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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.23 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v23i1p51-63 

10.11606/issn.1981-0490.v23i1p51-63

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Precarização, neoliberalismo e questão social: reverberações sobre os modos de trabalho no nordeste brasileiro

 

Precariousness, neoliberalism and social question: reverberations about the ways of working in northeastern Brazil

 

 

Cássio Adriano Braz de Aquino1

Universidade Federal do Ceará (Fortaleza, CE, Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto é o recorte de uma proposta ampla que tinha como foco uma análise do neoliberalismo, trabalho e precariedade na América Latina. O segmento aqui abordado retrata os aspectos da configuração do trabalho na região do Nordeste brasileiro, destacando as implicações do neoliberalismo e dos processos de precarização nesse contexto. Dada a complexidade da articulação de tais categorias, lançou-se mão de três pontos decisivos para guiar nossa investigação: a compreensão da precarização como fenômeno constitutivo do modelo neoliberal proposto para o trabalho; a análise da questão social como mecanismo de contextualização das diferenças que afetam o mercado de trabalho; e, por fim, a dimensão política mais recente, responsável pelas significativas transformações que reverberam na configuração do trabalho na região nordeste. A construção desse cenário lança as bases que permitem o entendimento sobre a articulação entre os "novos" modos de trabalhar e a produção subjetiva dos trabalhadores, reconhecendo evidências dessa vinculação para a constituição do campo da psicologia social do trabalho.

Palavras-Chave: Neoliberalismo, Precarização, Questão social, Trabalho.


ABSTRACT

This paper is the outline of a broad proposal that focused on an analysis of Neoliberalism, work and precariousness in Latin America. The covered segment portrays aspects of work configuration in Brazil's Northeast region, highlighting the implications of neoliberalism and precariousness processes in this context. Given the complexity of articulating such categories, three decisive points were chosen to guide our intent: precariousness as a constitutive phenomenon of the neo-liberal model proposed for work; an analysis of the social question as a mechanism for contextualizing the differences that affect the labor market; and, finally, the most recent political dimension, responsible for significant transformations that reverberate in the work configuration of the Northeast region. The construction of this scenario lays the foundations that allow to understand the articulation between the "new" ways of working and the subjective production of workers, acknowledging evidence of this connection for the constitution of the Social Psychology of Work field.

Keywords: Neoliberalism, Precariousness, Social question, Work.


 

 

Introdução

O propósito deste escrito é trazer, a partir de reflexões sobre o neoliberalismo e a precarização, evidências das transformações nos processos organizativos do trabalho. O artigo traz um recorte que privilegia o olhar sobre tais reverberações no Nordeste brasileiro; no entanto, localizando-o numa dimensão mais globalizada, que considera aproximações e semelhanças com a ressonância em outros territórios geopolíticos.

O interesse pelo desenvolvimento desse propósito está ancorado naquilo que Fonseca (2000), ainda no início do século XXI, apontava como crucial na vinculação entre trabalho e subjetividade e que demandava um olhar atento da psicologia social. Segundo a autora, os novos modelos de trabalho estavam promovendo uma "devastação social", individual e coletiva, que reverbera nos modos de subjetivar, atraindo o interesse da psicologia social e apontando para referências que permitam circunscrever o efeitos de complexas rupturas derivadas da flexibilização do trabalho.

A partir das configurações contemporâneas apontadas por diferentes autores (Alves, 2000; Antunes, 2005; Boltanski & Chiapello, 2002; De Vito, 2012) que articulam neoliberalismo, trabalho e precarização, este artigo põe em destaque o recorte de análise dos modos de constituição do cenário laboral na região Nordeste brasileira até o momento em que nos encontramos. Não há o intuito de promover algo original nessa reflexão, mas fazer um recorte com a contribuição das novas espacialidades e temporalidades que derivam dos recentes modelos de trabalho e seus vínculos, organizações condições e contextos.

O desafio de discutir a partir de um lugar específico – a realidade do Nordeste – as questões acerca dos processos organizativos do trabalho demanda uma reflexão que leva em consideração um território com história, formação cultural e tradição sociolaboral singular. A contribuição de referentes históricos, culturais, dentre outros, deve ser considerada pela psicologia social do trabalho, principalmente por permitir a compreensão dos aspectos subjetivos que permitem reconhecer a construção de trajetórias laborais, que embora singulares e experimentadas individualmente, se constituem a partir de fenômenos coletivos.

No esforço de compreender como os modos de produção da subjetividade do trabalhador são elaborados, é preciso agregar um olhar mais apurado sobre a dimensão política e, tal como defendem Sato, Coutinho e Bernardo (2017), permitir o reconhecimento das singularidades históricas na constituição de uma ética não liberal e na aproximação com as disciplinas com as quais dialoga, próprias da psicologia social do trabalho. A dimensão política ganhou atenção especial em nosso país nos últimos cinco anos diante da radicalidade das rupturas na condução governamental, que tem sido decisiva para a compreensão das mudanças operadas na estrutura laboral brasileira. Como afirma Antunes (2005), todas essas transformações estão promovendo a progressiva reconfiguração morfológica do trabalho.

