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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Print version ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.24 no.2 São Paulo July/Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v24i2p217-233 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Um resgate de si: itinerário terapêutico de um caso de adoecimento mental relacionado ao trabalho

 

Rescuing yourself: therapeutic itinerary of a case of work-related mental illness

 

 

Joyce Cristina RodriguesI; Carla Salles ChamoutonII; Helenice Yemi NakamuraII; Heloisa Aparecida de SouzaIII

IUniversidade de São Paulo (São Paulo, SP, Brasil)
IIUniversidade Estadual de Campinas (Campinas, SP, Brasil)
IIIPontifícia Universidade Católica de Campinas (Campinas, SP, Brasil)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão sobre o processo de reabilitação de adoecimento mental relacionado ao trabalho por meio da reconstituição do Itinerário Terapêutico de uma trabalhadora, evidenciando a importância dos serviços públicos de saúde. Mesmo diante do expressivo aumento dos casos de adoecimento mental e das evidências de relação com as condições e formas de organização do trabalho, raramente as situações laborais são consideradas nas avaliações dos serviços de saúde. Mesmo com o atual contexto de desmonte da saúde pública, existem exemplos de atuações exitosas, como a que discutimos aqui. Por meio de entrevista semidirigida com uma trabalhadora e construção do Itinerário Terapêutico, buscou-se compreender seu processo de adoecimento mental, a relação com o trabalho e o percurso de reabilitação. Os resultados demonstram a importância do entendimento do trabalho como determinante de saúde, da elaboração de projetos terapêuticos singulares e da atenção integral, revelando que a articulação em rede, o estabelecimento de vínculo e a busca pelo protagonismo do usuário são essenciais na atenção à saúde mental relacionada ao trabalho.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador, Adoecimento mental, Itinerário terapêutico.


ABSTRACT

This article presents a reflection on the process of rehabilitation of work-related mental illness through the reconstitution of a worker's Therapeutic Itinerary, highlighting the importance of public health services. Even in the face of significant increase in cases of mental illness and evidence of a relationship with the conditions and forms of work organization, work situations are rarely considered in the assessments of health services. However, despite the current context of dismantling the public health system, there are examples of successful actions, such as the one we discussed here. Through a semi-directed interview with a worker and construction of the Therapeutic Itinerary, we sought to understand her mental illness process, the relationship with work and the path of rehabilitation. The results demonstrate the importance of understanding work as determinant of health, the development of unique therapeutic projects and comprehensive care, revealing that networking, establishing a bond and seeking the protagonism of the user are essential in work-related mental health care.

Keywords: Occupational health, Mental illness, Therapeutic itinerary.


 

 

Introdução

As situações de trabalho estão se tornando cada vez mais complexas, exigindo a participação subjetiva dos trabalhadores e das trabalhadoras, impondo novas e precárias configurações de vínculos, com constantes retiradas de direitos. Simultaneamente, presencia-se o aumento dos casos de depressão, transtorno de ansiedade, uso abusivo de substância psicoativas, esgotamento profissional, tentativas ou efetivação de suicídios, entre outras formas de sofrimento mental. Contudo, conforme defendido por Seligmann-Silva (2011) e Souza (2017), em geral, há a naturalização da precarização do trabalho e a individualização da compreensão do processo de adoecimento mental dos trabalhadores e das trabalhadoras, havendo pouca discussão sobre a relação entre esses dois elementos.

O presente texto parte da compreensão de que a precarização e exploração existentes no mundo do trabalho impactam negativamente na subjetividade da classe trabalhadora, podendo provocar ou agravar o sofrimento mental (Bernardo, 2006; Seligmann-Silva, 2011). Assim, é importante considerar a proximidade entre a saúde mental e as situações de trabalho para a elaboração e efetivação de políticas públicas que atuem no enfrentamento do adoecimento mental da população.

O Sistema Único de Saúde (SUS) apresenta-se como essencial no cuidado e enfrentamento do adoecimento mental, ao possibilitar a adoção da concepção integral do ser humano, atuando, além da atenção à população adoecida, na prevenção de doenças e na promoção da saúde. A execução de ações que visam à preservação da saúde do trabalhador e da trabalhadora é uma de suas prerrogativas (Lei nº 8.008/1990). Essa incorporação da Saúde do Trabalhador ao SUS confere uma visão interdisciplinar, que busca valorizar os saberes dos trabalhadores e das trabalhadoras e oferecer uma atenção contextualizada, compreendendo as implicações das situações de trabalho no processo de adoecimento da população (Nardi, 1997; Nobre, 2018).

