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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.1 São Paulo jun. 1999

 

ARTIGOS

 

O último homem e a técnica moderna

 

The last man and the modern technique

 

 

Oswaldo Giacóia Junior

Departamento de Filosofia - IFCH/Unicamp

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é estabelecer uma relação entre aspectos centrais da filosofia da técnica de Heidegger e a figura do último homem da obra de Nietzsche, Assim falou Zaratustra.

Palavras-chave: Heidegger, Técnica, Nietzsche, Último homem.


ABSTRACT

The aim of this article is to set up in relationship certain central aspects of Heidegger's philosophy of the modern technique and the personage of the last man from Nietzsche's work, Thus spoke Zarathustra.

Keywords: Heidegger, Technology, Nietzsche, The last man.


 

 

"Com cegos, ninguém pode falar sobre as cores. Contudo, pior que
a cegueira é o ofuscamento. Ele considera que vê e que vê da única
maneira possível, enquanto, todavia, esse considerar lhe oblitera
toda visão". (Heidegger1984, p. 103)

 

O intenso sentimento de euforia e alvorecer de uma nova era que acompanha, desde sempre, as diversas figuras da consciência moderna, Hegel o expressou exemplarmente no prefácio à Fenomenologia do Espírito:

Ademais, não é difícil ver que nosso tempo é um tempo de gestação e de transição para um novo período; o espírito rompeu com o mundo de sua existência (Dasein) e da representação que durou até agora; ele está a ponto de mergulhar esse mundo no passado, e se encontra no trabalho de sua própria transformação. Em verdade, o espírito jamais se encontra em estado de repouso, mas está sempre tomado num movimento indefinidamente progressivo; apenas que ele aí se encontra como no caso da criança; depois de uma longa e silenciosa nutrição, a primeira respiração, em um salto qualitativo, interrompe bruscamente a continuidade do crescimento somente quantitativo, e é então que a criança nasce; assim, o espírito que se forma amadurece lentamente e silenciosamente até que sua nova figura desintegra fragmento por fragmento do edifício de seu mundo precedente; o abalo desse mundo é somente indicado por sintomas esporádicos; a frivolidade e o tédio que invadem aquilo que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido são os signos anunciadores de alguma coisa outra, que está em marcha. Esse estilhaçamento contínuo que não alterava a fisionomia do todo é bruscamente interrompido pelo nascer do sol que, num relâmpago, desenha de uma só vez a forma do mundo novo (Hegel, 19831983, p. 18).1

Na presente citação do clássico prefácio vêm à luz não apenas o sentimento do novo, do inaudito, como também a convicção profundamente arraigada no âmago da consciência moderna, de que o novo tempo é a era do progresso. É esse traço que Habermas faz questão de destacar, já logo no início de seu O Discurso Filosófico da Modernidade:

Hegel emprega o conceito de modernidade primeiramente em contextos históricos como conceito de uma época: o "novo tempo" é o "tempo moderno". Isso corresponde ao uso lingüístico contemporâneo do inglês e do francês: modern times ou temps modernes designam, por volta de 1800, os três últimos séculos então passados. A descoberta do "novo mundo", assim como o Renascimento e a Reforma - esses três grandes acontecimentos em torno de 1500 - formam o limiar epocal entre os novos tempos e a Idade Média. Com tais expressões, Hegel limita, em suas preleções sobre filosofia da história, o mundo cristão-germânico que, por sua vez, emerge da Antiguidade grega e romana. A divisão, ainda hoje corrente (por exemplo, para a designação de cátedras históricas), em tempos modernos, Idade Média e Antiguidade (por exemplo, História moderna, medieval e antiga), só pode se formar depois que as expressões tempos "novos", "modernos" ("novo" mundo, mundo "moderno") perderam seu sentido meramente cronológico e adquiriram uma enfática significação de oposição de uma "nova" era. Enquanto no Ocidente cristão o "novo tempo" tinha significado a era mundial do futuro, que ainda estava à frente e só se iniciaria com o dia do juízo..., o conceito profano de novo tempo expressa a convicção de que o futuro já começou: ele significa a época que vive orientada para o futuro, que se abriu para o futuro novo (1986, p. 13ss).

