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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.22 no.1 São Paulo Jan./June 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v22i1p49-63 

Artigo Original

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v22i1p49-63

 

Profissão docente no ensino superior privado: o difícil equilíbrio de quem vive na corda bamba

 

Teaching profession in private higher education: the difficult balance of who alway walks a tightrope

 

 

Marisa Aparecida EliasI, 1; Vera Lucia Navarro2,II

I Universidade Federal de Uberlândia (Uberlândia, Minas Gerais, Brasil)

II Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil)

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo discutir o trabalho e a saúde de professores do ensino superior privado. Parte-se da premissa de que a precarização do trabalho é um dos principais fatores que degradam a educação e a saúde desses profissionais. Considerando a complexidade do tema, este artigo se fundamentou no materialismo histórico dialético e em estudos sobre saúde mental relacionada ao trabalho. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semidirigidas. Os resultados mostram que os docentes estão submetidos a condições precárias e intensificadas de trabalho. A preservação da idealização da atividade profissional é um facilitador da alienação que prende os docentes a uma representação do trabalho como missão, que, além de submetê-los a condições fisicamente desgastantes, também os sujeitam a pressão psicológica potencialmente adoecedora. Conclui-se que a mercantilização da educação e do ensino descaracterizam a função do educador e propiciam o desgaste, o mal-estar e o adoecimento.

Palavras-chave: Condições de trabalho, Ensino superior, Professores universitários, Saúde do trabalhador.


ABSTRACT

This article aims to discuss the work and the health of professors who work at private institutions of higher education. It is assumed that the precarious work is one of the main factors which degrade not only education but also the health of those workers. Considering the complexity of the theme, this study was based on dialectical and historical materialism, in addition to studies about occupational mental health. Data have been collected through semi-structured interviews. Results showed that professors are subjected to precarious and intensified working conditions. To remain idealizing the profession is to facilitate an alienation that holds professors to see the work as a mission, what beyond to subject them to exhausting physical conditions, lead to a psychological pressure that may become a disorder. Thus, it is concluded that the commercialization of education distort the role of the educator and cause exhaustion, malaise and illness.

Keywords: Working conditions, Higher education, Professors, Occupational health.


 

 

Introdução

Durante o ano de 2014, chegou ao noticiário a informação de que foi criado o maior conglomerado do setor educacional do mundo, em consequência da fusão dos dois maiores grupos de educação do Brasil. A companhia resultante teria faturamento bruto de R$ 4,3 bilhões, cerca de um milhão e meio de alunos e valor de mercado próximo a 12 bilhões de reais3. Não poderia haver melhor confirmação do processo de mercantilização da educação vigente no país e, provavelmente, no mundo.

Sendo assim, a pertinência de investigar o trabalho dos docentes do ensino superior torna-se cada vez mais inegável. A compreensão desse campo de estudo não pode se furtar ao entendimento das transformações do mundo do trabalho na contemporaneidade e suas consequências na vida, no trabalho e no corpo das pessoas.

Este artigo é parte dos resultados de pesquisa de doutoramento que discutiu a relação entre as condições de trabalho e a saúde de professores de Instituições do Ensino Superior Privado (IESP). Parte-se da premissa de que o trabalho ocupa função central na vida das pessoas, portanto, afeta a vida e a saúde delas. As últimas décadas se caracterizaram por profundas transformações no mundo do labor como consequência do processo de reestruturação produtiva que flexibilizou o trabalho permitindo, dentre outras consequências, que um mesmo trabalhador passasse a executar múltiplas funções. Tais mudanças visam o aumento da produtividade e a diminuição das perdas dentro do sistema produtivo, porém, não evitam a crise. Conforme Marx (2005), a crise é inerente ao capitalismo e, dessa forma, esse sistema de caráter cíclico alterna períodos de prosperidade com outros de perdas. Baseado na acumulação de riqueza por meio da produção de maisvalia e na ampliação do consumo e realização da mercadoria, esse modo de produção parte da exploração dos trabalhadores para diminuir os custos do trabalho e aumentar a mais-valia e o lucro. A crise atual do sistema capitalista decorre do esgotamento desse modelo de exploração e de sua incapacidade de responder aos problemas intrínsecos a ele e, assim, impedir o avanço da exclusão social e da miséria humana. São contradições presentes nesta sociedade marcada por um desenvolvimento paradoxal, em que riqueza e pobreza aumentam, assim como também o conhecimento e a ignorância, a criação e a destruição, bem-estar e sofrimento, proteção e insegurança (Gaulejac, 2007).

Diferentes autores, tais como Antunes (1999) e Gaulejac (2007), denunciam que o mundo do trabalho, na contemporaneidade, apresenta mutações que afetam direta e indiretamente todas as pessoas. A ideologia presente no modo de produção capitalista coloca o trabalho como atividade social valorizada, produzindo a associação entre identidade e trabalho. No entanto, as condições para sua realização são precárias e, por isso, oferecem potencial risco à saúde de quem o executa.

O risco é um dos efeitos do processo de reestruturação produtiva, que envolve o uso de tecnologias e a inclusão de novas formas de gestão da força de trabalho, em geral, poupadoras de mão de obra, priorizando o mercado e maximizando os lucros. Dessa forma, a organização do trabalho é modificada para atender à necessidade de aceleração da produção, interferindo diretamente nas relações entre funcionário e empresa, flexibilizando os contratos e intensificando a atividade. Um dos elementos utilizados para garantir a reprodução da lógica capitalista é o uso da gestão, entendida como processo de organização do processo de trabalho, de modo a obter mais eficiência e eficácia. Ela se tornou nas últimas décadas a ciência do capitalismo, fundada no interesse de domínio e disfarçada pelo discurso da racionalidade. Ela se infiltra não só no campo da economia, mas na sociedade inteira: na educação, no direito, na vida política. Como afirma Gaulejac (2007, p. 79), a justificativa é:

Racionalizar a produção com menor custo para favorecer o crescimento e satisfazer as "necessidades" dos consumidores. ]...]O paradigma utilitarista transforma a sociedade em máquina de produção sendo o trabalhador o agente a seu serviço. A economia se torna finalidade exclusiva da sociedade, participando da transformação do humano em "recurso" (aspas do autor).

