SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 issue2Defensive strategies against suffering at work by stricto sensu postgraduate professors author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.22 no.2 São Paulo July/Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v22i2p235-245 

ENTREVISTAS

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v22i2p235-245

 

Contribuições da Ergonomia à Avaliação Coletiva do Trabalho: entrevista com Leda Leal Ferreira

 

Contributions of Ergonomics to the Collective Work Analysis: an interview with Leda Leal Ferreira

 

Leda Leal Ferreira1; Dímitre Sampaio Moita2; Cássio Adriano Braz de Aquino3

 

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta entrevista é motivada pelo interesse em debater o impacto e os desdobramentos das contribuições da ergonomia de Alain Wisner para a análise do trabalho. A entrevistada, Leda Leal Ferreira, médica do trabalho e ergonomista aposentada pela Fundacentro, faz parte de um grupo de pesquisadores brasileiros que empreenderam formação em ergonomia com Wisner na França e, em seguida, contribuíram para o desenvolvimento dessa disciplina no Brasil. A entrevistada fala sobre sua formação na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e no Conservatório Nacional das Artes e Ofícios (CNAM, na sigla em francês), e trata da relevância do médico francês para o desenvolvimento da ergonomia brasileira. Explica, resumidamente, as semelhanças e distinções entre a Análise Coletiva do Trabalho, método por ela desenvolvido, e a Análise Ergonômica do Trabalho, desenvolvido por Wisner. Observando o contexto político em que se deu a entrevista, fala dos desafios enfrentados pelas abordagens que visam à melhoria das condições de trabalho diante de um quadro de crescente fragilização das relações laborais e das reformulações das políticas de segurança e saúde no trabalho.

Palavras-chave: Leda Leal Ferreira, Alain Wisner, ergonomia, análise coletiva do trabalho, análise ergonômica do trabalho


ABSTRACT

This interview is motivated by an interest in debating the impact and consequences of the contributions of Alain Wisner's ergonomics to the analysis of work. The interviewee, Leda Leal Ferreira, occupational physician and ergonomist retired by Fundacentro, is part of a group of Brazilian researchers who undertook training in ergonomics with Wisner in France and after that contributed to the development of this discipline in Brazil. The interviewee talks about her training at the Faculty of Medicine of the University of São Paulo (FMUSP) and at the National Conservatory of Arts and Crafts (CNAM, in the acronym in French), and discusses the relevance of the French doctor for the development of Brazilian ergonomics. She briefly explains the similarities and distinctions between the Collective Work Analysis, a method developed by her, and the Ergonomic Work Analysis, developed by Wisner. Observing the political context in which the interview took place, the interviewee speaks about the challenges faced by approaches that aim to improve working conditions in the face of a growing fragility of work relations and the reformulation of occupational health and safety policies.

Keywords: Leda Leal Ferreira, Alain Wisner, ergonomics, collective work analysis, ergonomic work analysis


 

 

Esta entrevista com Leda Leal Ferreira, médica do trabalho e ergonomista aposentada pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), foi realizada no contexto de produção da Série em áudio sobre a Clínica da Atividade do Núcleo de Psicologia do Trabalho (NUTRA) da Universidade Federal do Ceará (UFC). O NUTRA surgiu em 1994, inicialmente caracterizado como um núcleo de extensão. Ao longo do tempo e diante das constantes transformações do mundo laboral, tem se reconfigurado e expandido sua atuação, permitindo ser reconhecido hoje como um espaço no qual se estuda o trabalho em toda sua amplitude e complexidade. Não há uma especialização das suas ações, mas trata-se de um espaço de reflexão crítica das questões que derivam da reconstituição efetiva da categoria social Trabalho e de seus impactos na saúde dos trabalhadores. A série, especificamente, vincula-se a uma atividade de divulgação científica direcionada a estudantes e profissionais de Psicologia e áreas afins com a finalidade de ampliar o debate sobre a Clínica da Atividade em nosso país.

Diante da fundamental contribuição da Ergonomia de Alain Wisner para a Clínica da Atividade – assim como para outras Clínicas do Trabalho –, por meio do diálogo com Leda Leal Ferreira, buscamos discutir pontos importantes dessa abordagem de análise do trabalho e suas repercussões no desenvolvimento da Ergonomia no Brasil. A médica e ergonomista, que desenvolveu sua trajetória de pesquisa em constante diálogo com o professor Wisner, fala, nesta entrevista, sobre sua formação e reflete sobre metodologias de atuação, bem como sobre os atuais desafios para o campo de atenção à saúde e segurança do trabalhador. A entrevista foi realizada por meio da troca de e-mails entre entrevistadores e entrevistada em agosto de 2019.

