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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.21 no.2 São Paulo jul./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v21i2p119-131 

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v21i2p119-131

ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

 

Atuação intersetorial em saúde do trabalhador: desafios e possibilidades

 

Intersectoral action in workers' health: challenges and possibilities

 

 

Maristela de Souza PereiraI,1; Karol Teixeira de OliveiraI,2; Ione Aparecida SilvaI,3

IUniversidade Federal de Uberlândia (Uberlândia, Minas Gerais, Brasil)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo são discutidas dimensões relacionadas a potencialidades e dificuldades da ação intersetorial em saúde do trabalhador, usando como ponto de partida a análise de um caso concreto, um acidente de trabalho envolvendo 14 trabalhadores, no qual tiveram importante papel: uma unidade de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, o Ministério Público do Trabalho, uma Instituição de Ensino Superior pública e os trabalhadores envolvidos. O percurso de investigação do acidente, as diversas modalidades de assistência oferecidas aos trabalhadores afetados e as medidas jurídicas, de vigilância e de educação em saúde implementadas são apresentados como subsídio às reflexões sobre a atuação intersetorial, necessária para a atenção integral e resolutiva à saúde dos trabalhadores. Os resultados mostram que a articulação local é um ponto de apoio fundamental para a efetivação das ações intersetoriais e que a participação dos trabalhadores, maiores interessados na questão, também produz efeitos importantes nesse processo. Destaca-se ainda a necessidade de que os princípios vinculados à saúde do trabalhador como política de Estado sejam efetivamente incorporados às ações do SUS, enquanto palco sistêmico da Política Nacional de Saúde do Trabalhador.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador, Intersetorialidade, Acidente de trabalho, Níquel.


ABSTRACT

This article discusses the difficulties and the potentials of intersectoral action in Workers' Health, starting by the analysis of a concrete case, a work accident which involved 14 workers, in which the National Health System (SUS), the Reference Center in Health (Cerest), the Public Labor Ministry (MPT), a public institution of Higher Education and the workers involved had important participation. The course of investigation of the accident, the various types of education provided to the affected workers and the legal measures, health and surveillance actions, are presented as contributions to the reflections on how an intersectoral action contributes to the integral and resolute attention to the workers' health. The results point to a local integration as fundamental support for the implementation of intersectoral actions and indicate the importance of the interested workers participation in this process. It also stands out the need for actions in Work Health, such as policies provided by the State, to be effectively incorporated into SUS actions, as a stage of the National Policy on Safety, Health and Environment at Workplace.

Keywords: Occupational health, Intersectoral action, Workplace accident, Nickel.


 

 

Introdução

Este artigo tem por objetivo discutir a atuação intersetorial no âmbito da Saúde do Trabalhador, enquanto pilar fundamental para a efetivação das políticas públicas relacionadas a esse campo. A atuação intersetorial é um dos pressupostos da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, e uma das condições para a obtenção de resultados positivos nas intervenções sobre os aspectos determinantes das condições de vida, saúde e trabalho, conforme preconizado na Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. A portaria define a atuação intersetorial como a articulação entre setores sociais diversos, com vistas ao enfrentamento de problemas complexos que se entrelaçam nas questões relacionadas à saúde e aos contextos de trabalho. Trata-se ainda de uma forma conjunta de intervir, de gerir e de construir políticas públicas, que deve possibilitar a superação da fragmentação dos conhecimentos e das estruturas sociais, em direção à produção de efeitos mais significativos na saúde dos cidadãos.

Como lembram Costa, Lacaz, Jackson Filho e Vilela (2013), a Saúde do Trabalhador constitui-se como um campo necessariamente interdisciplinar e pluri-institucional. Para atingir o pressuposto da atenção integral à saúde dos trabalhadores, como preconizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), as ações devem ocorrer de forma transversal, seja no âmbito intrassetorial (do próprio SUS), seja no plano intersetorial. Neste último, busca articular instituições e aparelhos sociais que lidam com essa questão, tais como as esferas do trabalho, previdência social, meio ambiente, educação, Justiça do Trabalho e do Ministério Público, dentre outros (Dias, Silva, Chiavegatto, Reis & Campos, 2011).

Considerando essas proposições, busca-se aqui discutir as possibilidades de efetivação dessas premissas na prática, tomando-se como referencial de análise um caso concreto, no qual tiveram participação diversas instâncias, contribuindo de modo articulado para a elucidação do ocorrido e para a adoção das medidas de assistência, vigilância e promoção de saúde, conforme preconizado pela Rede Nacional de Atenção à Saúde do Trabalhador (Renast), disposta pela Portaria nº 2.728, de 11 de novembro de 2009. Trata-se de um acidente de trabalho, no qual 14 trabalhadores foram contaminados por carbonato de níquel, no município de Uberlândia/MG, episódio que contou com a atuação conjunta do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest Regional) em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e instâncias do SUS.