Nessa perspectiva, uma das estratégias modernas de controle dos gestores são as novas tecnologias, que utilizadas pelo discurso da modernização, sofisticam os processos de exploração do trabalho e do trabalhador, possibilitando maior cobrança e controle sobre a atividade laboral. As ditas "novas" formas de organização das relações submetem as pessoas a modelos de gestão que desconsideram a humanidade, tratando os homens como máquinas, de modo a operacionalizar as ações e diminuir o tempo para a execução das atividades. Em consonância a esse fato, a reestruturação produtiva, sustentada na revolução tecnológica, altera a organização do processo de produção e modifica a estrutura e as relações de trabalho.

A atividade docente, especialmente aquela realizada em instituições privadas, verdadeiras empresas educacionais, está submetida às mesmas regras e modos de gestão que existem nas demais empresas capitalistas. Dessa forma, no contexto do capitalismo em crise, se desenha um novo perfil para a educação e o trabalho docente, visando atender às exigências do mercado. O cenário que possibilita atender a essas demandas se concretiza nas reformas na educação brasileira, em especial naquelas realizadas nas últimas décadas, afetando de forma incontrolável o trabalho dos profissionais que atuam na esfera educacional. Sendo assim, o ensino, de modo geral, e o superior, de forma particular, sofreram e sofrem as mesmas consequências das transformações dos setores produtivos da economia.

Atendendo às exigências dos órgãos internacionais, ocorreu no Brasil, a partir de 1990, o processo de expansão do ensino superior por meio de políticas públicas que financiaram o ensino superior privado (Chomsky, 2014; Silva Júnior & Sguissardi, 2001). Diante disso, ao mesmo tempo em que difunde a ideologia do acesso ao ensino como meio de ascensão social, o Estado sustenta o setor privado direcionando verbas que poderiam financiar o ensino público. A criação de programas como o Programa Universidade para Todos (PROUNI), Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (PRONATEC), Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) são exemplos de implementação dessas políticas.

Não há como negar a importância do acesso ampliado ao ensino superior, o que se questiona é a implementação de políticas que investem e financiam o setor privado e que poderiam ser investidas em infraestrutura do setor público educacional. O modelo de educação superior, sustentado pelos organismos internacionais e assumido pelo Brasil, teve na modificação da natureza do trabalho docente uma de suas diretrizes, o que alterou sua função, aumentando a desqualificação técnica e ideológica (Dos Santos, 2010; Sampaio, 2000).

Atender às exigências do paradigma do mercado trouxe consequências nefastas para o fazer docente, afetando seus status profissional. Como consideram Gaulejac (2007) e Heloani (2018), sob a aparente neutralidade dos novos modelos de gestão, os mecanismos de controle e poder evoluíram desde os tempos da organização científica do trabalho. Um poder sutilmente infiltrado nas relações e de difícil detecção, com instrumentos ideológicos que traduzem as atividades humanas em indicadores de desempenho e esses desempenhos em custos ou em benefícios. O humano se torna um recurso dentro da empresa, a seu serviço, contribuindo assim para sua própria instrumentalização. O poder gerencialista atua diretamente sobre a psique, instigando o trabalhador a identificar-se com os objetivos da produção e, assim, associar trabalho e identidade. Tal associação mobiliza desejos e provoca angústias, colocando o sujeito trabalhador a serviço da empresa, numa submissão livremente consentida.

A mercantilização da educação a desqualifica como direito e a transforma em mero serviço sob a égide da produtividade e lucro, próprios do sistema capitalista. O ensino superior privado é a representação dessa situação, visto que o fazer pedagógico – ou o processo de produção dessas instituições – está subordinado à lógica mercantil (Dos Santos, 2012). A educação foi incorporada ao capital e, hoje, tem a função de sustentar o mercado e de nutri-lo de mão de obra especializada. É um novo campo de atuação do capitalismo parasitário que desqualifica para lucrar. Sendo assim, as políticas públicas das últimas décadas tiveram e têm importante papel na sustentação da educação para o mercado, criando incentivos e permitindo a ampliação do ensino superior privado. Desse modo, o trabalhador da educação arca com as consequências da perda de sentido em seu fazer, com a desvalorização e a precarização, manifestando em seu corpo e psiquismo os efeitos deletérios desse sistema desumano.

Dados dos censos do Ensino Superior no Brasil (2003, 2007, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2018) comprovam o aumento desproporcional das Instituições de Ensino Superior Privado em comparação com o ensino público, tanto em número de alunos, quanto de docentes contratados. Especial atenção é preciso dar ao tipo de contrato de trabalho, predominando o contrato parcial, por hora, confirmando a precarização da profissão. Importante destacar que o censo de 2016, publicado em 2018, mostra que 87,7% das Instituições de Ensino Superior no Brasil são privadas. A mercantilização, a perda de sentido, a perda de autonomia e o ensino cada vez mais submetido a práticas gerenciais que atendem ao mercado são fatores que afetam o fazer profissional e atingem a identidade do docente, ocasionando mal-estar e adoecimento.