Na prática, contudo, a saúde pública no Brasil e as políticas de proteção à saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras possuem inúmeros desafios, que vão do financiamento à organização do sistema (Campos, 2018; Gomez et al., 2018; Santos, 2018). De acordo com Nakamura et al. (2017), a desconsideração dos impactos do trabalho no adoecimento dos sujeitos é um dos desafios a serem superados pelo SUS. Apesar do reconhecimento institucional da Saúde do Trabalhador dentro do âmbito da saúde pública, ainda há muitos impasses para o reconhecimento do trabalho como um importante determinante social de saúde. O distanciamento da saúde enquanto direito e dever constitucional reforça a necessidade de se manter a luta pela proteção, fortalecimento e qualificação do SUS (Campos, 2018). A falta de diálogo entre os diferentes serviços do SUS, por vezes, dificulta o olhar integral para a pessoa. A exemplo disso, não raramente, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são vistos como os únicos responsáveis pelos cuidados e reabilitação em Saúde Mental, enquanto os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) são entendidos como responsáveis apenas pelo cuidado e reabilitação do adoecimento físico relacionado ao trabalho (Bernardo & Garbin, 2011). No entanto, como será apresentado neste artigo, a articulação entre os diferentes serviços é de extrema importância nos processos de cuidado em rede, visto que as ações em saúde, quando realizadas de forma articulada, possibilitam a atenção integral à pessoa.

Apesar dos inúmeros desafios vivenciados em seu cotidiano de trabalho, é importante ressaltar a existência de muitos profissionais da área da saúde que compreendem a complexidade presente no processo de saúde-adoecimento mental e os relacionam com os aspectos presentes nas situações sociais e de trabalho (Souza, 2017). Visando a compreender melhor como essas ações podem ser realizadas na prática, este artigo se propõe a refletir sobre o processo de adoecimento mental de uma trabalhadora e a reconstituir o seu Itinerário Terapêutico. A opção pela utilização do Itinerário Terapêutico, conforme proposto por Alves e Souza (1999), se deu por considerarmos que ele auxilia na compreensão sobre como a articulação dos serviços pode favorecer a adesão aos tratamentos, ao cuidado e à reabilitação da saúde.

A expressão "um resgate de si", utilizada no título deste artigo, faz referência ao livro Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo, publicado em 2011 por Edith Seligmann-Silva, pois, assim como a autora, compreendemos que as resistências às visões naturalizantes do trabalho, o cuidado e a recuperação da saúde é uma luta dos trabalhadores e trabalhadoras, para que possam continuar existindo e sendo donos de seu próprio corpo e mente, e que tal luta pode ser favorecida e potencializada com o apoio de profissionais da saúde que os acolhem.

Considerando o protagonismo de uma trabalhadora em seu processo de reabilitação e o suporte encontrado na rede pública de saúde, iniciamos tecendo algumas considerações sobre o percurso metodológico e com a apresentação da participante. Em seguida, refletimos sobre a relação entre as situações de trabalho e o seu processo de adoecimento mental, dando ênfase à necessidade de compreensão contextualizada, incluindo aspectos sociais, econômicos e políticos do processo de adoecimento mental, para analisar os cuidados recebidos pela trabalhadora, ressaltando a importância da articulação em rede e a valorização da atenção integral à saúde dos trabalhadores e trabalhadoras.

 

Percurso metodológico

Este tópico tem o objetivo de apresentar os recursos metodológicos utilizados na pesquisa e justificar a opção pelo uso das técnicas de história de vida e reconstrução do Itinerário Terapêutico. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, aprovada pelo Comitê de Ética da instituição em que foi desenvolvida. Optou-se pela abordagem qualitativa pelo reconhecimento da importância da subjetividade do sujeito no entendimento do processo trabalho-adoecimento, indissociável da história das relações sociais (Minayo, 2012). O trabalho se constituiu em três etapas: escolha da participante, obtenção de informações por meio de entrevista semidirigida e análise da entrevista por meio da construção do Itinerário Terapêutico.

Na pesquisa qualitativa a entrevista é um instrumento importante para obtenção do reflexo da dimensão coletiva a partir do indivíduo, possibilitando o entendimento do significado dessa vivência na vida do narrador, através de sua interpretação subjetiva (Minayo, 1999; Portelli, 2016). A entrevista em profundidade abordou questões sobre a história de trabalho, a história do adoecimento e a história do cuidado, uma vez que a história de vida emergente da narrativa produzida pelo indivíduo evoca a percepção sobre os eventos ocorridos (Meihy, 2005; Silva & Barros, 2010). A escuta da história do outro coopera para nosso entendimento da forma como a trabalhadora percebe, no momento da entrevista, como vivenciou os ocorridos no tempo em que trabalhou e nos auxilia na assimilação do processo de identificação do adoecimento e da atenção recebida (Santhiago & Magalhães, 2015).

É importante destacar que os dados obtidos têm como fonte a história de vida - uma narrativa individual, dialógica - do encontro entre as pesquisadoras e a narradora/sujeito, o que possibilita que os indivíduos apresentem suas histórias, falem de si, recorram a sua memória e suas lembranças. Encontro em que há a preocupação com o vínculo e sentidos atribuídos, que é carregado de emoções e subjetividades, conforme as vivências dos envolvidos na pesquisa, mas que serve como ponte entre o individual e o social (Maccali et al., 2014). Por esta opção metodológica não foram realizados contatos com os serviços de saúde ou profissionais que tenham atuado no cuidado da trabalhadora. Cabe acrescentar que a singularidade da percepção sobre os fatos ocorridos é marcada pelo sofrimento vivido e, consequentemente, os dados, o Itinerário Terapêutico e a cronologia informados estão sujeitos ao modo de apreensão dessas memórias pelo sujeito.