O caso, por si só, justificaria o esforço de análise à luz dos marcos conceituais do campo Saúde do Trabalhador, pois se trata de uma ocorrência inédita, sem precedentes na literatura especializada, no que concerne ao tipo de contaminação sofrida por esses trabalhadores, posto que não há registro de casos de exposição aguda a essa substância, tal como sofrida por eles. Esse aspecto já aponta para a relevância de sua publicização científica. Entretanto, para além da singularidade do fato, este se constituiu como uma situação exemplar de atuação intersetorial por parte de diferentes setores ligados à Saúde do Trabalhador, construindo um espaço compartilhado de ações, troca de informações, estabelecimento de estratégias coletivas de enfrentamento do problema e medidas de suporte, em níveis diversos, para os trabalhadores afetados. Nesse sentido, cabe destacar metodologicamente que se trata de um estudo de caso, sendo os dados oriundos do contato profissional das três autoras com os trabalhadores, cada uma na sua área de especialidade.

Inicialmente apresentaremos o caso, descrevendo o ocorrido e contextualizando a entrada em cena das diversas instâncias participantes. Em seguida teceremos breves reflexões sobre o cenário mais amplo no qual essa história se encontra enredada, qual seja, o da precarização do trabalho sob o signo do capitalismo neoliberal. Por fim, analisaremos os aspectos emblemáticos portados pelo caso, no sentido da compreensão sobre a viabilidade e efetividade de uma atuação intersetorial.

 

Apresentação do caso

Descreveremos o caso seguindo o desenrolar dos fatos como esses foram se dando a conhecer, no intuito de levar o leitor a acompanhar o percurso vivenciado pelos atores sociais do campo Saúde do Trabalhador, como esses o percorreram. Tal proposta encontra eco em Barros e Lopes (2014), ao discutirem sobre o acesso "pelo interior" a uma realidade que perpassa o narrador e atinge assim também seus interlocutores. A descrição dos detalhes do evento também se mostra essencial para a denúncia da gravidade do ocorrido e da indiferença por parte das empresas implicadas, aspectos que, por sua vez, redundaram na exigência de maiores esforços das instâncias envolvidas na resolução do caso.

Na última semana de novembro de 2014, o Cerest Regional de Uberlândia/MG recebeu um telefonema de uma enfermeira de uma Unidade de Atendimento Integrado (UAI)4, relatando uma situação em que haviam acolhido pacientes com sintomas semelhantes e que evidenciavam conhecerem-se mutuamente, do que se concluía que havia alguma ligação entre seus problemas de saúde. A profissional entrou em contato com o Cerest para verificar, na forma de matriciamento, se era uma ocorrência para notificação no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).

A equipe de vigilância do Cerest foi até o local e deparou-se com quatro trabalhadores internados na unidade de saúde com quadros variados de problemas respiratórios. Todavia, esses se recusavam a fornecer maiores informações sobre o trabalho que haviam realizado, o local onde haviam desempenhado a atividade ou quem era seu contratante. Simultaneamente, novos trabalhadores ligados ao caso começaram a ser identificados em outras unidades de pronto atendimento, tanto em Uberlândia como em Araguari, município vizinho. No total, 14 trabalhadores estavam contaminados com alguma substância desconhecida, inclusive para eles.

Após o agravamento do quadro de saúde de alguns, com a transferência para atendimento em UTI em um hospital de referência, e devido à insistência da equipe de vigilância, alguns trabalhadores se dispuseram a dar informações, que soavam desconexas. O local que descreviam era um bairro, sem endereço. Do contratante tinham apenas o primeiro nome, mas não uma identificação comercial. A substância que haviam transportado era um "pó branco". O lugar onde haviam sido recrutados era um "ponto de chapa"5. Desvendar toda a história exigiu articulações diversas: com os próprios trabalhadores, com a família (dos que a possuíam), com os funcionários das unidades de saúde, com a Vigilância em Saúde Ambiental, com a Polícia Rodoviária e com outras entidades relacionadas à Saúde do Trabalhador, contatados para discussão do caso.

Descobriu-se que um caminhão-tanque carregado de carbonato de níquel sofrera um acidente na Rodovia BR 153, no município de Centralina/GO, próximo à cidade de Itumbiara/GO. O tanque, com mais de 26 metros, teve avarias, e o caminhão, impossibilitado de continuar viagem, foi transferido para o pátio de uma empresa intermediária no Distrito Industrial de Uberlândia, onde permaneceu até que os responsáveis pela empresa proprietária da carga e pela seguradora decidissem como seria feita a transferência do produto para outro caminhão. É quando entram em cena os trabalhadores braçais, contratados através de um terceiro, para fazer esse transbordo.

Após serem recrutados, os trabalhadores foram orientados a colocar máscara facial, macacão de polietileno, luva de borracha e bota sete léguas. Sobre o uso destes Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), os trabalhadores contaram que os receberam com indicação de que fossem usados porque o produto era "bravo demais". Nenhum treinamento ou capacitação foi efetuado e nem foram fornecidas informações adicionais sobre o produto a ser manuseado. Cabe ainda ressaltar que, segundo os trabalhadores, havia no local empregados do quadro efetivo de uma das empresas envolvidas, utilizando EPIs diferentes dos fornecidos a eles. Esses funcionários se mantiveram à distância do local do transbordo durante toda a operação, evidenciando que era de conhecimento dos contratantes a toxidade do produto.

O processo de trabalho consistiu na entrada de dois ou três trabalhadores no tanque do caminhão, os quais, com um rodo, puxavam o produto até uma das extremidades onde havia uma abertura, colocando o produto em um saco específico para coleta e transporte de materiais. Uma máquina levantava a carga até a abertura superior de outro tanque, onde dois trabalhadores faziam o esvaziamento da carga no novo tanque que posteriormente a transportaria. Como os proprietários não admitiam desperdício, o chão foi forrado com uma lona de plástico preto, para que qualquer quantidade do produto que ali caísse pudesse ser resgatado.

