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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.22 no.2 São Paulo July/Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v22i2p143-163 

ARTIGOS ORIGINAIS

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v22i2p143-163

 

O sentido do trabalho para bombeiros pós-evento crítico: o caso da Boate Kiss

 

The meaning of work for post-event firefighters: the case of Nightclub Kiss

 

 

Manueli Tomasi1; I, , Shalimar GallonII;2 , Jandir PauliII, 3 ; Roseane CarvalhoII, 4

I Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo, RS, Brasil)

II Faculdade Meridional (Passo Fundo, RS, Brasil)

 

 

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Atuando em eventos inesperados e tendo como missão a preservação da vida, a profissão de bombeiro merece destaque em estudos acadêmicos pelo envolvimento emocional e físico que a atividade exige. Este estudo qualitativo analisou o sentido do trabalho para 40 bombeiros envolvidos no evento crítico ocorrido na Boate Kiss (Santa Maria). Constatou-se que, para os entrevistados, o evento refletiu negativamente nas dimensões organizacional e social, alterando o sentido atribuído ao trabalho, especialmente, frente à precariedade da relação de trabalho, falta de aceitação moral e de reconhecimento social.

Palavras-chave: bombeiros, sentido do trabalho, evento crítico


ABSTRACT

Acting in unexpected events and having the mission of preserving life, a firefighter's profession deserves emphasis in academic studies due to the emotional and physical involvement that the activity requires. This qualitative study analyzed the meaning of work for 40 firefighters involved in the critical event occurred at the Nightclub Kiss (Santa Maria). It was found that for the interviewees the event reflected negatively on the organizational and social dimensions, changing the meaning attributed to work, especially, when facing its precarious relationship, lack of moral acceptance and social recognition.

Keywords: firefighters, meaning of work, critical event.


 

 

Introdução

O trabalho é uma atividade repleta de sentidos e é uma das principais dimensões psicológicas na vida do trabalhador, afetando sua percepção de mundo e de si próprio na sociedade (Silva & Capelle, 2017). A análise do sentido do trabalho é um desafio importante para o atual contexto, tendo em vista as mudanças no mundo e nas relações de trabalho e que, consequentemente, atingem as organizações diretamente (Morin, 2001). Mais especificamente, a organização do trabalho é um assunto relevante porque envolve tópicos como construção da identidade, sofrimento, saúde, motivação, percepção de justiça e reciprocidade nas relações intersubjetivas (Bendassolli & Borges-Andrade, 2011).

A organização do trabalho inclui a forma como ocorre a divisão do trabalho nas organizações, o conteúdo da tarefa realizada, o sistema hierárquico, as formas e modalidades de comando, bem como as relações de poder entre níveis hierárquicos e as questões relativas à responsabilidade dos trabalhadores (Dejours, Abdoucheli, & Jayet, 1994). Desse modo, ela resulta das relações intersubjetivas entre trabalhadores e suas organizações, atuando no funcionamento psíquico dos sujeitos e influenciando sua saúde mental (Dejours et al., 1994). Portanto, a organização do trabalho, por meio dos processos de gestão e dos coletivos de trabalho, contribui para atribuição de sentido ao trabalho na medida em que amplia o interesse para solução de problemas, mobilização de afetos e relações de confiança entre os pares (Dejours et al., 1994).

O espaço de trabalho é destinado para o cumprimento das tarefas e a organização do trabalho atuará, por meio dos processos de gestão, nos coletivos de trabalho, desestruturandoos muitas vezes (Dejours et al., 1994). Em outros termos, o modelo de gestão pode contribuir para o surgimento de sofrimento na medida em que a organização do trabalho cria uma lacuna entre trabalho prescrito e trabalho real, ocasionando sentimentos de desprazer e tensão (Dejours et al., 1994). Os meios pelos quais o sofrimento se manifesta geralmente são o medo, insatisfação, desgaste físico, frustração, tensão, angústia e inquietação, entre outros (Mendes, 2012).

Desse modo, em algumas profissões, há maior envolvimento emocional, pela relação do trabalhador com a organização à qual está vinculado e pela expectativa social sobre sua atuação. Uma destas profissões é a de bombeiro, na qual o sujeito pode vir a atuar em eventos inesperados, por vezes, de grandes proporções, nos quais a carga física e psíquica exigida chega ao limite (Marconato & Monteiro, 2015; Zanettini, Narzetti, & Mattos, 2015). É inerente à profissão de bombeiro estar disponível para atuar nos chamados eventos críticos, originados de uma cadeia de incidentes e que resultam em uma situação de desastre e emergência de grandes proporções e ampla repercussão social (Noal et al., 2016).

No imaginário social, os bombeiros são heróis que colocam sua vida em risco para salvar a vida de terceiros (Ribeiro, 2016). Eles são idealizados e vistos como pessoas confiáveis e invencíveis, características que começam a fazer parte da identidade profissional do bombeiro (Monteiro et al., 2007). Nesse aspecto, a escolha por ser bombeiro está entrelaçada a um estilo de vida, na qual o sujeito está disposto a conviver diariamente com responsabilidades relacionadas a si mesmo e à sociedade, buscando proporcionar bem-estar e segurança à população (Capitaneo, Ribeiro, & Silva, 2015).

O trabalho do bombeiro vem sendo analisado em diversos estudos como um dos mais susceptíveis a fatores estressantes e as atividades por eles desempenhadas como uma das mais perigosas (Halbesleben & Clark, 2010; Lima, Assunção, & Barreto, 2015; Marconato & Monteiro, 2015). Lidar com a morte, vítimas feridas e eventos críticos pode causar danos físicos e psicológicos (Monteiro et al., 2007), estando os indicadores de saúde mental de bombeiros diretamente ligados a estresse, ansiedade e angústia (Vidotti, Coelho, Bertoncello, & Walsh, 2015; Amato, Pavin, Martins, Ronzani, & Batista, 2010).

Neste artigo, optou-se pela utilização da nomenclatura "evento crítico", que se refere a um "evento que dá início à cadeia de incidentes, resultando no desastre, a menos que o sistema de segurança interfira para evitá-lo ou minimizá-lo" (Brasil, 2009, p. 109). A definição está ancorada em nomenclaturas institucionais do Ministério da Integração Nacional (Brasil, 2009) e órgãos internacionais como a United Nations International Strategy for Disaster Reduction (UNISDR, 2009) e Inter-Agency Standing Committee (IASC, 2007). Devido à proporção e às características do acontecimento que será apresentado neste texto – o incêndio na Boate Kiss, ocorrido em 2013, na cidade de Santa Maria, RS – enquadra-se nessa definição, uma vez que se trata de um incêndio de grandes proporções e fatalidades. O incêndio causou a morte de 242 pessoas e deixou outras 680 feridas (as vítimas eram predominantemente jovens estudantes).

A revisão da literatura indica uma carência de pesquisas nacionais que avaliem as percepções dos bombeiros sobre seu trabalho após atuarem em eventos críticos, especialmente relatos de casos sobre eventuais mudanças atribuídas ao sentido do trabalho após o evento. O objetivo do estudo apresentado aqui foi compreender o sentido do trabalho atribuído pelos bombeiros que atuaram no caso da Boate Kiss, ressaltando sua percepção sobre a dimensão individual, organizacional e social do seu trabalho pós-evento crítico.

