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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.1 São Paulo jun. 1999

 

ARTIGOS

 

Término da análise em Freud e em Winnicott

 

End of analysis in reud and Winnicott

 

 

Maria Ivone Accioly Lins

Psicanalista da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
Doutora em Psicanálise pela Universidade de Paris-X, Nanterre

 

 


RESUMO

A comparação entre Freud e Winnicott, quanto ao término da análise, faz-se na ótica das relações entre o feminino e o masculino. Explora-se o diferencial de conceituação no entendimento dos processos pulsional e identificatório, da natureza da dissociação observada na clínica e da eficácia dos meios terapêuticos utilizados. A contribuição de Winnicott, de uma relação puramente feminina ao seio, dá-se no prolongamento da reflexão freudiana sobre o narcisismo primário, constituindo um instigante deslocamento no que diz respeito às idéias e às práticas da psicanálise clássica. Ressalta-se uma nova visão dos opostos masculino/feminino: ao invés de designarem predicados do sujeito (fálico-castrado) ou de suas condutas (ativo-passivo), indicam a complementaridade entre dois tipos de relações, levando-se em conta o tempo e o espaço onde elas se dão.

Palavras-chave: Feminino/Masculino, Inveja do pênis/Castração, Relação de objeto/Relação de identificação, Dissociação/Integração, Término da análise.


ABSTRACT

This article makes a comparison between Freud and Winnicott, talking about the end of a psicoanalysis process, taking into consideration the relationship between male and female aspects. It explains how to understand the following conceptual differences: driven and identification process; the nature of the dissociation as observed in the clinical practice; the efficiency of the applied therapeutic resources. Winnicott's contribution - the unique connection between a mother (breast) and the infant - derives from a reflexion on Freud's primary narcissism, setting up a new approach on the ideas and practices of classic psicoanalysis. It emphasizes a new vision on the male/female opposition, stating that male/female is complementary to each other considering when and where it happens and not only personal qualities (phallic/castrate) or attitudes.

Keywords: Female/Male, Penis envy, /Castration, Object-relation/ Identification-relation, Dissociation/Integration, End of analysis.


 

 

Alguns pesquisadores da obra de Winnicott se prendem a aspectos de seu pensamento que decorrem diretamente do legado freudiano. Outros há que, embora inserindo esse pensamento nas grandes linhas da psicanálise clássica, ressaltam sua originalidade. Estes encontram na obra de Freud um excelente parâmetro comparativo para o estudo de novas teorias e renovadas práticas clínicas elaboradas por Winnicott. É nesta direção que se encaminha minha proposta: analisar os diferentes usos feitos por Freud e por Winnicott dos termos masculino e feminino, e suas conseqüências na condução do tratamento analítico.

Sem pretender esgotar as idéias dos autores sobre o tema nem explicitar exaustivamente os conceitos nele envolvidos, centrarei minhas considerações em torno da análise de um texto de cada um deles, ambos publicados na etapa final de suas obras. Os textos escolhidos têm ainda em comum o fato de partirem da noção de bissexualidade e de considerarem a importância da integração entre os elementos masculinos e femininos do indivíduo.

 

Masculino e feminino em Freud

Em Análise terminável e análise interminável (1937), Freud se detém nos fatores que explicam os fracassos da terapêutica psicanalítica. No último item desse artigo, ele estabelece a relação entre, por um lado, disposições masculinas e femininas e, por outro, o término de uma análise.

Freud afirma que uma atitude de repúdio à feminilidade caracteriza a vida psíquica dos seres humanos. Derivada do complexo de castração e encontrada tanto nos homens como nas mulheres, essa atitude acarreta em ambos os sexos um esforço para ser masculino.

Vale lembrar que, para Freud, a oposição masculino/feminino tem como predecessoras duas oposições - ativo/passivo e fálico/castrado - que a ela se integram. Segundo o sexo do indivíduo, o esforço para ser masculino vai se manifestar diferentemente: no homem, por meio de uma luta contra qualquer atitude passiva ou feminina para com outro homem; na mulher, sob a forma de inveja do pênis - esforço positivo para possuir um órgão genital masculino.

O repúdio à feminilidade não pode ocupar a mesma posição em ambos os sexos, diz Freud. No homem, sua contrapartida, ou seja, o esforço para ser masculino, por ser egossintônico desde o início, acarreta um recalque intenso das atitudes passivas. Uma vez que essas atitudes pressupõem uma aceitação da castração, suas manifestações só podem ser indicadas por supercompensações excessivas.

