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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.22 no.1 São Paulo Jan./June 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v22i1p65-80 

Artigo Original

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v22i1p65-80

 

Saúde do trabalhador e economia solidária: um estudo do cotidiano em empreendimentos econômicos solidários

 

Worker's health and solidarity economy: a study of daily life in solidarity economic enterprises

 

 

Matheus Fernandes de Castro1

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Assis, São Paulo, Brasil)

 

 

 


RESUMO

Buscamos saber como os trabalhadores que se encontram em cinco empreendimentos econômicos solidários, de cinco diferentes cidades do oeste paulista, enfrentavam, tática e estrategicamente, suas dificuldades cotidianas no que se refere à saúde do trabalhador. Para tal, estabelecemos uma convivência etnográfica que não dispensou uma parceria e complementaridade metodológica com a pesquisa-ação para podermos intervir, sempre que os grupos assim negociavam nossa presença. Encontramos algumas ações táticas e estratégicas dos trabalhadores, que tanto os favoreciam como desfavoreciam, no enfrentamento cotidiano do trabalho. Contudo, pudemos desvelar a importância da busca pela Economia Solidária e pelo cooperativismo para os vetores que promovem a saúde dos trabalhadores dentro dos empreendimentos. Assim, com base em nossa experiência, podemos afirmar que, nos grupos supracitados, apesar da reprodução dos modos de produção capitalista ser uma realidade, o fato de se buscar modos diferentes de trabalhar e obter renda é capaz de promover, no cotidiano, alterações significativas para os grupos.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador, Economia solidária, Cooperativismo, Cotidiano.


ABSTRACT

We sought to know how the workers who find themselves in five solidarity economic enterprises undertakings, from five different cities of the west of São Paulo state, faced, tactically and strategically, their daily difficulties regarding the health of the worker. To that end, we established an ethnographic coexistence that did not exempt a partnership and methodological complementarity with the action research so that we could intervene whenever the groups negotiated our presence. We found some tactical and strategic actions of workers that favored them as well as disfavored them, daily, at the moment they work. However, we were able to unveil the importance of the search for the Solidarity Economy and the cooperation regarding the vectors that promote the health of the workers within the enterprises. Thus, from our experience, we can affirm that, in the aforementioned groups, although the reproduction of the capitalist modes of production is a reality, the fact of looking for different ways of working and earning income is capable state of promoting significant changes in daily life for groups.

Keywords: Worker's health, Solidarity economy, Cooperativism, Everyday life.


 

 

Introdução

Muitas pesquisas sob o enfoque da saúde do trabalhador já foram realizadas, no Brasil e no mundo, com trabalhadores formais e informais, sobretudo no ambiente fabril e em algumas atividades do setor terciário, porém, poucas dentro de ambientes cooperativos de trabalho, como enfatizam Barfknecht, Merlo e Nard (2006) e Sícoli (2007). Segundo Galon e Marziale (2016), após realizarem ampla revisão de escopo, da produção latino-americana, de 1999 a 2013, sobre o tema catadores de material reciclável e saúde do trabalhador, foram encontrados 53 artigos científicos, dos quais apenas 26 enfocavam trabalhadores de associações e cooperativas; as demais pesquisas remetiam ao trabalho nas ruas, aterros, entre outros lugares. Ainda segundo os autores supracitados, no Brasil, existem mais de um milhão de catadores, e apenas 85 mil são pertencentes a movimentos nacionais da categoria, que buscam melhorias e a geração de trabalho e renda.

Como assinalam Gutberlet, Baeder, Pontuschka, Felipone, Santos e Souza (2016), na maior parte dos países em desenvolvimento, aproximadamente 1% da população encontra-se envolvida com a reciclagem e as condições de trabalho, mesmo para aqueles que estão em cooperativas e associações essas condições ainda são muito ruins, pois problemas relacionados à saúde do trabalhador bem como os riscos de acidentes estão presentes.

Não podemos nos esquecer de que a economia solidária não está vinculada apenas a construções de ações e práticas internas a empreendimentos econômicos solidários2 ou a grupos populares. Ela se faz presente também na articulação de discussões macrossociais, como a construção de uma economia nacional e internacional que contribua para a sustentabilidade social e econômica dos países. As organizações solidárias são alternativas ao desempr ego, que podem gerar trabalho e renda não precarizados frente à globalização, às políticas neoliberais e à acumulação flexível do capital.

Levando em consideração o que foi exposto, esta pesquisa teve por objetivo geral compreender as práticas cotidianas de trabalhadores de cinco cooperativas de cinco diferentes cidades do oeste paulista, no que se refere à saúde do trabalhador. Entendemos por práticas cotidianas um conjunto de ações e atividades diárias carregadas de significados, que revelam as maneiras como as pessoas se relacionam com os produtos culturais da sociedade em que se encontram, como saúde e trabalho, por exemplo. Tais produtos permeiam os mais simples fatos de nosso dia a dia, pois são produzidos e sustentados – dialeticamente – no seio de nossa sociedade. Olhar para isso, para esse fenômeno social, significa buscar compreender uma relação de forças entre os significados dos produtos culturais e as ressignificações diárias que as pessoas lhes conferem ao trabalhar, morar, cozinhar, comer, vestir, se transportar, entre tantas outras atividades.

Essas ressignificações acontecem efetivamente no cotidiano, de forma tática ou estratégica (Certeau, 1994). A tática se configura como uma ação astuta, uma sabedoria do mais fraco para usar a força do outro a favor do primeiro e obter um ganho momentâneo, que não pode ser preservado, estocado para um uso possível: o que se ganha taticamente é uma vantagem momentânea. A estratégia, por sua vez, provém um ganho mais estável, pois sua vantagem advém de uma ação que é calculada, premeditada e que contabiliza e conta com as forças de quem age. Ela pressupõe a existência de uma organização que permita ao agente uma desvinculação das contingências cotidianas e, assim, uma preparação prévia para desafios e problemas. Essa relação de combate se estabelece em virtude da pluralidade e da assimetria dos registros culturais, políticos e econômicos das sociedades humanas, entre outros motivos (Certeau, 1995). Dessa forma, podemos precisar a exposição do objetivo específico deste estudo: o interesse concentrou-se em saber como os trabalhadores que se encontravam em tais empreendimentos enfrentavam, tática e estrategicamente, suas dificuldades cotidianas, no que se refere à saúde do trabalhador.