 

O sentido do trabalho

Nesta pesquisa, adota-se a perspectiva de sentido do trabalho de Hackman e Oldham (1975), do grupo Meaning of Work International (MOW, 1987) e de Morin (2001), visando explorar a abordagem gerencialista. Segundo Hackman e Oldham (1975), um trabalho que tem sentido é importante, útil e legítimo para aquele que o realiza, que é influenciado por ele: (i) pela variedade das tarefas; (ii) um trabalho não alienante, que permite a realização de algo do começo ao fim, com um resultado tangível, identificável; (iii) por ter impacto significativo sobre o bem-estar e o trabalho de outras pessoas, seja na organização, seja no ambiente social; (iv) pela autonomia; e (v) pelo feedback.

Os sentidos atribuídos ao trabalho se modificaram ao longo do tempo e assumiram um valor histórico socialmente construído. Considerando diferentes contextos, é possível dizer que sua centralidade na estruturação social não se limita apenas à garantia da sobrevivência material, mas perpassa outras dimensões da vida, como a integração social e a constituição de subjetividades, interferindo na concepção que sujeito faz de si e dos outros (Souza & Moulin, 2014; Morin, 2001).

O sentido do trabalho, de acordo com as pesquisas do MOW (1987), é definido como uma condição que vai da neutralidade até a centralidade na identidade pessoal e social (Morin O sentido do trabalho para bombeiros pós-evento crítico: o caso da Boate Kiss et al., 2007). Em outros termos, as tarefas executadas durante o trabalho participam da construção de sentido nas dimensões (i) individual, associada à satisfação, independência, sobrevivência, crescimento, aprendizagem e formação da identidade; (ii) organizacional, indicando utilidade, relacionamento e inserção social e; (iii) social, na medida em que contribui para a sociedade, sendo considerado ético e moralmente aceito (Morin et al., 2007).

Na dimensão individual, o trabalho faz sentido quando encontram-se os seguintes fatores: coerência, trabalho que permite a identificação com os valores da pessoa e o quanto a pessoa acredita no trabalho que realiza; alienação, que envolve o quanto o indivíduo é capaz de saber o que ele está executando; prazer e valorização, que se refere aos sentimentos prazerosos ao realizar as atividades e sentimentos de valorização; desenvolvimento, que se refere à possibilidade de crescer profissionalmente; sobrevivência e independência, garantias de retorno financeiro satisfatório e liberdade financeira (Morin, 2001; Oliveira, Piccinini, Fontoura, & Schweig, 2004).

Na dimensão organizacional, o trabalho faz sentido quando possibilita: ser útil, agregando valor organizacional, satisfazendo as expectativas da empresa; ser autônomo, permitindo o pensamento e a criação e sendo desafiante; relacionamentos interpessoais, consentindo o contato com pessoas, e ambientes organizacionais agradáveis (Morin, 2001; Oliveira et al., 2004).

Por último, a dimensão social apresenta como principal fator o sentimento do trabalho estar sendo útil, contribuindo para alguém e/ou comunidade e sociedade. Quando não agrega, o trabalho passa a não fazer sentido (Oliveira et al., 2004). Nessa esfera, compreende-se o trabalho como aquele que permite a união entre o exercício de atividades e suas consequências sociais. Quando é possível, esse passa a contribuir com a construção da identidade social, protegendo a dignidade pessoal (Morin, 2001).

Compreender o que dá sentido ao trabalho pode ser um caminho para ações assertivas. Segundo um estudo realizado com peritos criminais da Policia Federal (Rodrigues, Barrichello, Irigaray, Soares, & Morin, 2017), existem fatores que antecedem a experiência do sentido do trabalho. Os resultados encontrados sobre essa população indicam que o sentido do trabalho para os funcionários públicos se dá por meio das suas percepções de utilidade social no trabalho, oportunidades para aprender e desenvolver suas atividades. Essa experiência indicou uma maior qualidade de vida, bem-estar psicológico e comprometimento afetivo no ambiente laboral (Rodrigues et al., 2017).

Outra pesquisa realizada com administradores de nível médio e superior no Canadá mostrou que o trabalho faz sentido quando: (i) é executado de maneira eficiente, é organizado e leva a algum resultado com utilidade; (ii) mostra-se satisfatório, sendo necessário existir prazer e satisfação na realização das tarefas, ou seja, ele deve permitir a autonomia do sujeito para resolver os problemas de forma que utilize seu talento e seu potencial; (iii) é moralmente aceito e justo, devendo ser realizado de maneira socialmente responsável; e (iv) possibilita fonte de experiências de relações humanas satisfatórias, construindo laços de afeição (Morin, 2001).

No caso da categoria de profissionais bombeiros, uma pesquisa recente sobre as relações de trabalho desse segmento mostrou uma preocupação em relação às vivências de trabalho, pois há um constante sofrimento que parte da falta de investimento do Estado, no que se refere à valorização da profissão (Gama, Ferreira, Coutinho, & Moreira, 2019). Os participantes da pesquisa realizada por Gama et al. (2019) mencionaram que a falta de investimento em melhorias nas condições estruturais do ambiente de trabalho está prejudicando a efetividade dos serviços prestados à população. Dessa forma, a sociedade está tendo um olhar negativo sobre a profissão. Segundo os autores, com a falta de reconhecimento da sociedade e a precarização do ambiente de trabalho, cresce o número de profissionais adoecidos em decorrência da atividade.

A desvalorização do trabalho influencia sujeitos a não encontrarem sentido nas atividades executadas (Tolfo & Piccinini, 2007). A atividade laboral deixa de ser uma categoria integradora, pela qual é possível criar e reconhecer-se enquanto indivíduo e ser social. E quando não encontra sentido, o sujeito, alienado, opera apenas como produtor e consumidor de capital, sem benefícios à sua identidade nas atividades que executa (Tolfo & Piccinini, 2007).

Pode-se compreender alienação no trabalho como perdas que o indivíduo sofre de suas potencialidades subjetivas, quando não possui o controle sobre as condições nas quais trabalha, bem como sobre o produto de seu trabalho (Tolfo & Piccinini, 2007). O resultado desse processo é que o sujeito deixa de perceber a atividade laboral como categoria integradora, pela qual é possível criar e reconhecer-se enquanto indivíduo e ser social. Nessa alienação, o trabalho se torna uma ameaça ao ideal do sujeito de liberdade, e dignidade representando uma ameaça à própria existência material e psíquica (Bendassolli & Borges-Andrade, 2011, p. 144).

Em síntese, um trabalho que tem sentido é, portanto, importante, legítimo, tem impacto sobre o bem-estar; está vinculado a um feedback; é útil; é influenciado pela variedade das tarefas; é promotor dos laços sociais e fonte de realização; traz um resultado tangível; dá autonomia ao sujeito; é responsável pela construção da identidade da pessoa; está relacionado ao reconhecimento do trabalho, permitindo sobrevivência; está relacionado à aprendizagem e segurança no trabalho e é essencial na vida das pessoas; utiliza o talento do sujeito, é moralmente aceito, realizado de maneira socialmente responsável e permite independência financeira e, finalmente, proporciona união no grupo e realização do trabalho em equipe (Hackman & Oldham, 1975; MOW, 1987; Bastos, 1995; Morin, 2001; Morin et al., 2007; Nascimento, Santos, & Pinho, 2017).

Compreender os sentidos do trabalho implica não olhar apenas para as atividades profissionais, mas reconhecer o espaço laboral como um lugar permeado de modos de existência, capazes de ultrapassar os muros institucionais. Quem trabalha está constantemente mobilizando seu corpo, seus afetos e sua inteligência. Pessoas são transformadas pelo trabalho e também o transformam. É no trabalho que se investe o desejo e nele projeta-se a vida singular, familiar e social. É nessa complexidade que o trabalho pode tecer vida, morte, prazer e sofrimento, saúde e doença, pois ele adentra a intimidade e modos de existência (Duarte, 2016). Trabalhar é a ação que transforma a natureza, mas também a si e o seu entorno, sendo capaz de humanizar ou desumanizar (Antunes, 2003).

