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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.23 no.2 São Paulo Jul/Dec. 2020

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v23i2p143-156 

10.11606/issn.1981-0490.v23i2p143-156

ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

 

Notas sobre Chernobyl1: análise de alguns aspectos relacionados às situações de trabalho da usina nuclear de Pripyat

 

About Chernobyl: analysis of some factors related to work situations in Pripyat nuclear power plant

 

 

Vivian Heringer Pizzinga2

Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Rio de Janeiro, RJ, Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da série televisiva Chernobyl e dos relatos do livro de Svetlana Aleksiévitch, Vozes de Tchernóbyl, que tratam do acidente nuclear em Pripyat, em 1986, este artigo discute os aspectos relacionados às condições e às relações de trabalho que as cenas evocam. A tragédia de Chernobyl pode ser vista como um acidente de trabalho, tendo ocasionado entre 4.000 e 93.000 mortes. Os aspectos que se pretende examinar dizem respeito às relações de poder, à relação entre o trabalho prescrito e o trabalho real e demais fatores. Na análise proposta, serão usadas as contribuições da psicodinâmica do trabalho, da saúde do trabalhador, da ergonomia francófona e de discussões teóricas acerca do mundo do trabalho. Ainda que as reflexões aqui levantadas sejam suscitadas a partir de adaptações constituídas de doses variáveis de ficção, elas podem ser úteis à discussão de aspectos que podem levar ao adoecimento no trabalho.

Palavras-chave: Acidente de trabalho, Saúde do trabalhador, Ergonomia, Psicodinâmica do trabalho.


ABSTRACT

Based on the sitcom Chernobyl and the stories of Svetlana Aleksiévitch's book, Tchernobyl voices, about the Pripyat's nuclear accident in 1986, this article discusses aspects related to the work relations and conditions that are evoked by the scenes. The Chernobyl tragedy can be seen as a work accident that caused 4000 to 93000 deaths. The aspects to be discussed are related to power relations, the relation between prescribed work and real work, and others. In the proposed analysis, contributions of work psychodynamics, worker health, French ergonomy and theoretical discussions about the work world will be used. And even with the fact that these reflections are caused by some variable parts of fiction, they can be useful to the discussion of the aspects that may lead to disease in work.

Keywords: Work accident, Worker health, Ergonomy, Work psychodinamics.


 

 

Introdução

O acidente na Usina Nuclear V. I. Lênin, situada na região de Chernobyl, na cidade de Pripyat, Ucrânia – antiga União Soviética –, em 26 de abril de 1986, foi de tal magnitude – biológica, social, política, econômica, ecológica, nuclear – que muito se pode falar sobre essa catástrofe, sob vários aspectos. Ele foi considerado o mais grave acidente nuclear da história (Xavier et al., 2007) ou, ainda, o "maior desastre nuclear para fins pacíficos do mundo" (Siguimoto & Castilho, 2014, p. 321). Há, porém, muita controvérsia quanto aos números do acidente. Em documento publicado em 2005 no site da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), aponta-se um total de mortes, atribuíveis ao acidente, em torno de 4 mil (AIEA, 2005). A publicação sublinha que, em relação à imprecisão do impacto gerado pelo acidente, muitas pessoas morreram de causas naturais e teria havido uma tendência a atribuir nexo causal entre os problemas de saúde observados e a exposição à radiação, o que teria ocasionado um exagero nas estimativas. Apesar de a estimativa oficial ficar em torno de 37 mortes, segundo Dupuy (2007), no vigésimo aniversário do acidente um relatório da ONU remeteu ao acidente, à época, centenas de milhares de mortes. Segundo informações colhidas pelo autor, 36 horas depois da explosão de Chernobyl teriam sido retiradas 48 mil pessoas de Pripyat, das quais teriam morrido 15 mil "empilhadas nos hospitais de Kiev nos seis meses que se seguiram" (Dupuy, 2007, p. 244). A magnitude de Chernobyl remonta a "centenas de vezes mais matérias radioativas lançadas do que em Hiroshima" (p. 244), o que levou à criação de uma Zona de Exclusão que incluía áreas da Bielorrússia e da Ucrânia, tendo sido um marco em que se percebeu que um acidente nuclear poderia afetar não apenas o país onde ocorresse, mas também países vizinhos, com consequências passíveis de atingir localidades situadas a grandes distâncias (Xavier et al., 2007).

Dentre as estimativas incertas acima mencionadas, encontram-se muitos trabalhadores que foram envolvidos na execução de proteção e isolamento do reator e da radiação. É, portanto, da perspectiva do trabalho que este artigo aborda a tragédia de Chernobyl, abrangendo suas relações e condições de trabalho, e a compreendendo como um acidente de trabalho que, por sua natureza muito específica e calamitosa, adquiriu proporções imensas e, em parte, indeterminadas.

No entanto, assim como à época demorou-se a divulgar o que havia acontecido e sua real abrangência, pouco material cultural se tem sobre o assunto – se formos pensar comparativamente à grandeza que o fenômeno alcançou. Quantos filmes de ficção e documentários, por exemplo, foram feitos sobre o Holocausto, e quantos foram realizados sobre Chernobyl? Svetlana Aleksiévitch, escritora bielorrussa ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, escreveu relatos a partir de entrevistas com sobreviventes ou testemunhas em seu livro Vozes de Tchernóbyl (2016). Por outro lado, a série Chernobyl, com roteiro de Mazin Craig e direção de Johan Reinck, dos canais televisivos HBO e Sky, é uma produção norte-americana recente que traz à baila uma perspectiva sobre o que aconteceu no acidente – tanto no que se refere às suas causas, quanto às nefastas consequências que se seguiram.