Na mulher, o esforço para ser masculino, em sintonia com o ego durante a fase fálica, sofre em seguida o mesmo destino: o recalque. Grande parte de seu complexo de masculinidade pode, entretanto, se transformar e contribuir para sua feminilidade: o desejo de um pênis pode ser convertido no desejo de ter um bebê e de ter um marido que possui um pênis. Quando essa transformação não se dá, o que ocorre com freqüência, seu desejo de masculinidade permanece em grande parte recalcado, passando a exercer uma influência perturbadora.

Falando de sua experiência clínica, Freud afirma:

Em nenhum ponto do nosso trabalho analítico se sofre mais a sensação opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão (...) do que quando estamos tentando persuadir uma mulher a abandonar seu desejo de um pênis com fundamento de que é irrealizável, ou quando estamos procurando convencer um homem de que uma atitude passiva para com outro homem nem sempre significa castração e que ela é indispensável em muitos relacionamentos na vida. (Freud 1937)

Segundo Freud, atitudes persuasivas deste tipo produzem no homem uma das mais fortes resistências à relação transferencial. Por meio de um mecanismo de supercompensação rebelde dos componentes femininos recalcados, ele recusa submeter-se a uma figura paterna substituta, não aceitando, do médico, seu restabelecimento.

Tal resistência transferencial não pode surgir, na mulher, do desejo de ter um pênis. Convicta, porém, de que a análise nada pode fazer para ajudá-la a satisfazer seu desejo, ela apresenta um estado de depressão grave. Uma depressão compreensível, acrescenta Freud, uma vez que "seu mais forte motivo para buscar tratamento foi a esperança de que, ao fim de tudo, ainda poderia obter um órgão masculino" (Freud 1937).

Cada vez mais pessimista ao longo do seu texto, Freud considera que as resistências, quaisquer que sejam suas formas de expressão, "impedem a ocorrência de qualquer mudança - fica tudo como era antes" (1937).

O desânimo de Freud quanto aos aspectos terapêuticos da psicanálise, expresso em vários momentos de sua obra, não o impedia de manter um grande interesse pela prática clínica. O que merece atenção especial, no texto citado, são suas considerações sobre a natureza das resistências oferecidas pelo paciente.

Segundo Freud, o desejo de um pênis e o protesto masculino penetram todos os estratos psicológicos, até alcançarem o campo biológico, fundo que subjaz a todo psiquismo. O "repúdio da feminilidade" afirma, "pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo". Resignado, conclui:

Seria difícil dizer se e quando conseguimos êxito em dominar esse fator em um tratamento analítico. Só podemos consolar-nos com a certeza de que demos à pessoa analisada todo o incentivo possível para examinar e alterar sua atitude para com ele (1937).

Fica claro, não só no item analisado mas em todo o texto que, para Freud, as defesas do ego não bastam para explicar os insucessos terapêuticos. Como ressalta o editor da tradução inglêsa das Obras Completas, em todo o artigo Freud chama a atenção para a natureza constitucional, biológica ou fisiológica dos fatores que entravam o tratamento, tais como a pulsão de morte, a quantidade relativa da força pulsional e determinadas alterações do ego.1

Embora considere o repúdio à feminilidade no contexto do complexo de castração - algo inexplicável do ponto de vista apenas biológico - Freud, no texto citado, não insere a noção de bissexualidade na teoria das relações objetais, nem leva em conta a questão das identificações e posições edípicas. Voltado para a concepção da etiologia constitucional dos fatores adversos à eficácia terapêutica de seu método, parece reaproximar-se da visão biologizante de Fliess ao afirmar o que recusara antes, a saber, que o sujeito recalca o elemento contrário ao seu sexo.

