SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 número1O assédio moral no contexto universitário: o caso de uma IFES em Minas GeraisA norma de responsabilidade social e a discriminação da mulher negra no setor industrial índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.22 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v22i1p15-28 

Artigo Original

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v22i1p15-28

 

A saúde do trabalhador da educação: a experiência de constituição de Cosates como dispositivo de intervenção numa rede municipal de ensino

 

The health of the education worker: an experience of citizenship as the devices of assistance in a municipal school network

 

 

Maria Elizabeth Barros de BarrosI, 1; Hélder Pordeus MunizII, 2; Janaina Madeira BritoIII, 3

I Universidade Federal do Espírito Santo (Vitória, Espírito Santo, Brasil)

II Universidade Federal Fluminense (Niterói, Rio de Janeiro, Brasil)

III Católica de Vitória Centro Universitário (Vitória, Espírito Santo, Brasil)

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma experiência de pesquisa realizada em um município da Grande Vitória/ES no campo da educação pública, intitulada Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho. Visa a dar evidência ao modo como a pesquisa se efetivou, vislumbrando processos formativos no campo da educação com o objetivo de implantar Comissões de Saúde do Trabalhador. A proposta das comissões teve como direção metodológica as comunidades ampliadas de pesquisa para o exercício coletivo de análise da atividade docente. A direção metodológica foi a da pesquisa-intervenção e a produção de dados se efetivou a partir das narrativas produzidas nas rodas de conversa e do diário de campo. Apresenta como foram construídos esses instrumentos e ferramentas de análise para incrementar o debate sobre a saúde dos trabalhadores na Educação. Indica, ainda, o modo como a pesquisa, a partir da constituição de um fórum intersetorial buscou a experimentação da implementação de comissões de saúde do trabalhador da educação nas escolas. Os resultados indicam que a estratégia das Comissões por local de trabalho é um potente instrumento para intervir nas condições adversas de trabalho nas escolas.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador, Promoção da saúde, Educação em saúde.


ABSTRACT

This article presents a research experience made in a municipality of Grande Vitória / ES in the field of public education, entitled Training and Research Program in Health and Work. It aims at hilightimg the way in which educational processes were carried out in the field of education in the state of Espírito Santo, based on an intervention research, with the objective of implanting Workers’ Health Committees in the municipality. The proposal of the commissions was directed to the enlarged communities of research for the collective exercise of analysis of the teaching activity. Methodologi cal dire ction and data production took place through chat groups and the field diary. It presents how these instruments were built and their analysis to increase the debate about the health of workers in Education. It also indicates how research, based on the creation of an intersectoral forum sought to experiment with the implementation of health workers’ commissions on education in schools. The results show that the Commissions for Workplace strategy is a powerful tool to intervene in adverse working conditions in schools

Keywords: Workforce health, Health promotion, Health education.


 

 

Introdução

(...) O absenteísmo entre professores tem aumentado assustadoramente no município de Serra (...). A Secretaria Municipal de Educação (Sedu) pauta o aumento dos gastos com professores substitutos devido às licenças médicas. O interesse em abrir uma agenda de reuniões com a Universidade visa minimizar o quadro. Diretores de escola reivindicam que "algo seja feito com os professores diante dos inúmeros atestados médicos apresentados nas escolas". Querem soluções para acabar com o absenteísmo (...), mas a saúde como problemática ainda tende ao silêncio naquele dia de debate (Diário de Campo da Pesquisa, maio de 2013).

Esses são enunciados recorrentes na secretaria de educação de um município da Grande Vitória/ES, forma de constatação do adoecimento entre os professores e preocupação com o que se passa nas escolas. Um campo problemático se abre com a naturalização desse discurso na Rede. Um atravessamento político-institucional complexo leva a encomenda endereçada a um Núcleo de Pesquisas de uma Instituição Pública de Ensino Superior e demarca, sob o viés de uma análise institucionalista, a necessidade de elucidação da rede de saberes/práticas/ implicações constituída na institucionalização da saúde como experiência polifônica. Isso implica reafirmar que um discurso indica sua legitimidade na prática social quando se pode analisar as condições de sua emergência num campo situado de intervenção e análise (Lourau, 2014; Baremblit, 1984).

O Núcleo de pesquisa trabalha há, pelo menos, 20 anos com estudos na educação pública. Nos últimos dez, constrói vias para a implantação de Comissões de Saúde do Trabalhador (Cosat), principalmente no município de Serra/ES. Tais comissões se constituem como uma estratégia da Rede Nacional de Saúde do Trabalhador (Renast), dispositivo da Política de Saúde do Trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS). Ao serem repensadas nas particularidades do campo educacional, as Cosates problematizariam os efeitos da organização do trabalho para a qualidade do ensino e para a saúde dos trabalhadores, efeitos qualitativos advindos das lógicas de gestão e de participação decisória em vigor, bem como pauta uma agenda para a saúde do trabalhador da educação no projeto político-pedagógico das escolas da rede municipal do referido município. Ao formar comunidades ampliadas de pesquisa, fomenta-se o exercício de análise da atividade de trabalho, nesse caso, a partir da construção de ferramentas capazes de incrementar o debate sobre a promoção da saúde (Brito & Athayde, 2003). Por esta via, a perspectiva transdisciplinar adotada encorpa certa produção de subjetividade agenciada no trabalho e ativada por meio da prática de pesquisa como construção histórico-política. É a malha de acontecimentos, iniciativas sociais, produtos e provocações cognoscentes que se tornam efeitos de saúde, ali onde trabalhadores se veem interpelados a se engajar micropoliticamente nas transformações do seu cotidiano (Guattari, 2014).