Alguns aspectos específicos apresentados na série podem ser questionados – ainda mais pelo fato de haver muita polêmica em relação ao ocorrido, sobretudo devido à polarização da Guerra Fria, em pleno vigor à época –, mas, considera-se que ela oferece uma boa descrição dos principais fatos envolvidos no desastre e que interessam a este artigo. Uma reportagem de Shramocych e Chornous para a BBC Brasil (2019), publicada após o lançamento da série com o intuito de comentá-la, traz o depoimento de Oleksiv Breus, que foi operador da usina na época do acidente, e viu de perto os fatos acontecerem. Segundo Breus, o acidente foi retratado de forma bem fiel àquilo que ocorreu em Chernobyl. Contudo, alguns pontos seriam questionáveis, como o caso de Anatoly Dyatlov, o engenheiro chefe responsabilizado por violar medidas de segurança que levaram ao acidente e que não era rude da maneira como a série o retrata.

Há também a cena em que três trabalhadores da usina devem mergulhar nas galerias inundadas sob o reator com o intuito de abrir uma válvula para drenar a água. Ainda segundo a reportagem, dois desses mergulhadores estão vivos e moram em Kiev, mas há pontos que não correspondem ao que aconteceu. Oleskiv Ananenko, um desses mergulhadores, relata que não receberam recompensa pela missão e não usaram roupas adequadas e equipamento completo e, sim, roupa de banho sem proteção na cabeça. Breus, por fim, aponta alguns estereótipos soviéticos trazidos pela série, mas concorda que o regime era de natureza muito secreta e que as práticas de gestão adotadas acabaram por contribuir mais ainda para o acidente.

Assim, este trabalho constitui-se em uma análise fílmica e procura trazer uma reflexão sobre aspectos não só das relações interpessoais e sociais, mas também das condições de trabalho em Chernobyl, a partir do que a série apresenta – sabendo-se das controvérsias sobre o fato, acontecido quando ainda havia União Soviética, sob o comando de Mikhail Gorbachev. Por outro lado, esta análise se dá em diálogo com depoimentos orais compilados no livro de Svetlana Aleksiévitch (2016), que traz relatos jornalísticos colhidos com sobreviventes da história. Ademais, é importante notar que considerar o acidente de Chernobyl como um acidente de trabalho coletivo, cujo arco de efeitos é vastíssimo, implica reflexões sobre algumas contribuições da psicodinâmica do trabalho, da ergonomia francofônica e da saúde do trabalhador. Finalmente, a importância de se debruçar sobre o acidente converge com a afirmação de Bandazhevsky (2013), médico bielorrusso, segundo o qual "o problema de Chernobyl é do mundo inteiro" (p. 206).

 

O acidente e suas implicações

Segundo Batista, Santana e Ferrite (2019), os acidentes de trabalho fatais constituem um importante problema de saúde pública e são situações evitáveis, sendo sua prevenção um desafio para países em desenvolvimento (Rodrigues & Santana, 2019), onde ocorrem o que esses autores chamam de um "extenso sub-registro". Eles apontam que, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2012, estimaram-se 320.580 óbitos devidos a acidentes de trabalho em todo o mundo, ao passo que, no Brasil, registraram-se 2.731 mortes ocorridas entre trabalhadores segurados em 2014.

A subnotificação de pessoas atingidas parece ter sido uma característica do acidente de Chernobyl. Yuri Bandazhevsky, por exemplo, professor do Instituto de Medicina Nuclear de Gomel, na Bielorrússia, trabalhou diretamente com vítimas do acidente, mas não pôde divulgar os dados epidemiológicos de suas pesquisas devido à proibição de autoridades soviéticas (2013). Essa situação ilustra o fato de que questões de cunho geopolítico estiveram fortemente presentes na catástrofe e influenciam os dados que temos sobre ela.

Dwyer (1989) apresenta uma interessante contribuição sociológica com relação ao entendimento dos acidentes de trabalho como originários de relações sociais. Para Areosa e Dwyer (2010), há uma "impossibilidade empírica para controlar ou antever todas as situações passíveis de causar acidentes" (p. 2) e sempre restam "zonas sombrias de difícil compreensão" (p. 4). Segundo os autores, "os acidentes de trabalho dependem da relação directa ou indirecta dos trabalhadores com os riscos" (p. 5), sendo produzidos organizacionalmente.

Para Perrow, segundo Areosa (2012), certos acidentes também envolvem "alguns mistérios", devidos à alta complexidade da estrutura de algumas organizações, tornando o que chamou de "acidentes maiores difíceis de prever". Areosa aponta que as incertezas que constituem as tecnologias complexas, difíceis de controlar, se relacionam às suas interações com o sistema social.

No que tange às questões geopolíticas, Baverstock e Williams (2007) apontam que o acidente de Chernobyl foi um teste para as capacidades das organizações internacionais de relevo, cujas respostas teriam sido insuficientes. O primeiro problema, segundo os autores, foi terem se deparado com o fato de que o acidente expôs vários países à radioatividade, mas foi considerado como um problema interno ao país em que ocorreu. Além disso, quando enfim se aceitou ajuda externa, as iniciativas eram separadas e sem coordenação entre si.

Apesar da subnotificação do número de pessoas atingidas em Chernobyl e dos problemas relativos à política internacional, é possível imaginar uma vasta quantidade de pessoas afetadas de inúmeras formas. Se fizermos um breve exercício de enumeração dos grupos diferenciados de pessoas afetadas direta ou indiretamente, teremos, a princípio: os trabalhadores do turno noturno, que estavam em atividade no momento do acidente; bombeiros chamados para "apagar o incêndio"; e, posteriormente, trabalhadores recrutados em outras cidades do país e que tiveram que se dedicar a mitigar os efeitos da explosão, o que envolveu milhares de pessoas. Houve também aqueles que tiveram contato mais próximo com quem recebeu altas doses de radioatividade, como as enfermeiras do hospital da região. Esses diferentes grupos de pessoas morreram ou foram contaminados com doses variadas de radioatividade, não tendo havido acompanhamento epidemiológico adequado após sua evacuação da cidade, conforme Dupuy (2007).

Mas, além das contaminações e problemas de saúde estritos, houve ainda a retirada de populações inteiras de suas cidades, não apenas em Pripyat, mas também nas que faziam parte da Zona de Exclusão. É evidente que essa migração forçada também traz muitos aspectos relevantes a serem pensados, no sentido do custo humano que uma catástrofe dessa dimensão provoca. E, como já indicado, um desses aspectos refere-se ao trabalho: populações inteiras deslocando-se de cidade, abandonando empregos, dedicando-se a novos ofícios, levando consigo o estigma (Aleksiévitch, 2016) de serem originários da região da Chernobyl.