Esse elã juvenil de um nova aurora do espírito do mundo, que se coloca em oposição a um passado com o qual se encontra num revolucionário movimento de rompimento já fora também a experiência dominante dos iluministas e encontrara expressão política no movimento revolucionário francês, que pôs cobro ao Antigo Regime e universalizou a moderna democracia como modelo por excelência de legitimação da autoridade política. Essa era também a idéia de acordo com a qual a humanidade ingressara na plena posse de sua essência e destinação, naquela era de cumprimento de sua mais autêntica tarefa, qual seja, tornar-se senhora e possuidora do universo, em virtude de seu próprio agir potencializado pela ciência experimental. Liberada das trevas da ignorância e da superstição, a humanidade emancipada tomaria enfim, em suas próprias mãos, a responsabilidade pelo seu destino e pela administração da Terra. Esse horizonte de onipotência e otimismo determinara, desde seu surgimento, o programa moderno de apropriação técnico-científica da natureza, com vistas à realização da felicidade humana, tal como fora concebido paradigmaticamente no projeto baconiano de instauratio magna:

that at lenght (lide an honest and faithful guardian) I may handover to men their fortunes, now their understanding is emancipated and come as it were of age; whence there cannot but follow an improvement in man's estate and an enlargement of his power over nature. For many by the fall fell at same time from his state of inocency and from his domination over creation. Both of these losses however can even in this life be in some part repaired; the former by religion and faith, the latter by arts ans sciences. For creation was not by the curse made altogether and forever a rebel, but in virtue of that charter 'In the sweat of thy face shalt thou eat bread' it is now by various labors (not certainly by disputations or idle magical ceremonies, but by various labors) at lenght and in some measure subdued to the supplying of man with bread, that is, to the uses of human life.2

O homem moderno, senhor das ciências, das artes e da técnica, que, por intermédio dessas forças, se encontra em condições de instaurar seu pleno domínio sobre a totalidade da criação, não somente seria o mestre de seu próprio destino, mas também aquele cuja ação coletiva imprimiria à natureza um sentido humano e, desse modo, também a resgataria.

E, no entanto, na medida em que se estendem e aprofundam os processos de transformação econômica, social, política e cultural que decorrem do aproveitamento industrial, em macro-escala, da ciência e da técnica moderna, a orgulhosa consciência filosófica da modernidade se encerra cada vez mais sobre si mesma, fazendo da ideologia do progresso seu autêntico credo profano. Entretanto, essa mesma litania do progresso se faz acompanhar, em surdina, por um difuso sentimento de perda da dimensão do futuro. Já em meados do século XIX, o jovem Nietzsche ironizava, com um desprezo carregado de irreverência, essa autoglorificação filistéia da moderna consciência filosófica:

Bem junto ao orgulho do homem moderno se posta sua ironia sobre si mesmo, a consciência de que ele tem que viver numa disposição historizante e como que noturna, seu temor de, no futuro, não poder salvar, de modo algum, nada mais de suas esperanças e forças juvenis. Aqui e ali vai-se mais adiante em direção ao cinismo e se justifica o curso da história, sim do completo desenvolvimento universal inteiramente para manuseio do homem moderno, de conformidade com o cânon cínico: exatamente dessa maneira tinha que ocorrer, tal como agora se passa; o homem tinha que vir a ser como são agora os homens, e não de outra maneira; ninguém tem que se insurgir contra esse tinha que. No sentimento de satisfação de um tal cinismo se abriga aquele que não pode suportar a ironia; além disso, a este a última década oferece de presente uma de suas mais belas invenções, uma arredondada e opulenta frase para aquele cinismo: ela denomina seu modo moderno e totalmente leviano de viver "a completa entrega da personalidade ao processo universal". A personalidade e o processo universal! O processo universal e a personalidade da pulga. Nietzsche, F: (Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben # 9, in KSA, vol. 1, p. 312).

O resultado mais visível e preocupante desse processo de entronização das "idéias modernas", Nietzsche o apreende como o inquietante movimento de consolidação de uma sociedade mercantil, de massas, cujo ideário ético-político se generalizaria na Europa a partir de uma identificação entre felicidade, segurança e bem-estar, assim como a partir da universalização de um certo tipo de experiência democrática, fundada na idéia de identidade entendida como igualdade uniforme e ausência de hierarquias legitimáveis. Essa identificação implicaria, propriamente, a consagração do doutrina do bem- estar social e do utilitarismo moderno como meta hegemônica de toda ética e política.