Diante dessas premissas, parece-nos prudente esboçar um quadro mais delimitado para procedermos a essa análise. Assim, não nos perderemos em um emaranhado de caminhos que mais nos dispersaria do que nos aproximaria da construção do cenário contemporâneo do trabalho, tendo o neoliberalismo, a precarização e as consequentes implicações políticas como mediadores desse intento. Para isso, partimos de três pontos fundamentais:

O primeiro deles é que a ideia de precarização não é um fenômeno estático. Já não se pode concebê-la a partir dos mesmos parâmetros que deram origem a sua definição nos países latinos do sul europeu (Itália, França e Espanha) e no estabelecimento das primeiras formas de implantação políticas neoliberais na América Latina, ainda nas décadas de 1970 e 1980, marcados pela evidência de um predomínio da exploração desregulada da classe trabalhadora. Poderíamos, inclusive, afirmar que estamos em trânsito de um regime de exploração para o regime de espoliação, como diria Braga (2017). Isso reconfigura o sentido da precarização, trazendo novos elementos para sua caracterização, os quais se alteram com a própria reconfiguração do mundo do trabalho.

O segundo ponto é a opção de tratar o tema fazendo uso da perspectiva da "questão social" como mediadora das diferenças regionais implementadas dentro do espectro do capitalismo contemporâneo e das formas que interferem na manifestação do neoliberalismo e das práticas laborais. A questão social opera conotações diferenciadas a partir dos contextos nacionais e locais onde é tratada, uma vez que estão atreladas às diferentes formas de organização econômica, política e social.

Por fim, o terceiro ponto é o da repercussão política como determinante do contexto laboral no qual vivemos hoje. As mudanças operadas a partir de decisões governamentais e as reações a essas são decisivas para traçarmos a perspectiva que iremos abordar neste artigo. Não estamos afirmando, ao adotar esses três pontos, que esta seja a única forma de lidarmos com o tema, mas entendemos que esse modo de reflexão permite a construção de um cenário – com base em fenômenos que têm no trabalho e na sua relação com o neoliberalismo e a precarização – que viabiliza a identificação dos aspectos contextuais que contribuem para a consolidação da produção subjetiva dos trabalhadores, elemento caro ao campo da psicologia social do trabalho.

 

Precariedade e precarizações

O fenômeno da precarização, como um processo em expansão no contexto laboral, é uma formulação derivada e difundida por diferentes saberes, tais como o das ciências humanas, sociais, jurídicas, dentre outras. Parece prudente recorrermos à compreensão da dinâmica que a constitui. Para isso, pontuamos a definição de Wresinski (1987) sobre o que seria a precariedade:

A precariedade é a ausência de uma ou de diversas garantias ou seguranças que permitem às pessoas e famílias assumir suas responsabilidades elementares e desfrutar dos seus direitos fundamentais. A insegurança pode ser mais ou menos grave e definitiva. Ela geralmente conduz à pobreza quando afeta diversos domínios da existência, quando tende a prolongar-se no tempo e tornar-se persistente a ponto de comprometer a reconquista dos direitos e de reassumir suas responsabilidades por si mesmo num futuro previsível (p. 28, tradução nossa).

Essa paulatina perda das garantias e seguranças, contida na definição de Wresinski é caracterizada por Concialdi (2007) como uma marca da década de 1990 no mundo do trabalho. Embora se reconheça a década de 1970 como aquela onde, a partir da reestruturação produtiva e da acumulação flexível, firmava-se o princípio da ruptura hegemônica com o modelo de sociedade salarial, foi nos anos 1990, com a expansão globalizada de tais perspectivas, que viu-se configurar as bases da precarização como um elemento fundamental do projeto neoliberal. Como diz Alves (2000), essa década criou o cenário propício para a consolidação da instabilidade laboral, debilitação das garantias e formas débeis de vinculação ao trabalho, elementos que identificavam o processo de precarização.

Historicamente, o Brasil atravessava a década sob a dominância de projetos governamentais que valorizavam claramente o capital em detrimento do trabalho, reforçando esse processo. Estávamos nos inserindo na expansão do neoliberalismo globalizado. Collor de Melo (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) não só defendiam as ideias neoliberais, como também as disseminavam através das políticas empregadas nos mais diferentes setores da economia.

O modelo salarial, vigente em boa parte do século XX nos países desenvolvidos, tendo o keynesianismo como expoente, representava um papel de contraponto entre as teorias liberais e as teorias marxistas. Acreditava-se numa intervenção controlada do Estado na economia e na busca por certa garantia de emprego nesses países. Era justamente essa intervenção estatal e a consequente mediação entre capital e trabalho, com forte apelo social, que reforçava a noção de "cidadania laboral". Tal termo é uma concepção que vinculava uma rede de garantias e direitos laborais e de bem-estar à compreensão do ser trabalhador assalariado (Alonso, 2007). É, justamente, a debilitação desse modelo de vínculo e a desvalorização da representação do trabalho que viabilizaram a emergência do fenômeno da precarização.

A cidadania laboral funcionava, assim, como um imaginário social, isto é, uma rede simbólica sancionada socialmente, onde se combinavam um referente funcional e um componente moral (de seleção e hierarquização de valores legítimos). . . . E como todo imaginário social em um entorno social concreto, a cidadania laboral keynesiana fordista aspirava a identidade total, o aprisionamento completo do social na produção nacional normalizada e na reprodução patriarcal da família (Alonso, 2007, p. 99, tradução nossa).