Além disso, o adoecimento a curto, médio e longo prazos das pessoas atingidas e a forma como isso veio a impedir sua vida ativa também é um aspecto importante, afinal, não há apenas os acidentes de trabalho fatais, mas também os acidentes de trabalho não fatais, que, segundo Santana, Nobre e Waldvogel (2005) têm

... gravidade variável, mas [são] muito comuns em comparação com os fatais, resultando que a eles se atribua a maior "carga de doença" para a economia e a população. Isto porque acometem grandes parcelas da população ... levando a que um número substancial de pessoas permaneça, ao longo da vida, sobrevivendo com incapacidade física total e parcial por longo tempo... (Santana et al., 2005, p. 847).

Segundo Dupuy (2007), tem-se a enganosa ideia de que o ocorrido em Chernobyl foi um acidente soviético, e não um acidente nuclear. Para o autor, trata-se de um refrão enganoso que ofusca o fato de que a segurança em centrais nucleares mundo afora não é suficiente para proteger trabalhadores e populações vizinhas.

Cabe frisar que o objeto deste trabalho é Chernobyl, mas poderia ser o rompimento da barragem de Brumadinho (MG), no início de 2019, ou o rompimento da barragem de Mariana (MG), em novembro de 2015. Essas catástrofes – que podem ser consideradas como acidentes maiores, próprios a organizações de alto risco, em que elementos técnicos, tecnológicos, sociais e organizacionais atuam (Areosa, 2012) – geram problemas ambientais, sociais, econômicos, trabalhistas e sanitários a cidades inteiras. Uma vez que o acidente acontece, porém, é fundamental indagar-se: o que deveria ser feito não apenas a curto prazo, mas também a médio e longo prazos, com os trabalhadores e as famílias que são atingidos por uma catástrofe de proporções similares.

 

Trabalho real e trabalho prescrito

Chernobyl (a série) permite a discussão de alguns aspectos dos relacionamentos que podem se dar no âmbito do trabalho em uma situação laboral específica e que poderiam estar envolvidos na tragédia. Esses relacionamentos se inserem na dinâmica entre trabalho real e trabalho prescrito, e as cenas que mostram o momento crucial do acidente, quando os engenheiros devem obedecer às ordens de Anatoly Dyatlov, são emblemáticas dessas relações. A ergonomia francofônica trouxe contribuições importantes para o entendimento de algumas dessas situações.

O trabalho prescrito seria "a maneira como o trabalho deve ser executado: o modo de utilizar as ferramentas e as máquinas, o tempo concedido para cada operação, os modos operatórios e regras a respeitar ... [Ele] nunca corresponde exatamente ao trabalho real ..." (Daniellou, Laville & Teiger, 1989, p. 7). A definição dos autores faz referência ao trabalho de operários, mas diz respeito às tarefas que são previamente elencadas e que corresponderiam à forma como o trabalho deveria se dar na prática, em qualquer contexto. Assim, de acordo com os autores, toda maneira prescrita de se realizar uma atividade de trabalho, anterior à sua realização, é considerada como trabalho prescrito. Já o trabalho real vai além do prescrito e corresponde ao que é executado pelo trabalhador, ao que, na prática, ele faz, a partir de descontinuidades entre o que fora prescrito e a realidade que se apresenta quando da execução da tarefa. O trabalho real é muitas vezes invisível – isto é, aquilo que o trabalhador faz depende da forma por ele escolhida para lidar com o que o real lhe traz, que não estava prescrito nas descrições de funções.

Considerando-se o trabalho real como aquele que se realiza de modo concreto, para além das definições antecipadas fornecidas ao trabalhador, já é necessário que haja algum tipo de reajuste das normas antecedentes diante da situação em que o trabalhador se vê imerso – uma vez que essas normas são sempre insuficientes para lidar com a realidade da atividade. Esse ajuste que se dá na situação de trabalho implica escolhas por parte do trabalhador, por mais que esteja empenhado em seguir o que orienta o trabalho prescrito (Pereira, Mendes & Moraes, 2017).

No caso de uma usina nuclear, existem muitos protocolos de segurança que devem ser seguidos à risca. Diferentemente de outros tipos de atividades – nas quais uma margem de "transgressões e microcriações" podem vir a ser necessárias na execução da tarefa e como parte do trabalho (Brito, 2011) para que se possa realizar com êxito a atividade –, em uma usina nuclear não há espaço para isso, inicialmente; ou, se há, é muito reduzido. São os protocolos – o que é prescrito – que garantem a segurança de todos (Comissão Nacional Energia Nuclear, 1997)3. No caso de Chernobyl, segundo as informações veiculadas, usava-se o reator RBMK (Reaktor Bolshoy Moshchnosty Kanalnyy, russo para Reator Canalizado de Alta Potência), cujo núcleo não poderia explodir. No entanto, durante o teste de segurança, comentado à frente, acontece exatamente o que não era esperado: sua explosão.

Além de não terem sido treinados para o teste, os engenheiros tinham em mãos um guia de instruções com várias delas riscadas. Junto a isso, a ordem para que executassem aquilo que estava riscado. Aqui há uma confusão no próprio trabalho prescrito, que deveria ser apresentado de forma menos contraditória. Pode-se pensar que havia dois prescritos nas mãos dos engenheiros: um guia de instruções e as rasuras em partes desse guia. Essas rasuras, pode-se novamente pensar, seriam o trabalho prescrito que anulava um outro prescrito. Ou seja, uma espécie de atualização de prescrições que não geraria mais problemas se o contexto fosse outro, se a situação de trabalho não fosse um teste nuclear sob uma chefia indisponível para diálogo. Mas, como dito, a ordem verbal que recebem por telefone é que ignorassem as rasuras e considerassem o prescrito original. Quando enfim executam as ordens não coincidentes com o trabalho prescrito atualizado (as rasuras) e o pior está para acontecer, os engenheiros subalternos, com o pouco que lhes resta para consertar os erros, finalmente apertam o botão de segurança para interromper o procedimento. Entretanto, para horror e surpresa de todos, esse prescrito também trazia erros. Há explicações físicas para isso, trazidas pela série, que não são o objetivo deste artigo.