Dentro da Psicologia Social do Trabalho, já há algum tempo, temos encontrado pesquisas que somam esforços para compreender as relações micropolíticas do cotidiano (Oliveira, 2014). Muitos estudos se inspiraram nessa proposta e foram ao encontro dos trabalhadores, a fim de tentar entender o que surgiria de um esforço como esse. Destacamos aqui a atuação de um grupo de pesquisa em especial, "Trabalho e processos organizativos na contemporaneidade", que tem atuado na produção científica sobre grupos de trabalhadores, grifando referenciais teóricos e metodológicos que enfatizam o cotidiano. O comum nos resultados de muitos desses trabalhos foi a constatação da presença de uma resistência do trabalhador à forma como o mundo do trabalho interferia em seu cotidiano laboral. A lógica da organização científica do trabalho e uma economia política pautada nos princípios neoliberais aportam consequências para a vida comum desses trabalhadores que são combatidas, negociadas diariamente, em busca de uma possibilidade melhor de trabalho e de saúde.

Trabalhos como os de Sato (1997, 2006) e Bernardo (2009) são exemplos emblemáticos dessa corrente da pesquisa em Psicologia Social do Trabalho, que começa a valorizar o cotidiano e que descende da produção científica de Peter Spink e Arakcy Martins Rodrigues. Especificamente articulados aos grupos de trabalhadores que se organizavam dentro dos princípios do cooperativismo e da economia solidária, destacamos as pesquisas de Andrada (2013), Carvalho (2008) e Esteves (2010). Os pesquisadores puderam não apenas constatar as vantagens, mas também as dificuldades vividas por essas pessoas nesse modelo de organização social e de trabalho: formas modernas de trabalho, baseadas na competição, no individualismo e na exploração do homem pelo homem passaram a se reproduzir dentro de tais ambientes.

Acreditamos que essa vulnerabilidade da força econômica, política e tecnológica da autogestão do trabalho, diante do modelo industrial capitalista, possa ser compensada pela astúcia e por certa capacidade de organização dos trabalhadores, o que os ajudaria a alcançar algum equilíbrio nas relações cotidianas de poder entre eles e o mundo do trabalho, para restabelecer a solidariedade (Andrada, 2013; Bernardo, 2009; Sato, 2009; Torres, 2016). Esta última é fundamental para a conquista de um trabalho que contemple a saúde, já que, como destaca Sato (1993), um trabalho que contribua para a saúde do trabalhador e lhe possibilite uma vivência de prazer e conforto só é possível quando ele tem conhecimento, poder e instrumentos para controlar sua organização, facultando respeitar as necessidades e o limite subjetivo de cada um. Por isso, os conceitos de tática e estratégia são fundamentais, pois consideramos que permitem compreender as formas como os cooperados enfrentam as dificuldades cotidianas, no que se refere à economia solidária e à produção de saúde no trabalho, diante da configuração econômica e política do mundo contemporâneo.

 

Método e desenvolvimento da pesquisa

O trabalho de campo durou de 2012 até 2017 sendo quatro deles com a participação direta do pesquisador e a intervenção de estagiários e bolsistas de extensão, e mais dois anos somente com os dois últimos grupos. O trabalho da equipe era orientado por nós em supervisões semanais de quatro horas de duração (em média), sendo todas as ações debatidas com o grupo de supervisão e com os grupos onde os trabalhos eram realizados.

O critério para a escolha dos grupos era apenas um: que eles fossem parceiros da INCOP3; além disso, somente a disponibilidade dos estagiários e dos grupos consultados é que regeu o processo de escolha. Dessa forma, neste estudo, abarcamos um total de cinco empreendimentos, entre cooperativas e associações, que congregavam entre 20 e 100 trabalhadores, localizados em cidades marcadas pelo cultivo da cana-de-açúcar (recentemente mecanizado), com uma média de aproximadamente 20.000 habitantes – excetuando-se a cidade de Assis com quase 100.000 habitantes – em uma das regiões mais carentes do estado.

O que possibilitou a integração de um projeto de pesquisa com um projeto de extensão foi o fato de serem construídos já de forma articulada, sendo um quase que uma consequência espontânea do outro, tanto pelo objeto como pela metodologia. Em ambos, a convivência, de cunho etnográfico, com os catadores e as possibilidades de intervenção garantidas pela pesquisa-ação (Neves, 2006) tinham a finalidade de compreender as práticas cotidianas de

enfrentamento das contingências referentes à saúde do trabalhador. Para registros dos dados valemo-nos da produção de um diário de campo (Rockwell, 1987), nos momentos em que os catadores se encontravam reunidos ou em ocasiões em que nos encontrávamos apenas com algum deles. Muitas vezes, nos deparávamos com esses trabalhadores pela cidade, seja trabalhando, devido à natureza de suas atividades de coleta, seja passeando. Também aconteceram encontros agendados ou fortuitos na própria Unesp. Quase sempre, aproveitávamos para discutir assuntos referentes aos empreendimentos e à saúde do trabalhador.

A descrição etnográfica, que surge da antropologia (Triviños, 1987), com o estudo de povos primitivos, vem sendo amplamente empregada para estudos de antropologia urbana (Magnani & Torres, 2008). No Brasil e em outros países, é utilizada em pesquisas de Psicologia Social do Trabalho (Andrada, 2010; Sato, 1997; Souza, 2015) e busca uma imersão no cotidiano dos grupos, com o intuito de conseguir uma "descrição densa" (Geertz, 1989), almejando documentar aquilo que não apareceria numa simples reunião, ou conversa, nem se encontra registrado em nenhum documento produzido pelo grupo: "documentar o não documentado" (Rockwell, 1986).