É preciso considerar – seguindo o pensamento de autores com obras representativas sobre o fenômeno da precarização, como Cingolani (2005), Concialdi (2007) e Hélardot (2005) – que, a partir da reestruturação produtiva, houve uma alteração profunda do lugar do trabalho na estrutura social. Seguindo a premissa neoliberal, requeria-se a fragilização da atividade laboral e da organização dos trabalhadores para submetê-los cada vez mais aos interesses do capital.

A consequência da reestruturação produtiva pode ser analisada a partir de diferentes mediações, tais como a desregulamentação do trabalho, o uso intensivo da tecnologia, a segmentação produtiva, a financeirização da economia etc. Tais consequências têm repercussão tanto na dimensão da temporalidade laboral – jornadas parciais, trabalhos por tempo determinado, descontinuidade de vínculo – como na dimensão da espacialidade laboral – relocalizações industriais, externalidade da produção, enxugamento do processo produtivo e aumento significativo do uso dos recursos científicos e tecnológicos.

As dimensões da temporalidade e da espacialidade são recursos utilizado por autores (Aquino, 2003; Gasparini, 1996; Grossin, 1986) para a compreensão das transformações no mundo do trabalho e sua repercussão na subjetividade dos trabalhadores. Tanto o tempo como o espaço articulam níveis micro e macrossociais que possibilitam o entendimento sobre a produção dos modos de vida dos trabalhadores, sendo elementos importantes para apreensão dos sentidos da subjetividade que compõem o interesse da psicologia social do trabalho.

A referência ao tempo e ao espaço se torna ainda mais relevante por sua estreita vinculação ao fenômeno simbólico que articula neoliberalismo e precarização, a saber, a flexibilização.

A observação atenta dos mecanismos de alterações nas duas dimensões – tempo e espaço – revela um elemento central que conduz ao novo cenário gestionado pelo princípio neoliberal, a flexibilização. O enfrentamento à crise do modelo salarial não poderia prescindir da flexibilização do trabalho, que, além da temporalidade e espacialidade, implicava também a perspectiva do direito, das condições de sua realização etc. (Garrido, 2006).

Dito de outra forma, novos modos de organização do tempo e do espaço atrelados ao trabalho passam a ser concebidos como modos privilegiados de enfrentamento à crise da sociedade salarial, embora neles estejam contidos os princípios da naturalização e até da normatização da precarização que conhecemos hoje, tomados eufemisticamente como formas de flexibilizar o trabalho. Percebe-se, assim, que a flexibilização se via profundamente atrelada ao processo de precarização e constituía peça chave para disseminação da razão neoliberal.

A ideia de flexibilidade pode ser considerada como um corolário da precarização. Dal-Ré (1999) afirma que é possível delinear três formas de associação da flexibilização com o mercado de trabalho. A primeira delas, concebida como uma forma de adaptação às crises, é pautada em correções normativas pontuais que funcionariam como ajustes e enfrentamentos mais conjunturais, sem alterações profundas nem aos fundamentos teóricos nem à estruturação normativa mais ampla. A segunda, tratada pelo autor como uma inspiração no "liberalismo coletivo", estaria pautada pela compreensão de que as perdas das mínimas garantias legais seriam equilibradas com compensações associadas aos instrumentos de representação coletiva dos trabalhadores. Por fim, e a que parece nos afetar mais diretamente na atualidade, é a flexibilidade de caráter neoliberal, pautada numa desregulamentação radical e na configuração de condições de trabalho extremamente vulneráveis. É na vinculação com este último protótipo de flexibilização que ancoramos nossa reflexão e vemos emergir a precarização como um elemento constitutivo do mundo laboral contemporâneo.

A fragilização do estatuto do emprego, em um primeiro momento, fez ressurgir a instabilidade, típica do modelo da emergente sociedade industrial do século XVIII e princípio do século XIX. A fragilização também viabilizou a emergência do signo da precariedade, agora compreendida como reação a um período anterior demarcado por emprego estável e garantias e direitos fundamentais destituídos dos riscos da incerteza. Começava a se configurar no cenário laboral uma realidade permeada por vinculações débeis e pela alternância entre presença e ausência de contratos de trabalho, com interrupções e reativações como forma de inserção no mercado do trabalho.

O retorno de um signo de precariedade após um período de cidadania laboral (próprio da sociedade salarial), tal como explicitado anteriormente, tem repercussões diversas nos diferentes cenários mundiais. A experimentação dessa precariedade – se plena, intermediária ou inexistente – se vincula à cultura laboral e à formalização de princípios da sociedade de bem-estar-social dos diferentes contextos onde ocorreu, trazendo consequências variantemente sérias.

É distinto pensar o que foi o (res)surgimento de vulnerabilidades no contexto europeu – que havia experimentado de uma forma aproximadamente homogênea a noção de bem-estar social – e pensá-la no contexto latino-americano, no qual a ideia de bem-estar era um horizonte desejado, mas distante de ser vivido e, muito menos, generalizado.

O contexto – no caso, o espaço geopolítico – gera um primeiro desafio na compreensão da manifestação da precarização, qual seja, ela tem uma representação distinta, dependendo da trajetória histórica onde ocorre, de forma especial, a presença (ou ausência) de bem-estar social. Dessa forma, antes de concebermos a precarização como um fenômeno homogêneo, mais correto seria compreendê-la como fenômeno diverso e plural. Assim, adotamos a ideia de precarizações, no plural, em vez de precarização, no singular, dada a sua diversidade de caracterização. Ademais, precariedade e precarização seriam categorias implicadas, mas distintas. A primeira remeteria a evidências contextualizadas de vulnerabilidades pré-existentes e próprias da constituição de algumas atividades, no caso aqui tratado, laborais. Já precarização implicaria a lógica processual, que remeteria a um resgate histórico e se caracterizaria, necessariamente, pela ruptura com condições laborais mais favoráveis. Portanto, precarização pressuporia o deterioro progressivo de tais condições, enquanto a precariedade estaria pautada em condições débeis de origem. (Alves, 2009; Aquino, 2007; Borsoi, 2005; Druck & Franco, 2011).