Sendo assim, compreender os sentidos do trabalho torna-se uma ferramenta efetiva para avaliar suas variações no curso de vida laboral, monitorando os riscos de alienação, perda da sua dimensão integradora e o adoecimento físico e psíquico dos trabalhadores. Especificamente, a pesquisa apresentada neste artigo buscou compreender sentidos atribuídos pós-eventos críticos, partindo das dimensões individual, organizacional e social do trabalho (Morin et al., 2007), operacionalizadas a partir das categorias da execução eficiente e organização; satisfação, prazer e autonomia para resolução de problemas; moralidade, aceitação e reconhecimento O sentido do trabalho para bombeiros pós-evento crítico: o caso da Boate Kiss social do trabalho; e contribuição para estabelecimento de relações humanas satisfatórias (Morin, 2001).

 

Eventos críticos

Tragédias, desastres e eventos críticos frequentemente são usados como sinônimos. No entanto, se diferem em função do seu conceito e do contexto histórico em que emergiram. No presente estudo, adota-se a nomenclatura 'eventos críticos', que aborda as situações originadas de uma cadeia de incidentes que resulta em uma situação de desastre e emergência, a menos que um sistema de segurança previna ou interfira para amenizá-la (Noal et al., 2016). A análise de catástrofes, circunstâncias ou condições sociais que afetam significativamente a sociedade devido a seu impacto é conhecida como análise de risco de desastres ou risco anunciado de desastre futuro (Narváez, Lavell, & Ortega, 2009).

Tempestades, incêndios, enchentes, chacinas, graves acidentes, desmoronamentos e terremotos são ocorrências que chocam. Elas, porém, abrem espaço para a discussão e a reflexão sobre o que poderia ter sido feito para evitá-las, sobre como preveni-las no futuro e como tratar suas consequências (Castilho, Oliveira, & Fabriani, 2012; Cardoso, Costa, & Navarro, 2012). Geralmente esses acontecimentos acarretam consequências em termos de interrupção da normalidade da vida diária (Narváez et al., 2009). Provocam alterações nos processos de desenvolvimento humano, afetando de diferentes formas a saúde, a infraestrutura, as crenças e as perspectivas de vida (Costa, Pacheco, & Perrone, 2016; Paranhos & Werlang, 2015), causando prejuízos socioeconômicos devido às perdas materiais e humanas (Cardoso et al., 2012).

Em qualquer evento crítico, enquanto as autoridades governamentais demandam a punição exemplar dos responsáveis – mesmo sem saber se existe algum ato culposo –, surgem explicações aparentemente óbvias, como os conflitos de interesses econômicos (Lima, Diniz, Rocha, & Campos, 2015). No entanto, as rápidas explicações e a procura por culpados impedem que esses eventos sejam analisados em toda sua complexidade e, por consequência, limitam a possibilidade de prevenção (Lima et al., 2015; Vilela, Iguti, & Almeida, 2004).

Os principais sintomas originados pelos eventos críticos em familiares, comunidade e profissionais envolvidos são: memórias vívidas dos falecidos e do fato que aconteceu; problemas relacionados ao sono; sensação de impotência, frustração, culpa de si e/ou dos outros, medo e tristeza; pouca motivação para retornar ao nível normal de atividades cotidianas e ao trabalho (Rodríguez, Davoli, & Pérez, 2006).

As equipes de trabalho que atuam em eventos críticos – equipes de socorro, corpo de bombeiros, defesa civil –, os quais envolvem alto grau de risco pessoal e a responsabilidade por comunidades inteiras, requerem atenção especial à saúde física e psicológica de seus integrantes (Silva, 2009). Tais pessoas estão sob estresse permanente, já que, em geral, realizam suas atividades laborais em contextos com alto grau de imprevisibilidade e tensão. De um lado, a comunidade cria expectativas de serem esses profissionais capazes de salvar vidas e reduzir danos de forma imediata; de outro, há profissionais que dispõem de poucos recursos e, assim mesmo, buscam desenvolver seu trabalho (Silva, 2009).

Pesquisadores brasileiros e de outros países têm demonstrado interesse pela temática, visando compreender as situações de emergências e buscar soluções para prevenir e intervir em situações de eventos críticos, causados pelo homem ou pela natureza, mas que provocam consequências na sociedade de modo geral (Bassi et al., 2014; Noal et al ., 2016; Rodríguez- Toubes, Brea, & Torre, 2014; Williams & Drury, 2009). É necessário difundir estudos sobre essa temática, a fim de melhor compreender e dar atenção às pessoas que vivenciam eventos críticos, buscando o fortalecimento das habilidades de enfrentamento nesses eventos (Paranhos & Werlang, 2015).

 

Ser bombeiro

A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO, 2002) define bombeiro militar como o profissional apto a prevenir situações de risco e a executar salvamentos terrestres, aquáticos e em altura, protegendo pessoas de incêndios, explosões, vazamentos, afogamentos ou qualquer outro tipo de situação, até mesmo no acompanhamento de partos de emergência a caminho do hospital, na captura de animais, em vistorias contra incêndios e na preservação do meio ambiente (Barbosa, 2011; Cunha, 2016; Monteiro et al., 2007). Os bombeiros têm como missão básica preservar a vida, o meio ambiente e o patrimônio (Barbosa, 2011; Vidotti et al., 2015).

Referindo-se ao trabalho do bombeiro, o que se percebe é que a categoria se apropria do seu trabalho e executa suas atividades de acordo como foi construída essa realidade dando a ela um significado particular. Para ser bombeiro e exercer a função, o indivíduo necessita ter uma ideia, uma simbolização da instituição da qual pretende fazer ou faz parte (Santos, Gomes, Faustino, & Almeida, 2011). Ao reproduzir o significado já existente, ele também reconstrói esse saber, transformando as situações e sentimentos em fenômenos particulares que vão orientá-lo na sua relação com o trabalho (Santos et al., 2011)

Estudos sobre os aspectos simbólicos da profissão bombeiro (Capitaneo et al., 2015; Monteiro et al., 2007; Vidotti et al., 2015) demonstram que existe sentimento de amor e experiências de sofrimento na profissão escolhida. A dimensão positiva está relacionada à identificação desses profissionais com a imagem de competência e de potência que a população lhes atribui. Há outros fatores igualmente relacionados com essa profissão, como a valorização interna dos profissionais, o reconhecimento, o orgulho em ajudar o próximo, o bom relacionamento entre colegas de trabalho e a estabilidade profissional (Capitaneo et al., 2015; Monteiro et al., 2007).

O sofrimento estaria ligado ao significado que a palavra bombeiro representa para a sociedade: pessoa forte, que pode suportar tudo e não deve se queixar de nada, ocultando o lado humano desses profissionais (Capitaneo et al., 2015). Coerente com isso, a mídia atua como principal divulgadora dessa idealização, sendo comum observar noticiários e manchetes que ressaltam o heroísmo dos bombeiros. Nesse heroísmo, lhes é atribuída dupla responsabilidade: cuidar de seu desempenho no trabalho e manter a imagem heroica (Frutos, 2007; Souza, 2013). Todavia, o bombeiro é um cidadão comum que recebeu treinamento técnico para atuar em situações de perigo (Barbosa, 2011). Um dos métodos ensinados visa à rápida triagem e ao tratamento da vítima, a fim de analisar suas lesões, evitando dispensar atenção às vítimas que apresentem lesões que nitidamente lhes causarão a morte (Barbosa, 2011). Tal método influencia as chances de sobrevivência de outras pessoas, visto seus pressupostos.