Em processo de observação mútua, pesquisador e pesquisado se observam e se inquirem, abrindo a possibilidade para que ambos possam, como antropólogos, buscar as experiências humanas, pois podem conhecer os arranjos particulares dados de maneiras diferentes, pelos diferentes grupos, para as questões mais comuns da humanidade. Isso aproxima esse método do referencial teórico de Michel de Certeau (1994), que, igualmente, procura os diferentes usos, ou seja, as diferentes maneiras de agir com as situações que se apresentam no cotidiano.

Nos estudos etnográficos, o objeto não se apresenta como algo dado, mas construído no processo de convivência entre o pesquisador e o grupo pesquisado (Andrada, 2013). Os fenômenos não se constituem de dados que estão prontos para serem colhidos, mas de fatos que se constroem na experiência cotidiana, na busca pelo desvelamento das "camadas do real" (Rockwell, 1986).

Além disso, nesta pesquisa, assumimos a postura de estar no campo, proposta por Spink (1996, 2008, 2012) para os pesquisadores da psicologia social que buscam conviver com pessoas e grupos. Sua proposta do "pesquisador conversador no cotidiano" (Spink, 2008) preconiza que a coleta dos dados seja realizada por meio de conversas entre os pesquisadores e os pesquisados. Ele afirma que, durante a convivência, o pesquisador deve sempre buscar uma relação de simetria com as pessoas no campo, evitando qualquer situação que possa dificultá-la ou impedila. Afirma, ainda, que os aspectos éticos do trabalho devem ser definidos nessa convivência, pois a importância do estudo, bem como os rumos da pesquisa, durante o seu desenvolvimento, devem ser negociados constantemente com as pessoas do local. Isso nos levou a um processo constante de análise dos dados, cujo resultado era continuamente socializado nas rodas de conversas, nas reuniões e nos encontros casuais.

Por tudo isso, acreditamos que a busca por compreender as práticas cotidianas de promoção de saúde do trabalhador não teria sido efetiva mediante a utilização de modelos previamente construídos, desvinculados de sua realidade concreta e de seus interesses. Além disso, tal conhecimento deveria fazer parte de qualquer processo de transformação da realidade que decorresse das ações da pesquisa.

Encontrando os catadores

Começamos nossa pesquisa participando semanalmente das reuniões da diretoria da cooperativa de Assis e visitando esporadicamente os outros empreendimentos da região, bem como participando de reuniões com os trabalhadores e fazendo observações. Esses encontros, geralmente, foram marcados pela forma amistosa e calorosa como éramos recebidos: brincadeiras, risadas, cafezinho, bolachas, frutas etc. Somente em alguns momentos, o tom das reuniões dispensava o bom humor, especialmente em razão de algum problema que o grupo pudesse estar enfrentando. Do contrário, podemos dizer que havia uma predileção pela alegria, obviamente, sem perder a seriedade que a atividade exigisse.

Neste trabalho, para estabelecermos a convivência com os trabalhadores, utilizamos, junto com os estagiários e extensionistas, a estratégia da roda de conversa, a observação e a participação no desenvolvimento de algumas atividades cotidianas: alguns fizeram, junto com os catadores, a coleta de material reciclável nas casas; outros, a seleção de material nas esteiras mecânicas ou nas bancadas, entre outras atividades pertinentes ao trabalho dentro das cooperativas. Essas experiências eram sentidas como fundamentais, tanto por nós, como pelos trabalhadores, para o fortalecimento dos vínculos entre ambos: os primeiros passavam a compreender melhor a natureza e a dificuldade do trabalho, bem como se sentiam mais respeitados e acolhidos pelos trabalhadores; e os últimos sentiam mais implicação dos primeiros com a compreensão de suas realidades.

Nosso processo de aproximação e convivência com os trabalhadores foi marcado por bons momentos e momentos difíceis, como em qualquer relacionamento humano, mas trouxe contribuições importantes para a compreensão de como os trabalhadores vivem, em seu cotidiano, a saúde do trabalhador. A seguir, apresentaremos alguns fatos, que comumente chamamos de resultados, e algumas discussões ou análises, que construímos ao longo do processo.

 

Discutindo possibilidades e resultados

No começo do campo, quando os catadores mais antigos contavam sobre a origem das cooperativas, no início dos anos 2000, eles narravam as dificuldades pelas quais passavam naquela época e teciam comentários sobre a situação econômica e política que contribuíra para o grande aumento do desemprego, já havia alguns anos. Para eles, esse contexto político e econômico era um dos determinantes da condição de desemprego e da falta de oportunidades que os atingiu no passado, mas, dentre eles, alguns também associavam a dificuldade à falta de estudo. Segundo Teresa:4 "é difícil político pensar no povo quando faz suas leis, hein?! E a gente não tem nem estudo, aí piora tudo" (DC5: 28/10/12).

Algumas pessoas aprenderam a ler e escrever de maneira efetiva ou, pelo menos, funcional, dentro da cooperativa com iniciativas como o Círculo de Cultura (Torres, 2016): uma proposta de educação popular realizada por incubadores e cooperados, alguns anos antes do início da pesquisa apresentada neste artigo. Se, para alguns, a autoculpabilização (Alencar, 2007; Paparelli, Sato, & Oliveira, 2011; Oliveira, 2012; Pereira, 2015) ainda vigia, para outros, a questão da qualificação ou da desqualificação para competir no mercado de trabalho era apenas um discurso para que as pessoas se culpabilizassem pela falta de trabalho e renda. Em sua maioria, afirmavam a relevância da educação para a vida das pessoas, mas também diziam que era importante saber trabalhar. É nessa afirmação que nos é dito sobre a importância e a autoridade (Certeau, 1995) que conferem ao saber prático construído no cotidiano de trabalho. Dizendo isso, não podemos afirmar que desvalorizavam a educação formal, no entanto, afirmavam que foram capazes de se instruir no trabalho: era visível que alguns se sentiam muito capazes, pois conduziam coletivamente seus empreendimentos, garantindo a muitas famílias uma oportunidade de trabalho e renda.

