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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.24 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v24i1p103-117 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Reforma trabalhista e relações de trabalho no Brasil: por quem os sinos dobram?

 

Labor reform and labor relations in Brazil: for whom do the bells toll?

 

 

Sebastião Ferreira da CunhaI; Andriele Magioli da SilvaI; Rondon Ferreira de Souza FilhoII; Joelson Gonçalves de CarvalhoIII; Wagner de Souza Leite MolinaIII

IUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, RJ, Brasil)
IIUniversidade Federal de Uberlândia (Uberlândia, MG, Brasil)
IIIUniversidade Federal de São Carlos (São Carlos, SP, Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As reformas trabalhistas de 2017 são a mais abrangente alteração sofrida pela CLT desde seu lançamento. Este artigo compara as novas leis e o posicionamento sobre o tema por parte da CNI e do DIEESE, entidades que representam dois dos grupos sociais mais afetados: patrões industriais e trabalhadores. A partir do referencial da economia neoclássica e dos estudos de Dunlop sobre Sistemas de Relações Industriais, demonstra-se que a reforma atende diretamente aos interesses patronais, em detrimento dos pontos de vista colocados pela entidade dos trabalhadores, refletindo uma correlação de forças muito desfavorável a estes últimos, e lançando dúvidas sobre a capacidade explicativa dos sistemas "equilibrados" de Dunlop. O método consiste em apresentar as alterações na legislação, contrastando-as com o posicionamento das entidades. Verifica-se 100% de convergência entre as novas leis e a visão da CNI, com ampla rejeição por parte do DIEESE, o que indica a lógica por trás das reformas: a recomendação (neoclássica) de flexibilização do mercado de trabalho, argumento caro ao patronato, mas problematizado por vários estudos acadêmicos na área das relações de trabalho.

Palavras-chave: Reforma trabalhista, Relações de trabalho, Conflito.


ABSTRACT

2017 labor reforms are the most far-reaching change Brazilian Labor Laws (CLT) has undergone since its launch. This article compares the new laws and the position on the subject by the CNI and DIEESE, entities which represent two of the most affected social groups: industrial bosses and workers. Based on the framework of neoclassical economics and Dunlop's studies on Industrial Relations Systems, it is demonstrated that the reform directly serves the employers' interests, to the detriment of points of view put forward by the workers' entity, reflecting a very unfavourable correlation of forces to the latter, and casting doubt on the explanatory power of Dunlop's "balanced" systems. The method consists of presenting changes in the legislation, contrasting them with the entities' positions. There is 100% convergence between the new laws and CNI's view on the matter, with broad rejection by DIEESE, which indicates the logic behind the reforms: the (neoclassical) recommendation for flexibility in the labor market, an argument that is dear to the bosses, but problematized by several academic studies in work relations field.

Keywords: Labor reform, Work relations, Conflict.


 

 

Introdução

No ano de 2017 ocorreram dois grandes movimentos no arcabouço legal que mudaram a estrutura das relações de trabalho brasileira. A chamada Lei de Terceirização, Lei nº 13.429, de 31 de março, e a Lei nº 13.467, de 13 de julho, regulamentaram iniciativas fartamente tentadas na década de 1990 e sistematicamente indicadas por parte significativa de agentes representantes de interesses de um grupo social específico, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e partidos e movimentos caracteristicamente de direita, entre outros. E, ao serem promulgadas, alteraram a estrutura da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e promoveram uma reforma trabalhista no Brasil.

Visaram, fundamentalmente, a reduzir custos empresariais com a folha salarial e certa regulação no chamado mercado de trabalho, inibir o acesso do trabalhador à justiça do trabalho e iniciativas de magistrados não patronais, e restringir a influência de sindicatos considerados mais combativos, emplacando gigantesca modificação nas relações de trabalho e emprego, particularmente naquela parte que interfere nas formas de definição da jornada de trabalho e de uso, de contratação, e de remuneração da força de trabalho.

O cerne da defesa da reforma ancora-se na iniciativa de ampliar a discricionaridade do capital em relação ao trabalho sob o discurso da busca por um mercado de trabalho flexível, que traria, de acordo com os argumentos, o que seriam os seguintes resultados positivos: (a) a capacidade da empresa de ajustar volumes de trabalho e remuneração sem precisar demitir em momentos de crise; (b) mesmo que a demissão ocorra, a possibilidade de promover a adequação à conjuntura econômica se tornaria um incentivo (ou, no mínimo, inexistência de desincentivo) para a contratação, antes mesmo da existência da conjuntura adversa; (c) a perspectiva de menor interferência negativa na taxa de lucro naqueles momentos representaria, a priori e durante a crise, influência positiva na decisão do cálculo empresarial; (d) o aumento relativo nos lucros, resultado da queda dos salários, e/ou a não redução de seu volume e sua taxa, atuaria positivamente sobre a geração de postos de trabalho; (e) queda da informalidade, dada a redução de regulamentação e de custos sobre o uso trabalho; e (f) o fim do conflito, dada a redução de processos na justiça do trabalho, e a diminuição da chamada instabilidade jurídica.

Para aquele grupo de interesses específicos, a reforma traria, então, ampliação dos investimentos e do nível de emprego, aumento da qualidade dos empregos, redução da informalidade etc., além de promover redução de distorções presentes no mercado, como a suposta superproteção ao trabalho, a intervenção excessiva dos sindicatos e do Estado, que caracterizaria rigidez excessiva. As bases teóricas dessa racionalidade foram criadas no final do século XIX, a teoria econômica neoclássica, e ainda serve de sustentáculo para teóricos influentes no mundo e no Brasil (Cunha, 2018; Pastore, 1994), por mais que tenham ocorrido várias tentativas de avanços teóricos ao longo do último século.

De acordo com os dados levantados, os objetivos pretendidos com a reforma sustentamse em argumentos centrados naquela corrente teórica e em parte da sociologia econômica, principalmente a ancorada no individualismo metodológico, notadamente, as correntes weberiana, paretoniana e a corrente conhecida como economy and society, de Parsons, que Smelser e Swedberg (1994) defendem como de complementaridade entre a sociologia econômica e a teoria econômica. E trazem consigo uma redução teórica associada apenas à interação de um jogo de forças, de desejos e decisões racionais, sem grandes desequilíbrios de poder econômico e sobre as informações existentes, e que tendem a promover um bem-estar geral. A partir desses pressupostos, resultados negativos são oriundos de decisões equivocadas, individual ou coletiva (Cunha et al., 2015).