A investigação quanto à precariedade das condições de trabalho dos docentes tem sido objeto de estudo em diferentes instituições de ensino. Nas últimas décadas, as pesquisas (Agra, 2015; Elias, 2014; Hashizume, 2018; Mancebo & Silva Júnior, 2012; Silva, 2017; Silva Júnior, 2012) aumentaram consideravelmente e o ensino superior privado começou a despertar, também, interesse por parte da academia. Não por coincidência, o aumento das pesquisas acompanha o crescente aumento do número de instituições e de alunos matriculados, na chamada expansão do ensino superior privado. A profissão docente recebe especial destaque nos veículos midiáticos e no senso comum, em geral, quando se pretende responsabilizá-la pelo sucesso ou fracasso do aluno e até mesmo do país.

A desqualificação da profissão está inscrita na produção de sentido, que não considera o ato de ensinar um trabalho e, sim, uma vocação, uma missão, uma atividade que se faz por amor. E, como se sabe, amor não se paga, não se remunera. Um dos recursos utilizados para aproximar o sujeito do trabalho é o uso do comprometimento para manipular os trabalhadores, reforçando a adesão ao projeto da empresa e seus objetivos. No caso dos docentes, a profissão de educador, carregada da ideologia do mestre, se torna alvo fácil da manipulação do comprometimento. "O comprometimento é a chave do sucesso e sua ausência é a causa do fracasso" (Gaujelac, 2007, p. 89). Considerando que apesar de toda essa produção discursiva, a docência é um trabalho, cabe discutir as consequências das condições de trabalho sobre a saúde mental dos docentes do ensino superior privado.

A concepção de saúde abordada neste artigo parte da desmistificação do modelo biomédico tradicional e do resgate dela como jogo de forças que consideram a complexidade dos fenômenos vitais e incorpora os determinantes histórico-econômicos, sociais e culturais para além da posição meramente biológica. Busca-se refletir como a produção do processo saúde doença precisa levar em conta os diversos elementos que contribuem para a sobrevivência humana, tanto do ponto de vista material, quanto subjetivo. Saúde e doença são processos que envolvem não só as condições biológicas, mas também as condições de vida materiais e simbólicas, como colocado por Canguilhem (2006). Da mesma forma que saúde não é mera ausência de doença, saúde mental não se limita à adaptação ao meio. A dicotomia mente e corpo da medicina tradicional é questionada, visto que esse tipo de consideração serve a um posicionamento positivista que aproxima o ser humano da máquina e desconsidera a subjetividade. Sendo assim, busca-se uma construção teórica que leve em conta as condições concretas de vida de cada sujeito (Canguilhem, 2006).

Por conseguinte, o trabalho é incluído como categoria fundamental para discutir esse processo, já que corpo e mente, social e individual não são categorias separadas e, se a saúde e a doença são forças em constante luta, esta luta se trava no corpo, na mente e na sociedade, já que o ser humano se fez e se faz pelo trabalho. Nas palavras de Marx:

Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana (1985, p. 50).

A partir disso, a centralidade da categoria trabalho na discussão sobre o adoecimento se torna mais clara, sendo o trabalho atividade vital do ser humano. A contribuição de Laurell e Noriega (1989) é fundamental para compreender o caráter social do adoecimento, entendendo que ele é determinado pela inserção dos grupos humanos no processo de produção e, por isso, o processo de trabalho é fundamental para a compreensão do processo saúde doença.

A especificidade da relação entre trabalho docente e identidade se destaca em razão da singularidade da profissão que carrega em si uma representação idealizada, da qual o sistema se utiliza para atar esse profissional a condições desfavoráveis, intensificando sua atividade. A partir de Dejours (1999), concebemos identidade como uma construção social que envolve contextos históricos e simbólicos e que implicam não apenas a relação com o outro, mas também a relação com o real. Dessa forma, pode-se pensar no trabalho como campo privilegiado de construção do eu no campo social. Essa influência é denunciada no cotidiano, quando a maioria das pessoas que se apresenta a um estranho relata seu nome e sua profissão. O fazer se sobrepõe ao ser. Sendo assim, depreende-se que a identidade dos professores é forjada pela relação com o trabalho. A atividade é, portanto, carregada de elementos afetivos propiciados pelas interações intensas com um número vasto de atores sociais (alunos, colegas, gestores), os quais participam ativamente do processo de reconhecimento e de autoidentificação dos docentes. Constata-se, assim, a vulnerabilidade em relação a esses atores, dependentes que são do reconhecimento do esforço pessoal empreendido no trabalho para a composição de sua identidade e construção de sua autoimagem.

Outro elemento que vulnerabiliza o profissional docente em relação aos pares é a necessidade de reconhecimento. Este, conforme Dejours (2007), é o meio pelo qual o sofrimento pode ser transformado em prazer no trabalho. Segundo o autor, existem dois tipos de reconhecimento: o de utilidade econômica e técnica das contribuições e transgressões que, geralmente, é emitido pelos superiores hierárquicos, clientes e subordinados; e o de beleza, relacionado com a arte e a criatividade que, em geral, é aquele emitido pelos pares. A não valorização da contribuição e do esforço do indivíduo provoca sofrimento e afeta a construção da identidade social, podendo levar ao adoecimento. Dessa forma, observa-se que a profissão docente carrega em si características singulares, que desamparam o sujeito que se identifica com ela.