Essa figura do homem moderno, Nietzsche o caricaturiza na imagem do "último homem". Este é o homem do rebanho e da pacífica felicidade das verdes pastagens. O tipo do último homem, para Nietzsche, determina a verdadeira meta da pequena política, porque nele se torna vitoriosa a tendência moderna à mediocrização dos feitos e ideais humanos, assim como a integração sem resíduos de toda verdadeira personalidade nos processos anônimos da con-formação de corpos e mentes aos circuitos diversos da produção e do consumo em grande escala. Para Nietzsche, tais seriam as condições sociais preparatórias, no mundo moderno, para um "consumo cada vez mais econômico de homem e humanidade", cujo resultado característico seria o auto-apequenamento do homem. Para ele, a tendência hegemônica da modernidade seria "aquela inevitavelmente eminente administração econômica total da terra... aquela maquinaria global, a solidariedade de todas as engrenagens", que "representa um maximum na exploração do homem".Nietzsche, F: Fragmento póstumo do outono de 1887, nº 10 [11], in KSA, vol. 12, p. 459.

Essa seria a contraface lúgubre daquela cínica autoconfiança que julgava poder interpretar o curso da história que conduz ao mundo moderno como a peregrinação de Deus sobre a Terra, contra a qual Nietzsche já distilara a verve antihegeliana de sua diatribe: a história

entendida hegelianamente foi chamada com escárnio a perambulação de Deus sobre a Terra, Deus este que entretanto, por seu lado, só é feito pela história. Esse Deus porém tornou-se, no interior da caixa craniana de Hegel, transparente e inteligível para si mesmo e já galgou os degraus dialéticos possíveis de seu vir-a-ser, até chegar a essa auto-revelação: de tal modo que para Hegel o ponto culminante e o ponto final do processo universal coincidiam em sua própria existência berlinense. Aliás, ele teria mesmo de dizer que todas as coisas que viriam depois dela só devem ser avaliadas, propriamente, como a coda musical de um rondó da história universal, ou, ainda mais propriamente, como supérfluas.Nietzsche, F: Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida # 8, in Nietzsche 1974, p. 76.

Se essa consciência cínica de plenitude dos tempos em que se expressa o filisteísmo autocomplacente do homem moderno já se deixara parodiar pelo jovem Nietzsche, em nossos dias, no horizonte epocal do colapso dos utopismos morais e políticos, idêntico sentimento de estagnação do processo universal reverbera exemplarmente, com estridência ainda maior, em sua frívola jactância, nas teses de Francis Fukuyama a respeito do fim da história. Em sua significação essencial, tais teses bem poderiam ser enunciadas como discurso dos últimos homens que figuram no famoso Prólogo de Assim falou Zaratustra.

A tese Fukuyama é que o fim da história, já apreendido por Hegel, está selado com o colapso do socialismo. O que agora se verificaria seria a realização da democracia liberal ocidental, ou pelo menos a imposição de uma ideologia correspondente em todos os países da Terra. Fukuyama escreve: "O triunfo do ocidente, do pensamento ocidental, revela-se principalmente no total esgotamento de todas as alternativas ao liberalismo ocidental". O fim da história estaria alcançado, o fim do desenvolvimento ideológico da humanidade, o estágio da "introdução universal da democracia liberal ocidental como forma final de governo". No mundo real, a vitória do liberalismo estaria, com efeito, incompleta, mas no âmbito das idéias ou da consciência, ela seria perfeita. "No fim da história, não seria, em geral, necessário de modo algum que todas as sociedades tenham que ser sociedades liberais bem-sucedidas, porém apenas que elas abdiquem de sua pretensão ideológica de representar outras formas superiores de sociedade humana". A tendência à unificação da Terra se manifestaria, ao fim da história, não apenas no [âmbito OGJ.] político, mas também na "extensão inevitável, por toda a terra, da cultura ocidental, orientada para o consumo". (Maurer, 1993, p.421)

Para Nietzsche, no entanto, como bem observa a lição de Heidegger, esse último homem não representa senão o homem existente até aqui.

No círculo de visão de seu pensamento, Nietzsche denomina o homem existente até aqui de 'o último homem'. Esse nome não significa que com o homem assim denominado acabe, em geral, a essência do homem. O último homem é, pelo contrário, aquele que não é mais capaz de olhar para além de si, de uma vez escalar por sobre si mesmo, no território de sua tarefa e de assumi-la em conformidade com a essência dela. O homem de até agora não o consegue, porque ele próprio ainda não ingressou em sua plena essência própria. (Heidegger 1984, p.24)

Somente o homem conduzido à plenitude de sua essência poderia elevar-se acima de si mesmo, criar para além de si mesmo e, dessa maneira, realizar-se plenamente em sua essência metafísica como animal racional. Esse homem plenificado estaria em condições de se tornar aquilo que o homem moderno pretende ser, isto é, o senhor e possuidor da Terra. Contudo, porque o homem moderno, como "último homem", não representa outra coisa que o congelamento e a cristalização do que foi a determinação essencial do homem existente até agora, ele não consegue ingressar na plenitude de sua essência.