Conforme relatado pelos trabalhadores, a temperatura dentro do caminhão-tanque era extremamente alta, uma vez que estava a céu aberto e no mês de novembro a temperatura média na região situa-se acima dos 30º C, sem chuvas e com muito sol. Embora não tenham sido feitas aferições, estima-se que dentro do tanque, vestindo a roupa de plástico fornecida, estes trabalhadores estiveram submetidos a temperaturas inaceitáveis para um trabalho humano saudável.

O produto carbonato de níquel é um pó fino e esbranquiçado que, quando manipulado com o rodo dentro do tanque, levantava uma nuvem de poeira branca que não permitia visualizar nada ao redor. Outra característica do produto é o cheiro, referido pelos trabalhadores como insuportável. Esses fatores, somados, faziam com que eles aguentassem no máximo 20 minutos dentro do tanque, havendo necessidade de um revezamento na função desempenhada. Quando saíam do local confinado, tiravam a roupa de qualquer jeito, pois estavam empapados de suor, e iam tomar água e ar. O pátio não tinha banheiro ou pia para lavagem de mãos. Cabe destacar que todos usaram as próprias roupas por debaixo do macacão, e essas roupas foram para a casa com eles. Quando os trabalhadores começaram a se sentir mal, com dores de cabeça, náuseas e dificuldade para respirar, outra equipe foi contratada para dar continuidade ao trabalho.

Ao todo 14 trabalhadores fizeram parte diretamente dessa atividade. Em decorrência da contaminação, todos tiveram intoxicação, em diferentes graus, alguns foram entubados, um deles teve retirada parte do pulmão e dois vieram a óbito.

O acidente consistiu, portanto, em intoxicação aguda pela superexposição dos trabalhadores ao produto com o qual lidaram. A prejudicialidade desta superexposição é inequívoca. O níquel é um dos metais cancerígenos conhecidos como poluente ambiental e ocupacional. Sua extração se dá em larga escala no Brasil na região de Niquelândia/GO, onde há relatos de danos ambientais (Guedes, 2013). Na ocorrência aqui tratada, tem-se o envolvimento de uma derivação desse metal, conhecida como "carbonato de níquel", cuja carcinogenicidade é reconhecida expressamente pela legislação brasileira. A Portaria Interministerial nº 9, de 7 de outubro de 2014, que publica a Lista Nacional de Agentes Cancerígenos para Humanos (Linach), relaciona os compostos de níquel, dentre os quais se inclui o carbonato, no grupo de produtos reconhecidamente carcinogênicos para humanos. Trata-se de um metal tóxico, cuja inalação causa queimaduras no sistema respiratório, irritação gastrointestinal (náuseas, vômitos, diminuição do apetite), alergias (dermatites, asma) e diversas alterações neurológicas (vertigem, confusão mental), musculares (fraqueza, cansaço) e cardíacas (palpitações). Todos estes sintomas acometeram em algum grau os trabalhadores expostos.

Um dos médicos do trabalho atuantes no Cerest, ao tomar conhecimento do caso, assumiu a tarefa de fazer o acompanhamento da situação de saúde dos trabalhadores envolvidos. Ao fazer uma pesquisa sobre a contaminação por esse material, descobriu que não havia até aquele momento qualquer dado sobre os impactos a longo prazo em decorrência desse tipo de exposição, posto que os casos conhecidos e com acompanhamento longitudinal registrados referem-se apenas à exposição crônica ao produto, caracterizada por um contato intermitente ou repetido durante longos períodos, mas em menor concentração (Della Rosa & Colacioppo, 1993).

O grave acidente foi então noticiado pelo Cerest ao Ministério Público do Trabalho (MPT), através da Procuradoria do Trabalho no município de Uberlândia, sendo instaurado inquérito civil para apuração do caso. Além das irregularidades identificadas anteriormente pelo Cerest, tais como a exposição deliberada desses trabalhadores, ocasionada por terceiros, a um produto sabidamente perigoso, o fornecimento de EPI inadequado e a ausência de condições mínimas de segurança e higiene no local, outras foram identificadas pela engenheira perita do MPT: os trabalhadores não receberam qualquer tipo de assistência por parte das empresas envolvidas; em decorrência do acidente os sobreviventes ficaram grandes períodos sem trabalhar e sem receber qualquer remuneração, tendo em vista que a maioria não possuía vínculo empregatício, e tampouco eram segurados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Com base nessas informações, o MPT ajuizou uma primeira Ação Civil Pública (2016) em face de todas as empresas envolvidas, visando garantir melhor acompanhamento de saúde. Nesta ação, o MPT buscou a responsabilização das empresas em garantir um efetivo acompanhamento médico, especializado e não fragmentado, bem como os medicamentos necessários para tratamento da saúde dos trabalhadores. O MPT também solicitou que as empresas pagassem aos trabalhadores o valor correspondente a uma diária6 pelos dias não trabalhados em função do tratamento médico, dentre outros pedidos. Dando sequência à instrução do inquérito civil, foi elaborado parecer pelo médico do trabalho do MPT, bem como por médicos da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSC-SP), os quais realizaram, na sede da procuradoria, anamnese ocupacional com os trabalhadores que executaram aquela atividade. O laudo produzido foi fundamental ao concluir que:

O carbonato de níquel, apesar de ser um sal insolúvel, provocou um quadro de pneumopatia aguda grave com dois óbitos e a causa principal foi a condição de trabalho em espaço confinado sem a proteção respiratória adequada para esta situação, o que levou uma a superexposição aos trabalhadores. A gênese do quadro provavelmente foi um efeito sinérgico entre os íons carbonato e níquel. A absorção do níquel foi confirmada com a elevada excreção de níquel através da urina mesmo quase um mês após o episódio de exposição. Por conta do risco do aparecimento de fibrose pulmonar intersticial, câncer de pulmão e asma, e queixas dermatológicas, os trabalhadores devem ser objeto de acompanhamento de saúde nos próximos 20 anos em serviços especializados (Freitas & Buschinelli, 2016, p. 85).

Com as novas provas colhidas, outra ação foi ajuizada posteriormente (Ação Civil Pública, 2017), requerendo a condenação das empresas à adequação de procedimentos de segurança, ao pagamento de dano moral coletivo, além de danos morais individuais a cada um dos trabalhadores (ou suas famílias, no caso dos que já haviam falecido).

Após a alta hospitalar dos sobreviventes, o caso seguiu em acompanhamento pelo Cerest, com envolvimento da coordenadora, do médico do trabalho e de uma psicóloga da unidade. Esta última, nos contatos com os trabalhadores, identificou a presença de sintomas de sofrimento psíquico e, ao conversar com eles a respeito, recebeu o pedido de um acompanhamento psicológico, pois percebiam que o acidente havia "mexido com sua cabeça". Solicitaram ainda que este ocorresse preferencialmente em grupo, por reconhecerem que as problemáticas vivenciadas por eles estavam associadas ao acidente do qual todos haviam sido vítimas. A psicóloga repassou então a solicitação de atendimento a uma docente do Instituto de Psicologia da UFU, que atua com foco na Saúde do Trabalhador, através da modalidade grupal, e que já tinha outros projetos em parceria com o Cerest. Foi oferecido então o espaço de um grupo de escuta e acolhimento para estes trabalhadores, conduzido pela docente junto com duas estagiárias, na Clínica de Psicologia da UFU, durante um semestre letivo. Após o encerramento dos encontros, manteve-se o acompanhamento desses trabalhadores, através de reuniões esporádicas realizadas em conjunto com os profissionais do Cerest e também através da atuação articulada com o MPT, inclusive com o fornecimento de parecer psicológico para anexação no processo ajuizado por aquela instância.

Quanto ao andamento processual das ações judiciais, a primeira Ação Civil Pública (ACP) do MPT foi julgada parcialmente procedente em primeira instância, em 11 de fevereiro de 2016, com a condenação das empresas a diversas obrigações. Na segunda ACP, foi concedida liminar e, posteriormente, foi celebrado pelas partes acordo judicial, no qual as empresas assumiram, em síntese, os compromissos de: 1) cumprimento de diversas obrigações relacionadas à segurança nas atividades de transbordo de cargas; 2) obrigação de indenizar o dano moral coletivo, bem como danos morais individuais aos trabalhadores (no valor de R$ 80.000,00 a cada trabalhador, com a concordância dos mesmos); e 3) compromisso, de forma solidária, de promover a realização dos exames clínicos e laboratoriais necessários para avaliação e tratamento dos agravos à saúde dos trabalhadores afetados, até que seja comprovado por laudo médico que os referidos trabalhadores não possuem ou possam vir a possuir qualquer complicação decorrente da intoxicação, sob pena de multas em caso de descumprimento. Mesmo com as decisões judiciais proferidas e o acordo judicial homologado pelo juiz, foram encontradas diversas dificuldades para o efetivo cumprimento das obrigações de saúde pactuadas, conforme relatos dos próprios trabalhadores. Atualmente, o acordo judicial ainda permanece em fase de seguimento, por configurar obrigações contínuas por parte de todas as empresas compromissadas.

 

Refletindo sobre o caso: precariedade do trabalho e adoecimento

Tendo em vista a situação apresentada, mostra-se importante refletir sobre o contexto mais amplo ao qual essa se relaciona, vinculado ao levante neoliberal e seus reflexos sobre a precarização do trabalho, que possuem implicação direta nos processos de adoecimento dos sujeitos que aí se inserem. Trata-se de uma temática indissociável das políticas públicas de saúde, previdenciárias e de proteção aos cidadãos brasileiros, tal qual discutido por Bernardo e Pereira (2017).

Sabe-se que o trabalho é um mediador entre o homem e a natureza, através do qual o primeiro não só busca atender suas necessidades e luta por sua existência, mas também se inscreve no mundo como ser social. Antunes (2004, p. 7) argumenta que o trabalho é a protoforma de toda a práxis social, posto que é "a partir do trabalho, em sua realização cotidiana, que o ser social se distingue de todas as formas pré-humanas". Nesta visão, a categoria trabalho é aquela que funda o mundo dos homens, permitindo o salto ontológico que leva à constituição humana e social. Como assinalam Cohn e Marsiglia (1993), o trabalho é elemento central para a compreensão da sociedade.