O resgate do passado pelo discurso contém a experiência singular do indivíduo, havendo variações de tempo e espaço, mas sendo essas fontes de linguagem e retrato pessoal do cotidiano da vivência que se pretende retratar. As lembranças trazem consigo diversos elementos embutidos no que ocorreu, e a organização da forma de se contar gera um novo sentido, uma nova forma e um novo significado daquele fato da história de vida do sujeito baseado no momento presente e, por isso, se torna ferramenta potente de relato (Meihy, 2005; Pollack, 1992).

A utilização da metodologia do Itinerário Terapêutico permite o conhecimento e a compreensão da trajetória do indivíduo pelo sistema de saúde, constituindo a rede e cadeia de locais e processos de saúde em busca de cuidado e tendo como objetivo a resolutividade do sofrimento (Alves & Souza, 1999). Antes de refletirmos sobre o seu itinerário nos serviços de saúde, é necessário oferecermos mais informações sobre a trajetória de vida da participante.

 

A participante e o resgate de sua trajetória de vida e trabalho

A escolha da trabalhadora, Elis1, como participante da pesquisa, se deu por haver o conhecimento prévio da sua história de adoecimento mental relacionado ao trabalho e da sua busca pela reabilitação em saúde. Após contato inicial, explicação das etapas de trabalho e dos possíveis desdobramentos da pesquisa, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para ciência e assinatura da entrevistada. Na ocasião em que a entrevista foi realizada, no ano de 2018, Elis estava com 48 anos, casada, mãe de dois filhos e continuava passando pelo processo de reabilitação, frequentando grupos em seu CAPS de referência.

Elis relata que começou a trabalhar muito jovem, aos 12 anos, e que a sua trajetória laboral conta com passagens por supermercado, como empacotadora e operadora de caixa; por uma fábrica de costura, como costureira; por uma administradora, cumprindo funções administrativas; e no setor de embalagem em indústrias. Seu último emprego foi como embaladora em uma indústria do ramo alimentício, no qual ela permaneceu por oito anos; esta última vivência recebeu mais atenção por parte da participante e será foco da discussão deste artigo.

Com a intencionalidade de entender a trajetória de trabalho, adoecimento e de cuidado da trabalhadora, para que o diálogo fosse estabelecido entre ela e as entrevistadoras, optamos por uma frase disparadora ampla: "Fale sobre a sua história de vida". Dessa maneira, foi possível extrair da memória aspectos que a trabalhadora considerou importantes para o entrelaçamento dos acontecimentos passados na história presente. A partir da frase disparadora, a trabalhadora abordou um pouco da sua trajetória até chegar à vida adulta e foi possível elucidar aspectos da história de trabalho e do processo de adoecimento conforme o objetivo da pesquisa.

Durante todo o processo de escuta, foram mínimas as intervenções da pesquisadora/entrevistadora para o direcionamento da entrevista, uma vez que a trabalhadora atrelou os tópicos que seriam abordados na pesquisa (história de vida, de trabalho, processo de adoecimento e de cuidado). A entrevista transcorreu de maneira fluida com o estabelecimento de um diálogo como espaço de inter-relação, organizado, seguindo procedimentos, conforme defendem Santhiago e Magalhães (2015). A gravação foi transcrita na íntegra e submetida à análise e categorização dos dados, considerando esses enquanto produtos de vivências e experiências e empregando a interpretação e compreensão dos discursos como unidades de sentido (Minayo, 2012).

 

O Itinerário Terapêutico

A partir do relato de Elis, foram identificados os locais de atendimento e as modalidades terapêuticas ofertadas, o que possibilitou a (re)constituição do seu Itinerário Terapêutico na procura do cuidado durante o seu processo de reabilitação do adoecimento provocado pelo trabalho.

A relevância do Itinerário Terapêutico se dá na abordagem socioantropológica da saúde, ao retratar as dimensões extrabiológicas da doença, o que evidencia no roteiro de cuidado fatores subjetivos, sociais, históricos e culturais de si e da coletividade da qual faz parte. Para além da compreensão do sistema e dos serviços de saúde frequentados na trajetória, é sobre o entendimento das escolhas terapêuticas feitas por essa pessoa, baseadas em sua vivência, crença e história de vida (Alves & Souza, 1999; Muhl, 2020).

As opções de cuidado encontradas ao longo do caminho incluem todas as possibilidades de oferta, e não apenas os serviços de saúde convencionais, abarcando também, por exemplo, as práticas integrativas e as crenças populares. O motivo de escolha por determinada prática de cuidado é dinâmico e ocorre de acordo com a transformação do próprio indivíduo e dos acontecimentos que o cercam e está vinculado às concepções prévias do sujeito em relação à doença, ao processo de adoecimento e à saúde em geral (Alves & Souza, 1999; Kleinman, 1978; Muhl, 2020).

O sujeito trafega por um sistema de saúde que contém serviços organizados em uma lógica administrativa e assistencial que, muitas vezes, pode apresentar mais barreiras do que facilitadores e as escolhas feitas no decorrer do processo podem gerar uma sucessão de acontecimentos diferentes do que seria preconizado (Cabral et al., 2011; Muhl, 2020).