Era muito comum escutar nas conversas uma frase: "Nunca imaginei que chegaria onde estou hoje". Ela foi enunciada de diferentes formas, mas sempre com o sentido do empoderamento, que vinha, em especial, do trabalho, mas também, segundo eles mesmos: de um comprometimento pessoal com a construção de uma alternativa coletiva de trabalho e renda, de uma grande contribuição da Incubadora e dos alunos da Unesp e dos próprios colegas catadores, seja pelos grupos organizados regionalmente, seja pelo movimento nacional dos catadores, que alguns ajudaram a construir e ainda contribuem com sua manutenção.

Muitos catadores sentem orgulho de sua profissão e demonstram que construíram, coletivamente, uma forma de ser trabalhador, e mais, de ser um cidadão crítico, politizado, consciente e que pode transformar a sua realidade, bem como a realidade de outras pessoas. Pedro dizia enfaticamente:

A gente é catador. Tem gente que fala que nós somos agentes ambientais... nada contra o meio ambiente, a gente até ajuda, mas a gente é catador, a gente fez uma cooperativa e ajudamos a fazer outras... a gente é do movimento nacional da categoria (DC: 23/03/13).

Inserem-se no pacto social de uma sociedade que tem o trabalho como algo central, não como sujeitos massacrados pelas contingências que encontram uma saída tática que não lhes permite conservar vantagens, pelo contrário, construíram uma solução estratégica (Certeau, 1994)6, pois ao construírem e manterem uma cooperativa, produziram uma possibilidade de planejar, calcular e estocar ganhos (financeiros, legais e simbólicos) que lhes insere na sociedade como trabalhadores e também como cidadãos. Acreditamos que isso seja um dos fatores que contribuem para que a realização das práticas cotidianas dessas pessoas tenha um caráter positivo e a possibilidade de uma boa manutenção da sua saúde mental, pois, quando somamos a esse autorreconhecimento pelo trabalho realizado, o controle da organização do trabalho e a posse dos meios de produção, nos aproximamos muito do que Sato (1993) define como uma situação que favorece a saúde do trabalhador. Além disso, tal convivência com o trabalho guarda uma grande congruência com o que Dejours (1992) define como o estabelecimento de uma ressonância simbólica, o que levaria à produção de saúde, na relação do sujeito com o seu trabalho. Os trabalhadores percebem os benefícios dos seus esforços coletivos para a construção de uma possibilidade estratégica de produção de trabalho e renda e apresentam fatos cotidianos que corroboram o que foi supramencionado, como: a alegria no ambiente de trabalho, apesar das condições do mesmo; o sentimento de companheirismo entre alguns; as mudanças positivas que isso gerou em suas vidas fora do trabalho; o crescimento pessoal que construíram para trabalhar (e trabalhando) coletivamente e administrar o empreendimento, entre tantos outros. Ainda nesse sentido, um fato é narrado com muito destaque: muitos usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), ao ingressarem no trabalho dentro das cooperativas, com o tempo, relataram ter deixado de tomar remédios psiquiátricos. Os trabalhadores atribuem tal mudança na vida destas pessoas ao ambiente cooperativo e acolhedor de alguns empreendimentos e ao tipo de trabalho que construíram nesses espaços. De alguma forma, sabem que a construção coletiva do trabalho – e como aponta Sato (1993) –, o controle da organização do trabalho e o respeito aos limites subjetivos aportaram ao grupo benefícios e uma sociabilidade no trabalho que permitem a promoção de saúde para as pessoas que ali se encontram realizando suas atividades.

A possibilidade de organizar o trabalho se manifesta em decisões simples, tais como quem vai para a esteira mecânica de seleção do material ou quem precisa descansar dela, pois enfrentar um serviço bastante cansativo em razão do ritmo contínuo e da diversidade do material a ser triado, exige um grau de concentração muito elevado, que pode ser demasiado desgastante para o psiquismo (Seligmann-Silva, 2011). O conceito de desgaste mental aponta os efeitos nocivos que o trabalho pode aportar para o psiquismo do trabalhador. É fato que a relação com o trabalho não é a mesma para todos os catadores. Muitos não conhecem ou não reconhecem as possibilidades estratégicas do cooperativismo e justificam sua permanência nessa atividade por fatores variados, como: falta de oportunidade de fazer algo melhor; falta de instrução para tal; entre outras alegações. Dessa forma, ainda se encontram presos às contingências econômicas e sociais de uma maneira que favorece uma relação ruim com o trabalho quando pensamos os aspetos da saúde do trabalhador, mesmo estando dentro de um empreendimento solidário. Essa constatação induz a pensar na importância do conceito de microlugares de Spink (2008), por meio do qual o autor expressa sua compreensão de espaço não somente como o que nos envolve, mas, sobretudo, pelas redes de significações tecidas no cotidiano: estar contido em um ambiente físico não permite por si só ter acesso às redes de significações construídas na realização das práticas cotidianas; existe um espaço que é simbólico, no qual é preciso se inserir por meio da comunicação, que se expressa nas negociações ordinárias que, além de ações, demandam reflexões.