Essas mesmas autoras lembram que a especificidade do trabalho humano reside na sua característica de ser "pensado" (Cohn & Marsiglia, 1993), ação proposital e consciente, de modo que, mesmo no trabalho manual, há sempre presente uma dimensão intelectual. Ao trabalhar, o sujeito transforma o mundo, ao mesmo tempo em que transforma a si próprio e constrói sua identidade social. Todavia, sob certos sistemas de produção, essa relação fica prejudicada e, ao invés de promover a criação, a realização e a saúde dos sujeitos, atua de forma contrária a estes processos: "sob o capitalismo, o trabalhador frequentemente não se satisfaz no trabalho, mas se degrada; não se reconhece, mas muitas vezes recusa e se desumaniza no trabalho" (Antunes, 2004, p. 9).

O trabalho pode ser estruturante da pessoa, mas também pode ser fonte de sofrimento. Pode promover criação ou alienação, pode ser digno ou gerar adoecimento (Dejours, 2007). O trabalho não é, por si só, nocivo ou perigoso, mas a forma como é organizado pelo homem, sim. No modo de produção capitalista neoliberal, verifica-se uma intensificação das modalidades de trabalho que são em alguma medida danosas para aqueles que a realizam, processo esse que tem sido nomeado como precarização. É consensual que sempre houve trabalho precário no capitalismo, todavia, a precarização tem deixado de ser algo residual e periférico, vem atingindo uma dimensão estrutural na contemporaneidade e assumindo um lugar estratégico e central na lógica da dominação capitalista (Antunes, 2010).

Contribui para a devastação do trabalho decente e para a assolação de postos de trabalho precarizados, um mercado altamente seletivo como o que vivenciamos, pesando sobre os trabalhadores, em especial sobre aqueles que possuem baixo poder de barganha, a ameaça do desemprego e da fome (Cohn & Marsiglia, 1993). Este contexto:

favorece simultaneamente a intensificação da dominação em que há uso de violência e o aumento da vulnerabilidade ao adoecimento, pois a falta de alternativas, nestes casos, costuma condicionar uma submissão que prolonga a situação desgastante até o esgotamento (Franco, Druck & Seligmann-Silva, 2010, p. 241).

É o que vemos relatado por esses trabalhadores, posto que, por não terem outra alternativa de sobrevivência, acabam por ter que se submeter a quaisquer atividades remuneradas que lhe são oferecidas, vivenciando cotidianamente uma subalternização e a degradação de sua saúde.

Os processos de terceirização e flexibilização dos contratos de trabalho estão entre os que mais promovem a precarização, evidenciando a liberdade que o capital possui para gerir e dominar a força de trabalho, além de transferir a responsabilidade e os custos para terceiros, como ponderam Druck e Franco (2009). Essas autoras apontam que uma das modalidades de terceirização é a subcontratação de trabalhadores autônomos, sem a existência de um contrato de trabalho formal. Tal situação coloca o trabalhador completamente à mercê da empresa contratante e promove maior exposição deste aos riscos e às condições inseguras de trabalho. Este é o caso dos trabalhadores aqui focalizados, os quais não possuíam vínculo empregatício; não foram informados sobre os perigos relacionados à atividade que desempenhariam; não receberam EPIs adequados e tampouco informações quanto ao uso correto desses; nada sabiam quanto ao produto químico manuseado e não tiveram suporte das empresas envolvidas após sua contaminação. Uma vez que não possuem trabalho fixo, empregador formal, local ou companheiros de trabalho regulares, sua sobrevivência depende das capacidades de cada um em se adaptar ao ambiente. Sua condição é de tal forma fragilizada que sua única referência são as redes sociais informais. Desse modo, quem prestou assistência aos mesmos, logo após seu ingresso nas unidades de saúde, foi um dos próprios trabalhadores, que estava em uma condição física melhor e que buscou contatar os familiares dos colegas, levando alimentos para esses, ao mesmo tempo que tentava obter algum tipo de ajuda financeira por parte da pessoa que havia contratado seus serviços.

Todavia, cabe refletir sobre a insistência inicial destes trabalhadores em proteger seu contratante, afinal ele era percebido como uma fonte para se conseguir o sustento pelo trabalho no dia a dia de chapa. Nas palavras de um desses trabalhadores, a pessoa que os contrata é o único que "garante a comida na mesa e o teto sobre a cabeça". Assim, somente quando houve óbitos e as consequências da intoxicação começaram a gerar temores é que os trabalhadores decidiram relatar o ocorrido, confrontando-se então com o descaso por parte das empresas envolvidas. Cabe destacar que o contratante imediato representa apenas uma das pontas dessa história. Na cadeia do acidente, houve o envolvimento da empresa proprietária da carga, da seguradora, da transportadora, bem como a empresa acionada para sinistro em transportes. No entanto, todas se isentaram de garantir que a atividade fosse feita com a devida segurança, já que optaram de forma deliberada pela manipulação direta do produto nocivo e perigoso e sem a utilização de qualquer tecnologia agregada.