Quando o bombeiro está em uma situação que ameaça sua vida – por exemplo, a entrada em um prédio em chamas que pode ruir a qualquer momento –, ele pode optar por não realizar O sentido do trabalho para bombeiros pós-evento crítico: o caso da Boate Kiss aquela ação (Barbosa, 2011). A tomada de decisão exige do profissional preparo para avaliar a situação e para não colocar em risco os colegas de trabalho em casos nos quais não haveria sucesso no salvamento (Barbosa, 2011; Cunha, 2016). Tal situação ocorreu, por exemplo, após o ataque terrorista aos prédios do World Trade Center, nos Estados Unidos, quando a decisão de entrar no WTC possibilitou o salvamento de muitas vidas, mas muitos bombeiros morreram nessa empreitada (Barbosa, 2011).

A situação exposta anteriormente mostra que, em cada evento crítico, há uma decisão a ser tomada, que coloca o profissional em um dilema: o dever de agir versus o direito à vida (Barbosa, 2011). A vivência desse tipo de situação ocasiona riscos à saúde do profissional, pois a tomada de decisão torna-se um fator de extremo estresse (Barbosa, 2011; Vidotti et al., 2015). Exige-se do profissional que ele tenha atenção, alta carga de cognição, tomada de decisão precisa e que esteja rápida e constantemente em estado de alerta. Esses fatores, somados ao ambiente e à organização de trabalho, podem ocasionar estresse ocupacional (Vidotti et al., 2015), visto que não há suporte organizacional que ajude os bombeiros a enfrentar tais situações. Por mais usuais que sejam para eles, não deixam de ser traumáticas (Monteiro et al., 2007).

Nesse contexto, os bombeiros desenvolvem resistência emocional e física para encarar as pressões da profissão, amenizando a carga emocional e ajudando na superação das perdas e da condição de impotência perante o trabalho realizado (Zanettini et al., 2015). Tornam-se necessários estudos que compreendam o bombeiro em sua totalidade, entendendo como o sujeito se percebe em seu papel profissional, como considera que é percebido e como sua atividade está relacionada a outros aspectos de sua vida (Capitaneo et al., 2015). A identidade profissional de bombeiro militar ultrapassa os limites organizacionais e invade a vida pessoal do sujeito, demonstrando a importância de se entender sua identidade profissional não como algo isolado, mas como uma das facetas desse ser total (Capitaneo et al., 2015).

Com base na literatura apresentada, percebe-se que ser bombeiro envolve: proporcionar bem-estar e segurança à população (Capitaneo et al., 2015; Zanettini et al., 2015); preservar a vida, o meio ambiente e o patrimônio (Barbosa, 2011; Vidotti et al., 2015); lidar com morte, vítimas feridas e eventos críticos (Marconato & Monteiro, 2015; Monteiro et al., 2007); estar suscetível a danos físicos e psicológicos (Marconato & Monteiro, 2015; Amato et al., 2010; Vidotti et al., 2015); lidar com a mídia e o imaginário social (Frutos, 2007; Souza, 2013; Capitaneo et al., 2015; Monteiro et al., 2007; Vidotti et al., 2015; Ribeiro, 2016); ser uma pessoa confiável e insuperável em qualquer situação (Monteiro et al., 2007; Ribeiro, 2016); ser herói (Frutos, 2007; Souza, 2013; Ribeiro, 2016); ter uma identidade profissional (Monteiro et al., 2007; Ribeiro, 2016; Capitaneo et al., 2015); ter alta cognição, mostrar precisa e rápida capacidade de tomada de decisão e estar em alerta constante (Barbosa, 2011; Monteiro et al., 2007; Vidotti et al., 2015); ter método e decidir entre agir e prezar por sua vida (Barbosa, 2011); ter estabilidade profissional (Capitaneo et al., 2015; Monteiro et al., 2007); ter resistência emocional (Zanettini et al., 2015).

 

Procedimentos metodológicos

A presente pesquisa é um estudo de caso (Yin, 2010) com abordagem qualitativa, que analisa o sentido do trabalho para os bombeiros envolvidos em um evento crítico. O evento estudado foi o incêndio em uma casa noturna – a Boate Kiss – que ocorreu quando havia mais de mil pessoas no local. O sinistro começou por volta das três horas da madrugada, no dia 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria, RS. Houve 242 mortes e 600 feridos, ficando esse evento crítico conhecido como uma das maiores tragédias desse tipo no país.

A coleta dos dados foi realizada nos meses de outubro e novembro de 2014 e ocorreu por meio de entrevistas com roteiro semiestruturado, que permitiu maior flexibilidade entre pesquisador e pesquisado, fazendo com que a entrevista fosse dialogada. O roteiro foi baseado no referencial teórico exposto anteriormente, contemplando questões sobre sentido do trabalho, o papel dos bombeiros e o incêndio da Boate Kiss. Além das entrevistas, foram realizadas consultas a documentos, sites e material disponível na Internet, com o objetivo realizar a triangulação dos dados (Yin, 2010).

As entrevistas foram realizadas no Batalhão de Bombeiro Militar (BBM), na cidade de Santa Maria, com duração aproximada de uma hora para cada participante. Foram entrevistados 19 bombeiros que trabalharam no incêndio (Grupo 1 – participantes) e 21 bombeiros que não atuaram no dia do incêndio (Grupo 2 – não participantes). Optou-se por entrevistar os bombeiros que não atuaram no dia do incêndio, dado que eles acabaram desenvolvendo um trabalho relacionado ao incêndio nos dias posteriores ao evento, ou seja, acabaram tendo envolvimento com o evento crítico, bem como tiveram a sua imagem de bombeiro relacionada a ele. Foram entrevistados 38 homens e duas mulheres (E22 e E38). Os entrevistados são identificados no decorrer deste texto como E1G1 (Entrevistado 1 do Grupo 1) até E19G1, e E20G2 (Entrevistado 20 do Grupo 2) até E40G2.

A participação dos bombeiros foi voluntária. Todos foram informados que a entrevista seria gravada em áudio, havendo a concordância dos participantes pela assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Esta pesquisa está de acordo com a Resolução n.º 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, que estabelece as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas, e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 34833614.9.0000.5319).

Para a análise das entrevistas, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2009). Após a coleta, foram efetuadas a transcrição das entrevistas e sua leitura flutuante, a fim de estruturar as categorias. Foi utilizado o procedimento de análise categorial, no qual é fornecido o sistema de categorias e os dados são distribuídos à medida que vão sendo encontradas as relações (Bardin, 2009). Para organização e reestruturação das categorias, adotou-se o software MAXQDA versão 2007, que auxiliou na organização das informações.

 

Análise das entrevistas

O sentido do trabalho para os bombeiros

Os entrevistados relatam que escolheram a profissão de bombeiro por diferentes motivos, especialmente pela sua contribuição e relevância social e influência do meio familiar. O E2G1 explica que, para ser bombeiro, "tem que ter vocação". O E3G1 observa a influência de familiares na sua escolha: "tem a influência do meu tio, que era bombeiro. Eu cresci vendo ele desfilando em carro de bombeiro e, aí, começa a conversar: o que faz, o que não faz, com certeza, isso foi importante". O E16G1 refere a idealização do papel de herói (Frutos, 2007; Souza, 2013; Ribeiro, 2016): "eu disse que, quando eu crescesse, ia ser bombeiro e ia trabalhar naquele caminhão". A percepção do E18G1 corrobora essa ideia: "eu sou apaixonado, não me vejo fazendo outra coisa. Se eu estou na rua trabalhando, estou feliz. Não que eu queira que aconteça, mas se acontecer, eu vou estar pronto para ajudar".