A processualidade contida na noção de precarização nos permite afirmar que há uma dinâmica na sua definição, tal como a concebemos neste texto. A crise do modelo taylorista-fordista deu início, a partir da década de 1970, ao desgaste de três elementos cruciais na configuração do estatuto do emprego – a ideia de emprego estável, a regularidade da renda e a rede de proteção social vinculada à condição salarial(e que fundamenta o conceito de cidadania laboral). Qualquer efeito sobre esses três elementos caracterizaria o processo de precarização da condição de emprego, ícone da sociedade salarial. Essa condição, entretanto, como ficou evidenciado na contextualização do fenômeno, não era hegemônica em todos os países, mas sim privilégio de alguns deles. Castel (1998) afirma, por exemplo, que os países da América Latina não estavam integrados sob esse estatuto, uma vez que parte considerável dos seus trabalhadores estava descoberta de tais direitos e garantias vinculados à condição salarial.

Sobre essa ideia, reside nossa primeira reflexão: a precarização inicialmente definida por autores europeus não poderia ser transposta sem relativizações para o contexto latino-americano – e de forma mais específica ao contexto nordestino – dadas as especificidades da realidade laboral no nosso continente e o lugar social ocupado pelo trabalho dentro das diferentes tradições históricas das sociedades. É bem verdade que, como pano de fundo nos diferentes contextos, sobressaía a premissa neoliberal, já indicada por Antunes (2005) – redução ou impossibilidade de acesso ao trabalho assalariado estável e com garantias, além da adoção da precarização laboral através das mudanças no contexto de trabalho e da fragilização da relação dos trabalhadores com suas atividades. O neoliberalismo se difundia com matizes diferenciados de acordo com os territórios onde se instalava. As noções de assalariamento estável e garantias para o trabalhador não eram dominantes no contexto nordestino, por exemplo. O acesso, ainda que mínimo, aos elementos que pautavam a condição salarial (contrato formal, regularidade de renda, para tomar como exemplos) representava uma melhoria das situações laborais vividas por trabalhadores quase sempre acostumados com condições de grande penúria.

O neoliberalismo é caracterizado por Blackburn (1999) como uma filosofia econômica que visa à explosão global do desenvolvimento a partir do reestabelecimento dos níveis de lucratividade do capital. A opção clara em atender às demandas do capital em detrimento do trabalho tem marcado a política promovida por suas premissas, gerando implicações significativas sobre a constituição do ser trabalhador e com reverberações sobre a sua subjetividade.

Não podemos esquecer que falar sobre subjetividade e trabalho é reconhecer, antes de tudo, que os modos de produção repercutem sobre as construções de sentido singular que são produzidas pelas diferentes formas de relação entre o ser o humano e o trabalho. Assim, como afirma Nardi (2006), a mudança do modo de produção taylorista-fordista para a acumulação flexível promoveu transformações nas formas de organização da vida social e reverberou na produção subjetiva.

Gasparotto, Grossi e Vieira (2014) afirmam que o neoliberalismo não só se expande no pensamento teórico das áreas econômicas e sociais como também contamina as crenças populares, levando a acreditar que não há alternativa viável à organização social que não o receituário neoliberal. Suas marcas, pois, seriam: a privatização da esfera pública, a desregulamentação financeira, a abertura externa, a flexibilização das relações e condições de trabalho, a retração ou diminuição do Estado e a reestruturação de políticas sociais. A socióloga argentina Verônica Gago (2018), no seu livro A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular, ressalta que o neoliberalismo não se vincula apenas à redução do papel do Estado e a prevalência do mercado, mas deriva, pelo menos na América Latina, de certo enraizamento nas subjetividades populares.

O conjunto desses fatores, ainda que não restrito ao âmbito do trabalho, está diretamente associado a ele. Isto remete ao segundo aspecto que utilizamos para embasar nossa reflexão, a saber, a questão social como mediadora das diferenças regionais.

 

Implicações acerca da questão social e a realidade nordestina

A questão social é uma categoria cara às ciências sociais como um todo e elemento central nas obras de Rosanvallon (1995) e Castel (1998), que a colocam como fundamental em suas análises acerca das transformações sociais.

A questão social viabiliza a análise das mudanças na sociedade, seja pela crise do Estado de bem-estar, seja pela pelo processo de desafiliação derivado da crise no trabalho. Ela pode também ser tomada como recurso de investigação da reverberação desses fenômenos a partir das diferenças regionais, motivo pelo qual a privilegiamos como um ponto fundamental de nossa análise, tal como concebe Pastorini (2004, p. 113):

. . . "questão social" assume expressões particulares dependendo das peculiaridades específicas de cada formação social (nível de socialização da politica, características históricas, formação econômica, estágios e estratégias do capitalismo) e da forma de inserção de cada país na ordem capitalista mundial.