Assim, temos a exemplaridade nesse caso, de que, embora nossa Constituição Federal (1988) em seu Artigo 1º preconize a "dignidade da pessoa humana", alguns segmentos da nossa população parecem ter negados para si o estatuto de humanos, relegados ao papel de objetos descartáveis, como lamentavelmente vemos no acontecimento narrado. Esta constatação ganha contornos ainda mais sombrios, ao considerarmos as modificações realizadas na nossa legislação trabalhista, com a promulgação da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, cujo teor atende às aspirações neoliberais, e que promove a legalização de práticas claramente atentatórias à dignidade e à saúde dos trabalhadores e trabalhadoras.

 

Analisando o caso: a intersetorialidade em ação

A partir do que foi exposto até o momento, uma primeira questão que se coloca é que o processo de identificação do acidente, suas causas, consequências e ações decorrentes, somente teve lugar em função da iniciativa da enfermeira da unidade de saúde de buscar orientação junto ao Cerest. Tal iniciativa foi possível em virtude de essa profissional ter participado de uma ação de capacitação em Saúde do Trabalhador, realizada pelo Cerest, junto à Atenção Básica no município de Uberlândia. A legislação vigente determina que a categoria trabalho seja incorporada como determinante dos processos saúde-doença dos indivíduos e coletividades, e que os conteúdos de saúde do trabalhador sejam incluídos nas estratégias formativas e de educação permanente para as equipes da Atenção Primária em Saúde, como prevê a Portaria 2.728/2009. Também é preconizada a articulação do Cerest com as equipes técnicas de saúde, para prestação de retaguarda especializada, cumprindo papel de apoio matricial a toda a rede SUS. Nesse sentido, pode-se afirmar que o Cerest atendeu ao direcionamento de educação continuada e de oferecer apoio matricial, caracterizado como um dispositivo de agenciamento de projetos terapêuticos (Campos & Amaral, 2007), elegendo prioridades, traçando planos e definindo estratégias assistenciais. Vimos no presente caso, como através do cumprimento dessas proposições legais, houve a ação integrada e exitosa entre atores do SUS e do Cerest, com resultados concretos para os trabalhadores envolvidos.

A Saúde do Trabalhador foi incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição Federal de 1988, mas, como todo processo social, trata-se de um campo ainda em construção. Em 2002, com a criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), buscou-se articular as ações e informações de saúde na interface com o trabalho, com o intuito de dar visibilidade a estas:

Conceitualmente, a Renast é uma rede nacional de informação e práticas de saúde, organizada com o propósito de implementar ações assistenciais, de vigilância e de promoção da saúde, no SUS, na perspectiva da Saúde do Trabalhador (Dias & Hoefel, 2005, p. 822).

Como apontam Leão e Vasconcellos (2011), a ideia de rede, presente na Renast, engloba a noção de vínculos, conexões, agenciamentos, articulação de pessoas e instituições, dentro de uma concepção sistêmica e que visa à caracterização de um modelo democrático, participativo e tendente à horizontalidade. O grande exemplo para esta proposta vem do próprio SUS e a busca da Renast é de que os serviços sejam complementares uns aos outros, formando um sistema e exigindo ordenação.

Nesta proposta, o Cerest deixa de ser porta de entrada, para assumir o papel de suporte técnico e científico e de polo irradiador de ações e informações, em um determinado território, conforme determina a Portaria nº 1.679, de 19 de setembro de 2002. O caso retratado neste artigo ilustra de forma prática esta proposta, pois, a partir do momento em que esta instância foi acionada pela unidade de saúde, tornou-se possível a investigação do que havia ocorrido e a notificação no Sinan, desencadeando os procedimentos de vigilância em saúde.

Tal ação coaduna-se com os apontamentos de Dias e Hoefel (2005, p. 824) de que:

Somente a partir do estabelecimento da relação entre o agravo ou doença com o trabalho e do registro no sistema de informação é possível coletivizar o fenômeno e desencadear procedimentos de vigilância que levem à mudança nas condições e ambientes de trabalho geradoras de doença.

Dentre os princípios e diretrizes que norteiam a Renast, o primeiro aponta a necessidade de uma atenção integral à Saúde do Trabalhador, englobando a atenção curativa, a prevenção e a promoção de saúde, como discutem Costa et al. (2013). Na circunstância aqui referida, uma das primeiras providências do Cerest foi o desencadeamento da ação de vigilância, seguida pela implementação de ações de assistência aos trabalhadores, proporcionando avaliação pelo médico do trabalho da unidade e busca de orientações junto a instâncias de destaque nacional, como a Fundacentro. Outra medida crucial impetrada pelo Cerest foi a denúncia do caso junto ao MPT e o contato com a universidade local, iniciando o processo de articulações que se seguiu.

No que se refere a essas instituições, ressalta-se como fundamental a atuação do Ministério Público do Trabalho. O órgão possui valioso potencial de interlocução e de implementação de medidas protetivas aos trabalhadores, expressas pela apuração das condições de trabalho nocivas, pela celebração de Termos de Ajuste de Conduta (TAC) junto aos empregadores que não atendem às normas de saúde e segurança dos trabalhadores, pelo ajuizamento de ações coletivas, ou ainda pela discussão das problemáticas laborais concretas em suas localidades, através da promoção de audiências públicas, tal qual apontado por Minayo-Gomez (2011).