Esses depoimentos mostram que o carro dos bombeiros, a sirene e a farda são alguns dos objetos que constituem a identidade da profissão (Monteiro et al., 2007; Ribeiro, 2016; Capitaneo et al., 2015), o que é comprovado pela frequente referência dos entrevistados a eles, ao definirem o que é ser bombeiro. A interação com esses objetos proporciona o reconhecimento social do bombeiro como herói e tal imagem também é percebida pelos bombeiros temporários que anseiam vestir o uniforme para serem igualmente reconhecidos.

Esse contexto gera dupla responsabilidade no trabalho (Souza, 2013; Frutos, 2007; Capitaneo et al., 2015), devido à cobrança social pelo desempenho do papel de herói (Frutos, 2007; Souza, 2013; Ribeiro, 2016) e a das autoridades governamentais (Lima et al., 2015) de que o bombeiro não pode falhar nas ocorrências. Quando o profissional falha, seu trabalho é colocado em dúvida, conforme relatado pelo E17G1: "é uma função que exige uma responsabilidade muito grande e que, se eu tivesse perdido alguma pessoa, estava sendo punido até agora, gastando com advogado, tendo minha imagem denegrida". Nessa perspectiva, é possível ver a dimensão social do sentido do trabalho de ser bombeiro, remetendo ao sentimento de executar uma atividade que está contribuindo para a sociedade e que o faz se sentir inserido socialmente (Andrade, Tolfo, & Dellagnelo, 2012). Dessa forma, a responsabilidade do trabalho é atrelada ao ser útil, e aos sentimentos socialmente compartilhados (Schweitzer, Gonçalves, Tolfo, & Silva, 2016).

Como citado por Santos (2011), o profissional bombeiro traz consigo a ideia do heroísmo do imaginário social como uma referência que deve ser seguida e amparada. Ser bombeiro está entrelaçado a um estilo de vida, no qual o profissional convive diariamente com o perigo iminente, precisando agir a fim de preservar a vida das pessoas em situação de risco (Monteiro et al., 2007; Barbosa, 2011; Vidotti et al., 2015; Capitaneo et al., 2015). O E5G1 reafirma essa perspectiva ao explicar: "naquele momento ali, eu sou a última esperança daquela pessoa. Então, eu tenho que fazer o melhor de mim para corresponder o que aquela pessoa guarda de mim, porque depois de nós [bombeiro e indivíduo em perigo] não vai ter mais ninguém".

Alguns entrevistados expuseram que a atividade do bombeiro não se resume a salvar as pessoas, mas implica também lidar com a morte e vítimas feridas (Marconato & Monteiro, 2015; Monteiro et al., 2007). Eles devem amenizar o sofrimento das pessoas, como relata o E16G1: "eu tento fazer a diferença, dar o melhor de mim. Tem que tratar as pessoas como tu gostaria de ser tratado. Se tu conversa, já dá um amparo. Bah!, eu não sei nem como medir".

Ser bombeiro também inclui a busca constante por qualificação para o exercício da profissão, especialmente para adquirir preparo físico e mental. Os relatos a seguir mostram que, no caso dos bombeiros, essas são características fundamentais para execução eficiente do trabalho, o que pode ser interpretado como uma categoria de atribuição de sentido, como explana o E17G1: "eu sempre quis ser bombeiro? Não. Eu acabei me tornando um bombeiro, então, tento me qualificar, tento fazer curso". Além de conhecer práticas de salvamento, os bombeiros são treinados para desenvolver resistência emocional e física (Zanettini et al., 2015), para atuarem de maneira mais eficaz nas ocorrências, como explica o E2G1: "olha, a gente é preparado para esse tipo de serviço, infelizmente, não se pode agir muito com emoção". Assim, "o trabalho no dia a dia, quando pega acidentes, tu fica muito automatizado" (E17G1). No entanto, alguns entrevistados observam: "a gente também é humano" (E9G1), sinalizando que, por vezes, são impactados pelas ocorrências de seu trabalho. Nesses trechos apresentados, é possível ver um dos pressupostos dos sentidos do trabalho, a dimensão individual, sendo possível ver sentido nos valores morais (éticos), possibilitando valorização, busca por desenvolvimento pessoal e profissional, com continuo crescimento (Tolfo & Piccinini, 2007).

Para não serem impactados pelas ocorrências em que atuam, os bombeiros buscam o afastamento emocional. O E37G2 ilustra essa situação: "não é que a gente fica insensível, porque se for entrar no problema de cada um, a gente não ia conseguir fazer nada que fez, não seríamos úteis naquela hora se acabássemos vivendo o problema de cada um", visto que "na hora a gente é profissional, a gente tenta ajudar da melhor forma possível" (E14G1). A estratégia de afastamento emocional é identificada na citação de jargões pelos entrevistados, como pode ser percebido na fala do E19G1: "como dizem: Deus protege os bêbados, as crianças e os bombeiros". O jargão utilizado pode ser visto também como uma estratégia coletiva, construindo uma alternativa benéfica para o enfrentamento de situações críticas vivenciadas no cotidiano de trabalho dos Bombeiros. Dessa forma, eles ocultam e amenizam o sentimento de impotência diante de eventos que podem causar danos físicos e psicológicos (Santiago, 2015).

Esses significados utilizados de forma coletiva atrelam-se à dimensão social da organização do trabalho. Profissionais que atuam cuidando das pessoas vivem em um organismo equilibrado sob a pressão de agentes estressores e, como forma de preservar a sobrevivência psicológica, desenvolvem estratégias para evitar a exposição das suas emoções. Os sentidos são construídos a partir das experiências do cotidiano, caracterizados por ser uma produção pessoal, que tem uma relação dialética com a realidade. Dessa forma, trabalhadores passam a ter a mesma forma de ser e de pensar, ou seja, realmente "vestem a camisa" do emprego (Capitaneo et al., 2015; Natividade, 2009; Schweitzer et al., 2016). Todavia, muito além de uma perspectiva heroica, ser bombeiro é executar ações articuladas com valores pessoais e sociais, e com os valores impostos pela instituição, estabelecendo uma estreita relação entre a subjetividade e o trabalho (Santos et al., 2011).

A questão financeira, assim como os baixos salários, acabam por influenciar na relação com a profissão. Os entrevistados sinalizam que ser bombeiro também envolve outros serviços como ser salva-vidas e fazer 'bico' em outras atividades laborais para complementar à renda mensal. Isso ocorre porque "a gente recebe muito mal, com tudo o que a gente faz. É bonita a O sentido do trabalho para bombeiros pós-evento crítico: o caso da Boate Kiss profissão que a gente faz, é bacana, só que tem o lado da família. Eu não posso querer trocar de carro e não poder. Querendo ou não, sou formado, então eu posso fazer vários outros concursos" (E17G1). Além disso, "se não tivesse a questão do salário, hierarquia e militarismo, seria extremamente gratificante. É extremamente gratificante, tem alguns perrengues, mas acredito que tenha em qualquer profissão" (E17G1). Esses relatos mostram a precariedade do trabalho em função da questão a salarial, que faz com que o bombeiro se sujeite a desenvolver outras atividades para conseguir ter uma melhor condição financeira, evidenciando os riscos de perda de centralidade e sentido do trabalho do bombeiro. Também são encontradas críticas ao modelo hierárquico, como fatores de organização do trabalho que, via modelo de gestão e divisão das tarefas, podem contribuir para a diminuição ou perda do sentido do trabalho realizado (Dejours et al., 1994).