Tal estratégia formativa tem como inspiração metodológica a concepção que Oddone e colaboradores (Oddone, Re, & Briante, 1981) formularam junto com o movimento sindical italiano. As Comunidades Científicas Alargadas (CCA) no local de trabalho põem em sinergia os saberes "informais" com os saberes "formais". No Brasil, preferiu-se denominar o processo como comunidade ampliada de pesquisa (CAP), ressaltando que não se trata de transformar todos em cientistas profissionais, mas que a subversão do dualismo sujeito/objeto, pode abrir a produção de conhecimento para uma experiência alargada, geradora de resultados transformadores-polissêmicos no trabalho (Brito & Athayde, 2003; Botechia & Athayde, 2008; Muniz, Brito, Souza, Athayde, & Lacomblez, 2013).

A pesquisa aqui em pauta estuda os problemas candentes dos mundos do trabalho, não realizando, porém, apenas um diagrama das mazelas e sofrimentos tão intensificados no contemporâneo, embora seja fundamental não nos alienar em relação às barbáries do capital, à reificação mercantil, aos utilitarismos e tecnocracias rasos que, principalmente, instituem práticas ainda mais colonialistas e que, reconhecemos, esterilizam a potência da ação presente e local (Benjamin, 2013). Em termos de fluxos produtivos no campo da educação básica, atentase sobremaneira para os obstáculos às ações emancipadoras, o jogo inconcluso de destruição e desmontes que, paradoxalmente, fazem terreno fértil para a criação de práticas profissionais mais potentes. Os processos de trabalho são assim abordados pela potência de agir dos trabalhadores como um caráter ontológico, histórico e impessoal (Clot, 2010). Tal visada invoca, na prática de uma pesquisa, a força política de processualizar os acontecimentos num dado território, forjando táticas de enfrentamento ao que obstaculariza a vida; indagando os modelos enrijecidos de trabalhar e dando visibilidade para as invenções do viver em determinado meio profissional. Isso implica um esforço do trabalhador em se colocar perante a prefeitura de um ou outro momento no trabalho, assim como diante da reinvenção do pensamento, ambos processos agenciados à experiência encarnada na comunidade de pesquisadores (Schwartz, 2015).

Para isso, os dispositivos criados no processo de pesquisa são usados para intervir na relação estreita entre os modelos de gerenciamento das escolas e os modos de gestão no cotidiano que geram impactos na saúde dos professores. Diferenciamos o que se chama gerenciamento como função do trabalho dos secretários, diretores e chefias, e a capacidade de gestão que é realizada pelos trabalhadores independente de funções. Estas, no cotidiano, são modalidades de relação estabelecida entre os trabalhadores, gestão conectada à ação e à tensão em jogo durante o desenvolvimento da atividade de educar.

Valorizar a potencialidade criadora que atravessa metodologias de pesquisa, sob o eixo saúde-trabalho-políticas educacionais, faz colapsar determinados modos de vida, de trabalhar e de pesquisar historicamente instituídos como formas endurecidas, fechadas, estruturadas para negar a vida em seu caráter expansivo e imprevisível. Neste artigo, apresentaremos como a criação do Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho (PFIST) colabora para atualizar transformações na paisagem composta por escolas de ensino fundamental. Acolher o problema do absenteísmo em Serra/ES para a reflexão crítica é localizar, nessa materialidade, um contraponto ao consumo da ideia centrada na patologização do trabalho educacional (Assunção & Oliveira, 2009; Rocha, Prado Filho, Boscari, Amer, & Almeida, 2017). Situamos no efeito gerado pelo absenteísmo um campo aberto a outros debates, que problematizam a natureza dos atestados como signo inconteste do adoecimento. Enfim, nossa leitura indica o absenteísmo como um analisador (Lourau, 2014) do processo na Educação básica desse município, pois ele decompõe o corpo psicofísico e instala um corpus político-subjetivo determinante em alguns processos de trabalho no ensino fundamental. Corpo que constela (Benjamin, 1994) uma paisagem em torno das Cosates e suas irrealizações. Nesse sentido, lembra a 'clínica do trabalho’: "É, mesmo, a indeterminação dos futuros em conflito na vida social, sempre plena de possibilidades não realizadas, que atravessa e circula a atividade [de trabalho], impelindo-a a se determinar" (Clot, 2010, p. 13).

 

Um Corpus no/com o território: a experiência na rede de ensino de Serra/ES

Os professores chegam às escolas saudáveis, de repente a gente vai sentindo que vão ficando debilitados, até chegarem ao ponto crítico de pedir licença (...). Coloca aí... Coloca aí na sua pesquisa, que a doença começa na sala dos professores. Adoecemos porque há muitas fofocas (Diário de Campo da Pesquisa, outubro de 2013).

Diante da voz dessa trabalhadora, Yves Clot (2010) reiteraria: "A heterogeneidade interna do sujeito, base de sua dinâmica psíquica, nunca é instalada de uma só vez. Suas fontes se deslocam. A abertura do diálogo interior não pode manter-se sem relé social que o alimenta em energia conflitante" (p. 33). Para nós, espaços e vozes que adoecem, como indica o discurso dos professores, passam a funcionar como análises em ato, conectam as produções históricoinstitucionais de uma época para, de certa forma, enfrentar a melancolia política que invisibiliza forças e que imprime clima de descrédito nos sujeitos políticos, notoriamente reduzidos ao extremo desgaste e ressentimento. Não se pode negligenciar: "Essa é a especialidade do capitalismo: criar símiles de revolta, vampirizar a força de transformação global (Safatle, 2018, p. 28).

Desde a última década do século XX, verifica-se a gradativa implantação de uma prática gerencial que diminui os recursos para a educação pública, ao mesmo tempo em que aumentam as cobranças de obtenção de uma eficiência medida por indicadores prevalentemente quantitativos. Comumente colocados como metas a serem duramente atingidas, não é incomum ver se instalar uma cultura de muita competitividade e controle no ambiente escolar, ou ainda o culto da insuficiência e do endividamento generalizado. Na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, lei n.9.394/1996, também se reproduz a racionalidade métrica que confere centralidade mercantil e empresarial aos processos de gestão do serviço público. Fala-se de uma gestão escolar baseada no gerenciamento de custos e competências, tudo, forçando a uma nova regulação educativa, colaborando com a dilatação e intensificação do trabalho docente (Assunção & Oliveira, 2009).