Para Nietzsche, porém, na medida em que no homem nem o físico, o sensível, o corpo, nem o não sensível, a razão, não estão, em sua essência, suficientemente representados, o homem permanece, em sua determinação de até aqui, o animal ainda não representado e, com isso, o animal ainda não fixado. (idem, p.25)

De acordo, portanto, com a interpretação heideggeriana de Nietzsche, a famosa tese de Para a Genealogia da Moral, segundo a qual o homem seria, por excelência, o animal doente e não fixado encontraria plena explicitação no âmbito das relações problemáticas entre a determinação essencial do último homem e a essência da técnica moderna:

O homem é o animal não fixado; o animal rationale não foi ainda conduzido à sua plena essência. No entanto, para poder primeiramente fixar a essência do homem existente até agora, este tem que ser conduzido para além de si mesmo. O homem de até agora é o último homem no sentido em que ele não consegue, e isso significa não quer colocar-se abaixo de si mesmo e desprezar o desprezível em sua espécie de até agora. Por causa disso, tem que ser procurada a transição para acima do homem até aqui existente, por causa disso há que ser encontrada a ponte para a essência pela qual o homem existente até aqui possa ser o superador de seu até aqui e do seu último. (idem)

Efetivamente, como acentuara o próprio Nietzsche, o homem existente até aqui é o animal instável. O antagonismo existente entre o animal e o rationale, ou seja, entre o impulsivo, o corporal, o físico e o racional e supra-sensível, o metafísico, é constitutivo da própria essência do homem:

No homem estão reunidos criatura e criador: no homem há matéria, fragmento, abundância, argila, lodo, sem-sentido, caos; porém, há no homem também criador, escultor, dureza de martelo espectador divino e sétimo dia - compreendeis essa oposição? Nietzsche, F: Jenseits von Gut und Böse, aforismo nº 224, in: KSA, vol. 5, p. 157s.

É na tensão fecunda engendrada por esse antagonismo e oposição que se enraíza todo crescimento, toda elevação, toda grandeza humana até aqui existente na história. E é justamente ela que se encontra ameaçada pela paralisia auto-satisfeita do último homem:

Nietzsche enxerga no domínio do pensamento essencial mais claro do que qualquer outro antes dele a necessidade de uma transição e com isso o perigo de que o homem até aqui existente se instale sempre mais tenazmente sobre a mera superfície e fachada de sua essência de até então e deixe valer o plano raso dessas superfícies como o único espaço de sua permanência na Terra. Esse perigo é tanto maior quanto ele ameaça num instante histórico que Nietzsche, como o primeiro, reconheceu e, como único até aqui, meditou metafísicamente em toda sua envergadura. É o instante em que o homem se prepara para assumir o domínio sobre toda a Terra. (Heidegger 1984, p. 24)

Em sua permanência obstinada no plano miúdo das fachadas de sua ambiência no mundo, o último homem não consegue mais suplantar-se, porque se tornou impotente para o grande desprezo em relação a tudo o que é fragmento, excesso, superfície e inautenticidade. Aquilo que o último homem não consegue perceber, no ofuscamento de sua autocomplacência é que ele se encontra ferreamente apegado apenas às fachadas e superfícies reluzentes de tudo aquilo que é; àquilo que, apenas como fachada e superfície, ele permite que venha a ser. Desse modo, o último homem se encontra como que paralisado sob o sortilégio de um determinado modo particular de racionalidade e representação. Seu modo de representação

se mantém aqui unicamente junto àquilo que , a cada vez, é agora justamente disposto e posto junto a si e, com efeito, como algo cuja disposição é regulada no empreender e no arbítrio do representar humano e que é ajustada à universal compreensibilidade e assimilabilidade. Tudo o que é só consegue chegar ao aparecer na medida em que, por meio desse representar tacitamente ajustador, é disposto como um objeto ou um estado e, somente por meio disso, é admitido [na representação OGJ.]. O último homem, a espécie definitiva do homem existente até aqui, se realiza a si mesmo e, em geral, realiza tudo o que é por meio de uma espécie particular do representar. (Heidegger 1984, p. 28)