 

O sentido do trabalho pós-evento crítico

Quando indagados sobre a atuação no caso da Boate Kiss, os relatos dos bombeiros evidenciaram que a organização do trabalho, culpabilização por parte da mídia e dos órgãos governamentais e a falta de reconhecimento social, causaram desinteresse pelo trabalho após esse evento crítico. O relato do E8G1 ilustra essa afirmação: "o que mudou foi o interesse. Aquela motivação não é mais a mesma, que nem diz o outro, eu chutei o balde". Complementando essa percepção, o indiciamento policial que sinalizou questões de trabalho sobre as quais eles não tinham controle – em função de ser um evento crítico – também lhes causou impacto no trabalho. O depoimento do E23G2 mostra essa percepção: "o absurdo, um delegado da polícia indicia os que chegaram para socorrer, [afirmando] que eles não fizeram o isolamento do local. Um delegado formado em Direito indicia por homicídio na morte de 242 pessoas".

Assim, o período do inquérito e da investigação deixou "o pessoal bem abalado, pois todo mundo estava querendo condenar os bombeiros nos trabalhos que fizemos lá, aí querendo nos deixar como causadores do próprio incêndio e culpados de não resgatar todo mundo" (E23G2). O depoimento do E8G1 corrobora essa percepção: "aqueles seis meses foram um transtorno psicológico e está sendo para o pessoal que foi indiciado. As pessoas não querem entender o que aconteceu lá, elas acham que nós tínhamos que resolver o problema e que era nossa culpa, eles querem de qualquer maneira achar um culpado". Esses relatos reforçam o exposto por Lima et al. (2015), sobre a urgência em achar os culpados em um evento crítico.

Os depoimentos sinalizaram a influência da organização do trabalho no desempenho das atividades laborais do bombeiro. A falta de pessoal, condições operacionais, material e apoio caracteriza a precariedade do trabalho executado, impactando o bem-estar físico e mental dos trabalhadores (Nascimento et al., 2017), visto que os entrevistados disseram "que os menos culpados foram os que foram socorrer, atender e, no entanto, foram os que mais sofreram psicologicamente, fisicamente. Muitos colegas ficaram mal" (E37G2). Estes relatos evidenciam a dimensão organizacional do trabalho, uma vez que a organização é a mediadora do sentido do trabalho para o indivíduo e seu reconhecimento social. Nota-se a perda de uma dimensão fundamental para que o trabalho atue como elemento integrador (Morin et al., 2007).

Reflexões recentes (Mendes, 2019; Schneider & Silva, 2019), sobre a atuação de bombeiros durante a tragédia da Boate Kiss e em eventos críticos, demonstraram um descaso estatal quanto ao suporte psicossocial aos membros do Corpo de Bombeiros. Além disso, evidenciaram que, no Brasil, suas atuações restringem-se a ações com efeitos paliativos, ou seja, muitas tragédias poderiam ser evitadas se houvesse maior estrutura (em equipamentos, no geral), capacitações contínuas, treinamento e qualidade na atuação, especialmente em ações preventivas. Logo, essas operações paliativas, que não conseguem dar conta de toda a demanda em caso de tragédias, acarretam tensões psicológicas severas aos profissionais envolvidos, principalmente pela razão de eles lidarem frequentemente com restos corporais (Mendes, 2019; Schneider & Silva, 2019).

Esses achados ratificam estudos que mostram o quanto o bombeiro está suscetível a danos físicos e psicológicos (Marconato & Monteiro, 2015; Amato et al., 2010; Vidotti et al., 2015) e precisa ter resistência emocional (Zanettini et al., 2015) para desenvolver seu trabalho. Coerente com isso, houve diversos relatos sobre o adoecimento dos profissionais envolvidos no incêndio da Boate Kiss. Uma bombeira explica que ficou abalada e que "chorava meio que direto quando falavam nisso" (E16G1). Outros entrevistados referiram maior uso de álcool em função do estresse, necessidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico, internação hospitalar, mudança de comportamento e isolamento social, de maneira similar ao que foi encontrado nos estudos de Capitaneo et al. (2015), Lima et al. (2015) e Natividade (2009), sobre alguns inquéritos de saúde realizados com bombeiros. Os resultados desses estudos apontaram uma baixa prevalência de depressão, no entanto, existe o uso problemático de álcool. Estes achados podem evidenciar o quanto os profissionais tentam fugir ou mascarar os sentimentos e afetos causados pelas situações de risco (Capiteneo et al., 2015; Lima et al. 2015; Natividade, 2009).

E9G1 relata que "sempre saí fardado, até porque assim, uma coisa que eu penso comigo, eu tenho certeza que não foi culpa de bombeiro. Foi uma tragédia, foi uma coisa que não têm culpados". No entanto, diversos entrevistados manifestaram que evitaram vestir a farda e sair na rua, para não serem identificados como bombeiros (Monteiro et al., 2007; Ribeiro, 2016; Capitaneo et al., 2015). O E21G2 vai além e relembra a dificuldade que tinha para vestir seu uniforme, o qual antes lhe trazia status social, como mostra seu depoimento:

Eu não conseguia por a farda direito, eu tinha taquicardia ao por a farda. Hoje, eu consigo superar isso aí. Tomei remédio, é bem complicado, tu não consegue absorver, tu não consegue entender porque todo mundo está te cobrando. Eu não conseguia sair de casa, eu fiquei quatro meses sem sair de casa, porque eu sou muito conhecido. Então, tu fica com aquele receio de ser maltratado, humilhado, sei lá o que pode acontecer, pensava até de um pai pegar e me dar um tiro na rua, que isso não é difícil de acontecer.

Os exemplos expostos mostram que a rigidez e a disciplina exigidas na dimensão organizacional extrapolam o ambiente profissional, logo, permanecem presentes também na vida (Capitaneo et al., 2015).

As informações divulgadas pela mídia agravaram o desinteresse no trabalho e causaram um sentimento "de revolta por conta dos comentários da imprensa e de pessoas que não conhecem a função dos bombeiros" (E21G2). O E21G2 menciona a exposição na mídia por ele sofrida: "eu fui exposto. Se tu pegares o jornal daquela época, a minha foto está estampada. Nem artista consegue ter uma foto tão grande como aquela, no jornal nacional, O sentido do trabalho para bombeiros pós-evento crítico: o caso da Boate Kiss internacionalmente". Na percepção dos entrevistados, a mídia influenciou a opinião da sociedade para considerar os bombeiros como culpados pela ocorrência desse evento crítico.

É notável que a mídia desempenha um papel importante para a opinião pública. Ela pode não alterar uma realidade, mas pode modificar, e muito, a percepção das pessoas sobre um fato da realidade. Para os bombeiros, a mídia é corresponsável na medida em que silenciou sobre o importante papel do bombeiro no evento crítico (Carrato, Elisio, & Diniz, 2018).

A responsabilidade pelo incêndio da boate atribuída aos bombeiros pela mídia e pela sociedade atingiu o sentido atribuído pelos entrevistados ao trabalho, visto estar ele vinculado ao feedback (Hackman & Oldham, 1975; Nascimento et al., 2017) do cliente, a população. O depoimento do E8G1 reforça essa percepção: "junto com a falta de reconhecimento, que foi o problema maior, tem a imprensa que jogou a culpa toda em cima de nós, inclusive nós que fizemos o salvamento lá, fomos responsáveis por, pelo menos cinco mortes lá dentro. Isso é um absurdo. E as outras [pessoas] que nós salvamos, não valeu de nada?". A falta de reconhecimento repercutiu na perda de sentido na dimensão social do trabalho (Morin, 2001). A perda de sentido na esfera social refere-se ao sentimento de inutilidade perante a sociedade, sem valor. Quando indivíduos sentem que o trabalho não contribui ou agrega valor para a população em geral, ele passa a não fazer mais sentido (Morin et al., 2007).