NUTRA: Você tem uma longa atuação em Ergonomia, como médica do trabalho e pesquisadora titular da Fundacentro e como professora convidada em diversas instituições de ensino brasileiras (UFRJ, USP, Unicamp, UFMG, Santa Casa de São Paulo). O que motivou sua escolha por esse campo de atuação?

Leda Leal Ferreira: Meu primeiro contato com a medicina do trabalho aconteceu por acaso. Na década de 1970, o ponto do ônibus que eu tomava para ir à faculdade ficava em frente a um casarão, com uma placa na fachada, onde se lia "Fundacentro". Um dia, por curiosidade, resolvi entrar e perguntar o que eles faziam lá. Foi a primeira vez que ouvi falar de medicina do trabalho. Na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), até mesmo no seu moderno Curso Experimental de Medicina, que eu cursava, as aulas de medicina do trabalho eram poucas e tediosas, ministradas pelo Departamento de Medicina Legal, e era difícil se interessar por elas. Nos outros departamentos, o trabalho era um tema inexistente. Essa ausência começou a me intrigar. Por que a medicina dava tão pouca atenção ao trabalho? Passarmos a maior parte do tempo da nossa vida ativa trabalhando não seria por si só um bom motivo para nos preocuparmos com a influência do trabalho na saúde e nas doenças? Hoje, sei que essas questões são bastante complexas e estão em aberto, e o máximo que temos são algumas pistas para respondê-las.

Descobri que, na Faculdade de Saúde Pública, que ficava no prédio ao lado da FMUSP, havia um Departamento de Saúde Ambiental que se interessava também pela Medicina do Trabalho. Lá, obtive uma bolsa de iniciação científica para estudar acidentes do trabalho em prensas, que são máquinas extremamente perigosas que mutilavam, e continuam mutilando, dedos, mãos e braços de trabalhadores. Apesar de seu perigo, muitas delas não tinham nenhuma proteção. Mesmo assim, os acidentes que causavam eram classificados como "atos inseguros", o que culpabilizava os trabalhadores acidentados por sua própria desgraça! Esse trabalho foi apresentado no 13º Congresso Nacional de Prevenção de Acidentes do Trabalho (CONPAT), em 1974. Em seguida, ainda estudante, fiz um estágio no Serviço de Saúde Ocupacional da Volkswagen do Brasil, na fábrica de São Bernardo do Campo. Era uma fábrica imensa, impressionante, com dezenas de milhares de operários exercendo as mais diversas atividades em ambientes extremamente hostis: muito barulho, poluição ambiental, temperaturas elevadas, ritmos de trabalho extenuantes. A mim, parecia óbvio que aquelas condições exerciam efeitos nocivos à saúde dos operários. No entanto, eu observava que existia um grande esforço para desconsiderar essa relação, por parte da direção da empresa e até dos médicos em serviço. Foi esse fato, aliás, que aumentou minha curiosidade pelas relações entre saúde e trabalho. Mas eu não sabia como estudá-las, faltava-me um método para analisar o trabalho. E foi isso que aprendi na França, para onde fui logo após me formar em medicina.

NUTRA: Em 1977, você cursou especialização em Ergonomia no Conservatoire National des Arts et Métiers (CNAM), sob orientação de Jacques Duraffourg. Como se deu a vinculação com o CNAM? Desde então, qual tem sido a influência da ergonomia francesa no Brasil?

Leda Leal Ferreira: Fui para a França em 1977 para encontrar meu companheiro, exilado político da ditadura brasileira. Precisava encontrar um jeito de sobreviver e fui à luta. Contando minha história a um docente da Faculdade de Medicina de Paris, o professor Philbert, ele imediatamente me encaminhou ao professor Alain Wisner, que era o diretor do então Laboratoire de Physiologie du Travail et Ergonomie do CNAM, uma prestigiada instituição fundada na época da revolução francesa. Até então, eu nunca tinha ouvido falar de ergonomia. Já em nosso primeiro encontro, o professor me acolheu calorosamente, o que foi o início de uma amizade que durou enquanto esteve vivo. Ele já tinha estado no Brasil e estava ciente de nossa situação política. Logo me ofereceu uma vaga num curso chamado "Ergonomia de tempo integral", que fornecia um diploma de especialização em ergonomia. Com esse aceite, consegui bolsas de estudos, primeiro, da FAPESP e, depois, do CNPq, com as quais pude sobreviver. O curso era recente e especialmente dedicado a alunos estrangeiros e/ou dirigentes sindicais, que podiam fazer em um ano, em tempo integral, o que os outros alunos, a maioria deles franceses que tinham um emprego durante o dia, faziam em três ou quatro anos. Naqueles anos, a classe operária fabril na França era numerosa e o seu movimento sindical forte e combativo, diferentemente do que acontece hoje em dia. Vários dirigentes sindicais buscavam uma formação em ergonomia para melhorar sua compreensão do que se passava com os trabalhadores nas fábricas. A ergonomia do Laboratório de Wisner também atraía jovens das mais variadas formações de outros países, que se interessavam por melhorias de condições de trabalho: canadenses, africanos e asiáticos eram nossos colegas, o que alargava nossos horizontes.