O que nos cabe apontar é que uma confusão de tarefas entre o que era prescrito e o que não era, e até mesmo entre duas prescrições superpostas, diante daquilo que o real do trabalho apresentava aos trabalhadores, entrou em colapso, possivelmente contribuindo para a explosão sem precedentes de Chernobyl. Segundo Ferreira (2013), em leitura baseada na psicodinâmica do trabalho, o real do trabalho se diferencia do trabalho real por indicar uma experiência "no limite do saber, do conhecimento e da concepção" (p. 346). O autor lança a questão sobre se é possível situar o trabalho real entre o prescrito e o real do trabalho e aponta, no caso desse último, sua relação com a dimensão das relações sociais e das relações de dominação.

O problema técnico que culminou na catástrofe era anterior àquele contexto específico, dizendo respeito à fabricação do reator de segurança, mas isso não era sabido e ficou evidenciado posteriormente. Enquanto acontecia o acidente e a partir das soluções disponíveis para os problemas que se apresentavam, pode-se, a partir de Ferreira, dizer que se tratou de "um furo ou ruptura do prescrito" (p. 349), o que também caracterizaria o real do trabalho. Tudo isso somado a um chefe cujas decisões eram arbitrárias e autoritárias, deixando os presentes assustados e atônitos diante de seus desmandos. Todas as tentativas de discordância e ponderação eram coibidas com ameaças.

Nas cenas retratadas, pode-se perceber a tensa situação de trabalho, da qual se pode inferir que o trabalho real acontece a partir de ordens diferenciadas e que se contradizem, tudo isso em um ambiente cujos riscos eram máximos e que exigia um trabalho prescrito que pudesse ser seguido à risca. Além disso, seria crucial ter um coordenador das atividades que manejasse a situação de modo a criar um clima de confiança mútua e diálogo, em que não houvesse pressão sobre os engenheiros realizando a tarefa. Por outro lado, após a explosão, os engenheiros que estavam em outros locais da usina, e anunciaram que era grave o que estava acontecendo, foram deslegitimados em seus avisos. O que se sucede após o fato de um acidente a respeito do qual eles ainda estavam tomando ciência, através de indicativos vários, também se mostra como uma situação em que o real do trabalho parece gerar um repertório restrito de saídas.

Em relação ao trabalho real, outras cenas reforçam que ele não tem, de fato, como ser previsto em lugar ou ofício nenhum, sendo inerente a qualquer trabalho o surgimento de situações inesperadas e dinâmicas. E aí temos lanternas que começam a falhar em túneis radioativos subterrâneos sem outro tipo de fonte de luz, ou equipamentos de detecção de radiação cujo limite é baixo, impedindo que os especialistas infiram o risco real a que todos estão expostos porque tampouco lhes são fornecidos outros equipamentos, além de não serem ouvidos em suas reinvindicações. Até mesmo uma enfermeira, que deve decidir se permite que uma mulher se aproxime de seu marido à beira da morte, está sujeita ao inesperado ao ter que tomar essa decisão (que não é meramente técnica) a partir do imponderável. Os dilemas éticos fazem parte do trabalho real; no caso de Chernobyl, humanizar a morte através da presença de alguém querido trazia risco de contaminação e morte para o acompanhante4. O acidente evidenciou que, em alguns dos casos enumerados, o real se apresenta de formas múltiplas, como escassez de opções para lidar com faltas e falhas de equipamentos, ligadas às relações de poder que se davam no interior da máquina burocrática, ou decisões éticas inesperadas, quando todos lutam contra o tempo.

Apesar de nenhum protocolo, nenhuma prescrição, lograr "abstrair o vazio das normas" e da impossibilidade de antecipações exaustivas (Schwartz, 2011, p. 138), parece ficar evidente que, em Chernobyl, alguns limites foram ultrapassados. Não havia espaço, na sala onde se operava o teste, para renormatizações (dentro do possível em uma usina nuclear) de nenhuma espécie. Uma vez que as normas estão relacionadas a valores, como pontua Schwartz, a opção por modificá-las tem a ver com escolhas valorativas, mas o ambiente em que se deu a operação não oferecia alternativas devido ao autoritarismo das relações que ali se estabeleceram. As cenas do teste de segurança que culminou no acidente evidenciam o quanto o trabalho real pode estar muito além do prescrito e o quanto o real do trabalho, em seu caráter disruptivo, pode acontecer devido a relações de dominação com maior ou menor visibilidade, mas que, no caso discutido, eram evidentes.

 

Relações interpessoais de trabalho, sofrimento ético e a saúde do trabalhador

Como apontam Minayo-Gomez e Thedim-Costa (1997), a saúde do trabalhador é "uma meta, um horizonte", tendo como pedra fundamental o "compromisso com a mudança do intrincado quadro de saúde da população trabalhadora" (p. 24). Para tal, a saúde do trabalhador requer um "posicionamento ético" (p. 24). A especificidade da saúde do trabalhador reside em incluir a determinação social nos processos de saúde-doença (Lacaz, 1996). Como assinala Minayo-Gomez (2011), há uma ampliação do "quadro interpretativo" desses processos (p. 24), dado que a categoria "trabalho" e a dimensão de "classe" passam a ser elementos constitutivos do adoecimento. Além disso, a saúde do trabalhador está necessariamente entrelaçada com a saúde ambiental, e o caso de Chernobyl é um exemplo paradigmático dessa assertiva.

A perspectiva, já comentada, de Dwyer (1989), segundo a qual as relações sociais estão estreitamente ligadas à produção de acidentes de trabalho, é cara à saúde do trabalhador por incluí-las nas situações de trabalho vinculadas aos acidentes. Levando-se em consideração a definição de Seligmann-Silva (1994), segundo a qual se pode considerar situação de trabalho como

... o conjunto complexo que inclui as condições físicas, químicas e biológicas do ambiente de trabalho; os aspectos técnicos; a organização prescrita e a organização real das atividades de trabalho, bem como a gestão das mesmas; a caracterização dos canais formais de comunicação e das relações interpessoais (p. 144).