Desde a crise mundial dos anos 1930, perspectivas teóricas de diferentes matizes colocaram em xeque estas relações diretas de causa e consequência, de que o aumento da discricionaridade do capital em relação ao trabalho levaria a um bem-estar geral. Como as clássicas críticas keynesiana e kaleckiana, a crítica interna sraffiana ou a crítica dos modelos macroeconômicos e a teoria francesa da regulação, que incluem Aglietta, Boyer, Lipietz, Coriat etc., até o pós-keynesianismo, de Minsky e Davidson, e o marxismo (Amadeo & Estevão, 1994).

O adensamento da crítica coincide - e é corroborado - com as características sociais e econômicas vigentes a partir daquele período, de um capitalismo marcado pela concentração e centralização de capitais e de estruturas produtivas, além da expansão da socialdemocracia nos países centrais, o welfare state, que entra em crise nos anos 1960 (Esping-Andersen, 1991). O que leva a crer que contribui para o debate a discussão sobre a validade ou não da utilização das bases neoclássicas como argumento científico para servir de referência para as reformas trabalhistas que ocorreram no Brasil em 2017 (Cunha, 2018; Krein et al., 2018). Haja vista o recrudescimento daquela complementaridade entre sociologia econômica e a teoria econômica conservadora.

No Brasil, o debate a respeito das imbricações sistêmicas que envolvem a construção e a influência da legislação - e que representam parte significativa em tipologias amplamente denominadas de modelo de relações de trabalho - buscou distinguir as características da realidade brasileira das contraposições teóricas típicas entre modelos mais legislados, centralizados, corporativistas e os menos legislados e pluralistas, ao mesmo tempo em que discutiu a tradicional classificação do modelo brasileiro como corporativista (Noronha, 1998).

Parte das divergências entre aqueles que classificam o modelo brasileiro como corporativista, neocorporativista e legislado assenta-se no aparato da legislação trabalhista, consolidado desde 1943, e que é criticado tanto em função da estrutura sindical que o acompanha quanto por uma extensa e detalhada legislação que regulava, formalmente, as relações de trabalho (Noronha, 1998). Desde sua criação, a CLT enfrenta fortes críticas e passou por alterações e enfrentamento ao longo do tempo, como o fim da estabilidade e a criação do FGTS, a perseguição às ações sindicais durante o período da ditadura, ou as iniciativas de desmonte da Constituição, pós-1988. Porém, parte mais conservadora do debate ainda permanece sustentada em bases teóricas de difícil sustentação.

A tradição anglo-americana das "relações industriais", ainda que tenha avançado na discussão sistêmica sobre relações de trabalho, para além do tratamento convencional do mercado de trabalho, parece fundamentada, ainda, no chamado individualismo metodológico. As teses de Dunlop (1978), expressão maior daquela tradição, mesmo sendo criadas nesta fase mais regulada do capitalismo, incorporam pressupostos e abordagens da teoria econômica neoclássica, como aquelas que sustentam a complementaridade harmoniosa entre capital e trabalho e de cálculo racional como base para a defesa dos interesses de cada segmento envolvido no processo de negociação.

E, apesar de ainda ser utilizada como referência em estudos no Brasil (Horn et al., 2009), desdobramentos dos estudos de Dunlop apontam algumas fragilidades, como a levantada por Hyman (1975), da não inserção do conflito de classes na análise das "relações industriais". Hyman faz parte de um grupo de críticos à abordagem dunlopiana e é utilizado aqui por sintetizar uma crítica fundamental que interessa a este trabalho: o limite do conceito de conflito presente nas análises que se aproximam do equilíbrio sistêmico tomado a priori, como nas bases da neoclássica, grande influenciadora de pesquisadores mundo afora.

O objetivo central deste trabalho é identificar o poder da força de interesses de classes nos rumos de parte das relações de trabalho no caso das amplas e abrangentes reformas trabalhistas brasileiras de 2017. Como objetivos específicos, busca identificar o grau de convergência de argumentos que balizaram a reforma trabalhista com teses de partes da sociedade, representadas por CNI e Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE)1, à luz da teoria dunlopiana do sistema de relações industriais e de parte da crítica de Hyman (1975) a Dunlop, com vistas a identificar para que interesses pende mais a balança que regula elementos essenciais das relações de trabalho.

A hipótese central é de que as profundas e abrangentes mudanças na legislação que ocorreram em 2017 conformam-se como expressão institucional contundente de manifestação do poder de uma parcela restrita da sociedade, aquela associada ao capital; e que argumentos teóricos, considerados como aparentemente técnicos (como aqueles que sustentam a necessidade de reduzir salários, flexibilizar remunerações, jornada e uso da força de trabalho), ou tratados cientificamente como arranjos sistêmicos conjunturais, como na abordagem dunlopiana, fragilizam análises que desconsideram o conflito de classes.

Compreender, portanto, o grau de convergência das mudanças propostas e promulgadas com o que indica cada um desses grupos de setores da sociedade ajuda a identificar a capacidade dessa mesma sociedade de exercer o diálogo e de democratizar as decisões sobre as relações de trabalho. Discute-se, em termos teóricos, a capacidade do sistema de relações industriais de Dunlop de explicar como são construídas o que se convencionou denominar de relações de trabalho, particularmente, as relações de emprego.