Na minha opinião, o ponto alto desse curso eram os "trabalhos práticos": em duplas, os alunos deveriam procurar uma situação real de trabalho, negociar as condições do estudo, e realizá-lo, seguindo as orientações de um grupo de professores experientes em "análise ergonômica do trabalho", um método que estava sendo elaborado e cujo ponto central era a análise do trabalho real, isto é, do que se fazia na situação concreta de trabalho. Nisso estava toda a diferença com outros centros de ergonomia, que privilegiavam uma abordagem experimental das condições de trabalho e não sua análise 'ao vivo'. Ou que se restringiam a aplicar check lists previamente elaborados em busca de inadaptações. Ou que, seguindo a tradição taylorista, só se preocupavam com movimentos ou gestos do trabalhador, que eram cronometrados. O professor Wisner foi importante nessa orientação e sempre esteve ciente da dificuldade da abordagem: estudar o "trabalho real" é imensamente mais complicado do que estudar uma situação experimental, na qual se isola uma variável e se estuda seus efeitos. Os locais de trabalho não são laboratórios; constrangimentos físicos, cognitivos, psíquicos, sociais atuam conjuntamente, resultando em efeitos, muitas vezes, imprevisíveis nos trabalhadores, o que nos coloca frente a um grande problema: como abordar o trabalho de modo a não neutralizar toda essa complexidade, mas, ao contrário, realçá-la?

A ênfase no "trabalho real" também foi fundamental para se visualizar o seu contrário, isto é, o assim chamado "trabalho prescrito", aquilo que as gerências exigem que seja feito, como os procedimentos escritos de trabalho. Colocados lado a lado, observa-se a enorme diferença entre trabalho real e trabalho prescrito, uma diferença irredutível, que passou a ser um ponto importante da, atualmente, chamada "ergonomia da atividade" e de outras abordagens no campo dos estudos do trabalho.

O clima do Laboratório era extremamente estimulante, e respondíamos a demandas reais, o que faz toda a diferença. Uma dessas demandas veio do Sindicato dos Trabalhadores do Vestuário da poderosa CGT, Confédération Générale du Travail (Confederação Geral do Trabalho), e fui convidada por Jacques Duraffourg, que você menciona na sua pergunta, a participar dela, junto a uma equipe multiprofissional, onde havia, além de nós dois, um psiquiatra, um economista, duas sociólogas e um especialista em formação. Passamos um bom tempo tentando nos entender antes de começarmos o estudo, porque nossos conceitos sobre trabalho eram diferentes. Também passamos um bom tempo negociando com as empresas a nossa entrada nas fábricas, de modo a podermos analisar o trabalho nos locais de trabalho sem prejudicarmos e atrapalharmos muito os operários. Foram grandes ensinamentos que me acompanharam por toda a vida.

NUTRA: Posteriormente, entre os anos de 1984 e 1988, você cursou o doutorado na Universidade Paris XIII, sob orientação de Alain Wisner. Como foi a experiência de trabalhar ao lado do professor Wisner? Quais conhecimentos foram sedimentados durante este período de pesquisa?

Leda Leal Ferreira: Em 1980, voltei ao Brasil, acompanhando meu companheiro que tinha sido anistiado. Na busca por um emprego, lembrei-me da Fundacentro. Fui até lá, me contrataram e comecei a trabalhar, pensando que seria por pouco tempo. Mas permaneci na instituição por mais de 30 anos, até me aposentar em 2012. O primeiro trabalho para o qual fui encarregada foi um estudo sobre o trabalho em turnos, solicitado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), interessada em conhecer a extensão dessa prática no Brasil. Nosso estudo se centrou nos distúrbios de sono causados pelo trabalho em turnos, um tema estudado na França por Jean Foret, que também tinha trabalhado no laboratório de Wisner, e que me ensinou muito sobre o assunto. Ao conhecer esse estudo, o professor Wisner propôs que eu o transformasse em minha tese de doutorado em ergonomia e me matriculasse na Universidade Paris XIII, uma vez que ainda não havia doutorado em ergonomia no CNAM. Foi o que fiz e, assim, pude defender minha tese, sob a direção de Wisner, em 1988. Durante todos esses anos, mantive uma estreita relação com o professor, que acompanhava meus estudos, de longe e também de perto, nos períodos em que voltei à França.