Pudemos perceber que, por vários motivos, algumas pessoas não se conectam a essa dimensão simbólica do trabalho solidário e do cooperativismo e não conseguem acreditar nas metas coletivas, desprezando suas potencialidades. Alguns argumentam sobre a fraqueza da natureza humana para suportar a solidariedade, outros culpam as intervenções externas, como a sociedade do consumo, a competição etc. O fato é que alguns trabalhadores se encontram mais susceptíveis a reproduzir as formas capitalistas de produção dentro dos empreendimentos, sucumbindo aos desafios diários da manutenção do cooperativismo e da solidariedade, como apontam Addor (2006) e Brancaleoni e Borges (2010), e se afastando de uma relação com o trabalho que contribua para uma boa manutenção da saúde.

Essas diferenças de comportamento e de compreensão do trabalho talvez se devam à heterogeneidade do grupo de pessoas que compõe as associações e cooperativas de trabalho. Muitos são os motivos que os levaram a se vincular aos grupos, mesmo que o pano de fundo do desemprego e da falta de trabalho e renda tenha sido uma tônica, especialmente no começo. Algumas pessoas que encontramos nesses empreendimentos têm uma história pessoal vinculada à catação nos antigos lixões, outros eram trabalhadores de meia idade que realizavam atividades diversas e que perderam seus empregos e não conseguiam encontrar recolocação no mercado de trabalho. Outros eram jovens em busca das primeiras oportunidades e encontramos, até mesmo, uma trabalhadora que, simplesmente, deixou o seu emprego para se vincular à proposta de um trabalho cooperativo e inspirado na Economia Solidária. Como vemos, havia muitas diferenças em suas vinculações aos objetivos cooperativos e solidários dos empreendimentos: o grau de conhecimento e de implicação com seus princípios variava bastante, o que, segundo Certeau (1995), seria o mesmo que dizer que a crença nesses princípios oscilava muito, ou seja, a forma como as pessoas conferiam autoridades a tais princípios variava em graus. A consequência disso, ainda segundo o autor, seria uma dificuldade para o estabelecimento da comunicação, fato que pudemos observar nos conflitos entre os trabalhadores, na dificuldade para fortalecer as decisões democráticas nas assembleias gerais, ou mesmos para realizá-las.

Se as pessoas eram diferentes entre si, podemos afirmar que os grupos também diferiam em vários aspectos, apesar de se conhecerem bem e de realizarem vários trabalhos em comum, chegando mesmo a compor uma cooperativa de segundo grau em conjunto. Nos trabalhos que desenvolvemos, entramos em contato com realidades muito distintas em relação ao tamanho dos empreendimentos, momento de formação dos grupos (tempo que as pessoas estavam juntas construindo o empreendimento), condições de trabalho, implicação com o cooperativismo e a Economia Solidária, receptividade ao nosso trabalho, estilo de organização do trabalho, relação entre diretoria e os demais cooperados, isso sem mencionar que alguns grupos estavam organizados em cooperativas e outros em associações, como destacado anteriormente.

Essas diferenças, bem como a diferença dos momentos e da forma como nos conectamos aos grupos, sem falar dos extensionistas e estagiários que mudavam anualmente, geraram encontros muito particulares e convivências ímpares em cada local. Os assuntos discutidos, a forma de discussão, a observação e o acompanhamento das atividades, bem como a recepção ao trabalho e a sua continuidade variaram muito. Houve situações em que o nosso trabalho perdurou por anos e outras em que ele foi muito bem, num curto período de tempo, e depois, acordamos com os trabalhadores nosso afastamento e o fim das atividades. Esse fim foi definitivo em alguns empreendimentos e, em outros casos, apenas provisório. Os diferentes grupos também conferiam diferentes graus de autoridade (Certeau, 1995) ao tema saúde do trabalhador: alguns grupos acreditavam em sua importância e na relevância de ações afirmativas nesse sentido e nos impulsionavam a nos sentirmos valorizados, outros, contudo, nos recebiam, nos tratavam muito bem, mas, quando propúnhamos uma participação mais ativa das pessoas, no sentido da promoção da saúde do trabalhador dentro dos empreendimentos, não encontrávamos muita adesão e a intervenção entrava em um processo de letargia.

Ao chegarmos perto do restaurante, encontramos um grupo de cooperadas e perguntamos pelas outras pessoas que iriam participar da reunião. Elas riram meio constrangidas e disseram: "que engraçado, disseram que vocês não vinham hoje" (DC: 05/04/2013).

Contudo, quando nossos propósitos encontravam ressonância nos grupos, pudemos perceber que, em algumas situações, os trabalhadores se valiam do prestígio da Unesp, assegurado pela nossa presença nos empreendimentos, de forma estratégica, como uma ferramenta que poderia contribuir para sanar suas dificuldades e melhorar a saúde do trabalhador nesses locais. Ajudamos, por exemplo, nas seguintes atividades: elaboração e confecção de folders e cartazes de campanhas de conscientização da seleção dos materiais recicláveis para a população em geral; elaboração e execução da campanha de vacinação dentro dos locais de trabalho; produção de uma festa junina; elaboração e aplicação de PPRA e PCMSO7; e reelaboração de rotas de coletas de material reciclável, com intervenções junto ao poder público local. Outras vezes, percebíamos ações táticas nos envolvendo, como ajudar a compor e escrever uma letra de música das cooperadas, dias antes de um evento da categoria, no qual apresentariam seu trabalho artístico; em outros momentos éramos persuadidos a levar à diretoria assuntos que um ou outro trabalhador não tinha coragem para levar ou interesse de se expor; pediam-nos conselhos sobre problemas pessoais e familiares, entre outras situações.

Todas essas peculiaridades que fomos descobrindo ao longo do trabalho não desvirtuam os pontos em comum entre essas pessoas e os motivos que nos fizeram empreender nossos esforços: eram trabalhadores e grupos de trabalhadores que construíam uma alternativa de trabalho e renda e que, por esta razão, enfrentavam as dificuldades de empreender, que qualquer pessoa ou grupo de pessoas está sujeita a enfrentar, sobretudo quando se pretende construir uma alternativa ao status quo. Entre as dificuldades, estavam demarcadas e explícitas as possibilidades de viabilizar as questões referentes à saúde do trabalhador dentro dos empreendimentos.