Dentre as diversas formulações teóricas que tratam da relação saúde e trabalho destacam-se aquelas que tratam da Saúde Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT), escolhida como eixo teórico para discussão dos resultados desta investigação. Esse campo de estudo é considerado por Seligmann-Silva (2011) um campo de investigação e práticas, acolhendo diferentes correntes teórico-metodológicas em função da singularidade de elementos que compõem essa área. No que se refere à saúde do trabalhador, três referenciais são fundamentais: as teorias sobre o estresse, os que utilizam o referencial psicanalítico, como a psicodinâmica do trabalho, e os que se fundamentam no materialismo histórico e dialético e adotam o conceito de desgaste. Os teóricos que utilizam o referencial psicanalítico e o materialismo histórico dialético fundamentam a presente investigação e permitem considerar como as condições de trabalho do sistema capitalista conduzem ao desgaste no trabalho, atingindo a subjetividade do trabalhador, além de seu corpo, produzindo adoecimento.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa com delineamento qualitativo, como descrito por Minayo (2004), uma abordagem aplicada à complexidade e subjetividade das narrativas das experiências humanas, relacionada diretamente às interpretações que as pessoas fazem, pensam, sentem e como vivem os processos sociais. Esse tipo de estudo permite, durante a investigação, a construção de novos conceitos e categorias bem como a revisão e a criação de abordagens e novas hipóteses, sendo, portanto, uma forma única e fundamental de produção de conhecimento. Foram tomados os cuidados éticos preconizados pela norma 196/13 em vigor na época da coleta dos dados (dezembro de 2012 e janeiro de 2013).

O estudo foi ancorado no referencial teórico metodológico do materialismo histórico dialético. Ademais, todo o processo de investigação vinculou-se a uma concepção de realidade e de mundo e todas as escolhas estão relacionadas a ele. O método possibilita captar as forças determinantes em sua totalidade, desvelando a realidade, apreendendo o real a partir de suas contradições, buscando as categorias mediadoras que possibilitam a apreensão da totalidade.

O método dialético propõe, como categorias permanentes de análise, a contradição, a historicidade, a totalidade e a mediação. Dessa forma, acredita-se ser impraticável a neutralidade nas ações cotidianas e no conhecimento científico. Essa perspectiva representa a busca pela superação da dicotomia sujeito-objeto, alcançando o entendimento de como o ser humano se relaciona com as coisas, com a natureza, com a vida (Pires, 1997).

Assim, conforme Lukács (1979), é preciso ter em mente que a história da humanidade não é construída de maneira linear, ao contrário disso, ela constitui-se de múltiplos fatos essencialmente dinâmicos e conectados que a compõem. Isso posto, o fundamental é a compreensão dos acontecimentos a partir da história, buscando alcançar sua verdadeira essência e não simplesmente descrevê-los. Esses foram os elementos que nortearam a coleta de dados.

O foco do estudo foram os professores que atuam em Instituições de Ensino Superior Privado, buscando analisar a relação trabalho e saúde desses profissionais. O principal critério para definição dos entrevistados foi lecionar há, pelo menos, cinco anos nessa modalidade de ensino. O recorte estabelecido se deu pela cidade escolhida, visto ser uma cidade polo na região e nesse tipo de ensino, representando o microcosmo da referida atividade profissional. As entrevistas, agendadas e realizadas em local definido pelo entrevistado, tiveram duração média de noventa minutos e foram norteadas por um roteiro delimitado pelos objetivos da investigação. Tomou-se o cuidado de não limitar o depoimento por perguntas fechadas, permitindo mais liberdade para os entrevistados, como preconiza a entrevista semiestruturada.

Como pontua Minayo (2004), esse tipo de entrevista caracteriza-se por um roteiro de perguntas elaboradas de acordo com os objetivos da investigação e que possibilita que o entrevistado discorra sobre o tema abordado sem condições pré-fixadas pelo pesquisador, técnica que permite, também, o aprofundamento nos temas, visto que possibilita estabelecer uma relação entre o pesquisador e o entrevistado, por meio de um diálogo dinâmico composto por interações e trocas, das quais poderão aflorar os sentidos e significados do tema investigado (Maykut & Morehouse, 1994).

Foram entrevistados cinco professores mestres com idade entre 32 e 44 anos, quatro do sexo feminino e de diferentes graduações. Apenas um deles era contratado por quarenta horas, os demais eram horistas. A faixa salarial foi acima de sete salários mínimos4 e a carga horária acima de 20 horas-aula por semana. O número de entrevistados se definiu durante a investigação ao se constatar que as informações se repetiam. A análise dos depoimentos transcritos tomou por base os pressupostos teóricos discutidos por esta pesquisa. A leitura detalhada da transcrição de cada entrevista permitiu compreender os discursos em sua totalidade e perceber núcleos de sentido que dali emergiam e que se repetiam, desvelando informações que, associadas às teorias, permitiram compreender melhor o fenômeno estudado.

 

Resultados

Os resultados desta investigação confirmaram a premissa de que a atividade docente também está sendo afetada pelas mudanças no mundo do trabalho que atingem todas as categorias de trabalhadores. Sobretudo, aquela desenvolvida nas Instituições de Ensino superior Privadas, onde se observou um quadro em que as condições de trabalho se apresentam cada vez mais precarizadas e intensificadas.

A primeira categoria que emergiu das entrevistas foi a intensificação e ampliação do labor para fora do espaço da sala de aula, invadindo a vida privada. Essa ampliação das atividades segue a lógica gerencialista, com cobrança de metas e uso de recursos tecnológicos como aulas informatizadas e em ambiente virtual, intensificando o labor. Consolida-se um modo de gerenciar o trabalho, utilizando-se de ameaças e pressão, produzindo trabalhadores submetidos ao medo, ansiosos, submissos e obedientes. O que se observa é que, "a cultura gerencialista hoje consolidada no âmbito educativo tem como um de seus fundamentos um pragmatismo utilitário e fragmentador do coletivo" (Heloani, 2018, p. 204). Esse modelo gerencial afeta diretamente as relações interpessoais conduzindo ao risco da quebra da solidariedade e à abertura para a banalização do mal. O que significa relativizar a violência e as situações de pressão e ameaça, tornando-as inerentes ao trabalho. O mal-estar em si e nos colegas deixa de ser percebido e reconhecido. O lazer e as horas de descanso são comprometidos pela atividade que não cessa.