Coerente com esse depoimento, os entrevistados disseram ter a impressão de que eles "tinham feito um baita serviço, mas não fizemos merda nenhuma" (E13G1), visto que, frequentemente, era divulgado o número de mortos e a quantidade de sobreviventes não recebia destaque semelhante. Os relatos mostram a pressão sofrida pelo bombeiro para ser herói (Ribeiro, 2016; Frutos, 2007; Souza, 2013), correspondendo à imagem de uma pessoa confiável e insuperável em qualquer situação (Monteiro et al., 2007; Ribeiro, 2016), sendo seu desempenho avaliado pela quantidade de vidas salvas.

O trabalho dos bombeiros realizado nesse evento crítico é percebido pela população, na perspectiva dos entrevistados, como desrespeitoso e injusto, devido às mortes ocorridas e às informações divulgadas pela mídia sobre os alvarás da boate. O E37G2 expõe sua percepção: "logo após aquilo lá, falavam: 'ah! os assassinos'. Isso aí, para a gente que vive ajudando as pessoas, te deixa muito frustrado. (…) Foi pichado no muro do quartel: 'aqui se apaga fogo, mas não se apaga 242 mortes', praticamente chamando de assassinos. Pesado, muito pesado". As acusações de assassinato, na percepção dos entrevistados, foram feitas na mídia por familiares das vítimas (em depoimentos em jornais, mídias sociais) e pelo já citado indiciamento da polícia civil. Nesse âmbito, percebe-se que, na dimensão social do sentido do trabalho, os entrevistados relatam a falta de aceitação da sociedade. A atividade passou a ser moralmente e eticamente inaceitável, um trabalho sentido como absurdo, sem responsabilidade, ou seja, sem sentido (Morin et al., 2007).

A frustração com a organização é evidenciada nas fala do E36G2: "durante um mês, eu fiquei muito chateado com a nossa corporação, mas mais com o que eu vi propriamente lá no 'farrezão' [corpos enfileirados no chão]. Mas isso é uma insatisfação com o meu trabalho". O E5G1 complementa os depoimentos anteriores: "não sei se é bem tristeza ou incapacidade de ter salvo bastante, mas ter perdido bastante vidas".

Concordando com essa última explicação, o E12G1 observa que "o que mais me marcou, eu acho que foi a morte em si, daquele povo todo e saber que, por mais que a gente fez, não ia ser o suficiente; uma certa impotência, mas consciente de que a gente ia fazer tudo aquilo ali, mas não ia resolver, não era o suficiente". O E1G1 ratifica essa percepção: "um sentimento de impotência pelo que aconteceu, a gente vendo tantas vítimas ali e não poder fazer muita coisa". A percepção de impotência resulta de um trabalho no qual não foi atingido o objetivo – preservar a vida e proteger as pessoas em uma situação de risco (Monteiro et al., 2007; Barbosa, 2011; Vidotti et al., 2015) – e de um resultado negativo, mas ao mesmo tempo tangível (Hackman & Oldham, 1975; Morin, 2001) – o número de mortos.

O sentimento de não conseguir ajudar a pessoa que está precisando e vem a falecer exige do bombeiro condições físicas, emocionais, psicológicas e sociais adequadas (Souza, 2013; Sinden et al., 2013). Assim, alguns entrevistados disseram que tentaram não ser impactados por esse evento crítico, a fim de conseguirem desempenhar bem seu trabalho, como relata o E4G1: "no dia, para mim, parecia que eu estava numa bolha, não derramei nenhuma lágrima, fui bem profissional". Esse afastamento mental do trabalho é uma estratégia de defesa para evitar o adoecimento (Lancman & Sznelwar, 2008). Por isso, o evento crítico é lembrado "como um filme, como algo que não é real, ainda assim, mesmo sabendo, tendo vivenciado, eu acho que essa distância que eu acabei criando me faz pensar isso" (E4G1). Por meio dessas dimensões, percebe-se o amor e o sofrimento envolvidos no dia a dia desses trabalhadores, o que torna a profissão, por vezes, uma verdadeira paixão, repleta de sentidos, ora, um verdadeiro esforço pela sobrevivência (Capitaneo et al., 2015).

Esse sentimento é compartilhado pelos entrevistados que não participaram do trabalho no evento crítico, como expõe o E23G2: "um sentimento de dor, no meu caso, eu sinto muito por não ter estado presente para ajudar meus colegas. Então, para mim foi difícil ficar de longe, eu queria notícia, [pois] estava um colega meu envolvido na festa junto. E também impotente por não poder ajudar, não estar aqui na hora, para poder ajudar". Outros entrevistados explicam que "os corpos lá, era de chorar mesmo, não tinha outra sensação. A mãe me ligou, o pessoal começou a me ligar, eu não conseguia falar no telefone. E quando chego em casa? Cheguei chorando, desesperado, só peguei minha filha, fui para o quarto e fiquei umas duas horas chorando até passar" (E5G1). O evento crítico é, portanto, lembrado como dor e sofrimento pelo E3G1, mas, ao mesmo tempo, como uma "superação porque os guris que estavam ali, muito tiram serviço comigo, eles contam as histórias e tu acaba vendo que todos deram o melhor de si, fazendo até mais do que talvez seja possível".

Esses relatos mostram que o sentido do trabalho para os bombeiros pesquisados foi alterado em razão do evento crítico, especialmente nas dimensões organizacional e social do trabalho, evidenciando a perda de sentido por meio das categorias de execução eficiente e organização do trabalho, satisfação, prazer, e reconhecimento social do trabalho (Hackman & Oldham, 1975; Morin, 2001; Morin et al., 2007). Essa percepção é abordada por todos entrevistados e ilustrada na fala do E8G1: "a maior mágoa que a gente tem, acredito que dos meus colegas também, não é dá tragédia em si, mas da falta de reconhecimento da população e da própria instituição Brigada Militar, pelo nosso trabalho". O E11G1 complementa: "a gente chega nos lugares, a pessoa olha, nunca falaram nada: 'ah, o fulano estava [trabalhando] na boate', mas também nunca vieram parabenizar, nada também, ninguém reconhece, nem um lado [a população], nem outro [a corporação]".

Para o E8G1, "hoje, mais de 100 pessoas estão salvas porque nós agimos rápido e ninguém enxergou isso ainda (...). A mágoa maior que eu fiquei foi a falta de reconhecimento da população, porque, até então, nós vínhamos e continuamos fazendo um bom serviço". O sentido do trabalho para bombeiros pós-evento crítico: o caso da Boate Kiss Apesar da percepção de que o trabalho do bombeiro tem qualidade, esse evento crítico teve reflexo nas ocorrências diárias dos bombeiros da corporação de Santa Maria, visto que, após três anos do incêndio, o relacionamento dos profissionais com a população permanece enfraquecido. A percepção dos bombeiros é que a população passou a demandar menos seus serviços por ter perdido a confiança (Monteiro et al., 2007; Ribeiro, 2016) na corporação. O E8G1 exemplifica essa situação: "nós salvávamos de 12 a 13 ocorrências por dia. Hoje, estamos fazendo menos, mas, antes, (...) a população nos enxergava de uma maneira. Pós aquilo ali, por pensamentos de pessoas que imaginaram o que não houve lá, ela simplesmente virou as costas para nós".