Se considerarmos que os trabalhadores aqui focalizados possuem baixa escolarização, não têm nenhuma experiência profissional comprovada em carteira de trabalho e não possuem formação ou experiência especializada, vemos que apresentam, portanto, reduzida capacidade de negociação no mercado de trabalho, cabendo a eles a venda de seu trabalho braçal, onde a força física é o único requisito exigido. Desse modo, submetem-se às atividades laborais que aparecem, sem possibilidade de escolha e de questionamento das condições de trabalho, bem como da remuneração oferecida. Por outro lado, sendo o polo mais fraco nessa relação, e tendo perdido a saúde em decorrência da conduta adotada pelas empresas envolvidas no acidente, se não fosse a intervenção do MPT, restaria a eles a luta individual pela sobrevivência, nas condições ainda mais adversas nas quais foram lançados pelo adoecimento. Assim, reafirma-se a importância dessa instituição, cuja atuação comprometida com as questões de saúde dos trabalhadores e trabalhadoras coaduna-se com a defesa do trabalho decente, como preconizado pela Organização Internacional do Trabalho. Expressa ainda os princípios de fiscalização conjunta de atividades em condições insalubres e degradantes, bem como o compartilhamento e publicização das informações produzidas por cada órgão e instituição, conforme previsto na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (2012).

Há que se discutir também a participação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, através do atendimento em grupo, que se configurou como um importante locus de expressão para estes sujeitos, visto que, após o acidente, tiveram que lidar com demandas de diversas ordens, sofrendo consequências nos níveis físico, psíquico, financeiro, familiar e social (Pereira, 2018). Todos manifestavam grande preocupação com o futuro, pois foram informados pelo médico do Cerest sobre os efeitos cancerígenos da substância a que foram expostos, o que lhes tem infundido um temor intenso de desenvolverem doenças graves e também da morte. Verifica-se aqui o que Pereira (2017) aponta em termos da violência que se expressa pelo adoecimento decorrente do trabalho e pelos impactos resultantes desse processo.

Além de promover uma escuta qualificada a esses sujeitos, o espaço do grupo também oportunizou a discussão com estes trabalhadores sobre o papel desempenhado pelo trabalho na produção de seu adoecimento e a reflexão sobre as obrigações das empresas beneficiadas por seus serviços e dos direitos assegurados a eles, como trabalhadores. Além de uma ação de assistência psicológica a esses sujeitos, o grupo também pode ser compreendido como vinculado ao escopo das ações educativas em saúde, por auxiliar na ampliação da compreensão deles sobre os determinantes macrossociais envolvidos no seu processo de adoecimento. Como lembram Dias, Silva, Chiavegatto, Reis e Campos (2011), a diretriz de promoção da saúde abrange a desmistificação da visão de que o acidente e o adoecimento são inerentes ao trabalho. Nesse sentido, vemos o grupo como articulador dos princípios de assistência, educação e prevenção, todos relacionados à integralidade da saúde (Dias & Silva, 2013).

Temos então que as articulações realizadas pelo Cerest, junto à unidade de saúde, à universidade e ao MPT, demonstram ações intersetoriais que obtiveram sucesso pela pronta adesão desses órgãos.

Nobre (2003), ao discutir as dificuldades de articulação intersetorial, aponta a inexistência de uma formalização a esse respeito, em outras palavras, a falta de definição sobre o planejamento, organização e condução das intervenções intersetoriais. Nesse sentido, deve-se ponderar que já havia um contato anterior entre a psicóloga do Cerest, a professora do Instituto de Psicologia e a procuradora do trabalho, o que certamente facilitou o processo. Todavia, as relações estabelecidas entre essas três profissionais tiveram origem em outros momentos relacionados a ações em Saúde do Trabalhador, do que se depreende que a atuação intersetorial não deve ficar circunscrita a ações episódicas, sendo um projeto de construção permanente, onde as articulações vão sendo tecidas e os laços pessoais e institucionais estreitados permanentemente.

A questão da intrassetorialidade também tem sido apontada como uma das dificuldades da incorporação da Saúde do Trabalhador no SUS. Essa nova perspectiva significa romper com a cultura estabelecida, segundo a qual cada setor do sistema de saúde cuida especificamente de certas atribuições, e difundir uma nova concepção, em que todas as instâncias e esferas do mesmo possam introjetar as discussões e práticas em Saúde do Trabalhador, utilizando a capilaridade estrutural do sistema para torná-las mais efetivas (Vasconcellos & Machado, 2011).

Para tanto, alguns desafios a serem superados são o fato de a Saúde do Trabalhador ainda não ter sido plenamente incorporada na agenda de Saúde do SUS e o despreparo dos profissionais de saúde para reconhecer as questões originárias trabalho ou potencializadas por ele, nas patologias e queixas dos sujeitos atendidos, considerando sua inserção no processo produtivo.

Como lembram Dias e Hoefel (2005), o trabalhador sempre foi usuário do sistema de saúde, e a proposta da Renast é justamente resgatar esta perspectiva, de forma que os profissionais da atenção básica e das unidades de saúde possam reconhecer o trabalhador em cada cidadão que chega até o serviço. E, como mostra a experiência aqui relatada, o preparo e disponibilidade do profissional de saúde para perguntar sobre o trabalho pode fazer uma enorme diferença na condução do caso.