Por meio dessa espécie particular do representar, o último homem transforma todo representado em objeto disponível para o domínio e a apropriação de uma subjetividade hostil, que se representa a si mesma como autarquicamente soberana. Por esse meio, o último homem sujeita a totalidade dos entes a seu modo objetivante de representar; todo ente, na medida em que pode e vem a ser, só é admitido a sê-lo na condição de objeto desse tipo de representação. Sobre tal base metafísica, os últimos homens edificam sua suprema aspiração e pretensão: transformar a realidade de tudo o que é em objeto do representar e do fazer humanos e, por esse meio, torná-la infinitamente operável e manipulável, graças ao recurso da apropriação técnico-científica. É por causa da extensão virtualmente ilimitada dessa apropriação que se reproduz a si mesma de modo indefinido, que o último homem desenvolve sua auto-compreensão como "senhor e possuidor da Terra". Afinal, com base nessa inesgotável capacidade de fazer uso (Gebrauch) de todo ente com vistas à disponibilização para o fazer e operar da técnica moderna, parece ter-se desenvolvido um poderio humano tão ilimitado sobre a natureza (inclusive a natureza do próprio homem), os deuses e os outros animais, que os últimos homens se convenceram a si mesmos de que se tornaram capazes de realizar o eterno sonho da espécie humana, qual seja, a conquista da felicidade.

Que é amor? Que é criação? Que é nostalgia? Que é estrela? - Assim pergunta o último homem e pisca os olhos. A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. Sua estirpe é indestrutível, como a pulga; o último homem é o que mais tempo vive. 'Nós inventamos a felicidade' - dizem os últimos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver, pois a gente precisa de calor. A gente, inclusive, ama o vizinho e se esfrega nele, pois a gente precisa de calor. Adoecer e desconfiar, eles consideram perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de veneno, de vez em quando, isso produz sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Mas evitamos que o entretenimento canse. Já não nos tornamos nem pobres, nem ricos: as duas coisas são demasiado molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda quer obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas... Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra maneira segue voluntariamente para o hospício... A gente ainda discute, mas logo se reconcilia, senão estropia o estômago. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas prezamos a saúde. 'Nós inventamos a felicidade', dizem os últimos homens e piscam o olho" Nietzsche, F: Also sprach Zarathustra, in KSA, vol. 4, p. 19s.

A passagem citada de Assim falou Zaratustra dá bem a dimensão do que Heidegger quer significar com a expressão "universal compreensiblidade e assimilabilidade" que constitui o espaço de ambiência dos últimos homens, uma ambiência que os confina no círculo mágico das fachadas e superfícies reluzentes. Mas essa espécie de representação possui também uma outra dimensão: a pretensão de tornar tudo disponível e factível por meio da reprodutibilidade técnica de todo ente. Essa reprodutibilidade infinita disponibiliza todas as coisas para o aproveitamento técnico-industrial do homem e da natureza. Este, por sua vez, se encontra metafisicamente fundado numa modalidade de relação entre a subjetividade humana e a totalidade dos entes que, antes de tudo, se constitui como cisão, oposição e contra-posição;

Deveria esse representar, a cada vez, colocar, na verdade, diante de si aquilo que é, o ente,e, no entanto, ao fazê-lo, no fundo contrapor-se a tudo o que é e como é? Deveria esse representar, no fundo, perseguir aquilo que ele dispõe para si, para rebaixá-lo e corrompê-lo? Qual é a maneira de pensar que representa tudo de tal modo que, no fundo, ela persegue tudo? Qual é o espírito desse representar? Que espécie de pensar é esta que medita tudo dessa maneira? De que espécie é o meditar do último homem? (Heidegger, 1984, p. 32)

Para esse conjunto de questões, gostaria de sugerir, a partir do próprio texto de Heidegger, uma resposta possível: o modo de representar que caracteriza os últimos homens é aquele que rebaixa, corrompe, desvirtua e persegue o representado. Com isso, ele participa essencialmente da mesma velada hostilidade que caracteriza a técnica moderna como "armação" (Gestell). Trata-se de uma disposição representativa que persegue seu objeto, porque segue em seu encalço e o seqüestra no modo próprio da objetivação disponibilizadora de todo ente para o cálculo e o planejamento da produção tecnológico-industrial; rebaixa e corrompe porque apenas permite que venha à luz da representação aquilo que é assimilável em termos de factibilidade tecnológica. "Nós inventamos a felicidade", dizem os últimos homens. Com isso, o modo de representação típico do último homem reduz tudo que é ao mesmo plano superficial e disponível, rebaixando toda natureza - inclusive o que no próprio homem há de natureza - à condição de objeto disposto sob o domínio da factibilidade do poder humano. Permito-me inserir irreverentemente neste contexto uma passagem que reflete adequadamente uma sutil auto-ironização da arrogância do fazer tecnológico:

Nós vivemos em um mundo cada vez mais globalizado, numa era em que as pessoas são atacadas por todos os lados com uma quantidade enorme de informação. As barreiras entre os povos e culturas são constantemente perfuradas (mas quase nunca vencidas) pela força da mídia e do consumismo desenfreado. Hoje em dia, nada mais comum do que vermos um beduíno em seu camelo, com sua calça Levis e óculos Giorgio Armani, entoando uma canção de Elton John. Na testa do camelo, em árabe, vemos a escrita "Lady Di, nós te amamos" (Gleiser, 1998, p. 14)

É sobre essa base metafísica desse representar persecutório que se funda a compulsão à disponibilização tecnológica de todo ente. Esta, por sua vez, é a forma da vontade coletiva de poder que se torna figura do mundo com o último homem. Trata-se de uma compulsão que leva ao desgaste (Vernutzung) de todo ente e à infinita reposição desse consumo, tornado possível pela inesgotabilidade da técnica moderna. Esta é, pois, a figuração metafísica da vontade de poder no mundo moderno. E, contudo, do ápice de seu poder de objetivação e reprodução tecnológica, o último homem se revela como vontade de poder impotente. Impotente porque, completamente ofuscado pela cintilação das fachadas e superfícies de seu próprio poderio, ele não se compenetra de que toda compulsão, como impulso coercitivo, não é mais, enquanto tal, nem controlável, nem disponível. Por conseguinte, a compulsão ao consumo e ao desgaste de todo ente é uma potência que se furta ao controle do último homem e, no limite, o subjuga e domina. Pior do que a cegueira é o ofuscamento. Este julga e crê poder ver, e ver da única maneira possível (nesse caso, ver a modo do delírio de onipotência tecnológica); mas é justamente esse delírio de onipotência que constitui a prisão e a condenação às fachadas e superfícies que, por fim, obliteram toda possibilidade de ver clara e sobriamente.

Como contemporâneos dos últimos homens, somos decididamente pródigos em fachadas e conveniências. Com efeito, propalamos solidariedade de fachada com a mesma naturalidade com que mantemos amores e relacionamentos de fachada; timbramos por persistir apenas em opiniões e atitudes politicamente corretos, do mesmo modo como consumimos cultos e instituições, mercadejamos com a experiência do sagrado, deflagramos guerras e celebramos acordos, conferências e tratados de paz, de fachada. Porque os últimos homens não estão à altura de sua própria essência; porque não representam senão a perpetuação da determinação do homem existente até aqui, incapaz de realizar a travessia que o conduza para além de si mesmo, por essa razão, os últimos homens se surpreendem capturados nas malhas de uma compulsão à disponibilidade técnica sobre todo ente que, no fundo, é consumo, rebaixamento e desgaste de tudo o que existe.

"Nós inventamos a felicidade - dizem os últimos homens e piscam o olho". Nós providenciaremos, com o auxílio de nossa sociologia, psicologia, psicoterapia e ainda com alguns outros meios, para que, de conformidade com isso, todos os homens sejam colocados, da mesma maneira, no mesmo estado da mesma felicidade e seja assegurada a igualdade do bem-estar de todos. Mas, a despeito dessa invenção da felicidade, os homens são caçados de uma guerra mundial na outra. Sinaliza-se para os povos que a paz seria a eliminação da guerra. Enquanto isso, na verdade, a paz, que elimina a guerra, só poderia ser assegurada por intermédio de uma guerra. Contra essa paz bélica abre-se novamente uma ofensiva de paz, cujos ataques mal se deixam designar como pacíficos. A guerra: asseguramento da paz; mas a paz: eliminação da guerra. Como pode a paz ser assegurada por aquilo que ela elimina? Aqui, no fundamento mais profundo, algo se escangalhou, ou talvez nunca tenha estado conjuntado. "Guerra" e "Paz" permanecem, porém, enquanto isso, como dois gravetos que os selvagens atritam permanentemente um no outro, para fazer fogo. (Heidegger 1984, p.31)