Os novos modelos de gestão instituem a naturalização do produtivismo na educação, aumentando o número de alunos em sala, por exemplo. No contexto da reestruturação produtiva, a utilização de inovações tecnológicas, para tornar a organização do trabalho mais produtiva, conduz à precarização da atividade docente com aumento de tarefas, mais turmas e diferentes conteúdos, salas mais cheias, maiores exigências e demandas para o docente.

Sempre tenho o que fazer. Eu acabo preparando as aulas no domingo. No domingo, eu me organizo e preparar e pensar o que eu vou trabalhar em todas as aulas da semana. Domingo à tarde, é um dia que eu tiro pra lançar faltas, é um dia que eu tiro pra preparar aula, é um dia que eu tiro pra organizar o que eu vou trabalhar. Então, geralmente, é um domingo à tarde ou, então, eu chego da faculdade e vou organizar (Depoimento de Clarice 5).

O espaço do lazer e descanso é tomado pela atividade profissional. Foi recorrente o aparecimento de relatos de atividades extraclasse e sintomas de mal-estar que foram ignorados pelos profissionais em nome do bom cumprimento das tarefas e em nome da responsabilidade inerente ao ofício. Adicionado à ausência de descanso e lazer, aparecem também a autorresponsabilização pelo consequente adoecimento e cobrança interna pela sua ocorrência. A atividade docente exige que o professor assuma diversas responsabilidades que vão além da sala de aula e, para agravar a situação, a condição de instabilidade e insegurança profissional, vivida pelos professores do ensino privado, os colocam em posição de profunda vulnerabilidade.

Meu contrato de trabalho é de 40hs. Dou aula, oriento trabalho, pesquisa, TCC, tenho atividades administrativas, como coordenador adjunto. Tenho cinco disciplinas, uma faixa de 160 alunos mais ou menos, por aí. Trabalho em média umas 10 horas em casa (Depoimento de Fernando).

Este semestre, estou contratada por 32 horas, mas, no ano passado, eram 52 horas por semana. Fora especialização, aos sábados. Quando há especialização no sábado, são mais 8 horas, 60 horas por semana. Mas, atualmente, são apenas 32. Fora os filhos pequenos. A gente usa bastante a voz (Depoimento de Cora).

A segunda categoria que emergiu na análise dos depoimentos refere-se às representações simbólicas do trabalho docente. Destaca-se o ofício da docência como recurso ideológico que caracteriza a profissão como missão, atando o profissional a essa representação e o deixando mais vulnerável aos efeitos da precarização sobre as condições de trabalho. A mercantilização do ensino leva à intensificação das atividades profissionais. Tal fato piora as condições de trabalho e cria um hiato maior entre o trabalho real e o trabalho prescrito, tornando a docência uma atividade potencialmente adoecedora. O conceito de trabalho real e trabalho prescrito se baseia no fato de que nas situações reais, a atividade vai muito além daquelas que estão previstas e percebidas pelo exterior. O trabalho prescrito é aquele inerente à atividade profissional, à tarefa propriamente dita, porém, para ser realizado precisará de muito mais ações que só se manifestam no trabalho real (Dejours, 1997). A pergunta do senso comum: Você só dá aula? É um exemplo da diferença entre o real e o prescrito. Não é visível todo o esforço realizado pelo docente para planejar e executar sua tarefa.

Os depoimentos a seguir mostram a ambivalência dos entrevistados na sua relação com sua atividade profissional:

Acho que foi um caminho muito bom, apesar dos dilemas que a gente enfrenta, eu acho que (a escolha da profissão) foi uma tomada de decisão muito importante, muito significativa para o meu desenvolvimento profissional. (...) eu gosto muito da sala de aula, eu gosto muito do trabalho direto com o aluno. Assim, por mais que eu tenha muitas dificuldades (...), cada aula pra mim é uma realização. É uma coisa engraçada que acontece (…) Expectativa? Não, eu era mais encantada (Depoimento de Adélia).

Eu baixei muito a minha expectativa em relação a mim mesma e eu acho que em relação à instituição e aos meus alunos (...). Eu gosto demais de viver, eu gosto demais de trabalhar, eu gosto demais de me sentir útil. Eu acho que é isso me dá prazer (Depoimento de Cecília).

Heloani (2018) ressalta que a manipulação da classe trabalhadora pela classe dominante se dá por meio da criação de sucessivos meios de controle econômicos e ideológicos implicando um esforço para a manipulação da subjetividade do trabalhador. Dessa forma, esse autor mostra que o reordenamento da subjetividade no interior do processo laboral serve tanto para otimizá-lo, como para garantir o domínio sobre a força de trabalho e, assim, observa-se a expropriação da capacidade intelectual do trabalhador. Os dados desta investigação mostram professores exaustos e adoecidos, porém, sustentam um discurso de identificação com sua atividade que facilita, justifica e torna o profissional o principal agente de seu próprio sofrimento.

Em consonância com as representações ideológicas da profissão percebe-se a alienação presente ao não identificar os mecanismos de manipulação a que estão expostos e a manutenção da ideologia de doação profissional. A alienação é utilizada como estratégia pelo sistema visando intensificar o trabalho e manter o professor numa teia de representações de seu trabalho que, ao mesmo tempo, o desqualifica e anula. Observou-se também o presenteísmo como efeito dessa alienação, levando o docente a descuidar da própria saúde e ignorar os sinais de fadiga e de doença física e mental. Conforme Sennett (2003), a alienação é um recurso que oculta parte desse mal-estar, banalizando-o e submetendo o docente a situações em relação às quais discorda, mas contra às quais se sente impedido de lutar.