Entre outras questões, metas, indicadores e índices insistentemente renovados, são cada vez menos discutidos com a comunidade escolar, operando como normas externas, invasoras do cotidiano laboral e que devem ser cumpridas por esse ou aquele trabalhador, sendo assim, experimentadas como intensa situação de desrespeito e violência. Paradoxalmente, vê-se que os discursos governamentais seguem fazendo suposta valorização da autonomia das escolas e do investimento na maior qualificação do professor, ao mesmo tempo em que se vê um Estado incorporando práticas e condutas hábeis no desmonte dos movimentos reivindicatórios, por meio da fragmentação, da desarticulação e do cerceamento de tantas ações e engenhosidades micropolíticas.

A pesquisa demonstra que, quanto mais capilarizada nos territórios, nas unidades educativas e nas salas de aula, maior é o desafio de se proteger da lógica de desmobilização, maior é a incidência de uma política de controle que constrange novas formas de estar e realizar o trabalho. Ressoa do campo de pesquisa falas como essas: "O gestor atropela os docentes, mas precisam saber que não são donos da escola"; "Professores acumulam funções e, por isso, plantam uma ditadura em sala de aula"; "Não querem saber de espaço coletivo porque já se está cansado"; "Tudo é difícil para nós"; "Deveria haver mais vigília e controle para as coisas serem mais corretas"; "O adoecimento estressa também quem não pode se afastar da sala de aula"; "Quando a secretaria não manda outro profissional, adoece outro e outro dentro da escola"... Essas vozes começam a trazer fios semióticos da ampla tessitura do adoecimento. São frações de uma configuração sensível, que exercem influência para a composição de determinada corporeidade, agindo na atividade de trabalho. Corpo que é a demarcação de um tipo de círculo existencial, de crenças e percepções transmitidas pelas vozes e atitudes no ambiente laboral. A formação de uma territorialidade que precisa conectar a escola com o que se passa em outros equipamentos e forças sociais (Benjamin, 1994).

Benjamin (2013, p. 24) salienta: "As preocupações: uma doença do espírito própria da época capitalista (...) indicativo dessa consciência de culpa provocada pela situação sem saída (...) surgem da angústia provocada pela situação sem saída de cunho comunitário". A pesquisa em Serra/ES, nesse sentido, demonstrou um movimento de constituição do problema da saúde se despessoalizando, sendo sustentado no diálogo com a diversidade de personagens e saberes, atores e lugares sociais que militam no campo educacional, para apurar estratégias desnaturalizadoras e combativas, assumindo como princípio ser indigno falar pelo outro. Por isso, afirma-se instalar uma polifonia. Por isso, abordar o tema da saúde implicou considerar menos um estado essencial da doença e mais a história de um processo que explicita o fenômeno social do adoecimento, uma gênese. Lembra a epistemologia de Canguilhem (2005, p.29): [...] "não se pode recusar admitir a existência de um componente de natureza social, portanto político, na invenção das práticas teóricas atualmente eficazes para o conhecimento das doenças". Para tanto, decidiu-se acolher o imprevisível na pesquisa que se movimenta com os problemas que produz, que traceja o percurso ético-metodológico e forma pesquisadores em função "(...) da maneira pela qual um problema é colocado, das condições sob as quais um problema é determinado como problema, dos meios e dos termos de que se dispõe para colocálo" (Deleuze, 1999, p. 11).

Os pesquisadores indagaram: Que estratégias construir entre Universidade e território, de modo a constituir comunidades ampliadas de pesquisa, recusando a primazia de relações autoritárias e verticais? Como enfrentar a questão do absenteísmo sem lançar mão das habituais formas de culpabilização dos trabalhadores? Enfim, que ferramentas de pesquisa podem analisar os efeitos dos modos de vida, dos processos de gestão e de trabalho? Ao abordar franjas do processo, trazer esquinas da pesquisa, indicar lampejos subjetivantes, assim como momentos e gestualidades diante do trabalho na educação, o presente artigo assume o desafio de transmitir evidências incomuns, estas necessariamente constituidoras de efeitos de saúde/doença. Diagrama-se discursividades e dispositivos nos relatos de um diário de campo para indicar o que vai se desenhando extra-muros, perspectivando a vida na escola por suas margens, a exemplo do mapeamento inédito feito no setor de Divisão de Medicina e Segurança do Trabalho da prefeitura.

No ano de 2012, a pesquisa se aproximou de setores assistenciais de apoio ao educador, do Sindicato dos Professores do ES, do Conselho Municipal de Educação, da Associação de Pais e Alunos, atores que vivificam o território e dilatam a experiência em torno do adoecimento. Já indicamos que a pesquisa amplia a conversação, para possibilitar novos padrões de relação entre trabalhadores e pesquisadores, contribuindo para transformar ambientes de trabalho e formar subjetividades na contramão das modelizações capitalísticas contemporâneas. Ocupar equipamentos sociais é assumir o território como campo de intervenção política, que epistemologicamente faz saúde, delineando determinado movimento pela saúde. Nesse cotidiano, o serviço de perícia médica da Prefeitura não reconhece as licenças como signo de um amplo processo vivido pelo trabalhador, mas se atem ao procedimento formal de respaldo administrativo-burocrático: "O setor se percebe apagando incêndio"; "O professor é a categoria que mais faz uso da perícia médica, embora não se tenha outras informações sobre isso"; "Tem o multiprofissional no atendimento, mas periciar é passar no médico que não conversa com ninguém"; "Aqui a gente faz perícia médica do atestado, mas não tem nada a ver com a saúde"; "Somos uma divisão de apoio à saúde de trabalhadores do município, mas não fazemos a comunicação do setor com o local de trabalho onde os atestados são apresentados".

