debate e a atuação de movimentos sociais se empenhe em desnaturalizar grande parte dessas desigualdades, traduzindo-a em linguagem e conflito políticos.

Na segunda parte, recorrendo à literatura no campo dos estudos do trabalho e da educação, procurei mostrar de que modo os pobres ativos, especialmente no espaço da cidade, agenciaram as políticas de trabalho e educação que foram implementadas ao longo do período tomado como referência (1985-2015). Atravessados por certo modo de armar a questão social que sobreviveu à transição democrática e a despeito de experiências concretas de injustiças ou informalidade (isto é, experiências de negação de direitos), a educação escolar e o trabalho assalariado se articularam em estratégias individuais e familiares de mobilidade, uma vez que esta aparecia como aposta para acessar integralmente o reconhecimento prometido pelo status de cidadania. Os valores e modos de vida que se apoiavam sobre estas apostas, porém, vêm sendo colocados em questão desde o final dos anos 1980, com importantes efeitos sobre os regimes de governo que disputam a subjetivação destas parcelas da população (Feltran, 2011, 2014).

Concomitantemente a tais processos, sugeri que, nas duas últimas décadas, algumas táticas destravaram o governo dos pobres ativos brasileiros. Isso significa dizer que as práticas neoliberais, adotadas no Brasil desde o final dos anos 1980 (embora limitadas pela legitimidade da imensa "dívida social" após 21 anos de ditadura militar), tornaram possível pela primeira vez que o estado tocasse o cotidiano e a vida de imensos contingentes da população que sempre estiveram aquém do direito. Assim, tais acontecimentos, no que produziram de novos objetos e superfícies de exercício do poder, têm transformado de maneira profunda a estrutura social brasileira, inclusive as relações entre estado e sociedade.

A errância de Tiago, a personagem do início do artigo, pode ser retomada agora de outra maneira: naquele momento de crise aguda, ela dizia da indefinição daqueles cujo destino parece sempre ao sabor dos ventos e que sempre foram tantos na história brasileira. Ao longo de nossa história, assim como Tiago, muitos foram postos nessa liminaridade que impelia à ritualização cotidiana do gesto de separação entre loucos e pobres e entre pobres aptos e não aptos – gestos que podem ser sintetizados em torno dos esforços de identificação à figura do "pobre, porém honesto" (Telles, 2001, p. 83).

Nesse sentido, que parte desses indivíduos tenha conseguido se retirar da luta cotidiana pela subsistência, durante alguns anos, foi sem dúvida importante. Que não tenha sido possível, por diferentes motivos, colocar em questão se era nesse rumo que desejávamos seguir, era também tarefa central para um pensamento preocupado em enfrentar o desafio lançado por Foucault há tanto tempo, a respeito dos limites da esquerda em propor uma arte governamental outra, mais ligada à sua compreensão de um modo de condução de condutas e da vida de acordo com uma intransigente vontade de liberdade. A história recente nos ensina que sem almejar ao menos uma igualdade relativa, não há liberdade – e rapidamente os parcos direitos que haviam sido conquistados são desmontados, com violência e sem horizonte de resolução pela via da integração social ou da democracia racial, termos de nossa questão social que se tornaram insustentáveis ao longo deste período democrático iniciado em 1985.

Até 2014, a estrutura brasileira parecia se transformar a ponto de justificar o comentário de Therborn, em entrevista recente, quando perguntado sobre sinais de esperança no sentido de um mundo mais igualitário hoje: "Uma esperança de curto prazo vem da América Latina. O início do século XXI se revelou um momento de igualdade na história da América Latina. Quão longe ele irá, e o quanto é sustentável são questões abertas" (Aboim, 2014, p. 732).

Apontar ambivalência no fato de que é no momento de uma transformação teórica e prática radical no que se refere à natureza do estado que, finalmente, foi possível trazer para o quadro da cidadania brasileira parcelas historicamente marginalizadas não significa negar a importância fundamental de retirar da miséria e da pobreza um contingente imenso de indivíduos. Mas, igualmente, não significa abandonar a tarefa de compreender os efeitos dessa nova configuração estratégica sobre a subjetivação dos pobres ativos, no que se refere à escola, ao trabalho ou à política.