Na trajetória dos sujeitos com transtornos mentais, a não linearidade do itinerário é evidente por poder haver momentos de crise e variabilidade da estabilidade do processo terapêutico, uma vez que, em um mesmo momento, o sujeito pode estar sendo atendido por diversos serviços e profissionais, tendo movimentos de hesitação, repetição, indecisão, mudança e retomada de práticas de cuidado ao longo do trajeto (Muhl, 2020; Tavares, 2017).

Para além da análise do local procurado, permite-se pela análise do itinerário o reconhecimento do momento da busca por resolução das questões de saúde, impactando no planejamento, organização e avaliação dos serviços de saúde. É possível também verificar as estratégias efetivas para adequação das práticas, estreitamento e manutenção do vínculo com a equipe de saúde e melhora da adesão ao processo saúde-doença-cuidado (Cabral et al., 2011).

A partir da transcrição da entrevista, foi elaborada uma síntese, apresentada no quadro 1, para melhor visualização da história, contendo os seguintes aspectos do: serviços de saúde (públicos e privados), mostrando por quais serviços Elis transitou; cuidados prestados, evidenciando os cuidados ofertados nesses serviços; processos de trabalho, que trata da organização do trabalho a qual estava submetida; amparo/desamparo, evidenciando as relações da entrevistada com outros agentes sociais; planos e marcas, apresentam como os planos foram se modificando e as vivências, deixando marcas.

Como pode ser observado no quadro 1, a participante transitou por diversos serviços de saúde públicos e privados. Nosso foco de análise será a atenção que recebeu nos serviços públicos de saúde, que contribuíram efetivamente com o estabelecimento do nexo do adoecimento mental com o trabalho e para a sua reabilitação. A seguir, são discutidas três categorias de análise: a organização de trabalho à qual a entrevistada estava submetida, os impactos e consequências dessa organização em sua saúde mental e os cuidados em saúde recebidos por Elis.

 

Organização do trabalho: "A gente tinha que fazer milagre"2

O objetivo deste tópico é refletir sobre as possíveis contribuições das situações de trabalho encontradas pela entrevistada em seu processo de adoecimento mental. Nesse sentido, o trabalho é um qualificador, determinado pelo contexto histórico-cultural (Nakamura, 2019). Saffioti (1969/2013), ainda na década de 1960, destacou que a inserção da mão de obra feminina nas sociedades capitalistas é periférica e que, no geral, as mulheres ocupam postos de trabalho menos valorizados socialmente. Embora tenhamos avançado em algumas questões e ampliado a participação feminina no mercado de trabalho, as desigualdades persistem (Biroli, 2018).

Com frequência, as formas de organização de trabalho oferecem jornadas exaustivas, metas inatingíveis, intenso controle das trabalhadoras, ambiente insalubre, vínculos instáveis, constante ameaça de desemprego, além de exigir cada vez mais a participação subjetiva das empregadas. As situações de violência psicológica são bastante comuns no ambiente de trabalho, gerando maior competitividade, dificultando as organizações coletivas e, consequentemente, contribuindo para a individualização do sofrimento (Bernardo, 2006). As situações vivenciadas por Elis ilustram como os modos de organização, comumente, afetam as relações entre as trabalhadoras, funcionando como uma forma de controle, intensificação da competitividade e, consequente, aumento de produtividade:

Só compravam máquinas já usadas e velhas. Então, aquela máquina sempre dava problema e a gente tinha que fazer milagre, sabe? A gente tinha que trabalhar, tinha que dar produção. E eles cobravam a gente por conta da perda, né? "Tá perdendo demais" e não tinha como você trabalhar com aquilo, a gente ficava muito estressado, nervoso, todo mundo. E era aquela discussão assim, entre nós mesmo, porque aí uns falavam que "ah, você não tá fazendo seu serviço, porque você não tá dando conta do seu trabalho, por isso que a gente não atinge a meta".

Outra forma de controle bastante presente era a responsabilização pelo rendimento, contribuição e disponibilidade das trabalhadoras: "minha encarregada falava pra mim assim que eu tinha que ficar [fazendo hora extra], porque as meninas iam ficar por minha causa no trabalho. Aí eu ficava semanas trabalhando das 6h às 18h, direto". Elis relata que, muitas vezes trabalhou sob um regime de 12 horas por dia e que, mesmo diante da longa jornada, até os horários de ida ao banheiro eram estabelecidos de acordo com as necessidades de produtividade da empresa:

. . . se você não terminasse a sua produção eles não deixavam você ir embora. Para ir ao banheiro, tinha hora: 6h da manhã, 8h da manhã, 12h que era hora do almoço e 16h20. Teve uma menina mesmo, que teve um problema no rim, ficou com cateter, 6 meses com cateter no rim, por conta de ficar segurando, quando pedia também era um horror, a nossa encarregada falava um monte.

Muitas vezes, as trabalhadoras, em consonância com as ideias de Seligmann-Silva (2011), acabam buscando justificativas individuais pelo não atingimento das metas estabelecidas, mesmo que o problema esteja relacionado à situação precária de trabalho; nas palavras de Elis, numa situação em que a máquina que estava operando, começou a dar problema

. . . a gente sabia que o problema era uma peça nova que tinha que colocar, mas não colocava e só estragando embalagem e eu só pensando que o dono da fábrica ia chegar . . . ele ficava lá do escritório . . . eu tava vendo a hora dele descer lá em baixo pra falar comigo, né?