Este evento crítico implicou desprestígio social para os bombeiros de Santa Maria, RS, uma vez que "do dia para a noite, de herói, tu vira assassino perante as pessoas" (E37G2). Isso refletiu também na família dos bombeiros, pois os filhos dos bombeiros iam para o colégio e seus colegas perguntavam "'mas o teu pai não salvava as pessoas? Agora o teu pai matou pessoas'. Eu tive que ir ao colégio explicar para a professora deles o que aconteceu porque nem os professores sabiam; sabiam pela imprensa, um troço totalmente distorcido. Isso causou um estresse muito grande" (E36G2). Em relação às mudanças no trabalho dos entrevistados, após este evento crítico, foi relatado que "quando toca a sirene, eu sinto uma adrenalina, vontade de entrar para dentro do caminhão e fazer o melhor". O E8G1 compartilha da mesma percepção: "sinto a mesma coisa que sempre sentia, aquela euforia de chegar mais rápido". No entanto, essa não foi a experiência relatada pelo E5G1:

Hoje é mais tranquilo, mas no primeiro ano ali, muita angústia, muito medo de pegar alguma coisa parecida com aquilo. E nós pegamos: dia 27 de novembro, um edifício de dez andares com mais de 200 pessoas dentro. Só que, dessa vez, tiramos todos. Quando terminou o serviço, a vontade que eu tinha era de chorar, mas de alegria, não de tristeza. Quando eu tive que entrar no andar lá, que estava pegando fogo, que tinha pessoas dentro, eu cheguei na porta, quando eu abri a porta, eu enxerguei direitinho os corpos ali na frente e voltei. Só que dei uns passos para trás, respirei e entrei. Retiramos as pessoas que estavam dentro, fizemos o combate ao fogo, consegui fazer o serviço. Mas, até então, foi a primeira vez que eu tive que entrar de novo para fazer uma busca e retirar, mas, graças a Deus, deu tudo certo.

Todo o contexto do evento crítico analisado resultou em um "sentimento de todo um sistema social falido, de que tudo está errado, de que muita coisa não funcionou e continua não funcionando. A gente está vivendo numa sociedade muito hipócrita" (E10G1). Esse relato evidencia a percepção crítica do bombeiro frente ao contexto do evento crítico analisado, quando as autoridades governamentais demandaram punição exemplar aos responsáveis, mesmo antes de confirmarem a existência de algum ato culposo, tendo surgido, nessa oportunidade, explicações aparentemente óbvias, como o conflito de interesses econômicos (Lima et al., 2015). Situações como essa raramente são analisadas em pesquisas acadêmicas.

Assim, os bombeiros na cidade de Santa Maria passaram a exercer um trabalho que perdeu seu status social, pois a imagem de herói foi negativamente impactada (Frutos, 2007; Souza, 2013; Ribeiro, 2016). Desaparece, então, o bombeiro insuperável (Monteiro et al., 2007; Ribeiro, 2016), como afirma o E21G2: "isso é uma mancha na carreira, que vai ficar para o resto da vida e, por sinal, eu pretendo não ficar mais nela, porque o bombeiro que tinha morreu na tragédia".

Por todo exposto, as narrativas dos bombeiros mostram que, em decorrência desse evento trágico, os bombeiros passaram a interiorizar uma mudança de postura em relação ao trabalho. A satisfação com o trabalho, antes decorrente do suporte organizacional da utilidade social, mudou. Assim, ao analisar a dimensão organizacional, social e pessoal, entende-se que o sentido do trabalho para os bombeiros envolvidos no evento crítico está relacionado com a dimensão pessoal, passando as outras dimensões a ter menor sentido para eles.

 

Considerações finais

O presente estudo teve como propósito compreender o sentido do trabalho para os bombeiros envolvidos no evento crítico da Boate Kiss. Entre as conclusões, o estudo reforça a ideia de que os bombeiros convivem diariamente com a pressão, devido aos riscos do trabalho, aos casos de morte das vítimas, à necessidade de exercerem o papel de herói, que a sociedade lhes impôs. Nesse contexto, quando atuam em um evento crítico, emerge uma série de questões a serem consideradas.

O incêndio da Boate Kiss trouxe sofrimento tanto para as vítimas (e seus familiares), quanto para os profissionais nele envolvidos (e seus familiares). Em decorrência da proporção do evento, os profissionais relataram situações que impactaram seu trabalho, sua vida pessoal e social. O principal resultado a ser ressaltado é a evidência que o sentido do trabalho foi alterado pós-evento crítico, principalmente nas dimensões organizacional e social, frente à precariedade da relação de trabalho e à falta de reconhecimento social.

Por meio da pesquisa, foi possível compreender que os entrevistados não mostraram significativas mudanças no sentido do trabalho em relação à dimensão pessoal, pois mesmo que o bombeiro não seja mais visto como herói, ele continua encontrando sentido quando salva pessoas e desenvolve suas atividades laborais. Perante isso, esta pesquisa possibilitou (re)conhecer os trabalhadores na sua totalidade, mostrando o quanto a atividade profissional interfere em seus modos de agir e existir.

Como limitação da pesquisa, destaca-se o difícil acesso aos entrevistados e às suas informações, visto que muitos participantes foram comedidos em suas falas. Além de não querer expor a corporação, havia um processo jurídico em andamento no período de realização da pesquisa. As análises das entrevistas demandaram atenção para não influenciar o processo jurídico, bem como para resguardar os entrevistados e a corporação dos bombeiros.

Como contribuição gerencial, este estudo atenta para a importância de as instituições públicas desenvolverem políticas e práticas organizacionais que deem suporte aos trabalhadores para desenvolverem seu trabalho e, no caso dos bombeiros, especialmente pela necessidade de estarem preparados para atuar em eventos críticos. Para tanto, a gestão deve desenvolver políticas que foquem o sentido do trabalho, já que "quando a atividade faz sentido para o sujeito, sua adesão está adquirida" (Rohm & Lopes, 2015, p. 342).

Como sugestão de estudos futuros, é importante analisar em maior profundidade o impacto das pressões sociais e políticas e da divulgação de informação, tanto nas relações O sentido do trabalho para bombeiros pós-evento crítico: o caso da Boate Kiss laborais nas instituições como no desenvolvimento do trabalho do indivíduo. As rápidas explicações e a busca para "achar um culpado" impedem que eventos, como o aqui estudado, sejam analisados em toda a sua complexidade, limitando, por consequência, a possibilidade de prevenção. O caso da Boate Kiss possibilitou a criação da Lei Kiss que delimita as responsabilidades dos proprietários das edificações, dos responsáveis técnicos, dos órgãos públicos municipais e da corporação de bombeiros. Essa lei também explicita como os bombeiros devem executar suas atividades, a fim de que práticas de prevenção possam evitar eventos críticos no futuro (Cunha, 2016). Novas pesquisas poderiam analisar a repercussão dessa lei na organização do trabalho de bombeiros, contribuindo para mitigar os efeitos negativos da organização na atribuição de sentido ao trabalho.

 

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Endereço para correspondência
manuelitomasi5@gmail.com
,
shalimargallon@gmail.com
,
jandir.pauli@imed.edu.br
,
militz@hotmail.com

 

Recebido em: 14/06/2019
Revisado em: 15/02/2020
Aprovado em: 23/03/2020

 

1 https://orcid.org/0000-0002-9117-1694
2 https://orcid.org/0000-0002-8830-4433
3 https://orcid.org/0000-0003-4618-6958
4 https://orcid.org/0000-0001-5066-206X

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