Quando se refere à manifestação do repúdio à feminilidade na mulher, não fala de inveja do falo mas de inveja do pênis. Como vimos, diz que a mulher tem a esperança de receber da análise um órgão masculino. Sabemos que é em função do valor simbólico atribuído ao órgão masculino que Freud diferencia o pênis do falo; porém, como indicam Laplanche e Pontalis no Vocabulaire de Psychanalyse, coube à psicanálise contemporânea, e mais precisamente a Lacan, estabelecer, de maneira mais sistemática, a diferença entre o órgão masculino e sua função simbólica.2

Vale lembrar aqui a afirmação feita por Freud em Mal estar na civilização (1930):

A teoria da bissexualidade ainda está cercada por muitos pontos obscuros, e não podemos deixar de sentir como um sério impedimento na psicanálise o fato de que ainda não tenha sido descoberto nenhum elo com a teoria dos instintos.3

Em Análise terminável e análise interminável, Freud expõe inúmeras dúvidas e grandes hesitações, particularmente no que diz respeito à relação entre fatores constitucionais e adquiridos, entre teoria metapsicológica e prática clínica. Podemos ver no reconhecimento do aspecto inacabado de sua reflexão a marca de sua genialidade e um convite à continuidade de sua démarche criativa. Usando a expressão de Winnicott, ao falar de seu desconforto quando tentava aplicar a teoria psicanalítica clássica - construída a partir da clínica da neurose - a suas experiências clínicas, diria que Freud, no texto de 1937, deixa transparecer sua percepção de que "havia algo errado em algum lugar".

Winnicott inaugurou, em Londres, uma experiência nova em psicanálise: a de um pediatra psicanalista acostumado a receber as mães com seus bebês, ao mesmo tempo em que se dedicava à pesquisa do tratamento analítico com pacientes psicóticos. Tal condição mostra-se rica de consequências teóricas. Um novo tipo de relação entre o bebê e sua mãe é tematizado: uma relação mais arcaica e fundamental, diferente da relação edípica. Para Winnicott, a relação edípica não explica todas as patologias, nem mesmo, a rigor, é suficiente para explicar a neurose. Por ser o desenvolvimento emocional um processo, o que ocorre no início exerce influência no que se segue.

A partir de sua clínica tornou-se atento a um novo fenômeno: a freqüente dissociação entre os elementos masculino e feminino, sendo qualquer um deles expelido da personalidade, e não apenas o elemento contrário ao sexo biológico, posição defendida por Freud logo que Fliess lhe propôs a relação entre a bissexualidade e o mecanismo de reacalque. A dissociação, diferentemente do recalque não resulta do conflito entre instâncias. Ela é um mecanismo de defesa arcaico, que tem a ver com a maneira como a mãe, identificada a seu bebê, segura-o e manuseia durante os cuidados corporais. A importância da dissociação, na clínica, levou Winnicott ao estudo dos elementos masculino e feminino artificialmente dissecados, isto é, apresentados em estado puro. É desse estudo que passaremos a tratar.

 

Masculino e feminino em Winnicott

O texto que serve a meu propósito é um trabalho lido por Winnicott, em 1966, perante a Sociedade Britânica de Psicanálise: "Sobre os elementos masculinos e femininos ex-cindidos (split-off)". Sua publicação, entretanto, só se deu em 1971, quando, ao publicar O brincar & a realidade, Winnicott o insere no artigo "A criatividade e suas origens".

No referido texto, ele afirma que um menino pode apresentar um potencial inato de elemento feminino mais forte que uma menina; esta, por sua vez, pode possuir fraco potencial de elemento feminino. Sem negar o fator hereditário, suas idéias sobre a bissexualidade são inseridas em uma teoria da constituição do ser humano que leva em conta a teoria dos instintos4 e das relações objetais, em que o fator ambiental e a dependência absoluta do bebê são, no inicio, de grande importância.

Tentarei mostrar como a noção de bissexualidade, em Winnicott, comporta um importante deslocamento em relação às idéias de Freud. Em vez da oposição masculino-fálico-ativo versus feminino-castrado-passivo, ele distingue as relações que se dão a partir dos impulsos sexuais daquelas que resultam da primeira identificação com o objeto.

Para Winnicott, as concepções clássicas da descoberta e utilização do objeto resultam da observação do elemento masculino puro; uma relação que tanto pode ser ativa como passiva. Para ele, ativo e passivo são duas facetas de um mesmo processo. O elemento masculino puro diz respeito ao erotismo ligado a zonas:

É nesse sentido que falamos de impulso instintivo na relação do bebê com o seio e com o amamentar e, subseqüentemente, em relação com todas as experiências que envolvem as principais zonas erógenas (...).

Outra característica da relação objetal do elemento masculinopuro é que essa relação pressupõe a percepção do objeto como entidade separada. Em outras palavras, tal relação se dá quando o ego já dispõe de uma organização que lhe torna possível dotar o objeto da qualidade de ser não-eu. A satisfação dos impulsos acentua a separação do objeto, de modo que o bebê, capaz de sentir satisfações instintuais, já pode experimentar a cólera que resulta da frustração.