O sentimento de culpa, medo de retaliação e a sensação de estar sendo observada eram muito presentes. A situação vivenciada por Elis se aproxima do modelo de panoptismo descrito por Foucault (1987), pois, mesmo sem a certeza de que havia alguém naquele momento atento ao que acontecia na linha de produção, a disposição da sala do dono da empresa e a facilidade em visualizar as operárias era suficiente para que ela se sentisse constantemente vigiada. Além disso, havia situações de controle explícito exercido pela encarregada que, nas palavras de Elis: "Ela ficava com um cronômetro marcando quantos pacotes você fazia por minuto, se você não fizesse esses pacotes por minuto, ela vinha e chamava sua atenção na frente de todo mundo".

O assédio moral aparece como tentativa de pressionar as trabalhadoras pelas dificuldades encontradas para atingir metas que são, em grande parte, inatingíveis (Soares & Duarte, 2014), situações com frequência enfrentadas por Elis:

. . . eu aguentava a pressão também da encarregada, porque ela metia a boca mesmo, xingava palavrão. Eu me sentia presa, porque eu tinha que trabalhar e lá eu via que não tinha condições de eu me sentir feliz no que eu fazia, então foi onde eu fui ficando frustrada.

As vivências relatadas por Elis, conforme destacado por Souza (2017), revelam as contradições existentes no mundo do trabalho e evidenciam que essas situações podem ter efeitos na saúde mental e física das trabalhadoras, em suas relações e nas possibilidades de ações de resistência. Os impactos dessas experiências serão explicitados no tópico seguinte.

 

Dos processos produtivos ao adoecimento: "Você não serve para trabalhar, você não serve para nada mais"

Considera-se que o trabalho pode ser fonte de satisfação e/ou sofrimento (Souza, 2017). Satisfação quando favorece a valorização, admiração, respeito, reconhecimento e a possibilidade de expressar criatividade (Martins & Oliveira, 2012), e sofrimento quando existe a divisão e a padronização de tarefas com subutilização do potencial técnico e da criatividade, rigidez hierárquica, falta de participação nas decisões, metas inatingíveis, entre outros elementos, que podem favorecer o adoecimento (Bernardo, 2006; Martins & Oliveira, 2012; Seligmann-Silva, 2011).

O impacto das mudanças nas características do trabalho tem se evidenciado nas estatísticas oficiais. De acordo com dados da Previdência Social, os Transtornos Mentais e Comportamentais, no Brasil, são a terceira maior causa de afastamento do trabalho (Previdência Social, 2017). Essas informações referem-se aos trabalhadores contratados sob o regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), de empresas com cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e Cadastro Específico do INSS (CEI). É importante destacar que a dificuldade de estabelecer nexo entre desgaste mental e trabalho e o fato de uma parcela representativa da população brasileira trabalhar na informalidade contribuem para que esses dados estejam subdimensionados.

A concepção de que o trabalho é naturalmente danoso também pode contribuir na subnotificação desses casos, sendo essa uma visão bastante difundida socialmente (Seligmann-Silva, 2011). O sentimento de solidão e a concepção de familiares de Elis demonstra o quanto a visão naturalizante do trabalho que gera sofrimento é presente nas formas contemporâneas de organização produtiva e social:

Tem gente que ainda não acredita, que tem muito preconceito em relação à depressão, principalmente se for no trabalho, tem muita gente que acha que é frescura sua, que você tá querendo chamar a atenção, que você não tá sentindo nada, sabe? A gente se sente sozinho, é uma solidão imensa, por isso que eu acho que a gente sente aquela dor tremenda, que parece que vai estourar o peito, de tanto que dói, é uma solidão muito grande que a gente sente. Você não pode contar com colega de trabalho, às vezes nem com a família, até na minha família falaram que eu tava com frescura, que eu não queria trabalhar.

A lógica de responsabilização, descrita por Linhart (2014), na qual a trabalhadora se sente individualmente responsável pelo seu desenvolvimento em uma constante sensação de insegurança, se faz presente no cotidiano de trabalho e, não raramente, se manifesta de forma culpabilizante e autopunitiva, intensificando a solidão e alimentando uma falsa concepção de incapacidade. Esse processo, no caso de Elis, resultou em um distanciamento de si e de seu autocuidado para atender a necessidades produtivas da empresa:

. . . ginecologista mesmo, eu fiquei quatro anos sem ir, porque todas as vezes eu marcava consulta pra mim ir, eles pediam pra ficar até mais tarde e aí eu ficava. Por causa disso tive um problema de saúde onde eu tive que tirar o útero.

O discurso de participação, que seduz a trabalhadora e a faz sentir-se como se fosse parte da "família-empresa" (Bernardo, 2006), contribui para a manutenção dos interesses da organização. Se por um lado existe uma maior exigência para participação subjetiva, por outro "há uma descentralização das coerções e das responsabilidades, mas sem uma descentralização correspondente do poder de decisão" (Bernardo, 2006, p. 34). Elis afirma que tinha o seguinte pensamento: "se eu colaborar com a empresa, a hora que eu precisar de alguma coisa eles também vão me ajudar né, mas aí eu fui vendo que não era bem assim que funcionava".