O técnico de segurança no trabalho confirma a ausência da sistematização dos registros referentes ao adoecimento dos trabalhadores (...) consegue nexos com o local de trabalho em alguns casos de doença (...) mas aponta a importância de um serviço integrado com outros setores e secretarias para visar a prevenção (Diário de Campo da Pesquisa, novembro de 2012).

Ao constituir uma comunidade ampliada de pesquisa, apostou-se que não era apenas o saber científico sobre o tema que deveria ser ampliado, mas a pesquisa enquanto prática social: tentar constituir coletivos, comissões, conselhos, a fim de qualificar o cuidado em saúde sob outras bases, menos ambulatorial, mas, de todo modo, gerando assistência. Apostamos em determinadas práticas que derivam, inclusive, de uma lógica dos afetos, e que teriam a potência de mapear junto às vozes poliqueixosas e de sofrimento individualizado, um agenciamento coletivo de enunciação com capacidade mobilizadora de ações educativas, de práticas de saúde (Guattari, 2014). Visitando escolas e realizando reuniões e oficinas com os professores, identificou-se alguns ranços e ressentimentos: "O professor é valorizado só na propaganda da mídia, na realidade temos que ter várias cadeiras para ter um mínimo de condição de vida"; "A figura do professor está desgastada, o importante para a saúde seria o resgate da imagem positiva do professor"; "Eu não aguento mais, nem a sala, nem as famílias, nem nada"; "É violência generalizada na sala e no bairro"; "Tudo pesa"; "Estamos servindo de boi de piranha, de bode expiatório para os outros da sociedade"; "Somos salvadores de nada não"; "Queremos falar, precisamos mesmo é gritar socorro". Compreendemos nesse sentido que linguagem, afeto e gesto de um ofício se entrelaçam. História profissional se alimenta de memórias coletivas. Fazer uso do recurso da história acumulada socialmente é fundamental para que a ação do trabalhador possa encontrar força inventiva. A condição social indesejada não é contexto amorfo, ela oferece uma experiência criativa diante das discordâncias e disjunções (Clot, 2010).

Indagávamos: que reflexão fazer com a escola para extrair do corpo do trabalhador, o peso de um sofrimento individualizado, isolado, e tão desconectado de uma época? Como reconstruir um processo histórico-discursivo-institucional junto com o que passa a representar um atestado, a perícia médica e o Código Internacional de Doenças (CID), que se carrega enquanto documento pessoal e/ou identidade? Em certo momento da pesquisa, após o entendimento sobre os serviços de apoio ao trabalhador da prefeitura, após reuniões com gestores da Secretaria de Educação, preocupados com a folha de pagamento incrementada pela contratação adicional de 'substitutos’, e, principalmente, após entrevistas com professores regentes de uma escola, já não era possível confirmar um adoecimento apenas pelo fato de se estar em situação de licença médica. Ao fazer falar as necessidades de um ofício, percebe-se que licenças são também estratégia de 'uma falta’, que não se tem direito em determinado momento necessário no cotidiano do trabalhador, seja diante um incidente pessoal, um luto, uma dor de barriga, afastamento para revigorar, descansar, recompor. Neste meio profissional, por vezes, há um exercício de negociação diante das obrigações compartilhadas do ofício (Clot, 2010).

A partir de nossa perspectiva, enunciados como "Eu não aguento mais, nem a sala, nem as famílias, nem nada" e "É violência generalizada" precisavam ter um acolhimento institucional a ponto de forjar políticas de cuidado. Eles nos interpelavam por mover ações que fortaleceriam o coletivo de trabalhadores no trato desse cotidiano hostil. Outro enunciado, "Queremos falar, precisamos gritar socorro" foi trabalhado pela pesquisa a partir de um movimento disperso e plural em prol das Cosates, produzindo, contudo, outra subversão: implementar as Cosates deixava de ser um objetivo em si. Na estratégia de sua institucionalização enquanto dispositivo, também a formalização das Cosates, com todas as dificuldades em sua implementação, funcionaria como processo de luta por melhores condições de trabalho, quer dizer, um dispositivo analisador dos obstáculos presentes ao desenvolvimento do coletivo de trabalhadores durante a construção de um processo de cuidado do seu ofício.

Ao longo de anos, naquele território, mudança de gestão municipal significou séria descontinuidade de articulação pela instalação de Cosates e/ou outros coletivos de trabalho nas unidades escolares. Dilemas partidários e da nova diretoria do sindicato dos professores desmontavam ora avanços de uma política interna, ora dúvidas sobre a pertinência de uma "comissão de saúde" para qualificar o diálogo da categoria com a rede assistencial. Mas, enquanto isso, o tema da saúde docente crescia nas assembleias dos trabalhadores, nos congressos profissionais municipais/estaduais, no interesse intersetorial da Secretaria Estadual da Saúde e da Fundação Jorge Duprat Figueiredo (Fundacentro), quer dizer, política educacional sendo perpassada por estratégias da segurança e da saúde do trabalhador, a partir de uma função importante disparada por esta pesquisa-intervenção (Cesar & Barros, 2015).

De forma multicêntrica, delineamos ferramentas dentro de escolas para visibilizar, com maior objetividade, como os professores percebiam o quadro de adoecimento. Estrategicamente, essa era uma forma de intensificar as forças na voz do professor e ampliar a pactuação interinstitucional pela saúde do trabalhador da educação. No entorno das escolas de ensino básico, eram feitas articulações com o Sindicato, o serviço municipal de Segurança no Trabalho, a Câmara de Vereadores, a Promotoria de Justiça; mobilizações sociais pelo fortalecimento dessas políticas impressas no cotidiano, capazes de encorpar uma rede de serviços e, portanto, de apoio, assistência e cuidado. Como ênfase na abordagem desse processo, destacaremos, a partir de agora, três momentos que consideramos diferenciados nesta pesquisa-intervenção, a saber: 1) o levantamento da situação da saúde dos docentes em Serra/ES, para fortalecer a agenda de debates sobre as condições vivenciadas nas escolas (2011); 2) o nascimento do Fórum-cosate como dispositivo de mobilização dos trabalhadores para romperem isolamentos, e poder transformar o modo de comunicar e cooperar nas escolas (2012-2016); e 3) a experimentação de um curso preparatório na temática saúde-trabalho na educação, para instrumentalizar a vivência de um projeto-piloto das Cosates em duas escolas municipais (2015).