Esse é, talvez, o sentido mais profundo daquele gesto do último homem narrado no Prefácio de Zaratustra: o gesto emblemático, matreiro e capcioso de piscar os olhos. Esse gesto, a rigor, sugere e insinua que, com ele, tudo não passa de fachada e superfície, de encenação, de palavrório, agitação e gestualidade fútil. Entregue a seu próprio destino, o último homem permanece incapaz de apreender e superar a si mesmo e a sua espécie persecutória de representação. Enquanto isso, a reificação tecnológica do humano no homem cava cada vez mais fundo, no sentido e na direção de uma banalização irrefreada do existir humano no mundo. Em termos de Nietzsche, o último homem permanece cronicamente impotente perante seu destino, porque não é mais capaz do grande desprezo, de tomar-se como ponte e travessia, e não mais como meta e fim em si; ponte e travessia para o que pode se configurar como um destinamento além do homem existente até aqui:

O além-do-homem é aquele que primeiramente transporta a essência do homem de até aqui à sua verdade e a assume. O homem de até aqui, desse modo firmemente estabelecido em sua essência, deve, por isso, ser levado à condição de ser futuramente o senhor da Terra, isto é, administrar num sentido superior as possibilidades de poder que cabem ao futuro homem a partir da essência da transformação técnica da Terra e do fazer humano. (Idem, p. 26)

Porque, porém, ao último homem permanece vedado o acesso a esse sentido superior, decorrente de uma apreensão pensante da essência da técnica moderna, tudo aquilo que ele toca e reproduz se transforma em algo minúsculo, de sentido inferior. Por isso, de suposto senhor e possuidor do universo, o último homem se revela como um elemento disponível nesse consumo infinito de todo ente em proveito da técnica. Aquela velada hostilidade que se insinua na relação entre o modo de representação dos últimos homens e os objetos dessa representação, que também caracteriza a técnica moderna como "armação", encontra sua forma de expressão e representação social na figura do indispensável asseguramento bélico da competição pela hegemonia técnico-industrial no planeta. Heidegger enfatiza o contexto e a significação metafísica da vertiginosa mobilização de todas as forças e recursos com vistas à escalada armamentista que perpetua, no mundo contemporâneo, a luta pela manutenção do poder econômico político na era da técnica planetária:

O desgaste do ente é, enquanto tal e em seu percurso, determinado por meio do armamentismo (Rüstung) em sentido metafísico, por intermédio do qual o homem se faz 'senhor' do 'elementar'... As 'guerras mundiais' e sua 'totalidade'... compelem ao asseguramento de uma forma permanente de desgaste. Nesse processo, também o homem está incluído, ele que não oculta por mais tempo o caráter de ser a mais importante matéria prima... Uma vez que o homem é a mais importante matéria prima, pode-se contar com que, com base nas pesquisas químicas atuais, serão instaladas algum dia fábricas para a produção artificial de material humano. As pesquisas do químico Kuhn, distinguido esse ano com o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt, já abrem a possibilidade de dirigir a produção de seres vivos machos e fêmeas planificadamente, de acordo com as necessidades respectivas. Heidegger M: Überwindung der Metaphysik par. 26, in Heidegger 1985, p. 87 e 91.

Com efeito, os últimos homens inventaram a felicidade. Mas esta é uma felicidade reduzida à estatura e ao sentido de seu inventor. Por essa razão, os últimos homens são os que vivem mais tempo: eles conhecem todas as artimanhas e sortilégios técnicos para prolongar indefinidamente uma existência diminuída, artificial e artificiosa, depois de ter privado inclusive a experiência da morte da dimensão trágica que lhe é inerente:

... hoje se nos acena com a perspectiva prática de, por meio de certos progressos na biologia celular, contra-atuar sobre os processos bioquímicos de envelhecimento e prolongar o espaço de tempo da vida humana, talvez prorrogá-la por um tempo indeterminado. A morte não parece mais ser uma necessidade pertencente à natureza do vivente, mas uma disfunção orgânica evitável, em todo caso, em princípio tratável e por longo tempo deslocável. Uma nostalgia eterna da humanidade parece chegar mais perto de sua realização. (Jonas 1984, p. 48)

Os últimos homens vivem o mais longamente. Eles não são apenas homens de rebanho e de séries; eles são também numerosos e minúsculos, como as pulgas. Porque não mais conseguem se elevar acima de si mesmos e para além de si mesmos, porque são impotentes para a travessia que os conduziria à verdade de sua essência, os últimos homens se perpetuam como infinita repetição do idêntico, eternos clones de si mesmos, numa versão macabra do eterno retorno nietzscheano. Esse é o perigo de desertificação que traz consigo a figura inquietante e silenciosamente ameaçadora do último homem: o perigo da integração sem resíduos nos circuitos desenfreados e devastadores do consumo e do desgaste técnico de todo ente:

Os últimos homens piscam os olhos. O que significa isso? "Piscar os olhos" tem conexão com "reluzir", "resplandecer", "aparecer". Piscar os olhos - isso significa: proporcionar e transmitir um aparecer e uma aparência, sobre a qual nos colocamos de acordo, como sobre algo válido e, em verdade, com a mútua, de modo algum expressamente pronunciada anuência em não prosseguir avante em tudo aquilo que, desse modo, foi transmitido. Piscar o olho: o ajustado e finalmente não mais carente de acordo distribuir-se das superfícies e fachadas circunstanciais de tudo o que é, como daquilo unicamente que é válido e vigente, com o que o homem tudo empreende e avalia. (Heidegger 1984, p. 30)

Aquilo sobre o que urge refletir é, pois, sobre a vertigem de que somos presa na era da técnica planetária, sobre a profundidade de nosso enredamento com essa figura sinistra do último homem; sobretudo sobre a incapacidade de, unicamente por nossas próprias forças e meios, conjurarmos essa sombria ameaça que turva o futuro do homem:

Antevendo tudo isso desde longe, a partir do mais elevado posto, Nietzsche, já nos anos 80 do século anterior, pronuncia para tanto a palavra simples, porque pensada: "O deserto cresce". Isso quer dizer: a devastação é mais sinistra do que o aniquilamento. A destruição elimina apenas aquilo que até então cresceu e foi construído. A devastação, porém, impede o crescimento futuro e todo construir... O Sahara, na África, é apenas uma espécie de deserto. A devastação da Terra pode caminhar junto tanto com a obtenção de um elevado padrão de vida para o homem como com a organização de um estado uniforme de felicidade de todos os homens. A devastação pode ser o mesmo com ambos e, do modo mais sinistro, transitar por toda parte, precisamente porque ela se oculta. (Heidegger 1984, p. 30)

 

Referências bibliográficas

Bacon, F. 1960: The New Organon and Related Writings. Ed. Fulton H. Anderson, New York, Macmillan Publishing Company.         [ Links ]

Gleiser, M. 1998: "Velocidade das informações desafia educação moderna", in Caderno Mais, Folha de São Paulo, 4.10, Caderno 5, p. 14.

Habermas, J. 1986: Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt, M. Suhrkamp.

Hegel, G. W. F 1983: Phänomenologie des Geistes. Frankfurt, M. Ullstein.

Heidegger, M. 1961: Nietzsche, Pfullingen, G. Neske.

______ 1980: "Nietzsches Wort: Gott ist tod", in Holzwege, Frankfurt, M. V. Klostermann.

______ 1985: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen, G. Neske.

______ 1984: Was heisst Denken?. Tübingen, M. Niemeyer.

Jonas, H. 1984: Das Prinzip Verantwortung. Frankfurt, M. Suhrkamp Taschenbuch.

Maurer, R. 1993: "Nietzsche und das Ende der Geschichte", in Th. Nipperdey et al. (org): Weltbürgerkrieg der Ideologien. Berlin, Propyläen.

Nietzsche, F. 1974: Obra Incompleta. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, 1ª ed., São Paulo, Abril Cultural, Col. Os Pensadores.

______ 1980: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Ed. G. Colli und M. Montinari, Berlin/New York/München, de Gruyter/DTV.

 

 

1 Todas as traduções são de minha própria autoria.
2 Assim, como probos e fiéis tutores, faremos finalmente entrega aos homens de sua fortuna, uma vez que seu entendimento esteja emancipado e tenha alcançado a maioridade da idade. A isso se seguirá necessariamente a melhoria da situação humana e a ampliação de seu domínio sobre a natureza. Com efeito, o homem decaiu de seu estado de inocência e de seu reino sobre as criaturas por causa do pecado. Sem embargo, uma e outra coisa podem ser reparadas em parte nesta vida: a primeira mediante a religião e a fé, a segunda mediante as artes e as ciências, pois a maldição não tornou a criatura completamente rebelde até o extremo. Ao contrário: em virtude desse decreto segundo o qual 'ganharás o pão com o suor de tua fronte', mediante diversos trabalhos (mediante diversos trabalhos, não mediante disputas, certamente, ou mediante vãs cerimônias mágicas) se vê obrigada a conceder à humanidade o pão, quer dizer, os meios de vida". (Bacon 1960, 267)