Mudanças no mundo do trabalho com a reestruturação produtiva, a flexibilização das relações de trabalho, o avanço da ideologia gerencial, a apropriação de termos do mundo do esporte (times, equipes) para compreender as dinâmicas no interior de grupos de trabalhadores (Antunes, 2005; Sennet, 2009), entre outras – já estavam em processo à época da catástrofe nuclear, uma vez que tais mudanças tiveram origem com a crise do capitalismo da década de 1970. Contudo, a União Soviética, a princípio, não integrava o grupo de países caracterizados pelo modo de produção capitalista. As relações interpessoais de trabalho representadas na série parecem mais visivelmente abusivas e autocráticas, uma vez que, no gerencialismo e no toyotismo, outros meios são utilizados para que os trabalhadores atuem de um modo que se coadune com o rentismo, o lucro e a produtividade. A coerção se dá de modo sutil e o abuso é menos visível (mas não menos presente) no interior dessas ideologias, em que se lançou mão de padrões de comportamento nos quais o trabalhador "passa a ser o controlador de si mesmo" (Abramides & Cabral, 2003, p. 5).

No caso de Chernobyl – e não custa lembrarmos que não há aqui intenção de julgar as decisões tais como ocorreram –, os relacionamentos que se dão nas situações de trabalho postas são retratados como estando permeados por tensão e abuso de poder. Breus, na reportagem da BBC, afirma que Dyatlov, o engenheiro chefe, não se comportava do jeito autocrático como a série retrata, apesar de ser muito rigoroso. Ainda assim, ele e os outros dois chefes foram condenados por violar condições de segurança na ocasião. Antes do acidente, estava programado para acontecer a realização de "testes sobre a capacidade de refrigeração" da usina caso houvesse alguma situação de falta de energia (Suguimoto & Castilho, 2014, p. 319). A princípio, os testes começariam na madrugada do dia 25 de abril de 1986, mas um problema relacionado ao sistema de resfriamento de emergência, que estaria crucialmente ligado ao acidente de acordo com os autores, fez com que o teste fosse adiado para o turno seguinte. Segundo o que também se pode acompanhar através da série, o adiamento desse teste deveria ter sido por mais tempo, ou seja: ele não deveria ter acontecido em 26 de abril, mas havia pressa em realizá-lo por se tratar de uma operação que já vinha sendo adiada havia tempo.

Na série, podemos ver as etapas do teste de segurança desde os momentos em que se apresentavam sinais de que ele daria errado, quando a escolha de desistir ainda era uma opção. É possível também acompanhar o empenho dos engenheiros em seguir a orientação de segurança de que dispunham, segundo a qual devia-se desligar o reator e esperar 24 horas para recomeçar caso houvesse algum problema. O chefe, todavia, orienta que continuem. Eles tentam não cumprir a ordem, mas são ameaçados. Dyatlov os adverte, dizendo que não vão trabalhar mais em lugar algum se não o obedeceram e evoca sua experiência de 25 anos para avalizar sua razão. Diante da ameaça, os subordinados obedecem a ordem, mesmo apavorados, confusos e a considerando arriscada. Seguindo-se a cronologia dos fatos narrados na série, pouco depois da constatação de explosão do núcleo, dois engenheiros, um deles de 25 anos de idade, procuram abrir as turbinas de água manualmente para evitar que o estrago fosse ainda maior. Enquanto o fazem, imersos em água até quase a metade do corpo, os rostos avermelhados e os olhos se fechando de cansaço, o jovem engenheiro pede desculpas e o outro diz que não fizeram nada de errado. Ao que o jovem engenheiro responde: sim, fizemos.

As cenas evocadas permitem uma miríade de discussões importantes, como as que relacionam a evolução da concepção de riscos e dos paradigmas que embasam a compreensão sobre variáveis envolvidas nos acidentes de trabalho (Valverde, 2007) – mas nos interessa precipuamente o debate sobre o sofrimento ético (Dejours, 2006) e a dinâmica entre trabalho real e trabalho prescrito – em especial no que se refere às relações sociais em uma dada situação de trabalho. Segundo Vasconcelos (2013), o sofrimento ético "é a vivência de sofrimento experimentada pelo sujeito quando comete, convive e/ou negligencia atos que condena moralmente" (p. 424). Os engenheiros da cena do teste fizeram algo de errado porque estavam sob pressão e não lhes foi dada nenhuma escolha. Como se reconciliar com isso, a não ser desse modo – expondo-se mais ainda à emissão de urânio ao tentar abrir manualmente as turbinas no intuito de salvar a população em perigo? O caso de Chernobyl foi rápido, em termos de uma ordem que deve ser obedecida (e que tem efeitos catastróficos e imediatos), mas as cenas permitem o questionamento a respeito dos trabalhadores de diversas áreas que são obrigados a fazer o que não consideram que seja adequado e, por não terem autonomia, acabam por fazê-lo, talvez repetidamente, por anos a fio.

Outro ponto curioso refere-se a até onde a convicção de alguém pode ir quando é confrontado com um suposto percurso de experiência maior do que o seu. Quando o trabalhador discorda das orientações que é obrigado a seguir, de que modo poderá sustentar sua discordância, se há um superior que alega ter 25 anos de experiência, além de fazer sérias ameaças? Como afirma Chanlat (2011, p. 112) "toda organização produz relações de poder" e, como aponta também a psicodinâmica do trabalho, "relações sociais de dominação estruturam o trabalho, o que produz desdobramentos sobre a subjetividade daqueles que trabalham, homens e mulheres" (Gernet & Dejours, 2011, p. 65). A cena do teste evidencia relações de dominação em que um silenciamento também se produz através da alegação de experiência maior.