 

Inquérito de saúde: mapeando situações e sensibilizando os educadores

Uma pesquisa perspectivada na linha epidemiológica dos inquéritos de saúde foi realizada como um gesto de leitura mais imediata sobre o estado de saúde/vida do trabalhador na rede. A ferramenta visou trazer um retrato instantâneo de como professores se percebiam, interpretavam e nomeavam sua condição de saúde/adoecimento. Utilizamos como instrumento para produção de dados o questionário Self Report Questionnaire (SRQ20), já traduzido, testado e validado em populações urbanas brasileiras. O questionário estruturado e autoaplicado levantava informações, desde aspectos sociodemográficos básicos até percepções de saúde, compondo 20 questões do tipo sim/não, das quais 4 eram sobre sintomas físicos e 16 sobre distúrbios psicoemocionais. Os docentes foram selecionados a partir de uma amostragem estatística de conveniência, com base nos dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Educação, referente ao quantitativo de 2.566 professores de ensino fundamental, efetivos e contratados no primeiro semestre do ano de 2010. 300 professores constituiriam a amostra programada. Ao final do processo, obteve-se o total de 289 participações, referente a 22 escolas do município.

Sobre as principais fontes de tensão e desgaste, destacam-se: 1) ritmo intenso de trabalho (65,7%); 2) número excessivo de alunos (61,6%); 3) estado psicológico dos alunos (56,7%); 4) tempo de descanso insuficiente (56,4%); 5) ruído nas aulas (50,9%); 6) má remuneração (48,4 %;) 7) política de gestão de educação (47,4%); 8) volume elevado de trabalho (46,4%); 9) posturas penosas e fatigantes (41,9%); 10) improviso no desenvolvimento das atividades (40,5%); carga horária (38,4%). Os professores identificam da seguinte maneira os transtornos de saúde mais incidentes: transtornos osteoarticulares (46,0%); gastrointestinais (43,3%); auditivos e garganta (40,1%); cardio-circulatórios (33,9%); mentais (28,7%); neurológicos (27%); dermatológicos (20,1%).

Recortando um segmento mais qualitativo do questionário encontraremos a pergunta: "Para que o trabalho seja realizado adequadamente, você depende de você mesmo ou depende de outras pessoas?", 75,4% dos professores consideraram depender de outra pessoa, enquanto 20,8% afirmaram depender somente deles mesmos. Contudo, do ponto de vista da qualidade dos contatos entre os trabalhadores na escola, 30,1% declaram serem insatisfatórios, 26,0% satisfatórios e 23,9% às vezes são satisfatórios, 11,4% dos docentes informaram ser muito insatisfatórios e 1,0% declararam ser ora insatisfatórios, ora muito insatisfatórios. Indicam ainda que o planejamento pedagógico está desconectado das políticas de gerenciamento educacional: 47,4% dos professores a destacam como uma das principais fontes de insatisfação.

Essas informações se mostram condizentes com outros levantamentos desta ordem, já realizados no Brasil (Rocha et al., 2017; CNTE, 2012). Contudo, na dinamização desse processo de pesquisa-intervenção em Serra/ES, tal instrumento funcionou estrategicamente como importante ferramenta de aproximação com as escolas. Mais do que isso, ele operou para disparar outras conversas com os trabalhadores, de modo a sensibilizá-los para o desenvolvimento de diferentes formas de cuidado no cotidiano. Isso porque o momento da pesquisa exigia redimensionar, junto com os professores da Rede, os atravessamentos institucionais relacionados às condições de adoecimento no trabalho; almejava-se desespecializar o problema da saúde/adoecimento e instigar o professor à análise crítica dos nexos relacionais entre processo de trabalho e produção de saúde. Isso interessava, sobremaneira, ao que estava em vias de acontecer com maior força naquele território, a saber, a possibilidade da voz do professor se encontrar com uma rede de assistência que poderia, por meio de seus agentes sociais, fomentar atividades cogestivas, programas de formação, instrumentos de apoio à atividade docente e políticas municipais em prol do cuidado em saúde do trabalhador.

 

Fórum-cosate: um coletivo ativando ações de cuidado às escolas

Em agosto do ano de 2012, uma reunião intersetorial foi proposta pelo grupo de pesquisa, com objetivo de discutir a real viabilidade da implantação de Cosates em Serra/ES, já que as tentativas anteriores foram desmobilizadas pelo executivo municipal. Construir um processo de implementação de política pública de modo participativo era fundamental. Legítimo possibilitar que o docente, conhecedor das dores e prazeres do seu fazer, fosse capaz de produzir, no diálogo com técnicos de segurança do trabalho ou da perícia, fonoaudiólogos, etc., novos conhecimentos acerca do risco no trabalho, a partir da maior visibilidade aos enfrentamentos e às resistências encontrados no cotidiano municipal.

Contudo, uma reunião prevista se transformou num espaço coletivo permanente, importante ferramenta de pesquisa: o Fórum-cosate (2012-2018). Este estava em consonância com o funcionamento da pesquisa acadêmica que não opera com a separabilidade neutra entre pesquisador e objeto pesquisado, produzindo relação lateralizada, saberes se perpassando e questionamento às hierarquias de especialidades/funções sociais. Ou seja, uma coprodução da autonomia. Forma de cogerir processos. Abertura à polissemia das participações. Esse foi o espaço de análise e intervenção no trabalho mais efetivo ao longo dos últimos anos, pois instaurou uma coletividade laboral e política, dimensionando o caráter coletivo dos problemas e colocando em análise as culpabilizações e individualizações associadas ao mal-estar sofrido pelo trabalhador (Zamboni, Szpilman, Miranda, & Barros 2013). Fórum-cosate, experiência que envolve trabalhadores, o Centro de Formação de professores, o Sindicato dos Trabalhadores em educação pública, o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, o Ministério Público estadual, bem como instâncias de controle social, Conselho Municipal de Educação, a Universidade.