É preciso, para além de uma compreensão da ideia global alcançada pela acumulação flexível – compreendida como modo de produção vigente –, refletir sobre a especificidade da forma de inserção do Brasil e de suas diferentes regiões no cenário neoliberal. Essa especificidade aponta claramente para as expressões particulares de integração do nosso país ao modelo capitalista e para as relações estabelecidas entre o Estado e os segmentos dominantes e dominados na economia como elementos definidores das formas de representação do trabalho. Reconhecer que há diferentes formas de participação das regiões geopolíticas que constituem o país nessa inserção ajuda a compreender por que a ideia de questão social nos interessa.

Assim como é diferente conceber o fenômeno da precarização na Europa e na América Latina, por exemplo, é também distinto compreender a repercussão do neoliberalismo e das implicações da precarização dentro do território brasileiro, uma vez que esse é eivado de diferenças. Tais diferenças se tornam perceptíveis na formação social de cada região em nosso país. O mais importante é que, ao priorizar a questão social nessa análise, dá-se ênfase à relação entre capital e trabalho como seu núcleo substancial de identificação das particularidades, como afirma Pastorini (2004).

No Brasil, tal como asseveram Santos, Vasconcelos, Natale e Figueiredo (2012), os processos históricos de precarização e superexploração do trabalho constituem o modo de exploração privilegiado do capital. Ao determos nosso olhar sobre o Nordeste, mais especificamente, vemos essa exploração se exacerbar e se ampliar de forma significativa se comparado com outras regiões brasileiras.

As referidas autoras trazem uma importante contribuição de análise histórica, que situa as origens do processo de exploração do trabalho por parte do capital em nosso país ainda no período colonial, com o uso da mão de obra escrava visando à maximização dos lucros da dinâmica comercial. Articulando o pensamento de Fonseca (2000), apresentado no princípio do texto, ao de Pastorini (2004), é possível perceber a articulação entre os modos de subjetivar e a formação social, mediados pelo trabalho. Segundo as autoras, foi no Nordeste, com a sua localização estratégica e com as condições climáticas propícias na faixa litorânea, onde ocorreu a monocultura da cana-de-açúcar e de onde emergiu a forma característica da economia colonial brasileira. Ali também se deu a origem da perspectiva heteronômica que tem sustentado nossa economia.

Não é intenção deste texto fazer um resgate histórico desse modelo de desenvolvimento; nesse sentido, recomendamos aos interessados a leitura da obra já referenciada. Mas, parece prudente identificar, nessa origem, um modelo que tem se perpetuado, com algumas variações ou mesmo pequenos movimentos de reação, mesmo após a revogação da condição colonial. A modernização do capitalismo brasileiro sempre foi conservadora, aliando atraso e modernidade. Esse modelo parecia estratificar esse processo, mantendo o atraso em alguns setores ou territórios da economia e promovendo a modernidade em outros.

Essa aparente contradição permite compreender que a transição do trabalho escravo para o trabalho livre em nosso país acabou sendo nefasta para o escravo liberto, que se viu discriminado na concorrência com o trabalhador livre branco e com os imigrantes, que ocuparam, principalmente, os territórios do Sudeste e Sul brasileiro. As semelhanças climáticas entre essas duas regiões geográficas brasileiras e alguns países europeus, principalmente aqueles situados às margens mediterrâneas, muitas vezes é tomada como fator de fácil adaptação. Ao mesmo tempo, é preciso considerar que a estrutura da monocultura açucareira e a tradição colonial brasileira serviram de referente ao fundamento da economia nacional nos primeiros anos pós-libertação dos escravos e seguiram pautando fortemente os modos de trabalhar dentro do contexto nordestino.

O modelo submisso derivado da cultura açucareira, que acabou se prolongando no setor agrícola e pecuário, fez com que houvesse pouca mudança no mercado de trabalho nordestino em relação ao período colonial. No Sudeste, por outro lado, dava-se início – atrelado às novas culturas agrícolas trazidas principalmente pelos imigrantes europeus – ao processo de industrialização.

No Brasil como um todo, os padrões de exploração da classe trabalhadora foram extremamente lucrativos. Entretanto, no Nordeste, de forma especial, a exploração parecia ser a regra. Se pouca coisa mudou em termos de panorama econômico no Nordeste, ao longo de parte considerável do século XX, na região Sudeste – especialmente  no estado de São Paulo em razão da cultura cafeeira, da participação de imigrantes com vivências laborais distintas e da emergente industrialização iniciada nesse período –, viu-se configurar o que Celso Furtado (2007) chama de relação "centro-periferia" interna da nação; com o Nordeste cumprindo a função periférica de fornecer mão de obra e matérias-primas que seriam transformadas e usufruídas em outros territórios.

No Nordeste, prevaleceu, basicamente até os anos 1970, uma economia voltada à dinâmica agrícola, baseada sobremaneira em relações de trabalho descobertas de direitos e garantias e em relações informais. Os trabalhadores, em sua maioria, estavam apartados da cidadania regulada que marcou a realidade brasileira em algumas regiões – de forma especial o Sul e o Sudeste – até o final da década de 1980. Caracterizar a precarização como a ausência ou perda gradativa de direitos e garantias atreladas ao trabalho era sem sentido, uma vez que, em sua base, a precariedade demarcava o cenário laboral, seja pelo tipo de atividade econômica prevalente, seja pela dominância de regras pouco formalizadas de vínculos laborais. O empresário ou patrão assumia a lógica paternalista antes que a salarial.