Relações de dominação aparecem em outros diversos momentos, implicando deslegitimação constante. Com o decorrer do primeiro episódio, em Moscou, um especialista no reator usado na usina é convocado. Em reunião de cúpula, esse especialista, chamado Legasov, tenta explicar, através de seu conhecimento técnico, que a radioatividade provavelmente é muito mais alta do que a que foi medida – uma vez que os dosímetros medem um máximo de 3,6 roentgen, o que já seria preocupante. No entanto, a radioatividade mostrar-se-ia muito maior quando conseguem dosímetros de capacidade superior de aferição. Diante das colocações de Legasov, um dos altos mandatários do governo invalida a informação trazida pelo especialista.

Já em Pripyat, Legasov tenta esclarecer aos demais o que significa a "explosão": o que está sendo expelido pelos ares e levado pelo vento é o equivalente a duas vezes a radioatividade da bomba de Hiroshima. Não há precedentes na história do planeta, ele adverte. Tudo o que será decidido, tudo o que for pensado para bloquear a emissão de radioatividade de uma maneira que não cause tantos danos aos trabalhadores designados para a missão, não deixava de ter um caráter experimental e inaugural. Segundo as informações ao final da série, vários cientistas foram recrutados para auxiliar Legasov nesse trabalho, mas eles, ao denunciarem a versão oficial dos fatos, também eram perseguidos e presos. Essa forma de gerir o acidente, com deslegitimação das contribuições dos cientistas e não reconhecimento da gravidade do ocorrido, se espelha no fato amplamente divulgado de que o governo soviético demorou dois dias para assumir o acidente, e só o fez a partir da detecção de radioatividade em outros países, como a Suécia (Suguimoto & Castilho, 2014)5.

O fato é que os chefes precisavam, também, recrutar soldados e bombeiros, a depender da situação, para que pudessem se aproximar do núcleo que explodiu e isolar o material radioativo. A questão do sofrimento ético surge novamente: como mandar esses trabalhadores para serem expostos a uma radioatividade letal, e o quanto informá-los sobre a real dimensão do risco que correriam? Em uma das cenas em que Legasov já está em Pripyat, um comandante resolve, ele mesmo, checar, aproximando-se da usina, a medida real de radiação com um dosímetro mais preciso. Isso acontece porque, quando lhe é revelado que, mesmo com toda a proteção e uso de chumbo, ainda assim os efeitos radioativos não seriam totalmente anulados, o comandante prefere não expor a integridade física de seus subordinados e aceita fazer a verificação por si mesmo. Havia, porém, outras situações que exigiam uma quantidade grande de pessoas que seriam colocadas em risco.

O debate sobre o risco é amplo e, como pontua Baruki (2018), a palavra assumiu variados significados com o decorrer do tempo, chegando à ideia de risco psicossocial. No que se refere à ameaça à integridade física e psíquica de trabalhadores, a busca por garantir sua segurança física em situações laborais está intimamente ligada ao surgimento do próprio direito do trabalho. Segundo a autora, "a história do direito ao meio ambiente do trabalho seguro confunde-se com a história do direito à saúde do trabalhador" (p. 109), o que leva a discussões sobre monetarização do risco, culpabilização da vítima e às questões referentes à prevenção. Não pertence ao escopo deste artigo enveredar por essas trilhas, mas apontar a problemática acerca da forma como, no encalço de solucionar um problema que poderia afetar todo o planeta, os mandatários e cientistas soviéticos escolheram expor os trabalhadores, retirando-lhes o direito à integridade física.

A partir das reflexões de Valverde (2007) sobre as contribuições de Véronique de Keyser, se se tem em conta que os seres humanos – os trabalhadores – são aqueles que, em situações complexas, constituem um meio de segurança na medida em que conseguem evitar ou diminuir as consequências de incidentes, pode-se deduzir a importância de, no mínimo, lhes ser dada informação a respeito do que vão enfrentar nas tarefas para as quais são designados. Quanto mais informações tiverem, mais possibilidades terão de manejar as dificuldades que se apresentarem6. Assim, em face deste dilema ético em que o esforço coletivo humano era necessário para que uma catástrofe de grandeza ainda maior não acontecesse, expor os riscos a que estariam envolvidos àqueles que aceitassem a tarefa não eliminaria o problema, certamente – mas talvez evitasse danos ainda maiores.

Nessas cenas, porém, os trabalhadores são alijados da tomada de decisões em uma separação entre os que coordenam e os que executam. No entanto, as contribuições da saúde do trabalhador, de filiação marxista, apontam para a importância de tornar os trabalhadores protagonistas das situações de trabalho, das medidas de saúde e segurança e das decisões que os afetarão. Legasov, o cientista, é um trabalhador que não é respeitado em seu trabalho e nas contribuições que pode dar (a série mostra seu esforço para se fazer escutar e as ameaças que também recebe), mas, quando se situa no outro polo da relação, é um trabalhador que também não respeita os trabalhadores a ele subordinados e tampouco considera que possam ter contribuições a dar. Ainda que essa seja uma pergunta sem resposta, é possível indagar o quanto a União Soviética (e outros países, afetados pela nuvem de radioatividade) perdeu por não incluir os trabalhadores nas tomadas de decisões e na busca conjunta de soluções para o acidente.

 

Trabalho invisível

Além do combate direto à radioatividade, havia outros tipos de trabalho que aconteciam ao redor da cena do acidente, embora fossem invisibilizados. As mulheres que lavavam as roupas dos trabalhadores enquadram-se nessa categoria, como se lê em um dos relatos: "Não havia máquinas de lavar, ninguém pensou nisso, não as trouxeram. Lavavam à mão. Eram todas mulheres mais velhas. Com as mãos cheias ... de chagas. As roupas ... continham dezenas de roentgen" (Aleksiévitch, 2016, p. 112).