 

Procedimentos metodológicos

Com a intenção de contribuir para o debate sobre relações de trabalho e de emprego, serão feitos três movimentos neste trabalho: o primeiro deles será verificar a capacidade da teoria dunlopiana de explicar a reforma trabalhista, a partir um levantamento-síntese de como se estruturam, naquela teoria, as relações de trabalho em uma sociedade e como elas sustentam certa simetria de poder entre capital e trabalho, argumento que se apresenta como condição necessária para a defesa atual da flexibilização dessas relações e do que se considera liberdade de mercado; segundo, identificar onde a crítica de Hyman a Dunlop, de ausência do debate sobre o conflito de classes, interfere na análise das relações de trabalho; e, terceiro, identificar o grau de convergência das mudanças e dos argumentos nos itens listados da reforma e de defesas de representantes de partes da sociedade, assentados nas propostas da CNI e em estudos do DIEESE. Os primeiro e segundo movimentos estarão imbricados ao longo da primeira parte do texto, e o terceiro movimento ficará explícito na parte posterior, antes das notas conclusivas. Ao final, serão levantadas notas conclusivas.

Pretende-se, neste artigo, compreender as bases científicas e argumentativas de representações de frações da sociedade e dos motivos que levaram à construção das mudanças no arcabouço que sustentava a CLT para, em seguida, identificar se existiu algum grau de "preferência" por alguma dessas frações. Estará implícita ao longo do artigo, como substrato da hipótese geral, a percepção de que no processo que levou às mudanças nas leis parece não ter ocorrido um diálogo - no sentido de efetivar o princípio teórico de simetria de poder de negociação entre capital e trabalho - entre diferentes interpretações teóricas e de frações de classes da sociedade.

Optou-se, metodologicamente, por um levantamento dos argumentos oficiais que sustentaram as mudanças na legislação para realizar um confronto, ponto a ponto, dos principais itens contidos na reforma, com teses da CNI e do DIEESE, orientações de duas fontes que dialogam, respectivamente, com representantes do capital e do trabalho. Acredita-se que a amostra apresentada é representativa do conteúdo universal das mudanças, mas ressalta-se que ficaram de fora dessa relação parte relevante das mudanças em mais de cem itens da Constituição que se referem a relações de trabalho. O passo seguinte foi o de captar o grau de convergência com cada uma dessas teses.

Foram utilizados como base para construção analítico-argumentativa deste artigo as Leis nº 13.467/2017 e nº 13.429/2017, os projetos de lei referentes a elas, encaminhados pelo poder executivo, incluindo o PL nº 6787/2016 e o PLC nº 38/2017, bem como os trabalhos de Teixeira et al. (2017) e Krein et al., (2018), que realizaram levantamentos sobre o conteúdo das mudanças na referida legislação. Por fim, o corpus documental analisado contou também com os documentos da CNI e uma nota técnica do DIEESE (2017), em que ambos fazem levantamento de objetivos e possíveis impactos da reforma, levando-se em consideração os interesses de seus representados.

 

Referencial teórico, resultados e discussões

A construção teórica sobre relações de trabalho formulada por Dunlop é uma referência utilizada principalmente por estudiosos com algum grau de proximidade com bases da teoria econômica neoclássica e da sociologia econômica. Fundamentalmente, por sua capacidade de associar o olhar micro à abordagem sistêmica e por contribuir com o estudo das interações entre o que denomina de atores sociais e os rumos do regramento que incide sobre aquelas relações em uma sociedade. Em Dunlop, a interação entre interesses diversos, de Estado, empresários e trabalhadores, é levada a cabo em sua principal obra, "Sistema de Relações Industriais", e as relações de trabalho são interpretadas a partir da ótica econômica da dinâmica das relações industriais, com forte apelo na teoria econômica convencional. No Brasil, a abordagem anglosaxã de estudos das relações de trabalho encontrou pouco espaço no ambiente científico (Horn et al., 2009)2.

Ao mesmo tempo em que extrapola o ambiente da empresa para pensar as relações de trabalho - e não a considera como um ambiente fechado em si mesmo, capaz de fornecer, como fonte única, elementos necessários para explicar as relações de trabalho - e que identifica interesses antagônicos entre trabalhadores e empresários, não escapa de todo da abordagem economicista e que pressupõe, em grande medida, o automatismo equilibrante resultante das ações individuais. Essa é uma das críticas feitas por vários estudiosos de Dunlop e que pode ser bem compreendida em Hyman (1975)3.

O sistema de relações de trabalho dunlopiano de um país é composto de um todo cheio de elementos inter-relacionados, com atores, contextos, ideologias e normas. Os atores são regidos sob a influência de determinados contextos - tecnologia, mercados e a distribuição do poder na sociedade em geral -, e nessa relação é englobada igualmente uma ideologia que, de acordo com o autor, define seus papéis e integra o sistema. O resultado desse sistema de relações de trabalho é uma rede de normas que rege a relação de emprego e as demais relações entre os agentes no mundo do trabalho. Transformações no ambiente, no relacionamento entre os atores ou nos entendimentos compartilhados por eles podem afetar as normas desse sistema ou até mesmo o próprio sistema. De acordo com a crítica à lógica deste sistema teórico, é nessas interações, nesse ambiente e na construção da ideologia e dos contextos que o conflito de classes interfere, de forma decisiva (Hyman, 1975).

Em um tratamento institucionalista4, os atores desse sistema são categorizados em três níveis de hierarquia: trabalhadores, administradores e agências governamentais ou privadas especializadas. Essa hierarquia é composta por organizações complementares ou rivais, estabelecidas, formalmente, como sindicatos, associações, clubes, conselhos e organizações políticas, e formas pouco ou "não organizadas" em que os trabalhadores podem tratar coletivamente de seus interesses. Para o autor, quando um grupo de empregados trabalha junto por um determinado tempo, tende a surgir algum nível de organização entre eles.

Entre as formas "pouco organizadas" ou "não organizadas", Dunlop menciona, a título de ilustração, as comissões de prevenção de acidentes, os programas de participação de empregados, os grupos comunitários e os grupos formados espontaneamente para lidar com problemas específicos ou para reagir contra certas resoluções do local de trabalho. A categoria de "administradores" não se refere, necessariamente, ao proprietário dos ativos de capital. Estes podem ser públicos ou privados, ou uma combinação de ambos, fazendo com que essa categoria tenha diversas instituições. Repare-se que, apesar de haver certa hierarquia de poder, a condição e o conceito de ator social parecem eliminar o conflito inerente ao próprio sistema, como fica explícito nos próximos parágrafos, à medida em que se desenvolve o raciocínio da formação da teia de regras dunlopiana.