Recursos que seriam facilitadores das tarefas cotidianas, como as estratégias digitais e mecanismos de internet, são, de fato, usados como forma de controle, tanto por parte da instituição, como por parte dos alunos para garantir que o professor permaneça na sala de aula e também trabalhe grande parte do dia conectado ao computador. A desqualificação e a intensificação das atividades acarretam a perda do sentido simbólico do trabalho docente, o que repercute na subjetividade e no corpo dos professores, promovendo seu adoecimento físico e mental. O controle da subjetividade (Heloani, 2018, p. 212) não é apenas de um instrumento de dominação, é um projeto neoliberal, um processo que transcende os diferentes setores do mundo do trabalho e chega à "universidade – seduzida pela lógica da quantificação e privatização e escoltada pela vaidade docente e monetarização da vida acadêmica - e incorpora outros instrumentos de poder ainda mais sofisticados e difíceis de serem decifrados".

O campo educacional é repleto de representações ideológicas que preservam a atividade profissional e, ao mesmo tempo, criam uma armadilha. Acreditando que sua identidade se vincula ao seu labor, sofre o docente ao perceber sua profissão sendo desqualificada, comprometendo seus propósitos de autorrealização e a própria subjetividade. Esta última se constrói na interseção das relações sociais e precisa do reconhecimento para se estabelecer. Uma atividade desqualificada não favorece o reconhecimento.

Não, acho que não sei se eu posso chamar isso de um cansaço. Ultimamente, eu ando bem cansada, ou é por conta da gravidez, ou é por conta dos excessos de atividade. Porque eu sempre trabalhei muito, muito, esse tempo, depois que eu me formei. Mas assim, desânimo não (Depoimento de Cecília).

A equipe de professores é muito bacana. A equipe te dá muito suporte, te dá muita atenção. Nos momento assim, de hora de intervalo, que você reúne com a equipe, é muito bacana. Com os alunos, em geral, é bom. É um ou outro que, às vezes, te causa uns estresses (Depoimento de Cecília).

A frustração se evidencia quando os mecanismos de alienação não são suficientes para ocultar as iniquidades dentro da atividade laboral. A consequência é a desilusão profissional na impossibilidade de identificação com sua atividade, dada a desvalorização cotidiana vivenciada por eles. A mercantilização da educação é fator desqualificante da profissão e gerador de desgaste.

Os professores gostam de seu trabalho, mas desgostam das condições oferecidas para realizá-lo. Ocorre um processo de idealização de sua atividade e também muito desgaste. Nesse sentido, a alienação funciona como recurso defensivo. Ao ignorar as estratégias perversas da instituição de ensino para manipular e controlar seu trabalho, o docente adia o reconhecimento do sentimento de mal-estar decorrente dessa constatação. A consciência constante da situação de exploração e degradação a que se expõe seria sofrer duplamente, visto que depende do emprego para sobreviver. Ter consciência do mal e ainda ser obrigado a se submeter pode ser causa de intenso sofrimento. Nesse sentido, estar alienado e não buscar sair dessa condição pode ser uma forma de se manter mais tempo no campo do trabalho, ignorando o sofrimento ou banalizando-o.

É importante destacar o tipo de contrato de trabalho como fator de precarização econômica, e também fator gerador de instabilidade e insegurança ocasionadas pelo temor de demissão ou de perda de horas-aula a cada período letivo. Pode-se ressaltar que esse tipo de medo é utilizado pela direção das IES privadas para fazer aceitar a intensificação e a degradação, tanto das condições, quanto das relações no exercício profissional. O docente se torna vulnerável às ameaças de demissão e/ou perdas de carga horária e se submete às condições precárias

Professor de instituição privada, que não é dedicação exclusiva, nunca sabe quanto vai ganhar o semestre que vem (Depoimento de Cecília).

Eu tenho tesão em dar aula, ainda. Só que as condições de trabalho não são muito boas. E também por conta da questão salarial. As salas são muito cheias, eu dou aula em sala com ar-condicionado, não tem nem janela. Na faculdade onde eu estou atualmente, porque eu dei aula em várias faculdades. Tenho muitos alunos por sala, então, a gente acaba tendo problema com cordas vocais (Depoimento de Cora).

No que se refere à saúde, foi possível identificar a trivialização e negação do sofrimento e do adoecimento. Os professores entrevistados não reconheceram adoecimento ou mal-estar em suas vidas. Contudo, ao serem indagados sobre sintomas relacionados ao estresse e às doenças psicossomáticas identificaram-se com a maioria dos sintomas. O adoecimento psicossomático aparece como via privilegiada de descarga do mal-estar quando os outros mecanismos de enfrentamento não são suficientes para isto. Ao serem questionados sobre adoecimento, os professores, a princípio, não se percebiam doentes ou com problemas de saúde, porém, ao serem apresentados diferentes sintomas do estresse, tais como dores de cabeça, insônia e ansiedade, perceberam a contradição e reconheceram-se surpresos com a negação do adoecimento.

Eu fiz check-up recente de esteira, essas coisas, tá tudo bem. Agora o que eu tenho muito é dor nas pernas, aparecimento de varizes, isso é de ficar e trabalhar em pé. É muita dor nas costas, isso aí eu não tinha, então eu sinto muita dor na cervical e na lombar (Depoimento de Clarice).