O elemento masculino faz (excita, agride, satisfaz ou frustra), o que significa, igualmente, deixa que ajam sobre ele (se deixa excitar, agredir, satisfazer ou frustrar). São essas as experiências do elemento masculino.

Para Winnicott, os analistas deram uma atenção especial ao aspecto instintual do modo de relação de objeto, sem levar em conta um tipo de relação que não se estabelece a partir de qualquer impulso instintual. É a essa relação, negligenciada pela psicanálise, que ele chama de relação do elemento feminino puro, uma relação que se dá no sentido de uma identidade com o objeto. Não com o objeto do impulso instintual, mas com o objeto ainda indiferenciado do sujeito.

Enquanto o elemento masculino faz, o elemento feminino é, diz o autor, explicando que não se trata ainda da experiência de satisfação ou frustração, mas da mais simples e fundamental de todas as experiências: a experiência de ser, base indispensável para o sentimento de um eu que tem continuidade no tempo e no espaço, o sentimento de um si mesmo (self). "Quando o elemento feminino descobre o seio", diz Winnicott, "não é o objeto que ele descobre, mas sim o si mesmo (self) que ele encontrou". Não podemos deixar de ver aí, uma aplicação de sua teoria do objeto subjetivo, um objeto ainda não repudiado como fenômeno não-eu.

A identidade primária com o objeto exige uma estrutura mental mínima presente desde o nascimento, podendo porém surgir um pouco antes ou um pouco depois dele. Ela inaugura todas as demais experiências de identificação que se seguirão. Tanto a identificação projetiva como a introjetiva originam-se dessa área em que cada um é o mesmo que o outro. Mais tarde, o uso dos mecanismos de projeção e introjeção já supõe um grau de desenvolvimento em que os elementos feminino e masculino se encontram mesclados.

No texto citado, Winnicott apresenta duas ilustrações de cisão dos elementos masculino e feminino. Em uma delas aplica sua teoria da dissociação à personalidade e ao caráter de Hamlet, tal como foram delineados por Shakespeare. Os elementos masculino e feminino da personalidade do príncipe conviviam em harmonia, expressando uma personalidade rica e bem dotada. Depois do assassinato do pai, dá-se uma dissociação em sua personalidade, levando-o a relacionar-se apenas por meio do elemento masculino.

Segundo Winnicott, Hamlet procura falar da sua dissociação. A primeira linha do solilóquio - "Ser ou não ser?" - retrata-o em busca de uma alternativa para a idéia de "ser". Seu estado psíquico alterado, porém, só lhe oferece uma alternativa banal: o "não ser". Dissociado, ele passa a adotar uma conduta sadomasoquista que não o conduz a parte alguma. Tendo deixado de lado o tema do ser, volta-se para o tema do fazer, ou deixar que ajam sobre si, quando indaga: "É mais nobre na mente sofrer / Os golpes e as flechas da ultrajante fortuna / Ou pegar armas contra um mar de dificuldades / E, se lhes opondo, findá-las?"

A dissociação e a expulsão do elemento feminino retira de Hamlet sua capacidade de se identificar com o outro, pois, como vimos, é sobre o elemento feminino que se fundamentam todas as identificações. Sua agressão a Ofélia é a expressão de uma personalidade alterada pela dissociação.

Segundo Winnicott, a peça de Shakespeare tinha a solução para o problema de Hamlet, uma vez que mostra qual era a natureza do seu dilema: uma dissociação dos elementos masculino e feminino de sua personalidade. Mas Hamlet não podia ver essa peça. A peça por ele encenada para a corte, onde o assassinato do pai pelo tio é representado, só lhe serve para trazer para a vida real seu elemento masculino desafiado pela tragédia.

Os opostos ser/não ser, excludentes na tragédia shakespereana, se transformam, na versão winnicottiana, em complementariedade entre o ser e o fazer, condição para o ato criativo.

 

Etiologia da dissociação

É no contexto das primeiras relações com o objeto que Winnicott encontra a origem da dissociação entre os elementos masculino e feminino.

Como personalidade total, a mãe dispõe dos elementos masculino e feminino. Falando da mãe em termos de seio, Winnicott distingue o seio que é do seio que faz. O seio que faz, seio masculino, é ativo ou passivo e estabelece relações pulsionais. A mãe, enquanto seio que faz, faz algo ao bebê ou deixa que ele lhe faça algo.