Essas mulheres foram expostas à radiação executando uma atividade que talvez não fosse considerada trabalho. O trabalho invisível (Lhulier, 2012), muitas vezes executado por mulheres, aparece aqui constituindo o que Federici (2017) aponta como sendo tarefas domésticas. Federici chama atenção para o trabalho destinado às mulheres a partir do fim da Idade Média que teria permitido a acumulação primitiva de capital como condição para alavancagem do modo de produção capitalista. Esse trabalho referia-se à reprodução da força de trabalho e tudo o que foi construído como não sendo trabalho, recebendo um valor menor em relação àquilo que os homens faziam, mas que era crucial para que eles pudessem gerar riqueza. O trabalho de lavagem de roupas dos trabalhadores era uma ocupação que, a despeito de sua invisibilidade, constituía-se em condição fundamental para que o trabalho com protagonismo pudesse ser realizado. Os bombeiros precisavam de roupas para o trabalho e eram as mulheres que as viabilizavam.

Um dos problemas da invisibilidade de certos trabalhos frequentemente realizados por mulheres é que, se não são vistos ou considerados como tal, não recebem as devidas precauções, não são sequer cogitados como atividades de risco que merecem proteção. Finalmente, não são valorizados, não têm reconhecimento e, portanto, não recebem medalhas ou diplomas honrosos. Sua invisibilidade é tamanha que não há nenhuma cena, na série, que aponte, ainda que de relance, a presença de mulheres executando as tarefas cruciais (embora ignoradas) para que tudo fosse adiante. As trabalhadoras que aparecem são as enfermeiras do hospital da região e uma personagem fictícia de relevo, que congrega outros pesquisadores que ajudaram Legasov, o químico.

 

Condições de trabalho

Finalmente, a série e o livro de Aleksiévitch sobre o acidente de Chernobyl renovam as reflexões sobre as condições de trabalho, entendendo essa noção a partir da contribuição de Laurell e Noriega (1989), segundo os quais as condições de trabalho dizem respeito ao "conjunto dos elementos do processo de trabalho" (p. 46). Por outro lado, Lhulier (2012) chama atenção para o fato de que o trabalho é confundido com as condições de trabalho, invisibilizando-se, assim, aspectos importantes do trabalho real, que, para a autora, não se esgota naquilo que se faz, mas inclui também aquilo que não se faz, aquilo que se quer fazer, entre outros. Assim, no que se refere às condições de trabalho em Chernobyl, como já foi assinalado, não havia dosímetros adequados e, no momento da explosão, os engenheiros que trabalhavam no interior da central atômica não usavam uniforme de proteção. Foi apenas depois de as consequências da explosão estarem avançadas que equipamentos e roupas mais reforçados passaram a ser mais utilizados.

Um dos relatos colhidos por Aleksièvitch (2016, p. 45) aponta que os trabalhadores e bombeiros ... trabalhavam sem roupas especiais de proteção [e] dirigiam-se para lá sem protestar ... esconderam deles a verdade sobre as altas doses recebidas ... e ainda se alegraram ao receber ... as medalhas que o governo lhes conferiu pouco antes de morrerem. Muitos nem chegaram a recebê-las ...

Relatos dos próprios bombeiros ou "liquidadores" também mostram a que tipo de risco eles foram expostos:

Os robôs não aguentavam o trabalho, as máquinas ficavam loucas. Mas nós trabalhávamos. Às vezes descia sangue dos ouvidos, do nariz. A garganta ficava irritada, os olhos ardiam. Surgia um ruído constante e monótono nos ouvidos ... mas trabalhamos bem. E nos orgulhamos muito disso ... (Aleksièvitch, 2016, p. 102).

Dias após o início do acidente, a força-tarefa se vê obrigada a convocar centenas de mineiros para cavar um túnel subterrâneo. Na cena em que o encarregado dos mineiros vai tomar conhecimento das tarefas que ele e sua equipe deverão executar, quando Legasov explica a ele o trabalho a ser executado, o chefe das minas encara fixamente o cientista. Este, por seu turno, sustenta o olhar, sabendo que não tem como fornecer melhores condições de trabalho além de um túnel construído 12 metros abaixo do nível do reator, para garantir a segurança dos trabalhadores. No entanto, como lembra o encarregado, a entrada do túnel não se situa 12 metros abaixo. Estarão todos expostos e isso fica claro sem que as palavras correspondentes sejam usadas. É preciso que o chefe dos mineiros tenha a perspicácia de fazer as perguntas certas. Do contrário, não seria informado.

Mais à frente, quando o trabalho efetivamente começa, o calor é insuportável dentro do túnel. A temperatura é de 50° Celsius. Um dos relatos aponta que os mineiros, "desnudos, empurravam de gatinhas os vagões ... E ali havia as mesmas centenas de roentgen" (Aleksièvitch, 2016, p. 220). Quando o chefe político e o cientista Legasov são chamados para entender o que está acontecendo ao saberem que os mineiros estão nus, o chefe dos mineiros não hesita em dizer que não há possibilidade de cavar naquele calor usando roupas e que, de qualquer modo, elas não os protegeriam da radioatividade. Mais uma vez, ele não usa os termos específicos – urânio, contaminação, radiação – mas o encarregado dos mineiros, sem conhecimento de química ou de física nuclear, sabe a que está expondo seus trabalhadores e indaga: "quando isso acabar, vocês vão cuidar desses homens?". Após alguma hesitação, o mandatário do governo diz não saber. O encarregado os fita pela última vez e, com desdém, volta ao trabalho.

Há pelo menos dois pontos de interesse nessas cenas e nos relatos colhidos por Aleksiévitch: um diz respeito à falta de honestidade quanto ao trabalho a ser executado, já comentada. Em um dos relatos da escritora, lê-se: "Aonde nos levavam? Para quê? Havia pouca informação. Sim, explodiu um reator. Mas e daí?... Ali [em Slutsk], as pessoas ainda não sabiam de nada. Elas, como nós, viam pela primeira vez um dosímetro." (2016, p. 109). As informações não eram claras e, de acordo com a autora, consta que livros sobre radiação e sobre as bombas de Hiroshima e Nagasaki haviam sumido das bibliotecas. Somavam-se a isso as injunções para defender a pátria, as evocações ao heroísmo. Esses homens eram chamados de "soldados do fogo". O segundo ponto diz respeito aos momentos em que as autoridades políticas e científicas são confrontadas moral e eticamente pelas decisões que tomavam e pela responsabilidade que assumiam (ou não) com os trabalhadores. Os acidentes, os adoecimentos e as mortes não possuíam nenhum tipo de seguro. Diplomas, medalhas e mil rublos, no máximo (Aleksiévitch, 2016).