A partir da década de 1980, há uma pequena alteração desse cenário com o nascimento de um processo de industrialização, principalmente em duas grandes regiões metropolitanas – Salvador e Recife – e, um pouco mais tarde, em Fortaleza. É importante ressaltar, entretanto, que o fluxo das indústrias foi viabilizado sobretudo pelos incentivos fiscais e pelo valor da mão de obra, defasada com relação a um processo já estabilizado em outras regiões do Brasil. Os incentivos fiscais tornaram o estabelecimento de um estatuto de estabilidade algo contraditoriamente instável, já que, ao cessarem ou diminuírem em uma dada região, promoviam o fluxo das indústrias para outros espaços mais atrativos. Essa volatilidade era derivada dos processos promovidos pelos interesses do capital, não pela mediação do Estado dentro de uma perspectiva desenvolvimentista.

Diante desse quadro, de estabelecimento dos vínculos laborais pautados pelo desenvolvimento industrial no Nordeste, arriscamos dizer que o modelo de inserção no mundo do trabalho mais formalizado se deu sob a constante ameaça da instabilidade. Aqui surge uma perspectiva extremamente paradigmática. A promessa da formalização dos vínculos foi pautada na incerteza, uma característica própria da precariedade, como já definia Wresinski (1987). Isto já destaca de entrada a compreensão do processo de precarização de forma distinta daquela que vigorava nos centros industriais já estabelecidos. Ressalta-se, mais uma vez, a dificuldade de conceber os processos de precarização como homogêneos, uma vez que o estabelecimento de vínculos formais, que estariam na base da condição salarial, já estava em sua origem fragilizado.

Se a instabilidade é um dos elementos apresentados como definidor do processo de precarização – pelo menos aquela apontada no contexto de sua definição nos países com direitos e garantia laborais sólidas –, fica denotado que não poderia ser concebida como fenômeno característico da precarização no Nordeste brasileiro, pois é compreendida como acontecimento constitutivo das primeiras experiências de vínculo laboral na região. Confirma-se a ideia de que é preciso reconhecer a dinamicidade da categoria precarização e que sua aplicação está implicada ao contexto onde ocorre.

É importante destacar que essa instabilidade econômica não é, entretanto, fator suficiente para limitar o anseio pelo acesso às formas de vínculos formalizados. O estudo de Borsoi (2005) sobre o processo de industrialização  em uma cidade integrante da região metropolitana de Fortaleza é exemplo disso. A autora destaca que o estabelecimento de uma fábrica de calçados, em um contexto típico da produção agrícola da castanha de caju, alterou profundamente o perfil do trabalho na região. Enfatiza, porém, como uma das características da migração do trabalho agrícola para o industrial, a formalização por meio da carteira de trabalho e sua representação na possibilidade de acesso ao crédito e, consequentemente, ao consumo. Esse não foi um exemplo isolado. Outros exemplos, em diferentes regiões do Nordeste, davam o tom sobre a mudança do cenário, mas havia uma sutil ameaça de ruptura do modelo, caso as premissas fiscais e interesses econômicos do capital não fossem atendidos.

Aqui parece prudente retomar a ideia defendida por Gago (2018, p. 35) quando afirma que a "razão neoliberal" se forja na "produção de direitos e inclusão social realizada através da mediação financeira – e do consumo". Isso dá passo a novos modelos de relação laboral e implica novos modos de subjetivar.

A estabilidade, mesmo débil, era uma situação de maior garantia que a convivência com a inconstância climática que sempre pautou a realidade de boa parte dos trabalhadores nordestinos. A condição precária já fazia parte do modo de vida dessa população, que estava acostumada a enfrentar as intempéries climáticas da região. Esse contexto, muitas vezes romantizado – principalmente na literatura, nas canções e outras referências artísticas ao Nordeste, como na poesia de Guibson Medeiros (n.d.)2 –, sempre colocou a disponibilidade ao enfrentamento das adversidades como uma característica "natural" do nordestino, potencializando o uso dos trabalhadores ali residentes em condições de fragilidades de vínculos e situação de infortúnio.

Ao longo dos anos 1990 e a partir dos anos 2000, a região nordeste viu surgir alguns conglomerados específicos de desenvolvimento industrial que impactaram na constituição de um referente de trabalho mais bem qualificado, fazendo crescer em torno desses o viés do trabalho com um estatuto salarial – o crescimento do Polo Petroquímico de Camaçari, na Bahia; do Complexo Industrial Portuário de Suape e do Polo Automotivo de Goiana, em Pernambuco; e do Complexo Portuário do Pecém, no Ceará, para citar os exemplos mais destacados. Além disso, o final da primeira década do século XXI trouxe uma ampliação de trabalho decente em todo país, muito embora permeado por modelos de vínculos já debilitados, seguindo a ordem neoliberal que ocorreu em paralelo com o estabelecimento de algumas políticas sociais.

Mesmo sob a égide de um governo dito de esquerda, associado ao Partido dos Trabalhadores, a configuração do trabalho não escapou à tendência neoliberal. As transformações laborais seguiam, de certa, forma o ideário neoliberal, muito embora ocorressem em paralelo com o estabelecimento de políticas sociais inovadoras em nosso país, trazendo uma especificidade aparentemente contraditória, que associava mercado e intervenção estatal. Gago (2018) explica tal situação ao cunhar a expressão "razão neoliberal", indicando que houve, de um modo ampliado na América Latina, uma associação entre os movimentos sociais e a financeirização da vida. É importante considerar ainda que tais mudanças foram antecedidas, principalmente, por governos que atuaram entre a redemocratização (a partir dos anos 1980) e a virada do século e que promoveram reformas estruturais orientadas pelo mercado, incluindo a liberalização econômica e as privatizações, e que pouco atuaram em benefício de avanços sociais.