O método da Roda ou Paideia (Campos, 2003) subsidiava processos dialógicos e encaminhamentos coletivos de forma a legitimar a decisão pela implementação das Cosates nas unidades escolares do município. Um diário de campo fora constituído no formato de Atas, sendo que esses dados, relativos aos encontros e às pactuações, serviam de material de análise para o caminho investigativo, assim como ferramenta de devolutiva da pesquisa. Um Boletimcosate também fora criado para ampliar o alcance do processo, restituindo informações aos trabalhadores que não estavam presentes nas reuniões mensais. A participação dos membros do Fórum-cosate em mesas, tanto de congressos científicos, quanto de congressos de Professores e Assembleias, ampliava ainda mais o alcance do debate. Insistia-se no convite à ampla participação, vejamos o Boletim:

Fique atento! Durante as reuniões do fórum-cosate-Serra, estamos discutindo a Lei Estadual 5.627/97, que criou as Comissões de Saúde do Trabalhador (COSAT) do Serviço público do Estado do Espírito Santo e o Conselho das Comissões de Saúde do trabalhador (CONCOSAT), e propondo alterações com vistas a instituir comissões de saúde na educação de Serra/ES. Essa é uma primeira rodada de debates e sugestões. Mas do que uma proposta de Lei, é um espaço de construção coletiva de dispositivos de atenção à saúde do trabalhador da educação. É muito importante que todos os interessados participem e contribuam! (Diário de Campo da Pesquisa, abril de 2013).

Assim, por meio do Fórum-cosate, novas redes foram produzindo uma comunicação mais articulada entre equipamentos e políticas públicas territoriais. O fórum, como mais uma estratégia, não se interessava pela sua formalização como sujeito jurídico, mas pelo seu desenvolvimento como política cognitiva e formativa. Uma Comissão-cosate em cada unidade escolar e um Conselho-concosate no município implicaria: 1) garantia de participação paritária do trabalhador na comissão com dispensa de carga-horária; 2) Cosate e Concosate como orgãos deliberativos; 3) autonomia na análise (mapa de risco) da saúde e na decisão de intervenções cabíveis; 4) responsabilidade perante investigação de acidentes de trabalho, inspeções, estudos epidemiológicos, avaliações ambientais e outros controles e, claro, 5) garantia da publicização do trabalho preventivo e interventivo, por meio de Atas, Semana de Saúde nas escolas, campanhas e outras atividades formativas para os trabalhadores da rede de ensino.

Em outubro de 2012, a Lei Estadual começa a ser estudada e discutida em adaptação ao município e ao campo educacional. Em setembro de 2013, o Fórum-cosate já tinha assento na Mesa de negociação sobre o Plano Nacional de Educação do Movimento Capixaba. Delibera-se sobre uma região geopedagógica do município – José de Anchieta – como área de experimentação do projeto-piloto. Em junho de 2014, o Fórum-cosate tem representação oficial na Conferência Estadual de Saúde do Trabalhador, garantindo a inclusão de um artigo sobre saúde e Cosates nas escolas no documento consolidado para a etapa nacional. O projetopiloto foi iniciado com a instituição de um curso de formação. Ocorreu, também, uma Audiência Pública sobre a Lei Cosate em Serra. Com esse movimento, o desafio continuava sendo o efeito de desmobilização das ações pela saúde, ora advindo do executivo municipal, ora advindo do esfriamento da participação direta de professores regentes de sala de aula nos debates, que tinham grande dificuldade de 'liberação para participar’.

Até o ano de 2018, quando a pesquisa redireciona a estratégia interventiva no território, as entidades de saúde, os sindicatos, coletivos do controle social, bem como os gerentes do sistema educacional continuavam com participação efetiva nos processos disparados pelo Fórum-cosate, o que garantiu, conforme defende Clot (2010): "(...) um dispositivo em que seja possível começar a pensar coletivamente o trabalho para reorganizá-lo (...) instrumento psicológico da mobilização subjetiva (...) um meio vital para apoiar uma experiência coletiva de retomada em mãos do trabalho por aqueles que o fazem" (p. 85).

 

Curso-cosate: formação em saúde no projeto-piloto

A formação para intervir na problemática da relação saúde-trabalho na escola é um desafio. Acompanhar a implantação das Cosates nas unidades escolares, negando a formação tecnocrata e afirmando o método da cartografia das potências do trabalho (Barros & Silva, 2013), no sentido da promoção de saúde, exigiu tecnologias singularizadas por esta pesquisaintervenção. Uma reunião do Fórum-cosate, exclusiva com diretores das escolas da região escolhida para o projeto-piloto, acontece para disparar a capilarização dessa ampla experiência territorial. Outras reuniões trabalhavam a sensibilização dos trabalhadores para um ergoengajamento (Schwartz, 2015). Acontece o processo de candidatura e eleição para as comissões do projeto-piloto em uma escola de educação infantil e uma de ensino fundamental. Para isso, foram feitas negociações com a Secretaria de Educação na liberação dos trabalhadores para as atividades, garantindo 4 horas semanais (fora da sala de aula) para realizar o trabalho de formação. A Secretaria de Educação financiou extensão de carga horária a outros docentes, que assumiram as turmas dos regentes enquanto estes estavam em situação de curso.

Como processo de trabalho e aprendizagem são indissociáveis, adotou-se metodologias ativas e interventivas, a partir da dinâmica de encontros presenciais e de atividades de dispersão, estas realizadas pela Cosate na escola e orientadas por um agente formador. A matéria era a própria vivência dos membros da Cosate em suas atuações com a equipe escolar, conectando temas como: 1) o Projeto de Lei, o funcionamento de comissões de saúde do trabalhador e outras legislações pertinentes; 2) trabalho, saúde e meio ambiente; 3) mapa de risco e segurança em ambiente laboral; 4) rede territorial, etc. Essa formação implicou mapear situações concretas no ambiente escolar para apoiar os debates conceituais nas aulas presenciais, assim como fazer uso de conceitos para catalisar experiências dialógicas novas nas duas escolas envolvidas no projeto-piloto.