A contradição existente nessa lógica isola as pessoas, pois, ao mesmo tempo em que o discurso da "família-empresa" é colocado como parte essencial da atividade laboral, ele também é um modelo de gestão que atua de forma individualizante e que incentiva a competição e o controle entre profissionais que atuam em uma mesma função. Elis relata que sua primeira crise ansiedade e tentativa de suicídio estão diretamente relacionadas com a frustração vivenciada em suas relações interpessoais no trabalho:

Um menino que trabalhava comigo falou assim "Elis, você ajuda todo mundo, mas você sabia que nenhuma dessas meninas gosta de você? Por que você fica ajudando elas?" Eu fiquei tão mal, que não consegui responder pra ele. Quando deu a hora de eu ir embora, eu entrei no vestiário, me troquei, peguei meu carro, peguei o anel viário e falei assim "nossa, eu não quero mais voltar a trabalhar, eu não quero ir pra casa, eu quero morrer, não quero mais viver, não tenho mais pra que viver", eu comecei a botar isso na cabeça e fechei meus olhos na Magalhães Teixeira, indo pra minha casa e fechei meus olhos esperando que o carro capotasse pra mim acabar comigo ali mesmo.

Como pode ser observado no relato de Elis, devido ao sofrimento vivenciado no trabalho, ela desejou tirar a própria vida. Nesse sentido, Dejours e Bègue (2010) relacionam as condições laborais com o sofrimento psíquico e o considerável aumento dos casos de suicídio no trabalho. Para eles, as formas de organização do trabalho contribuem para a perda do sentido da atividade e da existência humana, causando a quebra dos laços de solidariedade e impedindo as estratégias coletivas de defesa dos trabalhadores frente às dificuldades vivenciadas.

Laurell e Noriega (1989) denominam como "cargas de trabalho" os processos laborais que geram e/ou contribuem para o desgaste, definido pelos autores como "perda da capacidade potencial e/ou efetiva corporal e psíquica" (p. 110). O progressivo adoecimento de Elis evidencia a influência das cargas de trabalho:

Fui ficando nervosa e teve uma hora que parecia que tudo tava se fechando assim em cima de mim, as paredes tava tudo fechando, eu me sufocando e passando mal, não escutava mais ninguém conversando e aquela sensação ruim. Fui pro banheiro e danei a chorar. Chamaram um parente meu, que foi me buscar no trabalho, aí ele me levou no hospital e quando eu cheguei lá foi quando eu tive minha primeira crise de nervos, começou a entortar todos os meus dedos. Tipo uma câimbra, entortava tudo, meus dedos, o corpo todo, parecia que os nervos encolhiam. Me deram calmante, lembro que fui pra casa e dormi o resto da tarde.

Apesar de todas as conquistas relacionadas às políticas públicas voltadas para a saúde do trabalhador e da trabalhadora, a lógica que rege a relação do trabalho continua sendo a mesma do século XIX, onde se "extingue as possibilidades do trabalho se constituir um meio de desenvolver a dignidade, a solidariedade e as potencialidades do ser humano" (Franco et al., 2010, p. 230). Como discutiremos no próximo tópico, precisamos estar atentos à relação entre contexto de trabalho e saúde mental das trabalhadoras, evitando, assim, a naturalização das situações laborais precárias e a individualização da responsabilidade pelo adoecimento.

 

Dos cuidados à recuperação da saúde: "É bom saber que tem gente que tá ali pra te ajudar, pra te estender a mão e levantar você"

Durante o progressivo adoecimento e trajetória de cuidado, Elis transitou por diversos serviços de saúde, públicos e privados. A reconstituição do Itinerário Terapêutico permite notar a distinção entre os cuidados que foram encontrados nos diferentes serviços, compreender a importância do cuidado compartilhado e do vínculo que Elis estabeleceu com os locais e profissionais que a atenderam no SUS. O fluxograma 1 nos auxilia na visualização e compreensão do percurso realizado por Elis em sua trajetória de cuidado em saúde.

Entre os anos de 2014 e 2015, Elis teve quatro tentativas de suicídio, das quais em três foram usados medicamentos prescritos por médicos de serviços privados de saúde. A ausência de uma perspectiva de vida causada pelo adoecimento mental no trabalho e os atendimentos que apresentavam soluções apenas paliativas contribuíram para que fosse alimentado o desejo de tirar a própria vida, utilizando, inclusive, esses medicamentos como uma via de concretizar esse desejo, que, provavelmente, tenha como plano de fundo, conforme discutido por Dejours e Bègue (2010), a ânsia de aliviar o sofrimento e o sentimento de solidão:

Aquilo foi ficando um estresse total, eu fui ficando ruim mesmo. Passei mal de novo no trabalho, me deu outra crise de nervos, peguei o carro, fui no médico de novo e ele me passou uns remédios pra eu tomar, falou que eu tava muito estressada. Não sei se por conta dos remédios, eu via coisas, via vultos, via só coisa ruim pra mim, aí eu achava que eu tinha mesmo que terminar com aquilo. Tomei duas cartelas do remédio pra dormir, porque não queria retornar ao trabalho, aí eu capotei, não vi nada.