Qual determinada hierarquia de administradores vai ser decisiva para o processo de formulação de normas depende, entre outros fatores, do nível ou escopo do sistema de relações de trabalho. Desse modo, a hierarquia que importa pode ser uma empresa privada, corporação pública ou associação (ou sindicato) patronal, como é o caso da CNI. Na prática, os atores relevantes dentro desse grupo são aquelas associações ou agrupamentos de empresas com poder (ou autoridade, ou de fato) para participar do processo de tomada de decisões. Parece não haver, na abordagem sistêmica dunlopiana, um debate de como esse poder é construído e suas relações com o conflito inerentemente próprio à estrutura que leva à concentração das influências em favor de um grupo social (Hyman, 1975).

Por fim, as "agências especializadas" incluem os organismos governamentais que desempenham um papel de maior importância dentro desse sistema, assim como as agências especializadas criadas pelos outros dois atores. E podem exercer as mais diversas funções, como resolução de disputas, treinamento, estabelecimento de salários, cuidados de saúde, provimento de pensões e de aposentadorias etc., como é o caso da justiça trabalhista, no caso brasileiro. Entre os atores, a interação se dá por três contextos importantes e decisivos na moldagem das normas de um sistema de relações de trabalho: tecnologia, mercados e a distribuição do poder na sociedade em geral.

Como aponta Hyman, diferenças conceituais e de categorias entre atores sociais e sujeitos da história refletem no tratamento dado ao conflito na abordagem sobre a construção e dinâmica das relações de trabalho. E, portanto, em como se veem benefícios e malefícios trazidos por construções e mudanças no regramento, como ocorreu com a legislação - e a reforma - trabalhista brasileira. Repare-se, ainda, que o Estado é alçado à condição de ator externo, em grande parte, aos interesses próprios de um conflito - que parece tender, natural e permanentemente, para a resolução, se não perfeitamente harmônica, mas com o apriorismo teórico do equilíbrio.

O contexto tecnológico se refere às características do local de trabalho e às operações e funções de trabalho. Segundo Dunlop, os locais de trabalho podem variar em vários aspectos: mobilidade, relação com a residência dos trabalhadores, duração do trabalho e tamanho da força de trabalho. Já o tipo de operação diz respeito ao conteúdo, ao ritmo e à jornada de trabalho. Os fatores tecnológicos afetam a forma de organização de administradores e empregados, os problemas colocados para as administrações e as características requeridas pela força de trabalho, colocando problemas distintos para administradores e empregados e, ao mesmo tempo, limitando as possíveis soluções, resultando em que diferentes ambientes tecnológicos determinam o aparecimento de normas distintas.

O contexto dos mercados compreende o mercado de produto, as limitações orçamentárias com que se defrontam as empresas e o mercado de trabalho. Esse tipo de contexto inclui, por fim, as características da força de trabalho, tais como étnicas, culturais, religiosas, nível de instrução e qualificação. Os contextos dos mercados incidem decisivamente no grau de liberdade nos estabelecimentos das normas, sendo particularmente relevante para questões como as de remuneração da força de trabalho, do timing de revisão das normas, da duração das normas e do treinamento da mão de obra.

O contexto do poder refere-se à distribuição, ainda que institucionalizada, do poder dos atores na sociedade, o que parece abordagem relevante para análises que serão feitas sobre relações entre influências políticas e econômicas de determinado grupo social e o conteúdo da reforma, aferidas através da identificação do grau de convergência da proposta da CNI (2012) e os pontos e argumentos da reforma. Isso se reflete, de acordo com Dunlop, em seu prestígio, posição e autoridade, afetando indiretamente a interação dos atores em um sistema ao contribuir para sua estruturação.

A ideologia refere-se ao conjunto de ideias e de crenças compartilhadas pelos atores, definindo, assim, o papel e o lugar de cada ator, bem como as ideias que cada um tem a respeito de seu lugar e do lugar do outro na sociedade. Ela tem a função de integrar o sistema de relações do trabalho. Além disso, um sistema, para ser estável, requer compatibilidade, em algum grau, entre as visões ou ideologias de cada ator. O último elemento do sistema de relações de trabalho, a teia de normas, resulta da interação dos atores, e pode aparecer como obrigações formalmente estabelecidas em regulamentos e políticas da hierarquia de administradores, na legislação do trabalho, em decisões de tribunais, em acordos estabelecidos mediante negociação coletiva. Inclui, ainda, os costumes e tradições da comunidade de trabalho. Como se verá, a reforma trabalhista brasileira está permeada, em praticamente todos os itens e seus sentidos, desses aspectos.

Conforme o objeto de regulação, o autor as distingue entre normas substantivas e normas de procedimento. As primeiras incluem as normas que regulam a remuneração em todas as suas formas, os deveres e as performances esperadas de trabalhadores e as normas que definem os direitos dos trabalhadores. As segundas incluem os procedimentos para o estabelecimento de normas e os procedimentos para decidir sua aplicação a situações particulares. As normas de procedimentos constituem um produto das políticas públicas, da história e das tradições de um país. De acordo com Dunlop, a relevância das normas de procedimento é tal que se poderia distinguir um sistema de outro por meio da identificação do modo pelo qual as relações de trabalho são reguladas em uma dada realidade.

A definição do grau de importância ou da autoridade dos atores na regulação das relações de trabalho está diretamente relacionada com a distribuição de seu poder na sociedade. Essa influência pode ser exercida mediante a capacidade de forçar mudanças nas decisões de outros ou na capacidade de gerar uma influência implícita que pode ser parte integral do ambiente que é levado em conta por outros no processo de tomada de decisões. Assim, se explicita o questionamento essencial para se compreender a definição desta estrutura sistêmica de relações de trabalho: como se explica a existência ou não do conflito, assim como a própria explicação do que se compreende por conflito?