As perguntas levantadas por Therborn são fundamentais quando vivemos a experiência, aliada ao aprofundamento de crises sociais, econômicas e políticas, de que a pressão competitiva e meritocrática faz desmoronar cada vez mais rápido os tijolos de proteção social. Mas, para respondê-las, é necessário enfrentar os limites das práticas adotadas pelos estados latino-americanos, que pareciam eficientes para reduzir as desigualdades e as misérias mais extremas, mas que – ao fim de uma década – não foram suficientes para evitar duas questões que, quando se apresentaram no continente, historicamente nos levaram ao recesso democrático (Santos, 1979): a questão da realização de uma igualdade efetiva do ponto de vista dos direitos políticos, civis e sociais e a questão da construção da legitimidade em torno da adoção de mecanismos efetivamente redistributivos.

 

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Endereço para correspondência
fajardim@usp.br

Recebido em: 30/10/2017
Revisado em: 05/11/2018
Aprovado em: 12/11/2018

 

 

1 Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp (Processo 15/97857-0).
2 Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
3 Em consonância com a perspectiva teórico-metodológica assumida, ao longo do ensaio, utilizaremos estado com letras maiúsculas somente quando fizermos referência a uma de suas configurações específicas – o Estado Social ou Estado de Bem-Estar.
4 Conforme será tratado nas páginas seguintes, as noções de subjetivação e de experiência aqui utilizadas se articulam aos estudos de governamentalidade, que se desdobram de trabalhos desenvolvidos por Michel Foucault no final da década de 1970, especialmente em seus cursos no Collège de France.
5 Refiro-me à cidadania na acepção que Procacci retira de Marshall: "cidadania como práticas concretas de governo, como necessidades e expectativas específicas, direitos e deveres, envolvendo ação pública e subjetividade" (Procacci, 2006, p. 346). Coerentemente com a perspectiva teórica adotada, é importante sublinhar que a noção de cidadania é aqui tratada em perspectiva histórica, a partir da trajetória e das práticas concretas que assumiu no Brasil (Lavalle, 2003).
6 O Centro de Solidariedade ao Trabalhador aqui referido fica em Osasco. Financiado com recursos públicos e então gerido pelo Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Osasco e Região, o Centro funciona como agência de atendimento ao trabalhador desempregado, oferecendo serviços de conciliação entre empregado e empregador, intermediação de mão de obra e cursos de requalificação profissional. Alguns anos mais tarde, o espaço passou a integrar a política municipal de emprego e renda em Osasco, passando assim a ser gerida pela Prefeitura.
7 O nome do entrevistado foi alterado.
8 A pesquisa foi realizada antes da integração dos sistemas de ônibus, trem e metrô no Bilhete Único. Em uma região metropolitana tão imensa e adensada quanto São Paulo, onde – ademais – o preço do transporte público é alto, empregadores dificilmente aceitavam contratar trabalhadores de regiões distantes, temendo o alto custo em termos monetários e em atrasos.
9 Ainda que cada vez mais difícil de estabelecer precisamente, a distinção entre pobres ativos e trabalhadores pobres parece-me bastante relevante para pensar as situações no mercado de trabalho brasileiro. Trabalhadores pobres seriam pessoas pertencentes à parcela da população ligada de forma mais ou menos permanente ao assalariamento, ainda que percebendo salários muito baixos; já os pobres ativos seriam pessoas em idade ativa, que se vinculam ao mundo do trabalho de forma errática, ao sabor das conjunturas sociais e econômicas (Maruani, 2001).
10 Alguns exemplos desse debate podem ser encontrados em French e Fortes (2012) e Sader (2013).
11 Como nota Maurice Comte (1995), até 1954 era considerado desempregado somente aquele trabalhador já portador de uma trajetória que se encontrasse sem trabalho. Apenas a partir desta data é que os jovens em busca do primeiro emprego e mulheres que se vinculam ao trabalho de modos distintos à norma salarial passarão a ser contados entre a População Economicamente Ativa. A mudança nas categorias estatísticas, assim, registra a emergência de novas práticas e eixos de subjetivação em relação ao trabalho.