Faço terapia e nunca fiquei afastada. Eu fiquei dois dias até hoje sem trabalhar. Porque eu fiquei, uma era suspeita de dengue e a outra porque eu tive uma úlcera e eu não consegui trabalhar. Então, (...) eu tive uma úlcera no esôfago e em 2006, e tive que ficar um dia afastada. Porque era um dia que tinha um feriado na semana, eu precisei ir ao médico fazer uns exames, aí eu tive que ficar um dia afastada (...) acho que é, ser saudável é isso, estar bem, você está sem dor, estar conseguindo fazer as coisas direito, não ter nada que está te angustiando, não ter ansiedade (Depoimento de Cecília).

Evidencia-se o fato de que os professores entrevistados neste estudo estão expostos a condições de trabalho precárias, sendo submetidos a gestões que desqualificam a educação e transformam o ensino em mercadoria barateada por um sistema de exploração da força de trabalho.

Os efeitos da precarização, apontados por Dejours (2007), destacam-se aqui, são eles: neutralização da mobilização subjetiva contra o sofrimento, contra a dominação e contra a alienação e a estratégia defensiva do silêncio, cegueira e surdez que implicam negar o sofrimento alheio e o próprio, produzindo consequências importantes no corpo e na vida dos professores.

A perda de sentido do trabalho e a perda do controle sobre a atividade, culminando na perda da autonomia, são dois elementos importantes para elucidar a autoalienação, que pode levar a uma acomodação a essa situação, tentando, talvez, suportar as iniquidades vivenciadas. Percebe-se como o projeto neoliberal é bem sucedido no meio universitário ao transformar o próprio docente em cúmplice de seu processo de adoecimento.

Os dados sinalizam a precarização da educação e do trabalho docente como importante fator desencadeante de adoecimento psicossomático. O mal-estar aparece encoberto por um discurso que nega problemas de saúde diretos. No entanto, se desvela em queixas variadas e não atribuídas ao trabalho diretamente, como dores no corpo e na cabeça, problemas estomacais, nervosismo, problemas de memória e concentração e alergias que são sinais e sintomas de estresse e afecções psicossomáticas.

Eu tenho muita sinusite, bronquite, rinite. Aí essa história do ar-condicionado que impacta também né? Eu sou muito alérgica (Depoimento de Cora).

Dor de cabeça todos os dias! Fora o período da gravidez, que eu acho que a gravidez foi ótima pra não ter dor de cabeça. Pode ser por semana e também eu tenho problema de gastrite (Depoimento de Cecília).

A forma como o trabalho é organizado no modo de produção capitalista, inclusive nas Instituições de Ensino Superior Privadas, não possibilita a livre expressão e a manifestação de oposição aos modelos instituídos, impedindo a ressignificação do mal-estar vivido na atividade laboral (Seligmann-Silva, 2011). Tal situação é causadora de sofrimento e este, sem descarga, acaba por se deslocar para a via corporal, ocasionando gastrites, dores de cabeça e alergias. Outros sintomas presentes e relacionados ao alto nível de estresse são insônia, ansiedade e nervosismo.

A percepção da própria saúde é comprometida pelo não reconhecimento, em seu corpo, dos sinais de adoecimento. A investigação acabou se tornando um momento de tomada de consciência das dificuldades vivenciadas e a constatação delas como associadas ao trabalho. Deste modo, foi desmistificado o discurso da boa saúde e revelado o não reconhecimento do adoecimento. Porém, cabe aqui ressaltar o sentimento de impotência e vulnerabilidade, visto que a necessidade de sobrevivência material é uma das ferramentas mais eficientes para manter os trabalhadores submetidos. Os recursos internos dos professores, comprometidos pela alienação, fazem com que intensifiquem mais suas atividades e ignorem os sinais de sofrimento e adoecimento, criando um círculo vicioso difícil de ser quebrado.

Como estratégias saudáveis e promotoras de bem-estar, observou-se a importância da relação entre os pares, o feedback oriundo dos alunos e, acima de tudo, a crença em valores educacionais que se sustentam nos ideais educacionais. É a busca de sentido no trabalho educacional. O reconhecimento se destaca como um elemento fundamental para produzir a ressignificação do trabalho docente. Quando ele não acontece, o sentimento é de frustração, de desânimo e de impotência.

Os professores fazem uso das estratégias defensivas de forma intensa, especialmente a negação do sofrimento, das condições de trabalho adversas e do adoecimento. A preservação da atividade laboral é uma tentativa de manter algum tipo de prazer no trabalho, sustentada pela ideologia do professor que cumpre sua missão e é reconhecido pelos seus pares e pelos seus alunos. Sustentar a representação de ser aquele professor que faz diferença e realiza sua atividade, apesar das limitações do sistema, é fonte ilusória de gratificação e parece sustentar o profissional na docência. Por outro lado, tal posição leva também à intensificação das atividades e autoexigência.

Estudo realizado por Piolli (2010) aborda a centralidade do trabalho e do reconhecimento na construção da identidade do educador. O autor mostra que o modelo de gestão de autonomia controlada e a avaliação heterônoma fragilizam os processos de reconhecimento e intercompreensão no espaço de trabalho, gerando instabilidade e sofrimento que afetam diretamente a saúde. Nos depoimentos a seguir observa-se a importância da avaliação ou julgamento de beleza e utilidade.

[...]tem umas coisas interessantes que acontecem: é um aluno que você sente que ele tá se realizando com aquela aula e, aí, parece que tudo faz sentido (Depoimento de Clarice).

Por mais que o aluno tenha dificuldade, esse contato com o aluno, isso eu gosto. Então, na docência, a parte positiva é o contato com o aluno (Depoimento de Cecília).

O ambiente é bacana. A equipe dá um bom suporte, principalmente os colegas, a coordenação cobra, mas acredito que é esse o papel, de cobrar mesmo. E os alunos chegam no final do semestre, eles te cobram muito. No início parece que eles não tão nem aí com nada. Mas, em geral, o apoio que os alunos dão, o convívio com os alunos é muito bom (Depoimento de Fernando).