Num primeiro momento, os trabalhadores nos viam como ponto de denúncia daquilo que julgavam pertinente à saúde do trabalhador e relatavam algum tipo de acidente na cooperativa: contusões, cortes, fraturas, quedas entre outros. Demorou algum tempo para que começassem a compreender que a saúde do trabalhador dentro das associações e cooperativas de trabalho era uma consequência da ação cotidiana de todas as pessoas, inclusive daquelas que viam, denunciavam, mas se omitiam no momento da articulação e do comprometimento coletivo para a construção de alternativas possíveis. É preciso destacar que, em cada empreendimento, isso também se deu de maneira particular.

No entanto, algo ficou muito claro logo nas primeiras rodas de conversa: apesar de relacionar certas coisas com o tema saúde, para eles, é a intensidade do fato que caracteriza, ou não, acidente de trabalho.

Perguntei se alguém que estava na roda tinha se acidentado e elas disseram que não. Achei esquisito e perguntei novamente: "ninguém se cortou, ou escorregou?" Elas riram e disseram que isso acontecia muito, assim como picadas de aranha, mordida de rato entre outras coisas... Helena, sorrindo, disse: "mas acidente não, acidente mesmo é raro... se a gente parasse por cada coisinha que acontece, o trabalho não ia andar direito não (risos)" (DC: 21/05/13).

Acontecimentos julgados como menores, como pequenos cortes, dores ou lesões, na maioria das vezes, não eram compreendidas como tal. Para eles, era preciso que o fato fosse agudo, intenso, para que se configurasse como um acidente de trabalho propriamente dito. Existe, portanto, uma compreensão de que esse último é algo importante, sério demais para ser confundido com os diversos problemas que enfrentam cotidianamente. Esses pequenos problemas devem ser banalizados para que a realidade de um trabalho duro e precário, como a seleção do lixo da cidade, seja suportável, aceitável dia após dia. Tal compreensão se apresenta para nós como uma tática desenvolvida durante a história de labor de trabalhadores acostumados a atividades penosas e que não devem ser interrompidas, pois isto significaria menos dinheiro no fim do dia, ou do mês, menos comida, ou seja, mais dificuldades e problemas para a vida comum.

Quando apontávamos como acidente de trabalho fatos comuns em seus cotidianos, eles os banalizavam. Pareciam afirmar que corpos tão acostumados ao trabalho penoso não têm o direito de parar de trabalhar e produzir renda ou, pelo menos não é sábio, muito menos prático, fazê-lo por uma lesão que, a primeira vista não traz consequência pior do que não poder se alimentar, não poder alimentar seus filhos. Pareciam estar acostumados a ter que demonstrar uma força muito grande, pois se habituaram a trabalhar no limite das forças humanas e dispensavam alguns cuidados que tentávamos oferecer, ou mesmo, cuidados que a própria cooperativa ou associação, de forma estratégica, já tinha compreendido a importância, como o uso dos EPIs8, por exemplo.

Eles afirmaram que poucas pessoas utilizavam os EPIs, mesmo sabendo de sua importância para a prevenção dos acidentes e manutenção da saúde. Diante de nossas argumentações sobre a necessidade e a importância da utilização de tais equipamentos, agiam taticamente, escolhiam as justificativas para nos relatar os fatos e ocultar, para nós e para eles mesmos, os prejuízos cotidianos à saúde: diziam que não se protegiam em razão do incômodo que esses equipamentos causam, além de questões ergonômicas e da redução da eficiência no trabalho; usavam argumentos que julgavam justos, ou melhor, que justificariam, para nós pesquisadores e extensionistas, a não utilização dos equipamentos de segurança. Tratam-nos, em certos momentos, como fiscais que estão vigiando suas atitudes e não como pessoas que possam contribuir para a promoção de saúde e segurança no trabalho. Dessa forma, pudemos destacar que a ação tática nem sempre atua no sentido da promoção da saúde do trabalhador, pois, nesse caso, possibilita-lhes apenas um conforto momentâneo ou a manutenção de uma forma de subjetivação que foi muito importante para suportar o trabalho penoso ao longo de suas histórias como trabalhadores.

Outro exemplo de ação tática que pudemos observar foi a utilização da diretoria por parte dos trabalhadores como um escudo para se defenderem de tudo que apontamos como algo problemático no cotidiano trabalho. Constantemente, assumiam uma posição de empregados em relação aos diretores, como se eles os obrigassem a agir de maneira equivocada por uma ação direta, uma ordem, ou por uma omissão, privando-os, por exemplo, de equipamentos de segurança, de uma adequada organização do trabalho, entre outras coisas.

Se, por um lado, as ações táticas dos cooperados nem sempre contribuíam com a saúde do trabalhador nos empreendimentos, as soluções estratégicas seguiam outros rumos. Eles construíram um carrinho próprio para a coleta de material reciclável, que melhorou as condições de realização do trabalho: é mais leve, mais fácil de locomover e acumula maior quantidade de material. Segundo eles, esse novo instrumento de trabalho facilitou a vida das pessoas que empurram o carrinho nas ruas, diminuindo as dores e as lesões provenientes da realização da atividade; trata-se de um nítido exemplo do que Dagnino (2014) chamou de tecnologia social.

Como ação estratégica de promoção de saúde, destacamos também a vacinação dos cooperados, que começou com a ideia da elaboração de uma campanha junto com os extensionistas e culminou com a implementação do PCMSO. O próprio grupo de cooperados definiu a importância de se construir um programa de vacinação adequado para os trabalhadores dentro das rodas de conversa e, com o TAC9, isso passou a vigorar como uma das obrigações da cooperativa para responder às exigências do Ministério do Trabalho.