As considerações feitas por Merhy (2013) nos ajudam na compreensão da ausência de vínculo e das dificuldades em estabelecer o nexo entre desgaste mental e trabalho, no que diz respeito às ações de profissionais de saúde. De acordo com o autor, o uso de "tecnologias duras", focadas em equipamentos tecnológicos, medicamentos, normas burocráticas e estruturas organizacionais, contribuem para o distanciamento entre profissional/usuário e o engessamento das práticas em saúde. As "tecnologias leves", enquanto elementos constitutivos das relações, favorecem o encontro com o outro e permitem a construção conjunta de um processo de cuidado contextualizado para os sujeitos envolvidos.

Para enaltecer as potencialidades das "tecnologias leves", cabe ressaltar a importância dos atendimentos realizados de forma compartilhada entre os serviços de saúde, uma vez que se evidencia a relevância das trocas estabelecidas, as diversas modalidades de cuidado ofertadas e a necessidade de cuidado multiprofissional, tendo em vista a complexidade inerente ao ser humano. Como citado anteriormente, não tivemos acesso aos profissionais que atenderam Elis, nem mesmo ao seu prontuário; contudo, por meio de seu depoimento, é possível perceber que, além de ser compreendida em sua integralidade por diversos profissionais da rede pública de saúde, ela pôde contar com o acolhimento, formação de vínculo e a elaboração de projetos terapêuticos singulares (Merhy, 2013; Merhy et al., 2006).

O uso de "tecnologias duras", por vezes, promove a individualização do sofrimento e o distanciamento de práticas integrativas que possibilitem o cuidado contextualizado. No caso de Elis, apesar da evidente ausência de um projeto terapêutico focado na recuperação de sua saúde, foi a falta de recursos financeiros para continuar o tratamento nos serviços privados que impulsionou a procura por atendimento nos serviços públicos de saúde:

Foi onde meu marido não tinha mais condições de pagar consulta com o neuro e me levou no posto [UBS de referência], que me encaminhou pro CREAPS. No CREAPS eu passei com a psicóloga e eu tive uma crise de nervo com ela, aí ela me mandou pro psiquiatra. Depois disso, me encaminharam para o CAPS, aí eu comecei a me tratar e me passaram a medicação, eu fui tomando. Conversaram muito comigo. Comecei a ir num lugar [CEREST] pra fazer atividades que a terapeuta passou pra eu fazer [yoga] . . . e no CAPS tem bastante curso de dança, curso de desenho, curso de artesanato, eu passei por todos eles, até chegar no curso de pintura que foi onde eu me encontrei.

Vale destacar que os CEREST são serviços de média complexidade, instâncias de referência técnica do SUS, que articulam ações de assistência, de promoção e de vigilância em saúde, constituindo-se como polos irradiadores da compreensão da centralidade do trabalho no processo de produção social das doenças, promovendo articulação inter e intrassetorial de ações de Saúde do Trabalhador no seu território de abrangência - regional ou estadual (Nardi, 1997; Nobre, 2018). No CEREST Elis passou por consulta médica, e a unidade contava com grupos de trabalhadores e oferecia Práticas Integrativas e Complementares, como Yoga por ela praticada. De acordo com Aguiar et al. (2019), essas práticas auxiliam na redução de medicamentos; promovem o protagonismo dos usuários; redução da frequência de transtornos mentais comuns; possuem baixo custo; ausência de efeitos colaterais e promoção de saúde.

O Itinerário Terapêutico realizado por Elis evidencia a importância da articulação entre a rede de saúde, a continuidade do cuidado e o estabelecimento de vínculo, que potencializa a compreensão da pessoa em sua integralidade, influenciando diretamente no processo de adesão aos tratamentos e consequente melhora no quadro clínico (Vasconcelos & Pasche, 2006). O estabelecimento de vínculo com a equipe foi fundamental na melhora da condição de Elis, pois, ao sentir-se acolhida e compreendida no CAPS, recuperou o desejo por realizar mudanças na sua vida e resgatar seus prazeres e criatividade. Na atuação dos profissionais do CAPS, ao estabelecer uma relação dialética entre profissional/usuário, horizontalizada e compartilhada, é concretizada a importância do contato qualificado no cuidado em saúde (Merhy, 2013). É necessário compreender a subjetividade como um fator determinante na produção de saúde e formular projetos singulares, uma vez que cada um irá experienciar e explorar a vivência de forma diferente (Campos & Domitti, 2007):

Fiquei dois anos fazendo tratamento no CAPS, tomando a medicação que elas me passavam e fazendo atividades, fui melhorando cada dia mais. Tive alta do CAPS, faço tratamento no CREAPS, mas hoje eu tomo só dois remédios por dia. Eu sei que no começo eu tava difícil de aceitar que eu valia a pena e eles me apoiaram muito, me ajudaram muito, principalmente a Rita,3 que me ajudou bastante, nossa, me ligava, sabe? Ela foi muito importante pra mim e eu agradeço muito, muito mesmo a ela por isso.