Ainda que trabalhando com o jogo de forças e dando destaque à ideologia, Dunlop apresenta, dentro de uma institucionalidade preestabelecida, a noção de que o conflito - não de classes - existe, mas que tende a ser corrigido pelas ações coletivas resultantes de interesses individuais, e é nesse momento que se aproxima da concepção neoclássica da ciência econômica de equilíbrio, justamente pela adesão à construção parsoniana de sistema5 apresentada por Hyman.

A abordagem sistêmica da estrutura lógica dunlopiana de definição de funcionamento de um sistema de relações de trabalho em uma sociedade deixa aberta a possibilidade de se inferir que a reforma trabalhista no Brasil é resultado da interação, ainda que com distinção de poder, entre os atores, que aprimora o sistema através de negociações coletivas, por exemplo. Pois, se poderia compreendê-la como resultante de um conflito que tende ao reordenamento natural para o equilíbrio sistêmico, como presente em Dunlop, o que nega o conflito de classes. Ou seja, a abordagem dunlopiana ressignifica o conflito, ao aglomerar dentro de um jogo de forças, e possível convergência entre Estado e interesses de representantes de um grupamento social, a equação que engloba o conflito de classes, reduzindo-o.

Hyman evidencia equívocos resultantes da abordagem abstrata dunlopiana e de sua concepção do conflito, que mistifica o poder do jogo de forças presente nos mercados e a capacidade da regulação, em seu sentido mais amplo, formada pelo sistema de leis e por mecanismos de interação com a - e pela - sociedade, pois compõem uma

série de temas . . . mais difíceis de equacionar do que geralmente se supõe, temas que são actualmente mais problemáticos a nível empírico do que quando as relações laborais foram inventadas (tanto no mundo material "lá fora", como no mundo intelectual da análise académica). Esses temas incluem o carácter da regulação do emprego, a natureza dos mercados de trabalho e a relação entre status e contrato. A articulação entre estes temas está no centro da arquitectura dos sistemas de relações laborais e da coerência analítica desta área de estudos (Hyman, 2005, p. 7).

A existência de um "conflicto de intereses radical, que impregna todo lo que ocure en las relaciones industriales" (Hyman, 1975, p. 33) não aparece naquelas leituras científicas que se apegam à legitimidade do contrato entre partes iguais, livres. Ao contrário dessa pretensa igualdade, segundo Hyman, o conflito de classes se revela logo de início, pois a venda da força de trabalho é condicionada pela escolha entre passar fome ou aceitar condições altamente influenciadas pelo comprador.

Esses e outros condicionantes não devem ser deixados de lado nos estudos sobre os determinantes das relações de trabalho e do regramento que define os contratos sobre a remuneração, a extensão da jornada e a forma como se define o uso da força de trabalho. O estudo da reforma trabalhista brasileira, aplicado para compreender o grau de convergência de interesses sociais, apresentado no próximo item, demonstra a relevância da crítica a Dunlop, feita por Hyman, quando trata dos temas que envolvem transformações na regulação do emprego. Na crítica, tradicionalmente feita sob a ótica marxista, o constructo metodológico dunlopiano não considera o conflito como resultante das contradições sociais. Como aponta Galvão, de

uma perspectiva marxista, o termo sistema de relações industriais e seus equivalentes constitui um eufemismo destinado a encobrir as tensões e os conflitos existentes na relação capital X trabalho. Para o sociólogo inglês Richard Hyman trata-se de um conceito descritivo e não explicativo, que insiste na necessidade de conter e controlar os conflitos, calando-se sobre as razões de seu surgimento. Ao apontar os limites e as insuficiências dessa tradição, Hyman . . . insiste que o conflito pode ser tanto agudo quanto latente: o fato do conflito não se manifestar abertamente não significa que ele deixou de existir (2004, p. 39).

Por outro lado, Horn et al. (2009) compreendem que, enquanto a tradição marxista apresenta o determinismo equilibrista como crítica a Dunlop, e que os atores, por condição, são apenas reativos ao meio, o conflito está presente no modelo dunlopiano e, logo, também a indeterminação.

Em Dunlop, as normas que regem as relações de trabalho alteram-se por pressões exercidas internamente ao sistema como um todo e a institucionalidade da relação entre capital e trabalho é suficiente para resolver divergências de interesses, diferentemente da abordagem de Hyman, que trabalha a relação a partir do conflito de classes. No primeiro, a construção metodológica "enquadra" os conflitos existentes em um espectro no qual a resultante pressupõe diluição de interesses, a priori e a posteriori, em favor do "destino" do modelo teórico abstrato. E a resultante parece, então, condicionada por poderes, se não simétricos, estruturalmente influentes, presentes dentro de uma interação geral entre organizações, nas quais estão inseridos trabalhadores (como sindicatos, organizações de fábrica etc.), empregadores, pela via de sindicatos, e Estado, presente nas diferentes hierarquias.

Oconceito de "atores sociais" vela o conflito de classes e, ao não ser considerado como tal, o conflito de classes fica subsumido da concepção sistêmica, como aponta a crítica de Hyman, e o discurso de busca de flexibilização das relações de emprego (contratação, uso e remuneração da força de trabalho), amplamente difundido, restringe a questão a mera abordagem técnica de escolha dos caminhos a serem percorridos para a dinâmica de um abstrato mercado de trabalho, legitimando possíveis convergências entre Estado e interesses de classe.

A partir dos objetivos já anunciados na introdução deste artigo, o teste da hipótese inicial, iniciado com a crítica de Hyman a Dunlop e concluído no próximo item, procura, através do confronto de dados, avançar na percepção da influência do discurso teórico - enquanto instrumento que serve a um propósito preestabelecido - associado a um jogo de forças com poderes explicitamente assimétricos, a compreensão do resultado do encaminhamento estatal que privilegia um dos lados desse jogo de forças entre capital e trabalho.

A análise de parte dos pontos da reforma indicará que os argumentos que a sustentam e que são defendidos por uma parcela da sociedade - e criticada por outra - giram em torno da existência de uma suposta rigidez, que, ao limitar as ações do capital, inibe uma maior agilidade em contratações, demissões, possibilidade de variação de remunerações em função da produtividade, do tipo, ritmo e tempo de trabalho e de alocação dos trabalhadores. E isso em função, primeiro, de uma justiça trabalhista que incentiva o conflito e gera incerteza jurídica - e, portanto, econômica -, segundo, de um tipo de influência negativa por parte da ação sindical, e terceiro, de um custo do trabalho desproporcional. Em oposição à suposta rigidez, estaria colocada a necessidade de maior flexibilidade.