Outro fato estratégico bastante relevante foi a construção de um PPRA com o auxílio de uma escola formadora de Técnicos de Segurança no Trabalho10, que culminou na contratação de um desses profissionais para prestar o serviço de implementação do programa e na matrícula e formatura de uma cooperada, nessa mesma escola. Esses fatos alteraram a realidade do empreendimento, trazendo uma série de novas exigências no que se refere tanto à construção do hábito e à obrigatoriedade da utilização dos equipamentos de segurança, como à construção de uma organização do trabalho definida como mais segura e saudável por um especialista externo à cooperativa. No entanto, pudemos observar que tais transformações nem sempre são definitivas e muitos dos problemas sanados em uma época voltam a acontecer em outra.

Muitos outros assuntos foram trazidos e discutidos pelos trabalhadores nos grupos, como possibilidades de ações estratégicas que gostariam de ver implantadas nas associações e cooperativas de trabalho: exames admissionais como a audiometria, exames de sangue, Papanicolau, entre outros. A limpeza e a organização do espaço também apareceram como temas relevantes para a manutenção da saúde e prevenção de acidentes, segundo os cooperados. Contudo, o melhor manuseio dos equipamentos de trabalho figurou como um tema destacado nos grupos acompanhados: o uso incorreto de máquinas e ferramentas, especialmente das prensas utilizadas para enfardar o papelão e as PETs.

Alguns cooperados reconhecem que precisam de mais treinamentos periódicos para operar determinadas máquinas e ferramentas, sobretudo em virtude da grande rotatividade de trabalhadores dentro desses empreendimentos e da natureza dos equipamentos, que constatam parecer equivocada: ao invés de auxiliar o trabalhador de forma segura parece não ter outro objetivo senão o aumento da produção, como aponta Weil (1979). Outros, no entanto, pela pressão do ritmo de trabalho, ou simplesmente banalizando o perigo, encontram soluções para realizarem suas práticas cotidianas por meio de operações arriscadas, como subir em um funil, na origem da esteira mecânica, para pular sobre o material que a está entupindo, correndo o risco de serem sugados e mutilados. Outros, ainda, operam as prensas com displicência sem cumprir todos os procedimentos de segurança. Ambos repetem vícios equivocados de comportamento no trabalho que contribuiriam para um suposto efetivo cumprimento das atividades, mas não contribuem para a prevenção de acidentes e a promoção da saúde do trabalhador.

Quando questionados sobre os riscos de suas atitudes, muitas vezes, esses trabalhadores recorriam à sua experiência e à destreza que construíram no cotidiano de trabalho ao longo de meses, ou até mesmo anos, para banalizar a gravidade da situação: "Nossa! Faço isso há muito tempo (falando sobre a prensa), não tem perigo não, o duro é quando o cara é novo... aí é perigoso" (Fabiano – DC: 21/06/16).

Isto nos faz pensar que o conhecimento prático produzido no dia a dia de trabalho, que muito valorizamos em nossas pesquisas e extensão, é, ao mesmo tempo, algo que pode contribuir tanto positivamente como negativamente para os próprios trabalhadores e para o coletivo. Quando ele não permite ao trabalhador perceber a complexidade da realização de suas tarefas, podemos dizer, então, que ele se encontra impregnado de uma ideologia produtivista e desumana, que não leva em conta uma consciência de si e do outro, bem como não permite construir uma nova realidade solidária e cooperativa. Esse fato, para nós, de certa forma, permite dizer que não favorece a saúde do trabalhador, compondo uma prática cotidiana que revelaria uma atitude de reprodução dos produtos culturais de opressão, adoecimento e aumento das condições acidentogênicas.

Questões sobre a saúde mental dos cooperados também foram debatidas. Relatos de humilhações, indiferença e invisibilidade social por parte da população apareceram nos grupos e nos remetem a trabalhos como os de Costa (2008) e Silva e Thomaz-Junior (2013), que mostram que, além das consequências sociais, essas experiências podem contribuir para o adoecimento. Autores como Dejours (1992) apontam a grande importância do reconhecimento do trabalho para uma boa manutenção da saúde mental, e que a falta dele, pode levar ao adoecimento. No entanto, alguns trabalhadores encontram no pertencimento a uma cooperativa de catadores, ou mesmo em sua vinculação com o movimento nacional da categoria, uma saída estratégica para esta questão e conseguem produzir uma identificação com o trabalho que lhes garante reconhecimento de seus pares, além do fato de terem construído uma compreensão da importância social do seu trabalho. Assim, caminham no sentido da motivação e do prazer no trabalho, contribuindo para a sua saúde.

Ainda no campo da saúde mental, os trabalhadores se referem às dificuldades trazidas por problemas de relacionamento entre eles. Os motivos que compõem esse quadro são de naturezas muito distintas, mas dificultam a realização das tarefas e a sua organização, favorecendo vivências de desprazer e adoecimento no trabalho. Como aponta Andrada (2013), apesar dos trabalhadores inseridos em cooperativas e buscando os princípios solidários comungarem de uma identidade coletiva que lhes fortalece, as tensões são constantes e problemas de relacionamento costumam aparecer. "Roberta disse com voz bem irritada ‘o que mata aqui é a fofoca!'" (DC: 25/08/16).

É fato que, nem sempre, os problemas de relacionamento são negativos e podem gerar reflexão e transformação, desde que propiciem o compromisso com o empreendimento. Contudo, por vezes, as tensões só contribuem para o acirramento de conflitos e aumento dos problemas não resolvidos, compondo, assim, ainda mais elementos negativos para a saúde dos trabalhadores e para o comprometimento do grupo com suas finalidades e objetivos.