O professor Wisner, um médico especializado em otorrinolaringologia e, posteriormente, em psicologia industrial, era um militante da causa dos trabalhadores e sabia valorizar o movimento operário; tinha iniciado sua carreira nas fábricas Renault e conhecia bem as condições de trabalho dos operários de lá. Em 1962, entrou na vida acadêmica, como responsável pelos trabalhos práticos de fisiologia do trabalho do CNAM e, posteriormente, se tornou o diretor do Laboratoire de Physiologie du Travail et Ergonomie. No início, os trabalhos do laboratório eram mais experimentais. Mas, logo, Wisner constatou que as situações experimentais não davam conta da complexidade das condições reais de trabalho e que era necessário estudar o trabalho "real" lá onde ele se desenvolvia, nos postos de trabalho, junto aos trabalhadores. Foi essa necessidade que o fez explorar outros tipos de conhecimentos, como a psicologia cognitiva, e a falar de "análise do trabalho", que ele definia como a descrição do trabalho tal como ele se passava realmente e não tal como o prescreviam.

Ele foi importante para consolidar a ergonomia francesa e era respeitado mundialmente. Em suas frequentes visitas ao Brasil, sempre o acompanhei quando estava em São Paulo. Ele gostava muito de nosso país, se sentia bem por aqui, onde fez inúmeras amizades dentro e fora do círculo de ergonomistas. A cada estadia, tínhamos longas conversas sobre a ergonomia brasileira, que ele ajudou a formar e consolidar durante o tempo em que foi diretor do Laboratório: por lá passaram dezenas de brasileiros (a primeira foi a psicóloga Ana Albertina da Graça Branco, da Paraíba), que, de volta ao Brasil, criaram ou desenvolveram centros de ergonomia por todo o país, entre eles, Mário César Vidal na UFRJ, Júlia Issy Abrahão na UnB, Laerte Sznelwar na USP e Francisco Lima na UFMG, para citar apenas os mais antigos. Além disso, posteriormente, vários estudantes brasileiros frequentaram outros laboratórios franceses, como o de ergonomia da École Pratique des Hautes Études, de Antoine Laville; o de Psychanalyse, Santé, Travail do CNAM, dirigido por Christophe Dejours; o de Psychologie du travail do CNAM, dirigido por Yves Clot, todos eles localizados no mesmo prédio, o 41 Rue Gay Lussac, onde funcionava o Laboratório de Wisner. Outros estudantes foram ao Département d'Ergologie da Universidade de Provence, dirigido por Yves Schwartz, ou ao Laboratoire d'Ergonomie des Systèmes Complexes da Universidade de Bordeaux, dirigido por François Daniellou. Todos esses pesquisadores franceses, conhecidos dos brasileiros, reverenciaram o aporte de Wisner para o estudo do trabalho e, de certa forma, se apoiaram no conceito do trabalho real ou na "batalha do trabalho real", como dizia Wisner, para desenvolver suas próprias abordagens. O número 15 da Travailler Revue Internationale de Psychopathologie et Psychodynamique du Travail, de 2006, faz uma homenagem póstuma ao professor, publicando o dossiê Alain Wisner: une démarche, une reférence, com depoimentos de vários dos citados sobre a Contribuições da Ergonomia à Avaliação Coletiva do Trabalho: entrevista com Leda Leal Ferreira influência de Wisner em seus trabalhos e no desenvolvimento da ergonomia e das ciências do trabalho.4

Outro tema que interessava muito ao professor, e sobre o qual falávamos, era o problema da transferência de tecnologia, principalmente dos casos em que essa transferência não tinha sido bem-sucedida. Wisner tinha cunhado um termo – a Antropotecnologia – para dar conta do que via em suas andanças pelo mundo em relação à transferência de tecnologia para os países, como dizia ele, "em vias de desenvolvimento industrial". Resumindo bastante, eu diria que, para Wisner, enquanto a ergonomia se preocupava em adaptar as condições de trabalho aos trabalhadores de um posto de trabalho ou de uma fábrica, a antropotecnologia se preocupava em adaptar novas tecnologias à população de um país. Num caso e no outro, ele via como indispensável a análise do trabalho real.