Diante disso, as autoridades, que eram trabalhadores, estavam, também elas (principalmente elas) perplexas diante do acidente, em busca não apenas de entender o que se passara como também à procura de soluções que não levassem seus operadores à morte – tampouco havia trabalho prescrito para eles face à catástrofe. Entretanto, abdicaram de, junto com esses trabalhadores, humanizando-os, encontrar, coletivamente, saídas viáveis, o menos danosas que conseguissem. Essa saída construída coletivamente poderia ter sido um verdadeiro trabalho de cooperação, em que o saber dos trabalhadores, ocupando o lugar de sujeitos, também fosse levado a sério.

 

Considerações finais

Por meio da análise de questões de trabalho suscitadas a partir da série Chernobyl e do livro Vozes de Tchernóbil, pôde-se levantar algumas indagações que merecem visibilidade e uma discussão mais ampla a respeito da tragédia nuclear, aqui considerada como um gravíssimo acidente de trabalho. Os questionamentos dizem respeito ao sofrimento ético do trabalhador, que, por injunções superiores, é levado a fazer aquilo com o que não concorda, o que pode ter consequências nefastas; à honestidade com que superiores hierárquicos lidam com os trabalhadores no que concerne ao conhecimento da nocividade de suas atividades; ao colapso entre o trabalho prescrito e o real; à invisibilidade de certos trabalhos, fundamentais naquele contexto; às relações de poder e dominação e a perspectiva segundo a qual os processos sociais estão atrelados à fabricação de acidentes de trabalho.

Nesse sentido, a partir do princípio segundo o qual a saúde do trabalhador requer um posicionamento ético, do qual não se desvincula, e levando-se em conta as contribuições da ergonomia francofônica sobre as renormatizações do trabalho prescrito a partir de escolhas dos trabalhadores necessariamente ligadas a valores, é possível pensar no quanto teria sido diferente o ocorrido em Chernobyl (e possivelmente em outros acidentes maiores) se os relacionamentos de trabalho fossem outros; se a gestão do acidente fosse participativa, no sentido de incluir o trabalhador enquanto sujeito das soluções pensadas, e não como objetos dos dirigentes e cientistas soviéticos, passíveis de sofrimento ético diante do conhecimento que tinham quanto à periculosidade a que expuseram os trabalhadores, sem notificá-los. Se, conforme a teoria sociológica de Dwyer (1989), os acidentes estiverem ligados às relações sociais, é exatamente sobre elas que se precisa deter e ponderar para evitar outros. Se os acidentes são produzidos organizacionalmente, é fundamental incluir as contribuições das clínicas do trabalho, em suas variedades de método e epistemologia, e da saúde do trabalhador – para pensar as atividades e os processos e as condições de trabalho.

Em síntese, cabe sempre retomar certas questões: será que somos coniventes com situações que, por sorte, não geram males ainda maiores? Como estão sendo tratados, por exemplo, os trabalhadores de Brumadinho e seus familiares, ou os de Mariana? Como são tratados e que consideração recebem aqueles que são indiretamente afetados por tais acidentes, na medida em que perdem seus empregos por serem de uma área onde ocorreu uma tragédia? Para finalizar, embora não se trate de acidente, pergunta-se: como serão tratados os trabalhadores da linha de frente da Covid-19?

 

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Endereço para correspondência:
vivianhp@globo.com

Recebido em: 02/12/2019
Revisado em: 18/08/2020
Aprovado em: 27/08/2020

 

 

1 Neste artigo serão usadas duas grafias para Chernobyl: a primeira refere-se à série, Chernobyl, e a segunda ao livro de Svetlana, Tchernóbil. Quando for mencionado o título do livro de Svetlana, usaremos a grafia utilizada pela tradução brasileira.
2 https://orcid.org/0000-0003-4602-2267
3 A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) é o órgão que, no Brasil, tem atribuição legal de gerenciar todas as atividades em usinas nucleoelétricas. As normas que regulamentam essas atividades são publicadas por tal comissão. Tais regras não dizem respeito a Chernobyl, mas é possível verificar que, na Resolução 04/97, por exemplo, a seção de "Instruções e Procedimentos para Operação" traz especificações quanto à realização de testes e como proceder quando ocorre algum tipo de violação, onde tudo é programado.
4 Essa foi a situação de Liudmila Ignátienko, esposa do bombeiro Vassíli Ignátienko, relato inicial do livro de Svetlana Aleksiévitch. Grávida, ela assiste à morte do marido, exposto a altas doses de radioatividade. A filha nasce carregando 28 roentgen no fígado e uma lesão congênita no coração (p. 34). Em 4 horas, o bebê morre. Natália Ignátienko, filha de Liudmila e Vassíli, havia recebido "todo o impacto radioativo" (p. 35).
5 É curioso notar como o conhecimento científico é minimizado ou negado em diferentes momentos e contextos graves das coletividades, como acidentes e pandemias. Em épocas de pandemia de Sars-Cov-2, alguns governos têm apresentado comportamentos e atuações muito semelhantes aos do governo soviético nos momentos iniciais de Chernobyl, trazendo grandes malefícios a países inteiros.
6 Aqui, cabe uma analogia com os trabalhadores da linha de frente no combate à Covid-19 que atuam em hospitais. Diante de uma situação parcialmente conhecida – a existência de um vírus novo, com alto grau de transmissibilidade e efeitos sistêmicos severos -, o único recurso que tais trabalhadores têm para minimizar o efeito de transmissão é o conhecimento. Na medida em que sabem dos riscos de estarem expostos a cargas virais altas, que têm informação a respeito do que fazer com equipamentos de proteção individual, podem diminuir as chances de serem contaminados e interromper a cadeia de transmissão. Os trabalhadores só saberão como reduzir os riscos através das informações de que dispõem.

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