A maior parte das reformas pode ser classificada em ao menos três grandes blocos, conforme seus objetivos, ainda que muitas delas atendam simultaneamente a mais de um objetivo. São eles, detalhados a seguir nas mudanças nas formas de: uso da força de trabalho e jornada; contratação; e remuneração. Buscou-se explicitar o objetivo central com a mudança na lei, os argumentos que a sustentam e posições a respeito das propostas de mudança em estudos do DIEESE e da CNI.

 

Formas de uso/jornada

Contratação por hora trabalhada, com jornada móvel (intermitente) (Art. 443)

A jornada intermitente buscou oficializar a forma de contratação por hora trabalhada, pois, sob o argumento de adaptação às inovações tecnológicas, tornaria a forma de contratação e de rescisão mais flexíveis e reduziria o custo com pagamento por tempo de trabalho não utilizado, já que a remuneração é proporcional às horas de trabalho efetivo. Mais uma vez, o grau de convergência entre os interesses da CNI e a sustentação argumentativa da lei foi pleno. A divergência do DIEESE sustentou-se no argumento de que a mudança deixaria o trabalhador sempre à disposição dos interesses imediatistas do empregador, legitimando assim o chamado "bico", além de dificultar a compatibilização de períodos de férias, descanso e mesmo lazer nas diferentes atividades.

Trabalho remoto (home office) (Art.75-B)

Sob o argumento de regularizar a prestação de serviços através de teletrabalho, que é caracterizado como uma "prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador" (Lei nº 13467/2017, Art.75-B), tanto CNI quanto argumentos no projeto de lei acreditam que essa alteração traria maior possibilidade de geração de postos de trabalho, por reduzir custos com salários e com possíveis multas ou condenações por descumprimento de normas trabalhistas, além de aumentar a produtividade por conta da maior flexibilidade (PL nº 6.787, 2016, p. 42). O DIEESE se posicionou contrário, pois o texto proposto não estabeleceu limites à jornada e por transferir custos fixos com estrutura do home office para o trabalhador, além de responsabilizá-lo por "possíveis ocorrências de acidentes ou doenças de trabalho" (DIEESE, 2017).

Alteração no regime parcial, de 25h para 32h/semana (Art. 58-A)

CNI e argumentos do projeto de lei defendem que a mudança aumentaria a abrangência do contrato de trabalho de regime parcial, flexibilizando o uso da força de trabalho e, por consequência, geraria mais postos de trabalho. Para o DIEESE, essa alteração da jornada de trabalho tenderia a estimular a troca de trabalhadores em tempo integral por contratos de tempo parcial. O receio é que "a fixação do limite do contrato em tempo parcial em 30 horas semanais possa precarizar os contratos de trabalho de categorias que têm jornadas inferiores a 40 horas semanais" (DIEESE, 2017, p. 3).

Parcelamento das férias em até três partes (Art. 134)

O referido parcelamento foi sustentado pelo argumento de que ele é importante para flexibilizar o uso da força de trabalho e ajustá-la às variações de demanda das empresas, aumentar produtividade e contribuir para a redução de rigidez para a empresa. Esses são os mesmos argumentos de que se vale a CNI para pressionar as mudanças na legislação. A possibilidade de redução do descanso efetivo do trabalhador, com impactos negativos sobre sua saúde, é a interpretação que o DIEESE se vale para ser contrário ao parcelamento das férias, conforme proposto, além de considerar que, dessa forma, geram-se também dificuldades adicionais na administração das férias com o convívio familiar.

Prevalência do negociado sobre o legislado (Arts. 444 e 611-A)

A sustentação argumentativa dessa alteração baseia-se na defesa de que a prevalência do negociado sobre o legislado beneficia ambas as partes e a sociedade, em geral por, principalmente, reduzir conflitos e dar estabilidade jurídica às relações entre empresas e trabalhadores. O objetivo é claro: reduzir a influência de participações coletivas na redução de salários, na definição da forma de uso da força de trabalho e de contratação e de demissão. A CNI é favorável e o DIEESE se posiciona contrariamente e argumenta que a existência de conflitos de interesses e assimetrias nas negociações deixa trabalhadores vulneráveis, permitindo o rebaixamento de direitos (DIEESE, 2017, pp. 14 e 18).

Redução do intervalo entre jornadas de 1h para meia hora (Art. 611-A)

O objetivo da proposta é reduzir custos, jornada e alterar a forma de uso da força de trabalho. A lei argumenta que a mudança eliminará excessos e permitirá que empresa e trabalhador construam a forma mais adequada de organizar e remunerar o trabalho. A CNI faz a mesma defesa e o DIEESE é contrário, sob os argumentos de que a alteração interfere, negativamente, na saúde física e mental do trabalhador, além de reduzir remuneração e incidência sobre encargos trabalhistas e previdenciários.

Fim da contribuição sindical obrigatória (Art. 579)

Com o objetivo de eliminar a compulsoriedade da contribuição sindical, o argumento centra-se na retórica de proporcionar uma estrutura sindical em que as entidades sejam mais representativas e mais democráticas. A CNI defende a alteração de forma gradual e o DIEESE vê com desconfiança a medida, principalmente quando associada à prevalência do negociado sobre o legislado.

Extensão para todos os setores da jornada 12 x 36 (Art. 59-A)

O objetivo é flexibilizar a jornada e a forma de uso da força de trabalho por meio da possibilidade de utilização em todos os setores da economia, sob o argumento oficial de desburocratizar decisões sobre jornada e uso da força de trabalho, mesmo discurso da CNI. Para o DIEESE, esse modelo só deve ser utilizado em caráter de excepcionalidade, já que sua extensão a todas as atividades tende a precarizar o trabalho, a saúde e segurança do trabalhador, prejudicando a interação com a família e, assim, se mostrando nocivo à vida social.