NUTRA: Em apresentação no Colóquio Alain Wisner e as tarefas do nosso tempo, em Aix-en-Provence, 2001, você ressalta três principais lições que teve do professor Wisner: "Colocar o trabalho no centro das preocupações, respeitar a inteligência dos povos e exercer a solidariedade" (Ferreira, 2004, p. 60)5. Quais são as principais lições que sua atuação lhe permitiu construir e que você gostaria de transmitir aos profissionais que se dedicam à Ergonomia e às Ciências do Trabalho?

Leda Leal Ferreira: Você está se referindo a uma homenagem feita ao professor Wisner e da qual tive a honra de participar. Sua esposa, Jeanine, e seus filhos estiveram presentes; ele estava em plena forma e ficou muito comovido. As intervenções dos doze convidados a falar no evento, das mais diferentes formações, foram transformadas em um livro: Alain Wisner et les tâches du présent, la bataille du travail réel. O livro, editado em 2004 pela Octarès éditions, sob a direção de Jacques Duraffourg e Bernard Vuillon, teve a introdução de Yves Schwartz e o posfácio de François Daniellou, já citados anteriormente. As três lições das quais falei foram o que consegui sintetizar dos ensinamentos de Wisner, e acredito que elas continuem válidas e possam orientar a todos que se preocupam e querem melhorar as condições de trabalho dos trabalhadores em qualquer país do mundo.

A centralidade do trabalho sinaliza a importância do trabalho na constituição de cada indivíduo e de cada sociedade, importância essa que o pensamento dominante rejeita ou escamoteia. A ergonomia, quando se centra no trabalho real, pode contribuir para quebrar um pouco esse silêncio.

O respeito à inteligência dos povos é uma extensão da ideia de respeito à inteligência dos trabalhadores, sempre defendida pelo professor. Contra todos os estereótipos preconceituosos do trabalhador braçal e bronco, que vinha do taylorismo e que continua, mesmo que disfarçadamente, a dominar, Wisner era obcecado pela inteligência do trabalhador e não se cansava de mostrar que qualquer trabalho tem um componente cognitivo. Daí a importância de a análise do trabalho se interessar, para além das posturas e gestos, pelas informações que os trabalhadores dispõem, pelas comunicações entre eles e também pela sua palavra, espontânea ou provocada. O interesse dele pela antropotecnologia também tinha a ver com esse respeito pela inteligência dos diferentes povos e pela recusa em explicar a situação de subdesenvolvimento industrial de alguns países por razões étnicas, de deficiências naturais dos povos.

Finalmente, a solidariedade, uma ideia generosa, sempre fez parte da vida de Wisner e de sua esposa, que nunca pouparam esforços para acolher amigos em situação de dificuldades. Entre eles, seus alunos, com os quais o professor se preocupava não apenas do ponto de vista acadêmico, mas com as eventuais dificuldades que passavam.

Infelizmente, esses três valores estão em baixa, não só aqui no Brasil como no mundo. Estamos vivendo tempos muito duros, de individualismo extremo. As desigualdades aumentam, o que só gera e aumenta a violência. O desemprego e o emprego precarizado atingem níveis alarmantes. A situação atual dos trabalhadores, que são mais de três bilhões de pessoas no mundo, está difícil.

NUTRA: Sua inserção na tradição francesa de análise do trabalho permitiu a assimilação da Análise Ergonômica do Trabalho, metodologia utilizada por Wisner. O quanto ela foi importante e o quanto foi necessário se afastar dela para que você chegasse à proposição da Análise Coletiva do Trabalho?

Leda Leal Ferreira: Acho que, antes de responder à sua questão, eu deveria explicar, mesmo que resumidamente, o que é a Análise Coletiva do Trabalho (ACT) e o que a diferencia da Análise Ergonômica do Trabalho (AET), pois acredito que a maioria dos leitores as desconhece. Ambas são métodos de análise do trabalho que têm como centro o "trabalho real", a atividade dos trabalhadores. Mas, enquanto, na AET, a análise é feita na situação de trabalho, por especialistas externos, e baseada na observação do que os trabalhadores fazem, na ACT, a análise é feita fora da situação de trabalho, num local não identificado com a empresa, por trabalhadores voluntários que se prontificam a explicar a um grupo de outros trabalhadores e pesquisadores o que fazem no seu trabalho. Ou seja, a ACT se baseia inteiramente na fala dos próprios trabalhadores sobre o que fazem, enquanto, na AET, prevalece a observação do ergonomista sobre a atividade dos trabalhadores. São, portanto, abordagens diferentes, com resultados diferentes. Mas não contraditórias. Já ouvi comentarem que realizamos a ACT quando não conseguimos entrar nas empresas para fazer uma AET, dando a entender que há uma hierarquia entre as duas abordagens, a AET sendo superior à ACT: a AET seria "científica" e a ACT, "mera" reportagem. Não é verdade. Tendo trabalhado com ambas, posso garantir que a dificuldade de se fazer uma boa ACT é tão grande ou até maior do que se fazer uma boa AET. O que acontece é que os resultados das análises são diferentes: os da AET se assemelham mais a uma fotografia de alta resolução, enquanto os da ACT se assemelham mais a um filme...