Observamos que essas comissões elaboravam estratégias para ampliar o fluxo comunicativo nas escolas, investindo no coletivo de trabalhadores, criando instrumentos de trabalho e produzindo diagnóstico quanto a fatores que geram nocividades. Houve construção de um objeto final do curso, a saber, um plano de ação para cada escola. Algumas atitudes iam se modulando, já que as queixas, sempre presentes nos encontros, mudavam de enfoque e intensidade. Para essas comissões-piloto, houve apropriação das discussões. Houve garantia de espaço-tempo na escola para lateralização da análise e reorganização de aspectos pontuais do trabalho. Mesmo não se tratando da ênfase dada neste artigo, confirmamos, como indicadores de resultado do processo investigativo, as narrativas dos trabalhadores que indicavam maior confiabilidade nas mudanças, tais como: "Mesmo em turnos, convivendo '3 escolas em 1’ é possível criar o encontro"; "A gente tem de virar cachorro grande"; "[...] o prazer que a gente sente quando o menino não lê nada e de repente, começa a ler tudo"; "[...] o nosso bem-estar físico, mental e social depende das nossas ações, da não aceitação de coisas que são impostas e nos fazem mal"; "A gente, dos anos iniciais, achava que vocês, do fundamental, não gostavam de se misturar..."; "A gente nunca se falou, antes desta vivência de Cosate, mas não é porque a gente não se gosta. É que a gente não tem tempo nem para respirar, quem dirá para conversar". Enfim, a experiência piloto de um trimestre em escolas da rede de ensino de Serra/ES confirmou dois aspectos prevalentemente. Neste meio profissional, as Cosates se efetivam como: 1) dispositivo de conversação e 2) instrumento de gestão do trabalhador. (Brito, Freitas e Chambela, 2015) A capilarização do processo se efetivou com a constituição de uma comissão de regulamentação, nomeada pelo prefeito, para que a experiência fosse multiplicada em outras escolas da rede. No momento, duas outras escolas estão experimentando o processo e dois cursos de formação foram desenvolvidos para preparar outras escolas para que a implantação das comissões seja realidade na rede num processo que se pretende multiplicador.

 

Considerações Finais

Reduzir o fenômeno do adoecimento de professores a uma axiomática biologicista, ainda que esta contemple o diagnóstico de algumas das situações conhecidas, produz uma leitura que tende a individualizar o problema. A sensação de impotência, quer dizer, de que os trabalhadores nas escolas têm pouco a fazer com o que desafia o campo educacional, engendra outras fragilizações que tanto pesam o corpo do trabalho, quanto enferruja as engrenagens sociais a ele vinculadas. Contudo, o que as políticas públicas engendram deve considerar efeitos dignos para a vida desses trabalhadores, o que será possível se esse processo não for paralisado. Junto a eles é fundamental assumir a criação de novas vias de ação e reflexão crítica, instrumentalizações novas e, principalmente, o enfrentamento deste contemporâneo hábil em produzir consumos: de imagens, estigmas, diagnósticos e identidades estanques.

Ronda uma espécie de ressentimento social e também a naturalização de terrorismos, racismos e outras lógicas sectárias. Um sistema de difusão e gestão do medo. Sobre esse efeito de cultura, Safatle (2018) recentemente alertou: "O descontentamento e o desencanto quanto às possibilidades de realização de si oferecidas pela vida social são atualmente os afetos fundamentais de socialização" (p. 34). Por isso, para nós, fortalecer grupalidades, fundamentadas na valorização de situações singulares e na experiência sensível dos trabalhadores, foi o caminho de aposta para ampliar a compreensão sobre o vivido no trabalho, garantindo o que nos desafiou Benjamin (2013), ou seja, a tentativa de forjar "uma saída de cunho comunitário" para o que preocupa, assola, desgasta, despotencializa. Isso não é banal. Na atualidade, "Somos socializados por meio não da partilha de expressões positivas de expectativa de realização social, mas da produção de nosso desencanto e de sua inscrição no imaginário social" (Safatle, 2018, p. 34).

Metodologicamente, em termos da realização de pesquisa em ciências humanas e sociais, práticas, dispositivos e instrumentos precisam estar em consonância com o que desafia nosso tempo e o cotidiano dos equipamentos sociais públicos. Adotar a estratégia epistemológica da pesquisa-intervenção em dado território responde a essa responsabilidade social de uma política cognitiva. Situada no campo institucionalista francês e brasileiro, uma pesquisa-intervenção não produz a representação/interpretação da realidade sob um esquema explicativo generalista e/ou totalizante. Nesta modalidade de produção de conhecimento, a atenção está naquilo que as práticas teóricas e técnicas exercitam, configuram, encarnam, afirmam, em termos de fluxos: jurídico, laboral, monetário, libidinal (Baremblit, 1984; Lourau, 2014).

Nesse sentido, operativamente, fazer intervenção é inseparável do processo de análise/pesquisa que se provoca: é importante que uma pesquisa se pergunte sobre o complexo socioeconômico-político-ideológico-desejante que a implica. Assim, não existindo uma realidade pronta a ser pesquisada, campo de pesquisa e pesquisadores coemergem na cena investigativa para transformar contextos educacionais e compreender um pouco mais o que se vive, a partir do que se cria e intervém conjuntamente. Portando, tratou-se, neste artigo, de uma prática com a produção do conhecimento marcada intensivamente pela processualidade. Sempre atentos a elaborar o que se passa no curso da investigação para ampliar o grau de participação e democratização do fazer educativo (Cesar & Barros, 2015).