A aparente revitalização do mercado de trabalho no país e, de forma especial, a configuração de uma nova organização laboral no Nordeste, porém, não tiveram vida longa. Ainda sob os auspícios do governo petista, deu-se início a uma derrocada desse modelo compensatório que atingiu, principalmente ou prioritariamente, os espaços onde não houve a consolidação desse estatuto do emprego.

O recrudescimento do neoliberalismo de forma mais agressiva (se assim podemos falar) priorizou, como de costume, o capital e a lógica do mercado, atingindo em cheio a condição do trabalho decente, que no caso do Nordeste ainda não havia se consubstanciado. Isso dá passo ao terceiro elemento que previmos inicialmente para contextualizar a vinculação de neoliberalismo, precarização e os novos modos de trabalho: a dimensão política.

 

A dimensão política como elemento articulador da precarização e da questão social

Os anos 2000 trouxeram uma perspectiva diferente da que o país estava acostumado. Mesmo com algumas diferenças e ainda sob a marca da desigualdade, experimentamos a diminuição do desemprego, uma maior cobertura da seguridade social e um aumento real (ainda que não suficiente) da renda, principalmente para uma parcela da população que se encontrava nas condições mais débeis (Cacciamali & Tatei, 2017). Era um pouco a marca do que Braga (2017) aponta como a convivência do neoliberalismo com algumas políticas sociais de compensação. Isso trouxe alento a uma parcela da população, que via nesses pequenos ganhos grandes logros para a sua condição trabalhadora. A partir de 2015, porém, houve uma interrupção dessa tendência, levando a uma radicalização do neoliberalismo, agora esvaziado das políticas sociais ou, melhor dizendo, se opondo a qualquer resquício das proteções sociais.

A responsabilização das políticas sociais como elemento privilegiado das dificuldades econômicas se assemelha ao que foi construído como oposição, nos anos 1970, ao Estado de bem-estar social. Curiosamente, o Nordeste não havia dado início a um processo de ampliação da condição salarial, uma vez que a geração de empregos e a sua formalização ainda foram pautadas pela condição precária de boa parte do mercado de trabalho. No entanto, se julgamos que a precarização implica a referência processual e a verificação de destrutibilidade da condição anterior dos direitos e garantias sociais atrelados ao trabalho, podemos afirmar que demos início, no Nordeste, a uma forma de precarização que implicou o retorno às condições precárias de origem.

O idílio dos nordestinos com a condição menos precária durou pouco. Nos últimos quatro anos, deu-se início a uma série de ataques aos logros que tanto custaram a surgir no horizonte laboral brasileiro. Retrocedemos de uma forma acelerada às condições que julgávamos superadas, trazendo à tona processos de desfiliação, principalmente em determinados contingentes sociais já debilitados. O filósofo e economista José Krein (2019) afirma que, no início de 2019, contávamos com um contingente de quase 28 milhões de trabalhadoras e trabalhadores brasileiros subutilizados, tendo como símbolo desse fenômeno a mulher negra. Tal observação demonstra que a precarização torna ainda mais frágil a condição daqueles que não puderam estabilizar seus logros, mas os experimentaram de forma quase excepcional.

Estamos, atualmente, atravessados por diversas iniciativas ultraliberais – congelamento dos gastos públicos, contrarreforma trabalhista, contingenciamentos na educação, contrarreforma na seguridade social – que parecem ultrapassar a imaginária defesa dos interesses econômicos e adentram o plano da aleivosia perversa da destruição da classe trabalhadora. Os modos de trabalhar viabilizados dentro dessa condição de debilitação são os elementos "privilegiados" de promoção da subjetividade.

No espaço laboral, as consequências advindas com as reformas trabalhistas – não só no Brasil, mas em países como Argentina, Chile e Colômbia – têm produzido a vulnerabilização da relação laboral predominante nos países desenvolvidos do Norte global, que inclusive os levaram à caracterização da condição salarial ao longo de boa parte do século XX. Iranzo e Leite (2006) destacam as principais evidências que ratificam esse processo de vulnerabilização da condição salarial, que parecia configurar-se como uma tendência de estabilização em algumas regiões brasileiras e, de forma específica, como situação nascente do mercado de trabalho nordestino. Segundo essas autoras, é possível destacar cinco fenômenos que ilustram essa propensão degenerativa da experiência de trabalho na América Latina como um todo e, de certa forma, com sérias repercussões nas regiões que não constituíram uma tradição de trabalho decente, como o caso do Nordeste brasileiro.