Pois bem, quando comecei a desenvolver a ACT, conversei com Wisner, que se interessou vivamente por ela. Ele tinha plena consciência da força da descrição do trabalho pelos próprios trabalhadores. Também conversei com Christophe Dejours, pois a ideia de trabalhar com grupos de trabalhadores e não com trabalhadores isolados me veio do método da então Psicopatologia do trabalho (hoje Psicodinâmica do Trabalho), criada por ele. Eu temia que a discussão sobre o trabalho pudesse desestabilizar psicologicamente os trabalhadores, e falamos sobre isso. Por fim, não poderia deixar de citar a influência decisiva das ideias que me vieram da leitura de um texto de Antoine Laville e Catherine Teiger, ambos do CNAM, onde contaram que, em um curso de ergonomia que ministraram para trabalhadores, usaram a descrição do próprio trabalho deles como base das aulas.

Como dizia Vigotski (aliás, seguindo Ribot!), tudo que fazemos tem um pouco de repetição e um pouco de criação. Não poderia ser diferente na ACT, que tem elementos da Ergonomia, da Psicodinâmica do Trabalho e de minhas inquietações sobre o papel do trabalho na vida de cada um e das sociedades, frutos de minha história pessoal e profissional.

NUTRA: Diante de um cenário de fragilização das relações laborais, perceptível na terceirização, nas atividades reorganizadas pela economia de aplicativos e pela flexibilização de diversas categorias profissionais, ao seu ver, surgem desafios para a aplicação da Análise Coletiva do Trabalho?

Leda Leal Ferreira: Acredito que as maiores dificuldades para se aplicar a ACT (e, em certa medida, todas as abordagens que pretendem melhorar as condições de trabalho) estejam na ausência de demanda por parte dos trabalhadores e suas organizações sindicais, que é importante para garantir não só a participação dos trabalhadores nas reuniões como para que os resultados da análise sejam levados a sério pelas empresas ou instituições. Essa falta de demanda, porém, não ocorre por ausência de problemas, pelo contrário. Sua causa é a precarização dos empregos e o medo do desemprego.

Nunca é demais insistir no papel nocivo do desemprego. Além de desestruturar a identidade e o amor próprio de cada um, e de ser uma chaga para a sobrevivência dos trabalhadores e suas famílias, o desemprego funciona como uma trava às reivindicações dos trabalhadores: com medo de perder o emprego, eles não reivindicam nem melhores salários nem melhores condições de trabalho. Essa contraposição entre emprego e direitos só interessa ao capital.

É por isso que considero o desemprego o pior inimigo da saúde dos trabalhadores: para os desempregados, que se fragilizam ao perderem sua fonte de renda e os vínculos sociais proporcionados pelo trabalho, e para os empregados que, com medo de serem demitidos, aceitam as piores condições de trabalho, o que atenta contra a sua saúde e segurança.

NUTRA: Gostaria que você falasse sobre sua trajetória de atuação na Fundacentro. De 1980 a 2012, você atuou nesta instituição vinculada ao Ministério do Trabalho, hoje, Ministério da Economia, realizando pesquisas com diversas categorias profissionais, professores, metalúrgicos, pilotos da aviação comercial, petroleiros, cortadores de cana e pescadores de lagosta, para citar alguns. Qual é a relevância dessa instituição para o campo da atenção à saúde e segurança do trabalhador no Brasil? A partir de sua experiência, quais estratégias poderiam ser tomadas em nosso país no sentido de garantir e ampliar a saúde e a segurança das trabalhadoras e trabalhadores?

Leda Leal Ferreira: Minha atuação na Fundacentro sempre se deu como pesquisadora (e não como gestora, nem como médica) na área da ergonomia. Lembro-me de que, em 1980, na entrevista para minha contratação, quando disse que tinha uma formação em ergonomia, os entrevistadores entenderam economia, porque não tinham noção do que era ergonomia. Hoje em dia, a situação está um pouco melhor: muita gente já ouviu falar em ergonomia, mas associa o termo apenas ao estudo das posturas e, principalmente, à postura sentada. Daí a ênfase no estudo de cadeiras ditas ergonômicas, o que faz da ergonomia mais uma "cadeirologia" do que outra coisa. Por outro lado, há também aqueles que ampliam, a meu ver desmesuradamente, o escopo da ergonomia. É o que acontece, por exemplo, com os chamados "riscos ergonômicos", que se parecem a um grande guarda-chuva sob o qual se abrigam todos os riscos que não sejam os químicos e biológicos.