A convivência com esses trabalhadores nos mostrou algo muito diferente do que já havíamos acompanhado em nossa história como pesquisador: viver a experiência de trabalho amparado por uma solução estratégica, que, ao longo de suas histórias como grupos de trabalhadores, lhes conferiu tantas vantagens tem uma marca fundamental para o campo da saúde dos trabalhadores, ou seja, permite uma experiência de trabalho que tende à promoção de saúde do trabalhador. Por mais que tenhamos observado e discutido com essas pessoas sobre seus problemas de condição e organização de trabalho, o fato de seu cotidiano se desenrolar em um campo próprio (Certeau, 1994) lhes confere certa imunidade contra o que costumamos chamar de trabalho, de forma genérica, pois eles se encontram inseridos no trabalho também de forma simbólica, já que esse campo próprio, esse espaço próprio é o espaço das significações tecidas no cotidiano, ou o que Spink (2008) denominou de microlugares. Tudo isso mostra a construção de um trabalho que tende a ser autônomo e cheio de sentido.

 

Considerações finais

Nesses anos de convivência com os grupos, nosso referencial teórico e metodológico nos possibilitou grandes oportunidades de aproximação com o objeto de estudo, nos colocando diante das pessoas e de suas práticas cotidianas. Fomos introduzidos em um novo universo de significações e de possibilidades que revelou a existência de um tipo de trabalho que não conhecíamos, a não ser teoricamente. Com isso, não queremos dizer que desconhecíamos o trabalho cooperado e solidário, mas que não tínhamos uma compreensão mais efetiva de sua natureza e das suas consequências para os trabalhadores. Para usarmos uma expressão popular que, por vezes escutamos dos catadores, "atiramos no que vimos e acertamos no que não vimos".

Por várias vezes, fomos levados a nos questionar sobre nossas convicções pessoais e profissionais e nos sentimos incomodados com tantos desafios. Resistimos em alguns momentos e sucumbimos em outros, assim como vimos os trabalhadores fazerem, mas como eles, ou com eles, aprendemos outros significados para a expressão seguir em frente e sonhar: no cotidiano do trabalho coletivo, a busca pela transformação é bem pouco romântica ou pragmática, necessita mesmo é de grande criatividade para negociar e muita disposição para respeitar os limites do outro. Vimos também situações com as quais não concordamos e, talvez, não tenhamos tido elementos suficientes para compreender.

Quanto aos resultados, este trabalho nos possibilitou confirmar e verificar como a reprodução capitalista acontece dentro dos empreendimentos econômicos solidários e de que maneiras seus efeitos nocivos os atingem. No entanto, nos mostrou, também, que tais efeitos são minimizados em nesses empreendimentos, pois a implicação com a busca pelos princípios da solidariedade e do cooperativismo possibilita um espaço privilegiado para a realização das práticas cotidianas e, confere a seus trabalhadores uma imensa possibilidade de produção de ações estratégicas. Isso é fundamental para a construção de um planejamento de ações preventivas, que permitam evitar o adoecimento, ou melhor, que possibilitem condições e organização de trabalho que contribuam para uma boa relação dos trabalhadores com o trabalho. Como afirma Sato (1993), o conhecimento e o poder para controlar a organização do trabalho e respeitar os limites subjetivos individuais são fundamentais para a saúde do trabalhador.

Por mais que existam dificuldades e desânimo, a certeza de que se conseguiu muito, partindo da vontade de trabalhar e resistir, lhes permite fortalecer-se novamente e sonhar, planejar mais e buscar ampliar suas possibilidades de geração de trabalho e renda, contribuir com a criação e o fortalecimento de outros grupos e tentar sanar os problemas que encontram pela natureza de sua empreitada.

Então, podemos dizer que essas pessoas, ao viverem o desafio de construir uma alternativa de trabalho e renda, se construíram como novos sujeitos e, consequentemente, construíram um novo trabalho. Não estamos trazendo essas afirmações com o objetivo de dizer que o trabalho nos empreendimentos econômicos solidários acompanhados é perfeito e inatingível. Pelo contrário, os resultados desta pesquisa apontam falhas e problemas graves vividos por alguns grupos, chegando mesmo a se desvincularem totalmente dos princípios cooperativos e solidários, bem como da incubação. No entanto, suas diferenças nos permitem afirmar uma das hipóteses deste trabalho, de que não se pode pensar a saúde do trabalhador, em tais grupos, da maneira convencional, como nos habituamos a fazer, o que deve acarretar especificidades para possíveis políticas públicas.

Por fim, gostaríamos de agradecer aos trabalhadores que nos receberam muito gentilmente em seu local de trabalho e de destacar que essa convivência, oriunda da pesquisa e da extensão que nos propusemos a realizar, nos permitiu ampliar nosso conhecimento sobre o objeto, articulando dimensões fundamentais do trabalho acadêmico.

 

 

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Endereço para correspondência

castro.mf@hotmail.com

 

 

Recebido em: 12/03/2019
Revisto em: 16/08/2019
Aprovado em: 28/08/2019

 

1 https://orcid.org/0000-0002-6554-7846
2 Doravante, utilizaremos apenas a palavra empreendimentos para nos referirmos a empreendimentos econômicos solidários.
3 Incubadora de Cooperativas Populares da Unesp.
4 Todos os nomes de trabalhadores apresentados aqui são fictícios.
5 Diário de Campo.
6 Doravante, todas as vezes que utilizarmos as palavras tática e estratégia, não faremos mais citação à obra de Certeau, pois isso ocorrerá com grande frequência e corremos o risco de poluir o texto com informações desnecessárias, já que o leitor compreendeu que estes conceitos foram extraídos da obra do referido autor.
7 Programa de Prevenção de Riscos Ambientais e Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional. Ambos são exigências legais estabelecidas, respectivamente, pela NR-9 e pela NR-7 (Norma Regulamentadora nº 7 e nº 9, instituídas pelo Ministério do Trabalho e Emprego) que visam a promoção da saúde e a preservação da integridade física dos trabalhadores, nas organizações de trabalho.
8 Equipamento de Proteção Individual.
9 Termo de Ajuste de Conduta, imposto, nesta ocasião, pelo Ministério Público.
10 CENTEA da cidade de Assis.

 

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