O seio que é, seio feminino, se identifica com o bebê. Enquanto seio que é, a mãe é o bebê. Vem daí sua capacidade de um manejo sutil dos cuidados maternos visando atender às necessidades do seu filho. São esses cuidados que possibilitam a experiência de onipotência do bebê. O bebê ignora a existência do objeto como entidade separada. Ele é a mãe.

O fundamento da experiência de ser depende de um tipo especial de provisão materna quando o bebê se encontra em um estado de dependência absoluta. Para realizar bem sua tarefa, a mãe precisa ser capaz de identificar-se com seu filho de tal modo que o bebê seja, para ela, um objeto subjetivo.

Em correlação com o desenvolvimento do seu filho, a mãe dá início ao processo de desilusionamento do bebê (perda da ilusão de onipotência). Vale lembrar que, para Winnicott, a experiência ilusória é positiva e constitutiva. É a partir deste momento que o objeto começa a ser percebido como separado, tendo início a distinção entre excitações que provêm dos impulsos instintivos e excitações que provêm do meio ambiente. Só a partir de então faz sentido falar de experiência do elemento masculino.

Segundo o comportamento da mãe, a experiência do elemento masculino do bebê pode ser de satisfação ou de frustração, enquanto que a experiência do elemento feminino será a experiência de ser ou de mutilação da sua capacidade de ser.

Se a mãe não tem um seio que é (se seu elemento feminino se encontra dissociado e expelido de seu eu total), o bebê será incapaz de ser e de adquirir o sentimento de si mesmo. Prejudicada sua capacidade de ser, o bebê utiliza a dissociação como defesa contra as invasões do ambiente.

 

A integração dos elementos masculino e feminino e o final da análise

A relação entre a integração dos elementos masculino e feminino e o final da análise é apresentada, por Winnicott, a partir de fragmentos da análise de um paciente que, embora já tivesse se submetido a outros tratamentos analíticos, um deles com duração de vinte e cinco anos, relutava em parar a análise por considerar que algo não havia sido atingido.

Em seu caderno de Notas, Winnicott (1958, pp. 41-43) redige uma sessão do primeiro ano de análise, em que o paciente diz sentir algo enrolado de maneira muito apertada entre as pernas, o que lhe causa sensação de desconforto nos órgãos genitais e de incapacidade para urinar. Uma grande quantidade de material apresentado em sessões anteriores levou Winnicott a dizer-lhe que ele comunicava, em termos físicos, como sua mãe lhe transmitira, quando ele ainda era bebê, que, do ponto de vista dela, ele era uma menina. (O paciente era o segundo filho, e as atitudes dos pais sempre indicaram que eles teriam preferido uma menina. Havia indicações, provindas da análise, de que a mãe o segurava e tratava como se não percebesse que ele era um menino).

Winnicott sugere ao paciente a hipótese de que sua mãe lhe arrumava as fraldas de maneira apropriada a um bebê do sexo feminino, talvez como uma toalha higiênica, o que lhe tirava a liberdade para urinar, e que se ele tivesse nascido e vivido na floresta, certamente tudo teria sido diferente. Conta Winnicott que o paciente entendeu o sentido de sua interpretação: chega à idéia de um menino a urinar livremente e, pela primeira vez, embora fosse casado e tivesse família, sente o pênis como algo que lhe pertencia.

O tema do self feminino do paciente reaparece no tratamento, deixando Winnicott perceber que suas interpretações a respeito das relações instintuais, embora feitas com bom fundamento e aceitas, não eram mutativas. Após a aceitação, vinha sempre a desilusão.

Algo de novo, entretanto, ocorre na relação entre Winnicott e o paciente, e é este o fato apresentado na exposição do caso em 1966. Após uma sessão em que a maneira e o conteúdo da fala do paciente lhe sugerem a idéia de inveja do pênis, ele fala para o paciente: "Sei muito bem que você é um homem, mas estou escutando e falando com uma moça. Estou dizendo a ela: 'Você está falando sobre inveja do pênis'".