Quando criamos o serviço de ergonomia da Fundacentro, preocupei-me em trazer para cá alguns dos bons ensinamentos que tive no Laboratório de Ergonomia de Paris, sempre levando em conta que os nossos países tinham realidades muitíssimo diferentes e a Fundacentro não era o CNAM.

Na verdade, a Fundacentro é uma instituição sui generis, porque se ocupa tanto de pesquisas e estudos como da normatização, além da divulgação de conhecimentos e, mais recentemente, também da pós-graduação na extensa área da saúde e segurança do trabalho. Em outros países, muitos deles menores e menos populosos que o nosso, esses objetivos se distribuem por diversas instituições. Para realizar todos eles, a Fundacentro precisaria de um quadro de pesquisadores muito maior do que sempre teve, e muito maior do que o atual. Na falta disso, ela sobrevive graças, principalmente, ao empenho de seus funcionários, alguns deles verdadeiros missionários em prol da saúde e segurança do trabalhador. A área de Ergonomia sempre foi apenas uma pequena área na instituição, mas com uma produção de alto nível, resultante do empenho e da dedicação de colegas – tanto da própria Fundacentro como externos a ela – que colaboraram conosco.

Um dos princípios que nos norteou foi a importância da demanda. Quase todos os nossos estudos e pesquisas foram feitos a partir de demandas externas, seja de instituições públicas, como o Ministério Público, seja de entidades ligadas aos trabalhadores, principalmente os sindicatos.

Também sempre procurei estabelecer relações com ergonomistas de outras instituições, brasileiras e internacionais. Na década de 1980, a Fundacentro sediou a Associação Brasileira de Ergonomia (ABERGO), por duas gestões, nas quais realizamos dois congressos internacionais importantes, que ajudaram a consolidar a ergonomia brasileira. Nossa preocupação com a formação em ergonomia resultou na participação em vários cursos de ergonomia, seja no quadro da formação de médicos e engenheiros do trabalho, seja na formação em ergonomia propriamente dita. Também realizamos formações específicas de ergonomia para sindicalistas.

Enfim, publicamos dois livros do professor Wisner. O primeiro, Por dentro do trabalho, ergonomia método e técnica, pelas editoras FTD e Oboré, em 1987; o segundo, A inteligência no trabalho, textos selecionados de ergonomia, pela Fundacentro, em 1994.

Mas sempre priorizamos a área da pesquisa, mostrando que os trabalhadores nas mais diferentes profissões, dos cortadores de cana aos aviadores, têm muito o que dizer sobre seu trabalho, e para fazê-lo só necessitam de um incentivo, como o que lhes oferecemos na Análise Coletiva do Trabalho. As publicações sobre esses estudos, na sua maioria disponíveis no website da instituição (com exceção do livro O trabalho dos petroleiros: perigoso, complexo contínuo e coletivo, cuja autoria dividi com Aparecida Mari Iguti em 1994), apresentam um verdadeiro programa que, seguido, representaria uma grande melhoria de suas condições de trabalho.

NUTRA: Sob argumentos de modernização, racionalização e redução de despesas e burocracias, o Ministério da Economia reformula as Normas Regulamentadoras (NR1 e NR12) e chegou a revogar a NR2. Também aponta que, ainda em 2019, empreenderá a revisão da Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (segundo a Portaria nº 917, de 30 de julho de 2019, a Fundacentro será convidada, e também o Ministério da Saúde, a participar das discussões no Grupo de Trabalho incumbido da revisão). Considerando esses dois eventos, que fazem parte de uma agenda mais ampla de reformulação da legislação brasileira sobre o trabalho, como você vê essas proposições e qual futuro é possível imaginar para trabalhadoras e trabalhadores no Brasil?

Leda Leal Ferreira: A política do atual governo na área do trabalho tem um nítido viés ideológico pró-capital. O atual governo, como, aliás, também o governo Temer, parece não gostar dos trabalhadores, pois suas políticas são claramente favoráveis aos interesses do capital, principalmente o capital internacional, como mostra a ênfase na privatização de nossas maiores empresas nacionais. A extinção do Ministério do Trabalho é emblemática: voltamos a uma situação anterior à década de 1930, quando o Ministério do Trabalho foi criado exatamente para intermediar as relações entre trabalho e capital e proteger minimamente a imensa maioria dos brasileiros, que são aqueles que trabalham.