O vínculo estabelecido com a terapeuta ocupacional do CAPS, por diversas vezes, é destacado na fala da entrevistada como uma relação determinante em sua adesão ao tratamento elaborado. O cuidado contempla as diversas dimensões do ser humano e, ao serem estabelecidos atos de cuidado, o sofrimento é ressignificado e o potencial de vida, devolvido à pessoa (Oliveira, 2018). Em um processo de corresponsabilização, o sujeito se torna ativo em seu tratamento, o que possibilitou a Elis a elaboração do adoecimento visando a reescrever novos caminhos na vida:

Eu cheguei no fundo do poço, achava que não tinha solução pra mim, não tinha saída pra mim. Meus filhos, meu marido e os profissionais que tiveram comigo, me ajudaram bastante. A Rita, a Elza4, hoje também a Clara5 tá me acompanhando, então, eu agradeço muito a eles por isso, pelas conversas que a gente tem, pela dedicação. Às vezes dá vontade da gente nem ir, sabe? Pensa "aí, eu tô bem, não vou lá hoje, tô bem, pra que eu vou lá?", mas, quando eu chego lá, a gente começa a conversar, aí você vê que faz bem pra você. É bom saber que tem gente que tá ali pra te ajudar, pra te estender a mão e levantar você.

O acesso a diversos grupos e diferentes propostas oferecidas pelos serviços, possibilitou que a trabalhadora encontrasse na arte um potente instrumento de transformação. A retomada de um prazer antigo, a pintura, é parte crucial em seu processo de tornar-se, novamente, dona de si mesma: "tô fazendo meu curso de pintura, descobri que eu tinha vocação".

Essa estratégia pode ser entendida como uma forma de enfrentamento (Seligmann-Silva, 2011), que se deu tanto no individual quanto no coletivo, pois, além desses impulsos internos, houve também forte influência do atendimento no CAPS e da família, que passou a entender e participar ativamente nesse resgate de si mesma realizado por Elis "comecei a sentir que eu ainda podia, sim, conquistar alguma coisa na minha vida, que eu não precisava tirar minha vida por nada".

Além da participação ativa de Elis, o olhar sensível dos profissionais de saúde para as questões do trabalho teve fundamental importância em seu processo de recuperação. Considerando o trabalho como elemento central da vida do indivíduo e tendo em vista uma abordagem integradora, todo profissional de saúde, independente do lugar onde atua, deve ter conhecimento do contexto laboral do sujeito, para questionar, investigar e compreender se a atividade está desencadeando, contribuindo ou agravando um estado de adoecimento (Nakamura, 2019).

 

Considerações Finais

"Isso de querer
ser exatamente aquilo que a gente é
ainda vai nos levar além." (P. Leminski)

Pelo valor da história pôde-se perceber a relação entre as condições de trabalho e o adoecimento mental de Elis. Embora tenha passado por diversos serviços privados, foi no CAPS o lugar onde Elis sentiu-se acolhida e ouvida em sua subjetividade, considerando toda sua dimensão individual e influência do trabalho em seu adoecimento mental. No serviço houve o estabelecimento de vínculo, olhar singularizado para as demandas da trabalhadora e o estabelecimento de redes de suporte, conectando-a com o CEREST e outros equipamentos que lhe ofereceram cuidados integrais.

Percebe-se, assim, a centralidade do SUS na trajetória de cuidado de Elis. É importante ressaltar que, diante do momento histórico que estamos vivendo, o sistema público de saúde brasileiro sofre, intencionalmente, diversos ataques e precisa ser defendido do processo de desmonte que tem enfrentado. Por isso, consideramos importante a apresentação de ações, como as realizadas no caso desta trabalhadora, que valorizam as potencialidades e ampla possibilidade da ação e articulação dos serviços públicos de saúde.

Ressaltamos, ainda, que as mudanças na legislação brasileira representam retrocessos em direitos das trabalhadoras e trabalhadores e, consequentemente, aumento na precarização das condições laborais. Ainda não é possível dimensionar o impacto dessas mudanças na saúde da classe trabalhadora, entretanto, compreendemos que tais modificações afetam diretamente a experiência de trabalho, contribuindo para o aumento nos casos de adoecimento relacionado à atividade laboral.

Ao ouvir a trabalhadora emerge uma história única, sensível, complexa e que expressa a vida social, que nos dá a dimensão do todo, da organização ˗ micro e macrossocial ˗ e da fundamentação da vida na sociedade capitalista. Defendemos uma prática integral, centrada na pessoa, compreendida em seu contexto, pois somente ouvidos atentos e sensíveis conseguem perceber o sofrimento e contribuir no processo de recuperação e "resgate de si".

 

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Endereço para correspondência
Joyce Cristina Rodrigues
joycerodrigues@usp.br

Recebido em: 06/10/2020
Revisado em: 17/08/2021
Aprovado em: 19/08/2021

 

 

1 Nome fictício que será adotado para nos referirmos à trabalhadora a partir desse ponto.
2 Os subtítulos sinalizados com aspas (") correspondem a trechos de falas da entrevistada.
3 Nome fictício escolhido para não identificar a terapeuta ocupacional que acompanhou Elis.
4 Nome fictício escolhido para não identificar uma das profissionais de saúde envolvidas na reabilitação de Elis.
5 Nome fictício escolhido para não identificar uma das profissionais de saúde envolvidas na reabilitação de Elis.

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