 

Formas de contratação

Aumento do prazo contrato de trabalho temporário de 90 para até 270 dias (Art. 9 da Lei nº 13429/2017)

É o mesmo argumento de redução de custos para facilitar a contratação e demissão, reduzindo, assim, as resistências ao uso da força de trabalho, uma vez que, em sendo implementada, reduzir-se-iam as rigidezes próprias das leis trabalhistas, adequando a contratação e a demissão às necessidades da empresa. A proposta é defendida pela CNI sob os mesmos argumentos. Com a justificativa de que "contrato de trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento de atividades-meio e atividades-fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços" (Lei nº. 13.429/2017, Art. 9, § 3º), o DIEESE se colocou contrário à mudança, por ampliar a já alta rotatividade, reduzir rendimentos, benefícios e seguranças e, quando combinada com a terceirização irrestrita, potencializar ainda mais a precarização do trabalho.

Possibilidade de contratação de autônomo e Pessoa Jurídica de forma contínua (Art. 442-B e Lei 13429/17)

Sob o manto de suposta modernização, visa a reduzir custos com a eliminação de contratos de admissão e demissão, isentando empresas contratantes de obrigações trabalhistas previstas em contratos assentados na Carteira de Trabalho, sustentação essa endossada pela CNI. Sob o argumento de que a alteração em questão legaliza o que era considerado fraude e desprotege o trabalhador, o DIEESE se posicionou contrário, pois, ao desconfigurar vínculo empregatício, desresponsabiliza a empresa de acidentes de trabalho, problemas e riscos à saúde causados pelo uso da força de trabalho, além de não recolher FGTS e contribuições com a Previdência e eliminar diversos pagamentos, como o de horas extras.

Dispensa coletiva, rescisão por acordo e dispensa da participação do sindicado na homologação de verbas rescisórias (Arts. 477-A e 484-A)

Segundo a CNI, além de aumentar a competitividade das empresas, a redução de custos e de interferência de sindicatos, a proposta estimularia a geração de novos postos de trabalho. O argumento legal foi o de coibir acordos informais e gerar mais empregos por reduzir custos com demissão por desnecessidade de participação do sindicato ou por acordo com pagamento abaixo do estipulado em lei. Para o DIEESE, a alteração não levou em conta a assimetria de poder entre as partes envolvidas, e o trabalhador fica sujeito a diversas perdas, como a de 50% em algumas verbas indenizatórias, à redução do valor que pode ser sacado na conta vinculada no FGTS e ao não acesso ao seguro-desemprego, ao mesmo tempo em que, ao eliminar a obrigatoriedade de que as rescisões de contrato de trabalho com mais de um ano sejam realizadas no sindicato ou no Ministério do Trabalho, aquele que precisar e buscar assistência para a realização da rescisão ficará responsável pelo ônus desse auxílio.

 

Formas de remuneração

Terceirização irrestrita (Lei nº 13.429/2017)

O objetivo é permitir a terceirização irrestrita, em atividades meio e fim. Na sustentação argumentativa da lei, a maior flexibilidade na contratação e na demissão reduziria custos e permitiria diminuir os custos com a folha de pagamentos. A CNI, desde os anos 1990, tentava influenciar a sociedade defendendo este argumento (CNI, 2012, p. 21). Em sentido oposto, o DIEESE, desde o início do debate, apresentou argumentos contrários, alegando que a mudança tende a aumentar o grau de precarização do trabalho por reduzir salários e benefícios e que essa alteração teria impactos também nas ocorrências de acidentes, uma vez que oito em cada dez acidentes e quatro em cada cinco óbitos relacionados a acidentes de trabalho registrados no Brasil acontecem com trabalhadores terceirizados (DIEESE, 2017, p. 17).

Remuneração variável (Arts. 444, 611-A)

Com o objetivo genérico de redução de custos, a proposta se alicerça no argumento de que isso seria possível através do incentivo à remuneração variável, como participação nos lucros e resultados, gorjetas, remuneração por produtividade e por desempenho individual, ou pagamento por bens e/ou serviços, realizados por meio de programas de incentivo. Assim, tanto para o governo quanto para a CNI, a remuneração variável adequaria a atividade aos vencimentos, além de incentivar o aumento da produtividade e de reduzir custos com pagamentos desnecessários. Entretanto, para o DIEESE, o efeito seria reduzir rendimentos de curto e de longo prazos e precarizar as condições de trabalho, potencializando problemas quando se leva em consideração a prevalência do negociado sobre o legislado.

Não pagamentos das "Horas Itinere" (Art. 58)

Segundo a lei, a empresa não deve remunerar pelo tempo despendido pelo trabalhador entre a saída de sua residência e a atividade laboral e também no retorno à residência, quando o transporte for fornecido pelo empregador, mesmo levando-se em consideração os casos em que a empresa fica em local de difícil acesso e sem oferta de transporte público, pois não se configura, segundo a letra da lei, como tempo à disposição do empregador. O intuito de redução de custos da proposta também é defesa da CNI. Para o DIEESE, essa alteração, além de reduzir remuneração do trabalhador por tempo à disposição da empresa, permite, ainda, que outros tempos dedicados à empresa não sejam considerados na hora da definição da remuneração, como o tempo gasto entre a chegada à portaria da empresa e a entrada em atividade no posto de trabalho.

Bancos de Horas Individuais (Art. 59)

O objetivo é flexibilizar a jornada de trabalho por compensação de horas em até seis meses e redução de custos com horas extras. O argumento na lei e também pensado pela CNI é do de reduzir suposta superproteção ao trabalho e adequação das horas trabalhadas às necessidades da empresa. Para o DIEESE, o resultado mais provável é a redução de rendimentos do trabalhador e fragmentação da categoria, por distinguir trabalhadores.