Vemos, portanto, que além das ações intersetoriais, também são fundamentais as ações intrassetoriais, articulações e conexões no âmbito do próprio SUS, para configurar um nível de transversalidade das práticas (Dias et al., 2011). Desse modo, cabe apontar que o Cerest também tem atuado, neste caso, junto aos equipamentos de saúde do município, com vistas ao agendamento e à agilização de exames e procedimentos necessários para o acompanhamento médico dos trabalhadores.

Por fim, um ponto importante a ser considerado refere-se à participação dos trabalhadores nas discussões e nas ações relacionadas à saúde e ao trabalho, com vistas ao resgate do protagonismo dos mesmos e ao seu reconhecimento como sujeitos ativos nas definições que incidem sobre si e seus direitos, tal como previsto na PNSTT pela Portaria 1.823/2012. Nota-se que essa participação se deu em diversos momentos: quando os trabalhadores requisitaram atendimento psicológico; em sua busca constante de informações junto às instâncias e profissionais que acompanhavam o caso; na presença maciça deles nas audiências onde eram representados pelo Ministério Público do Trabalho, bem como nos relatos acerca do cumprimento das decisões e acordo judiciais; e na rede de solidariedade que se formou entre eles, em que cada um busca fornecer informações aos outros e se auxiliarem como for possível.

 

Considerações finais

O caso aqui narrado corrobora a tese de que a precarização é resultado de um percurso histórico, onde os processos de trabalho não dependem apenas da tecnologia empregada, mas de como são organizados, em função das relações sociais dominantes na sociedade.

Vimos que o enfrentamento para as questões levantadas é possível, embora reconhecidamente não seja fácil. Muitas das dificuldades vivenciadas para a elucidação do ocorrido e para a assistência aos sujeitos foram devidas às necessidades de melhorias que ainda são requeridas no sistema de proteção à saúde dos trabalhadores como um todo, por exemplo, na correta e eficaz alimentação dos bancos de dados. Destaca-se que as situações de notificação compulsória, como no caso de acidentes de trabalho com morte, determinadas pela Portaria nº 1.271, de 6 julho de 2014, nem sempre são objeto de atenção dos profissionais de saúde que atendem os trabalhadores. Aponta-se ainda a dificuldade e a complexidade para o estabelecimento do nexo causal entre trabalho e adoecimento. Todavia, uma pergunta simples como: "com o que você trabalha?" pode ser o gatilho disparador para várias ações na atenção integral ao trabalhador adoecido ou em risco de adoecimento.

A Renast prevê o planejamento das ações em Saúde do Trabalhador, organizadas e ordenadas a partir da Atenção Básica, de forma a possibilitar o atendimento integral ao trabalhador, expresso no cuidado assistencial, vigilância em ambientes de trabalho, prevenção e educação em saúde. Para isso, o caminho passa pelo diagnóstico das situações de trabalho, pelo entendimento dos modos de organização laboral e pelos riscos a que estão expostos os trabalhadores de cada território. De posse destas informações, é possível planejar e desenvolver ações de prevenção, cuidado e recuperação da saúde, com a participação conjunta dos setores públicos.

Vimos que a articulação entre diferentes atores sociais (enfermeira de unidade de saúde, profissionais do Cerest, representante do MPT e membro de uma instituição de ensino superior) configurou em suas práticas cotidianas o que a política de Saúde do Trabalhador define como atuação intersetorial. Portanto, uma das potencialidades do caso apresentado é a construção e o estreitamento das comunicações, atividades e parcerias entre os centros de referência em Saúde do Trabalhador, os órgãos responsáveis pela fiscalização e comprimento da legislação em Saúde do Trabalhador (MPT e MTPS), as instâncias diversas de atenção à saúde no âmbito do SUS, as instituições de pesquisa e ensino, os sindicatos e outros setores afins.

Mas, fundamentalmente, há que se considerar que inerentemente a todas as ações em saúde do trabalhador existe um ator indispensável: o próprio trabalhador. Seu saber é importante, desde sua entrada na rede SUS até as discussões sobre a eliminação ou redução dos riscos, para a prevenção de acidentes e de danos à sua saúde, para a construção de projetos de promoção e educação permanente em saúde. Desse modo, pensar uma atuação intersetorial ampla deve necessariamente comportar uma articulação com os trabalhadores envolvidos, além de suas entidades representativas.

 

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Endereço para correspondência
maristela.ufu@gmail.com
karol.to@gmail.com
ioneasilva@hotmail.com

Recebido em: 19/07/2018
Revisado em: 19/04/2019
Aprovado em: 15/05/2019

 

 

1 Psicóloga, doutora em Psicologia Social, docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Graduada em Direito, mestre em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador, procuradora do trabalho do Ministério Público do Trabalho.
3 Psicóloga, mestre em Saúde e Segurança do Trabalho, coordenadora das Redes Temáticas da Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal de Uberlândia.
4 As UAIs são unidades mistas, com atendimento ambulatorial na Atenção Básica e Pronto Atendimento 24 horas, oferecendo ainda atendimento odontológico e consultas médicas especializadas.
5 Termo que designa um espaço físico onde homens são contratados informalmente para desempenhar atividades que geralmente exigem força muscular, recebendo o pagamento por hora ou dia de trabalho, e, comumente, sem nenhuma preparação específica para a realização da tarefa.
6 A diária corresponde ao valor médio de mercado recebido por esses trabalhadores por um dia de trabalho.

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