Eu falo que a saída ainda é a educação. Eu falo que eu sou utópica. Eu ainda acredito na educação (Depoimento de Cora).

O julgamento de utilidade se relaciona à utilidade socioeconômica e técnica do trabalho. Sua origem deve advir dos superiores hierárquicos e também pelos clientes, nesse caso, os alunos. O julgamento de beleza é feito pelo coletivo do trabalho, a equipe, os colegas, a comunidade da qual participa e é fundamental para a construção da identidade (Dejours, 1999).

A vulnerabilidade em relação ao aluno e à instituição, principalmente em função do regime de contratação, associam-se ao descrédito em relação à efetividade da luta pelos direitos trabalhistas, promovendo a desmobilização em relação à defesa de seus direitos e sustentando o comportamento submisso em relação à direção das IES. É importante realçar o descrédito dos entrevistados quanto à ação do sindicato:

Eu acredito que os sindicatos perderam representatividade e força. Muitos veem isso como alienação da classe. Mas eu vejo que é o mesmo que acontece com a política e outras áreas. As pessoas se sentem descrentes e preferem ignorar (Depoimento de Adélia). O sindicato mesmo não faz nada. Na verdade, é o meu sentimento e o sentimento de todos os professores lá, né? Você sabe que o sindicato existe, sabe que você paga uma taxa todo início do ano. Mas o sindicato não te faz nada. O conselho te auxilia mais do que o sindicato (Depoimento de Fernando).

Merece destaque como causa de sofrimento na realização do trabalho docente a forma como a atividade se estrutura no processo de mercantilização da educação. Ela desvirtua o fazer educativo afetando o sentido do trabalho. Interessante observar que o cansaço, o excesso de atividades, o número de horas trabalhadas não são relatados como queixas, mas como naturais à profissão. O uso de mecanismos de defesa, como a racionalização, possibilita justificar e explicar as situações desagradáveis vividas na instituição. O desgaste só se materializou no discurso ao serem abordadas questões subjetivas e, mesmo o adoecimento, só foi admitido quando a contradição ficou impossível de ser negada.

 

Conclusão

As informações obtidas neste estudo constituem um delineamento do cenário do trabalho nas IES privadas. Ocorre uma nítida sobrecarga oficializada pela flexibilização e desregulamentação dos direitos. A jornada de trabalho do docente invade a vida privada limitando o tempo para o lazer e aprisionando a própria vida, levando a um desgaste físico e emocional. Ao mesmo tempo em que ocorre a reconfiguração do trabalho docente, há o desmantelamento dos movimentos sindicais, com perda de credibilidade e de representatividade desses órgãos. Constata-se que, no exercício da docência no ensino superior privado, consolida-se a ideia de que quem está empregado deve suportar as adversidades a qualquer custo. De forma perversa, as Instituições de Ensino Superior Privado induzem à intensificação das atividades, submetendo os trabalhadores a uma condição de servidão alienada.

Diante disso, os resultados apresentados contribuem para o avanço na investigação da relação trabalho e saúde, em especial na especificidade do adoecimento psicossomático causado pelo desgaste laboral. É preciso dar maior visibilidade ao adoecimento pelo trabalho, discriminando e dando visibilidade às doenças que podem acometer o trabalhador, para possibilitar maior reconhecimento dessa relação e, assim, garantir os direitos e promover mudanças na organização do trabalho. Para o enfrentamento da precarização do trabalho docente, é fundamental denunciar os efeitos nefastos do neoliberalismo nas condições de trabalho e na subjetividade do professor. Do mesmo modo, é preciso buscar formas de emancipação por meio da humanização do trabalho.

O desmantelamento dos direitos trabalhistas ocorrido nos últimos anos, o descrédito nos órgãos de defesa do direito e, em especial, nos sindicatos colaboram para o isolamento e a desmobilização dos docentes e dificultam a ação do coletivo. Tal resgate é necessário para o fortalecimento da classe na esfera pública, bem como a humanização das relações e a politização do espaço de trabalho. É papel dos pesquisadores investir em estudos que, ao problematizarem essa questão, desmobilizem o discurso alienador e promovam novas formas de viver no coletivo e, assim, produzir uma educação emancipatória que contribua para uma sociedade menos desigual, mais humana e justa.

Como aponta Mészáros (2004), é necessário romper o ciclo da alienação na educação e, assim, essa prática pode realmente se tornar transformadora de vidas. Para tal, será necessário que os professores encontrem espaço de mobilização. Salienta-se que esse não é um problema apenas dos profissionais da área pesquisada, mas de todos os trabalhadores, visto que é apenas pela via da discussão, reflexão e mobilização que eles podem conseguir romper paradigmas e transformar a realidade.

 

 

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Endereço para correspondência

marisa.elias@ufu.br, vnavarro@usp.br

 

 

Recebido em: 29/01/2019
Revisado em: 06/07/2019
Aprovado em: 13/07/2019

 

1 Escola Técnica de Saúde. https://orcid.org/0000-0002-9300-9519
2 Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Departamento de Psicologia. http://orcid.org/0000-0003-4669-0011
3 Informação obtida no jornal Estado de São Paulo. Souza, D. (2014) Fusão que cria maior grupo educacional do Brasil é aprovada. Jornal Estado de São Paulo, 03/07/2014. Retirado de: http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,fusao-que-cria-maior-grupo-de-educacao-do-brasil-eaprovada,1522995. Acesso em 04/07/2014..).
4 Refere-se a salário mínimo no valor R$ 622,00 em vigência em janeiro de 2012. 5 Todos os nomes são fictícios.

 

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