Estudos realizados por CNI e DIEESE se configuram como condensadores de avaliações representativas de trabalhadores e de empregadores. Ao fazer a leitura dos objetivos contidos em cada um dos itens relacionados anteriormente, percebe-se que a interpretação que foi feita das indicações e dos argumentos utilizados pela CNI demonstram que o grau de convergência entre eles e os pontos inseridos - e aprovados - na reforma e os argumentos que sustentam as mudanças é de 100%, conforme fica explícito na descrição dos itens e na tabela 1. O oposto se verifica quando são apresentadas as posições do DIEESE a respeito das indicações feitas pela CNI e do que consta nas referidas leis que sustentam a reforma. O DIEESE apresenta argumentos para justificar posição contrária a todos os pontos, ou seja, seus estudos são 100% críticos aos encaminhamentos dados pelos representantes da sociedade brasileira.

A tabela 1 também traz uma síntese da perspectiva de como cada uma das mudanças incide sobre as formas de uso, de contratação/demissão e de remuneração da força de trabalho. Essas formas estão ligadas à essência das relações de emprego, ligação suficiente para sustentar inferências a respeito dos rumos dessas relações.

Tanto o detalhamento contido nos pontos relacionados anteriormente quanto a tabela 1 explicitam dois pontos: primeiro, a concentração dos itens em motivos que levam à incidência nas formas de uso, de contratação e de demissão e de remuneração da força de trabalho; segundo, o grau de convergência entre CNI e Leis da reforma em torno de objetivos e argumentos comuns. Chama a atenção o fato de que há convergência da CNI com a reforma em 100%, enquanto apresenta-se o oposto, 0% de convergência entre a reforma e a interpretação de seus rumos para o DIEESE.

A partir dos dados obtidos e das análises realizadas anteriormente, pode-se inferir que a reforma foi alinhavada para atender às demandas de parte do capital representada pela CNI. Os trabalhadores, representados aqui nas divergências apresentadas em análises do DIEESE, entretanto, tiveram suas demandas suprimidas, e, como foi demonstrado anteriormente, possuem posicionamento muito crítico em relação às medidas tomadas.

O que nos leva à conclusão de que: primeiro, a estrutura explicativa da teoria econômica neoclássica pressupõe uma realidade inexistente de simetria de poder, informação, enfim, de interferência nos rumos das políticas definidoras do regramento que influencia direta e indiretamente as relações de trabalho e de emprego, e, assim, compreende-se que ela é insuficiente para explicar a dinâmica de funcionamento dos elementos que determinam essas relações e, portanto, os rumos e desdobramentos de suas indicações de reforma; e, segundo, a análise sistêmica presente na abordagem dunlopiana, assentada, em pontos relevantes, na teoria neoclássica, não evidencia conflitos estruturais, conforme avalia Hyman, enfraquecendo sua capacidade explicativa no que se refere ao funcionamento do que o próprio Dunlop denomina de "sistema de relações" de trabalho e de emprego brasileiro, quando se observa o grau de convergência presente nas análises dos itens observados neste trabalho como forma de explicitar a reforma trabalhista.

 

Considerações finais

O estudo permitiu identificar uma impressionante harmonia entre os interesses da fração de classe representada pela entidade patronal, os argumentos usados para sustentar a reforma e as bases da teoria neoclássica, a demonstrar o quão pensa é a balança que afere influências sobre os rumos das relações de trabalho. Ao mesmo tempo, verificou-se que as reformas em pauta demonstram a fragilidade de teorias abstratas, como o modelo de relações de trabalho dunlopiano, que, mesmo enxergando divergências, entende, a priori, que o resultado da interação de interesses é um equilíbrio harmonioso.

Ao menos dois pressupostos essenciais presentes em Dunlop, e criticados por Hyman, demonstram sua fragilidade diante da observação do caso brasileiro: o relativo equilíbrio de forças entre os atores sociais envolvido no processo de negociação, e a posição de neutralidade do Estado em relação aos interesses em jogo. E, assim, subsume o conflito, ao traduzir os interesses de classe em anseios de "atores sociais".

Assim, as análises e as constatações presentes no trabalho caracterizam uma situação que explicitam desequilíbrio extremo de forças entre capital e trabalho e a adesão do Estado brasileiro aos interesses da classe patronal, em detrimento de outras demandas. Ademais, a interpretação classista de Hyman, que pressupõe um conflito de interesses fundamental - no qual o capital tende a puxar para baixo o que é pago pelo valor da força de trabalho, ampliar a jornada de trabalho e aumentar seu poder na definição da forma de uso da força de trabalho -, sugere que o resultado das reformas será favorável aos interesses dos empregadores.

As análises empreendidas neste artigo demonstram que o governo brasileiro encampou uma proposta de reforma trabalhista claramente unilateral, apoiada em teses amplamente criticadas e refutadas. Diante do exposto, torna-se mais fácil responder à pergunta incorporada no título deste artigo: por quem os sinos dobram?

 

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Endereço para correspondência
Sebastião Ferreira da Cunha
sebacunha@yahoo.com.br

Recebido em: 02/07/2020
Revisado em: 06/06/2021
Aprovado em: 17/06/2021

 

 

1 A CNI e o DIEESE serão utilizados por condensarem, em suas atividades de pesquisas, levantamentos de dados, emissões de estudos e de pareceres, análises das relações de trabalho e propostas de mudanças no regramento e nas interações entre os sujeitos sociais, que expõem interesses de partes significativas do que são denominados de capital e trabalho no Brasil.
2 Frege (2008) faz um bom resgate da tradição anglo-saxã no tratamento das relações de trabalho.
3 Galvão (2004) sintetiza grande parte das críticas feitas por pesquisadores "ligados â perspectiva teórica marxista". Outros paradigmas poderiam ser utilizados para construir a análise crítica, como os olhares característicos do campo da Psicologia Social do Trabalho (Bernardo et al., 2017; Coutinho et al., 2017; Pereira, 2020).
4 Esta também é apontada por vários pesquisadores do tema como uma das características da abordagem de Dunlop que potencializa a vulnerabilidade de seu modelo de abordagem sistêmica. Ver, por exemplo, Wood et al. (1975), Hyman (1975) e Frege (2008).
5 Remete a Talcott Parsons, responsável pelo desenvolvimento teórico do funcionalismo estrutural. Wood et al. (1975) dão ênfase a diferenças entre Parsons e Dunlop. No Brasil, Horn et al. (2009) reforçam a distância no tratamento sistêmico entre ambos.

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