– O primeiro deles aponta para um processo de desestruturação do mercado de trabalho por meio da redução do emprego regular, típico das grandes organizações, e ampliação dos trabalhos sem registro característico de empresas pequenas que fazem uso de subcontratação;

– O segundo fenômeno reside na ampliação dos modelos de relação laboral, gerando diferenças entre grupos ocupacionais, segmentando os coletivos de trabalho e dificultando uma noção mais coletiva da classe trabalhadora;

– O individualismo e o enfraquecimento da representação sindical aumentam o poder do capital e representam uma terceira característica;

– Um quarto elemento destacado pelas autoras é o da trajetória cada vez mais fragmentada e intermitente, rompendo com a dimensão de uma carreira sociolaboral;

– Por fim, tendo em vista o processo de responsabilidade individual, cabe ao trabalhador buscar sua adaptação ao contexto laboral complexo e em constante mutação, através de uma busca de qualificação e atualização pessoal ou submeter-se a condições cada vez mais sofríveis oferecidas pelas empresas e o mercado como um todo.

Tais características parecem naturalizadas como um receituário próprio do modelo neoliberal que domina o contexto contemporâneo. Há um predomínio das formas débeis de vinculação dos trabalhadores ao espaço do trabalho, que se agravam quando não há referentes estáveis – seja pela via histórica, seja pelo equilíbrio de opções distintas a esse modelo – que viabilizem o contraponto ao processo de fragilização das condições experimentadas pelos trabalhadores.

Quando associamos a contrarreforma trabalhista à previdenciária, que estão sendo implementadas no Brasil, vemos a potencialização da condição de fragilização do trabalhador, visto que elas se retroalimentam. A reforma trabalhista, com sua desregulamentação, pode ser encarada como a primeira etapa da reforma da previdência, que ganha corpo cada dia mais no nosso país.

A precarização é a política "pública" do neoliberalismo mais nefasto. Os principais afetados são aqueles que experimentaram, ainda que de forma rápida e quase etérea, o prazer da condição salarial – mesmo com seus dissabores. Essa parece ser a realidade vivenciada pela maioria dos trabalhadores nordestinos.

Inspirados na obra Os sertões, de Euclides da Cunha (1996, p. 51), há uma expressão responsável por uma construção identitária representativa do nordestino: "O sertanejo [nordestino] é, antes de tudo, um forte". Essa fortaleza não pode ser alimentada pela perspectiva de uma resiliência ingênua diante das imposições de um mercado laboral excludente, mas deve ser difundida como uma resistência que impedirá a naturalização da construção social que atende a interesses muito bem situados dos setores tradicionalmente privilegiados.

A ausência de vivências fundamentadas na condição salarial entre os trabalhadores nordestinos torna os reféns de direitos e garantias laborais pouco nítidos. A proliferação de modos instáveis e débeis, da informalidade, da intermitência que se ampliaram desde 2016, parecem reforçar a difícil condição de legitimidade de uma produção subjetiva pautada em laços mais coletivos de proteção. Na realidade, tais modos voltam-se a invisibilizar e reforçar uma imanente violência contra o trabalhador (Fonseca, 2000). Considerando o caráter social da produção subjetiva, tendemos a reconhecer que, no caso de parte considerável dos trabalhadores nordestinos, essa subjetividade está demarcada pela fragilização e vulnerabilidade da participação nas decisões que ultrapassam os modos de trabalhar e adentram nas decisões sobre os modos de produzir vida.

Num cenário cada vez mais fragilizado para condição de trabalho, é possível ver a expansão do ideário neoliberal reforçar o mecanismo de precarização e afetar a produção subjetiva do trabalhador, reconfigurando a experiência laboral e debilitando de forma agressiva os vínculos de trabalhos. Qualquer mudança dessa realidade não pode prescindir de uma resistência política.

É na resistência organizada e coletiva onde reside a esperança de desconstrução do discurso de naturalização da vulnerabilidade como mecanismo prioritário do crescimento econômico. É na esperança da resistência, não como discurso romantizado da fortaleza do nordestino, mas como condição precípua de existir como sujeitos trabalhadores de direitos e com garantias, que será possível alterar a circunstância contemporânea da realidade laboral.

Retomando a reflexão empreendida por Fonseca (2000), citada ao princípio desse texto, ainda no início dos anos 2000, podemos afirmar que os modos de trabalhar têm colocado à prova os processos de subjetivação tradicionais, que nortearam a expectativa de inserção no universo laboral, mesmo sem constituírem como fator hegemônico nos países da América Latina e, de forma especial, no Nordeste brasileiro.

A consolidação do neoliberalismo, pautado na precarização, na reconfiguração da questão social ancorada no trabalho e no direcionamento político em favor do capital tem tornado inalcançável a expectativa de uma cidadania laboral experimentada nos países que conviveram com o paradigma do Estado de bem-estar social. A psicologia social do trabalho se vê provocada a compreender, embora sem aceitar, a informalidade, a instabilidade, a intermitência e a fragilização dos vínculos como elementos privilegiados da construção do "novo" cenário laboral, principalmente nos territórios que experimentaram de forma tão efêmera as condições de cidadania relativas ao trabalho, como no caso do Nordeste brasileiro. Cabe também a ela, como já apontado por Sato, Coutinho e Bernardo (2017), posicionar-se em favor de uma postura ética que garanta resistência a essa vulnerabilização como contrapartida da produção subjetiva do trabalhador.

 

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Endereço para correspondência:
brazaquino@ufc.br

Recebido em: 31/10/2019
Revisado em: 27/07/2020
Aprovado em: 01/08/2020

 

 

1 https://orcid.org/0000-0001-8651-1634
2 "Sou do sertão terra quente/ que é bem difícil chover/ nasci de um povo valente/ acostumado a sofrer/ sou nordestino oxente/ e tenho orgulho de ser" (Medeiros, n.d.).

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