As primeiras NRs, isto é, as normas regulamentadoras de saúde e segurança do trabalho, que o atual governo quer modificar e já está modificando, surgiram em 1978 (ou seja, em pleno regime militar...) e, de lá para cá, têm sido periodicamente revistas, modificadas e ampliadas (eram 28 e agora são 36, considerando a recentíssima revogação da NR2 sobre inspeção prévia), exatamente para dar conta das mudanças que acontecem nos locais de trabalho decorrentes da implantação de novas tecnologias e de novas práticas nas empresas. Seu único objetivo é evitar, ou pelo menos diminuir, as chances de que os trabalhadores adoeçam ou morram por causa das más condições de trabalho. Embora seja um assunto pouco divulgado, os acidentes e doenças do trabalho atingem números assustadores no Brasil: só entre os trabalhadores registrados, quase 900 mil se acidentaram em 2017, sem contar os milhares de outros sem vínculo empregatício claro ou que não têm seu acidente registrado. Além do sofrimento pessoal, o custo dos acidentes é elevadíssimo. Existem procedimentos e prazos para essas modificações, que devem ser aprovadas por uma comissão tripartite, composta dos representantes das empresas, dos trabalhadores e do governo, uma vez que os interesses de empresários, trabalhadores e governo são, na maioria das vezes, conflitantes.

As modificações, portanto, são regra e não exceção. O problema é o sentido das modificações e a pressa em fazê-las. A se fiar nas informações oficiais veiculadas pelas redes sociais, que têm primado pela ambiguidade e imprecisão, parece que o atual governo tem uma pressa em "enxugar" as normas que não se justifica. Apesar de utilizar termos que todos aprovam – quem não quer modernizar, desburocratizar e reduzir despesas? – não há nenhum esclarecimento sobre o que se pretende modificar, por qual motivo, nem sobre os efeitos positivos e negativos dessas possíveis modificações. Carece de provas o argumento do Secretário do Trabalho de que as "famosas" NRs seriam um "cipoal de normas" ("37 normas com 6.800 linhas distintas de autuação passíveis de multas por parte dos fiscais do trabalho") que precisariam passar por uma "customização, desburocratização e simplificação" "porque impactam na produtividade de nossas empresas e na economia dos mais diversos setores da economia".

Mas é preocupante, principalmente porque já conhecemos os efeitos da última reforma trabalhista feita no governo Temer: também em nome de uma modernização, da retomada dos investimentos e da criação de empregos – o que não ocorreu – o que se viu foi um retrocesso na proteção dos trabalhadores, que tiveram vários de seus direitos retirados e seus empregos precarizados, com a expansão da terceirização e a criação do trabalho intermitente; uma desorganização nas relações de trabalho, com o enfraquecimento dos sindicatos que, de uma hora para outra viram suas receitas quase desaparecerem, e um desestímulo à procura da justiça para resolverem conflitos trabalhistas.

Essas minhas preocupações são comuns a muitos e várias entidades têm se manifestado contra a perda de direitos dos trabalhadores. Do jeito que as coisas andam, elas tendem a aumentar.

Você me pergunta qual futuro é possível imaginar para trabalhadoras e trabalhadores no Brasil. Acredito que todos gostaríamos de ter uma reposta a essa questão. Mas o máximo que consigo formular a respeito não é nenhuma novidade: o futuro depende do grau de resistência contra os retrocessos atuais e da capacidade de proposição de novas alternativas. Tanto a resistência como as novas proposições dependem fundamentalmente de ações coletivas e é por isso que o neoliberalismo – que na verdade é quem está impondo essa pauta socialmente regressiva aqui e no mundo – se empenha em desestruturar todos os coletivos. A luta para recompor coletivos nos locais de trabalho, nos sindicatos, nas escolas, na cidade, é difícil. Precisamos ser criativos e mostrar que, mais do que nunca, cada um de nós depende do trabalho de milhares de outros, próximos ou afastados, conhecidos e sobretudo desconhecidos; que o destino de todos nós está entrelaçado e que o individualismo extremo só nos levará para o fundo do poço. Sem esse reconhecimento e essa luta, os tempos sombrios que estão no ar demorarão mais a passar e o sol tardará mais a brilhar nos céus. Do Brasil e do mundo.

 

 

1 https://orcid.org/0000-0003-2751-1380
2 https://orcid.org/0000-0002-1814-7751
3
https://orcid.org/0000-0001-8651-1634
4 https://www.cairn.info/revue-travailler-2006-1.htm
5 Ferreira, L. L. (2004). Três lições do professor Wisner. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 29(109), 55-61. https://dx.doi.org/10.1590/S0303-76572004000100008

Creative Commons License