12 Sobre a generalização da instituição escolar, seu papel na constituição dos estados nacionais e na produção dos cidadãos, ver Gallo (1998), Gandini (1992) e Varela e Alvarez-Uría (1992).
13 Para dizer nos termos de Robert Castel (1999).
14 Ainda que levando em conta suas variações nacionais, que certamente resultaram em arranjos de governamentalidade e subjetividades distintas.
15 Alguns autores já chamaram atenção para o fato de que diferentes nacionalidades foram sendo colocadas em uma hierarquia racial conforme sua distância em relação aos fenótipos negros e sua proximidade com o ideal de trabalhador dócil e disciplinado que se desejava, mesclando assim questões de raça e classe (Guimarães, 2012; Souza, 2012).
16 Ver Barbosa (2008), tomando como marco do início dessa construção em 1850 até seus esforços mais claros de nacionalização, nos primeiros anos de 1900, até 1930.
17 "a solidariedade social, ou seja, a promessa aberta de integração racial e étnica pela via da aculturação, substituiu o ideal de igualdade social para as massas, uma vez abolida a escravidão e instituída a República como forma de governo" (Guimarães, 2012, p. 14, grifos meus). Se a aculturação é o ideal, a manutenção de quaisquer características culturais será vista como razão legítima para a subordinação e a exclusão.
18 Ver a definição clássica de Marshall (1979).
19 Como exemplos, ver Guimarães (2012), Souza (2012) e Carvalho (2008).
20 Utilizo aqui a tipologia de Esping-Andersen (2007), pois, ainda que talvez pouco exaustiva mesmo em sua proposta de construção de tipos-ideais, parece-me bastante operacional para aprofundar as sugestões de T. H. Marshall sobre os efeitos do status de cidadania sobre a estrutura social e, inclusive, sobre a cultura política dos cidadãos. Ver também Procacci (2006).
21 Esse não era o único modelo à disposição, como revelou o trabalho de Chaves (2009): entre os funcionários do Departamento Estadual do Trabalho (DET), de São Paulo, havia consenso em torno da ideia de que um modelo de negociação, codificando as relações que já haviam se estabelecido, era preferível a uma codificação minuciosa e, por isso mesmo, impraticável.
22 A esse respeito, vale mencionar as contundentes análises de Souza (2012, 2014), em seu esforço de desvendar o enigma da relativa estabilidade de uma estrutura social e econômica assentada sobre profundas desigualdades.
23 Foucault (2008).
24 O Instituto Nacional de Estatística foi criado em 1934, instalado em 1936, e reunido em 1938 ao Instituto Nacional de Geografia, constituindo assim o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelo censo e pela produção de estatísticas de variadas naturezas.
25 Cumpre sublinhar que falo mesmo em "linhas gerais": a configuração específica que cada estado dará a essas reformas dependerá dos termos de sua questão social, das instituições até então existentes e das forças sociais em conflito (Esping-Andersen, 2007).
26 "O direito do cidadão a ter sido educado", o que inclusive justificava que o direito à educação fosse acompanhado da obrigatoriedade por parte dos pais de matricular seus filhos. Cf. Marshall (1979).
27 Romanelli (1980) aponta, a partir de dados do então Ministério da Educação e Cultura (MEC) que, em 1970, a taxa de escolarização da zona urbana era de 87,98%, enquanto a da zona rural era de 46,84%.
28 Ainda que com altas taxas de rotatividade, em especial nos anos 1970, o assalariamento formal no setor privado no final dos anos 1980 alcança seu ápice, chegando a 60,3%; daí em diante, seguirá caindo rapidamente, até 2004, quando iniciou-se uma reversão da tendência. Porém, atualmente, após a reforma trabalhista, a desregulação do mercado de trabalho volta a provocar altas taxas de desemprego e informalidade.
29 Ver Cunha (2012, p. 207 e seguintes).

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