Segundo Winnicott, a interpretação produziu efeito imediato sob forma de aceitação intelectual e certo alívio no paciente, mas logo em seguida este diz: "Se eu falasse a alguém dessa moça seria chamado de louco". Winnicott explica: "Não foi você quem falou isto para alguém; sou eu que vejo uma garota e escuto-a falar. O louco sou eu". Para Winnicott, o paciente mostrou que entendeu bem o dilema em questão. Diz que se sentia em um ambiente louco e acrescenta: "Eu mesmo nunca poderia dizer (sabendo ser homem): sou uma moça. Não sou louco assim. Mas você disse, e falou para ambas as partes de mim".

De acordo com Winnicott, assumir o papel de louco, na análise, é estabelecer uma relação de identificação primária com o paciente. Através dessa identificação, ele próprio pôde funcionar como um espelho no qual o paciente se viu como uma moça. Era como uma menina que o paciente se via refletido no olhar da mãe. Ao se relacionar com seu analista, um objeto subjetivo para ele, teve uma experiência inédita na análise: o encontro com o si mesmo.

Podemos considerar que a expressão ambas as partes de mim, na fala do paciente, indica sua experiência de integração de partes de sua personalidade até então dissociadas. O elemento feminino puro e expelido do paciente encontra uma unidade primária com o analista, unidade não experimentada antes com a mãe. Daí a afirmação de Winnicott: "Descobri que aqui se encontra um daqueles exemplos de transferência delirante que deixam igualmente intrigados pacientes e analistas".

Considerando que o fato surpreendente, nessa análise, não provinha da apresentação de algum material novo mas de sua atitude e da capacidade do paciente para usar a interpretação, afirma Winnicott: "O paciente sentiu que podia ver agora que sua análise deixara de achar-se sob a sentença da interminabilidade".

Mais tarde, em nota redigida em torno de 68/69, escreve: "O notável que aconteceu foi que a minha manipulação da transferência em termos de ser um analista louco, libertou-o desta terrível fixação à psicoterapia.(...)".

Lembrando mais uma vez que as idéias sobre elementos masculino e feminino foram inseridas, por Winnicott, em seu artigo "As origens da criatividade", eu diria que falar do término da análise é falar de sua meta, ou seja, do restabelecimento da capacidade criativa do paciente, danificada pela doença. O sopro primeiro da experiência criativa está na experiência de onipotência absoluta do bebê, possibilitada pela mãe: a experiência de ser tem continuidade na experiência do fazer criativo, compartilhado. A possibilidade de um final para o tratamento analítico não pode ignorar a importância da integração dos elementos feminino e masculino da personalidade. "Depois de ser - fazer e deixar que ajam sobre você. Mas primeiro ser" diz Winnicott ao concluir seu artigo.

 

Referências bibliográficas

Laplanche, J. e Pontalis, J-B. 1967: Vocabulaire de Psychanalyse. Paris, PUF.         [ Links ]

Freud, S. 1930: "Mal-Estar na Civilização", in Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, cap. XXI.

Freud, S. 1937: "Análise terminável e análise interminável", in Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, cap. XXIII.

Winnicott, D.W. 1958: "Nada no Centro", in Winnicott 1994, cap. 10, pp. 41-43.

_____ 1994: Explorações psicanalíticas - D. W. Winnicott. Porto Alegre, Artes Médicas.

_____ 1994[1968-1969]: "Resposta a Comentários", in Winnicott 1994, cap. 28, pp.148-150.

______ 1975[1971]: "A Criatividade e Suas Origens", in Winnicott 1975[1971], cap. V, pp. 95-120.

______ 1975[1971]: O brincar & a realidade. Rio de Janeiro, Imago.

 

 

1 Freud considera, na obra citada, que cada ego está dotado, desde o início, com disposições e tendências individuais. As peculiaridades psicológicas de famílias, raças e nações, inclusive em sua atitude para com a análise, constituem provas irrefutáveis de que traços deixados pelo desenvolvimento humano primitivo estão presentes na "herança arcaica".
2 Segundo Laplanche e Pontalis, "a expressão inveja do pênis concentra uma ambigüidade, talvez fecunda, que não deveria ser suprimida por uma distinção esquemática entre, por exemplo, o desejo de gozar de um pênis real de um homem no coito, e a inveja de ter um falo (como símbolo de virilidade)".
3 O uso da palavra instinto obedece à tradução consultada.
4 O uso da expressão "teoria dos instintos" não se justifica por um problema de tradução de sua obra. Em Natureza Humana Winnicott aproxima, do ponto de vista das demandas instintuais, os seres humano dos animais, colocando a capacidade de elaboração imaginativa das funções corporais como o grande divisor de águas entre uns e outros.