Por fim, os autores, entendem que, em contraponto aos estudos que privilegiam os processos de adoecimento na escola, buscou-se colocar em análise tensionamentos que afirmam a vida nas suas diferentes dimensões. Seja considerando os desabafos dos docentes; os registros dos encontros nos equipamentos escolares e territoriais; os debates nas rodas-fórum; assim como a potencialidade do levantamento epidemiológico e do curso para a atuação nas comissões de saúde do trabalhador (Cosates) da educação de Serra/ES. O intento sempre foi de demarcar um plano cognitivo com a pesquisa que, ao ser consistido, poderia afetar o vivido, alargando noções e experiências corpóreas.

Em dezembro de 2014, um Relatório consolidado do projeto-piloto das Cosates foi entregue à secretária municipal de educação, de modo a documentar o que foi produzido junto com os trabalhadores naquele território. Em agosto de 2015, o grupo de pesquisa realizou sucessivos encontros de uma Oficina de Memória para dimensionar qualitativamente a formação em pesquisa durante aqueles anos. Em 2014 e 2015, realizou-se o Seminário de Saúde do Trabalhador da Educação, ampliando o alcance da pesquisa para um público maior. No Diário Oficial dos Municípios (DOM/ES) em 31 de maio de 2016, é sancionada pelo Prefeito de Serra a Lei nº 4.513, referente às Cosates no município. Para não nos estendermos mais, lembra-se que, em 2018, o Ministério do Trabalho, por meio da Fundacentro, publica o Caderno de Formação: saúde e trabalho na educação (Bonaldi, Cruz, & Correia, 2018), ou seja, um material didático e instrutivo ao coletivo de professores deste país, fundamentado por esta pesquisa e desenvolvido por seus pesquisadores.

Eis um processo investigativo e sua produção política imanente aos gestos de um trabalho, afiançada a ideia de ativar o tempo da transmissibilidade de uma sabedoria sobre o vivido nas relações de trabalho, que dista do discurso vendido, massificado, pasteurizado e reprodutor do tempo do culto e da dívida; da precarização e do esgotamento, certamente, um dos elementos mais assoladores da cultura política nacional na contemporaneidade (Benjamin, 1994). Para estes pesquisadores, diferentemente, nada reconforta tanto como continuar a aventura do conhecimento e uma luta, junto, àqueles que heterogeneamente a empreendem (Baremblit, 1984).

 

 

Referências

Assunção, A. & Oliveira, J. (2009). Intensificação do trabalho e saúde dos professores. Revista Educação & Sociedade, 30 (107), 349-372.         [ Links ]

Baremblit, G. (1984). O inconsciente institucional. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Barros, M. E. B., & Silva, F. H. (2013). O trabalho do cartógrafo do ponto de vista da atividade. Revista Fractal, 25 (2), 339-356.         [ Links ]

Benjamin, W. (2013). O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Benjamin, W. (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Botechia F. & Athayde M. (2008). Conversas sobre o trabalho sob o ponto de vista da atividade. In M. E. Barros & L. Margoto (Eds.), Trabalho e saúde do Professor (pp. 43-78). Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Bonaldi, C. M., Cruz, C. B., & Correia. J. A. (2018). Caderno de formação: saúde no trabalho na educação. São Paulo: Fundacentro.         [ Links ]

Brito, H., Freitas, M. C. A., & Chambela, S. M. G. (2015). Relatório de pesquisa: comissões de saúde do trabalhador de serra/ES. A saúde do trabalhador da educação: a experiência de constituição de Cosates como dispositivo de intervenção         [ Links ]

Brito, J. & Athayde, M. (2003). Trabalho, educação e saúde: o ponto de vista enigmático da atividade. Revista Trabalho, Educação e Saúde, 1 (2), 63-89.         [ Links ]

Campos, G. W. (2003). Saúde Paideia. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Canguilhem, G. (2005). Escritos sobre a medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Cesar, J. M. & Barros, M. E. B. (2015). Pesquisa-intervenção em dispositivos participativos: ensejando outas relações entre produção de conhecimento e educação. Revista Polis e Psique, 5 (2), 171-192.         [ Links ]

Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum.         [ Links ]

CNTE. (2012). Condições de trabalho e saúde dos profissionais da educação. Revista Retratos da Escola, 6 (11), 315-326.         [ Links ]

Deleuze, G. (1999). Bergsonismo. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Guattari, F. (2014). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Lourau, R. (2014). Análise institucional. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Muniz, H. P., Brito J., Souza, K. R., Athayde, M., & Lacomblez, M. H. (2013). Ivar Oddone e sua contribuição para o campo da saúde do trabalhador no Brasil. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 38 (128), 280-291.         [ Links ]

Oddone, I., Re, A., & Briante, G. (1981). Redécouvrir l’expérience ouvrière: vers une autre psychologie du travail? Paris: Messidor/Éditions Sociales.

Rocha, R. E. R., Prado Filho, K., Silva, F. N., Boscari, M., Amer, S. A. K., & Almeida, D. C. (2017). Sintomas osteomusculares e estresse não alteram a qualidade de vida de professores da educação básica. Revista Fisioterapia e Pesquisa, 24 (3), 259-266.         [ Links ]

Safatle, V. (2018). Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas.         [ Links ]

Schwartz, Y. (2015). Conhecer e estudar o trabalho. Revista Trabalho & Educação, 24 (3), 83-89.         [ Links ]

Zamboni, J., Szpilman, A. R. M., Miranda, G. U., & Barros, M. E. B. (2013). Primeiras notas sobre o fórum das Comissões de saúde do trabalhador da educação no Município de Serra/ES. Revista Advir, 30 (3), 105-118.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

betebarros@uol.com.br,
heldermuniz@uol.com.br,
jhanybrito@gmail.com

 

 

Recebido em: 08/01/2019
Revisado em: 06/08/2019
Aprovado em: 26/08/2019

 

 

1 https://orcid.org/0000-0003-1123-4374
2 https://orcid.org/0000-0001-8430-3647
3 https://orcid.org/0000-0003-3706-3593

Creative Commons License