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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.1 São Paulo jun. 1999

 

TRADUÇÃO

 

O caso da Dra. Cobling1

 

The case of Dr. Cobling

 

 

Medard Boss

 

 

O quadro clínico

A paciente, a quem chamaremos Dra. Cobling, cresceu na atmosfera de uma comunidade rigorosamente ascética, caracterizada por uma excessiva preocupação com a mortificação da carne e com tudo o que a ela se relacionava. Uma auto-imagem extremamente rígida, inculcada desde a sua infância, impunha-lhe total abnegação e ilimitado sacrifício ao dever. Sob imposições cruéis, em virtude de sua excepcional inteligência, por uma indomável vontade e uma resoluta autodisciplina, conseguira chegar à direção médica de um importante sanatório psiquiátrico, o que lhe exigiu a superação de consideráveis dificuldades externas. Durante muitos anos, havia se sacrificado, sem limites, a serviço dessa instituição, cujos benefícios eram amplamente aproveitados por outros. Nesse processo, entretanto, havia se desgastado tanto que, aos trinta e seis anos – um pouco antes do início da análise –, estava à beira de um colapso total. Como era de se esperar, sofrera desde a juventude repetidas crises depressivas com vários meses de duração, que os médicos atribuíram a distúrbios endógenos. Todavia, até certo ponto, tinha, de alguma maneira, conseguido superar essas crises sem assistência externa. Um ano antes do início da análise, tinha perdido seu idoso pai. Desse momento em diante, começou a piorar de forma evidente. Sua vida interior sofreu também um extremo empobrecimento: tornou-se incapaz de qualquer tipo de sentimento, até chegar a uma espécie de petrificação espiritual; não conseguia mais pensar, era incapaz de reter ou captar o que lia; perdeu toda a iniciativa e toda a capacidade de concentração, podendo ficar horas a fio fitando fixamente o espaço, vazia de pensamento e fora de qualquer noção de tempo. Sofria de insônia e tensão. Com muita dificuldade, conseguia exercer apenas as atividades rotineiras devido à sua surpreendente força de vontade e com a ajuda de fortes sedativos. Um acentuado tremor das mãos, fino e rápido, e uma dilatação máxima das pupilas evidenciavam um alto nível de ansiedade. A própria paciente relutava em admitir esses fatos. Uma estranha compulsão ao suicídio dominava-a, tornando-se quase irresistível devido à insistência da idéia. Estava, sem dúvida, em um estado pré-psicótico altamente precário. Quando começou a análise, o mero esforço exigido para dominar os impulsos autodestrutivos tinham exaurido tanto a sua força física, que ela mal podia andar.

Inicialmente, o terapeuta encorajou a paciente a parar de levar o seu orgulho e a autoviolentação a tais extremos e a admitir sua incapacidade para trabalhar, permitindo-se, por uma vez, dar-se ao luxo de não trabalhar. Tendo seguido esse conselho, mal desistira de suas atividades profissionais, desligando-se, portanto, do último vestígio do seu modo de viver anterior, os primeiros sintomas psicóticos manifestos começaram a aparecer. Em plena luz do dia, rostos e um rebuliço de “máscaras elétricas” deformadas começaram a mover-se diante de seus olhos. Inicialmente, essas figuras tinham as feições daquelas senhoras rabugentas com quem convivera durante a juventude e que eram companheiras de sua mãe. (Figs. 1 e 2.) Logo após, visões sinistras de pregadores sectários, que ela havia conhecido tão bem, conjuravam-se a fim de atormentá-la. (Fig. 3.) A dança dessas máscaras deformadas tornou-se mais caótica e frenética. A fig. 4 capta um momento dessas danças selvagens e rodopiantes.

 

Figura 1

 

Figura 2

 

Figura 3

 

Figura 4

 

Entretanto, não só a “visão” da paciente foi afetada por elementos estranhos e misteriosos, também a sua “audição” não era como antes. Dizia a seu psiquiatra que os mais simples sons tinham um significado misterioso: o zunido de um avião distante, o estrondo de uma motocicleta passando pela rua, o cair dos pingos de chuva sobre o telhado, o rangido da cadeira quando o psiquiatra se mexia. Ouvia, o tempo todo, presságios ameaçadores de um desastre iminente, de uma catástrofe pendente e horripilante. Podia sentir o mundo prestes a entrar em dissolução. “Eu não consigo fazer mais nada, a não ser escutar ansiosamente cada som até que ele tenha sumido. Esses sons me consomem totalmente. Todo o meu ser está concentrado nos meus ouvidos, e estou tão comprimida neles que meus ouvidos chegam literalmente a doer; meus músculos temporais e da mastigação e o meu pescoço ficam tensos como pedras.” Esta era a sua própria descrição.

Algumas semanas depois, a paciente queixou-se de que havia um murmúrio de beatas no ar. “Elas estão dizendo”, dizia a paciente, “que eu sou má, que sou uma mulher de rua e uma prostituta”. A paciente tentou insistentemente defender-se dessas severas acusações, chegando até a colocar cera nos ouvidos. Porém, as vozes das beatas sempre venciam. Logo ela também começou a queixar-se de ser perseguida por homens.

Uma noite, a paciente telefonou para o terapeuta. Mal ousava cochichar no bocal do aparelho. Explicou que não podia falar mais alto porque as beatas tinham interceptado seu aparelho e podiam ouvir. Preferia escrever o que iria acontecer exatamente à meia-noite, e colocaria o que havia escrito diretamente na caixa do correio do analista. O seguinte registro, tendo como título “Importantes Documentos Altamente Secretos” foi o que ele encontrou:

“A invasão será à meia-noite. E estou preparada. Vou ficar acordada. Hoje à tarde eu vi algumas das tropas de ataque deles, disfarçados em motociclistas, e usando grandes óculos vermelho-alaranjados, como se fossem máscaras.

Quem são eles? Acho que pertencem aos vermelhos, pelo menos a essa categoria, mas vindos do espaço. Eles podem se transformar em seres tão minúsculos como piolhos para se infiltrar através de rachaduras nas paredes; mas estou alerta e tenho cuidado com eles, especialmente nos cantos e debaixo da mesa. Já ouvi algumas batidas e sons que são seus sinais secretos. Preparada, então, fiquei olhando no espelho por algum tempo. O meu rosto está morto. Isso é bom. Eles podem acreditar que eu esteja morta, até que eu tenha tempo para ver como eles são. Talvez eu me junte a eles mais tarde. Penteei e escovei bem meu cabelo. É uma boa preparação. O cabelo protege a cabeça – o cérebro. Quando escovei o cabelo, tive uma vaga noção de outros rostos atrás desta minha máscara morta.

Agora, você e os outros psiquiatras estão tentando me impedir de sobreviver a essa invasão. Vocês estão me dizendo que tudo isso é um produto de minhas forças inconscientes reprimidas; os outros me dizem para controlar a minha imaginação ou perguntam quem eu penso que sou com as minhas idéias megalomaníacas.

Seus estúpidos. É que simplesmente vocês perderam a sensibilidade interior para perceber os sistemas de Geiger e Radar deles, ou a capacidade de enxergar as suas formas dissimuladas . É necessário ter um certo treino. É como perceber escorpiões assim que se entra em um quarto.

Talvez eu me junte a eles a fim de proclamar ao mundo o poder; um poder que nos invadirá, mais forte do que qualquer mente humana possa imaginar, um bilhão de vezes mais forte que a energia atômica.

O curto sono era negro comparado com esta nova realidade que, entretanto, ainda não se desenvolveu em todos os detalhes e em toda sua extensão: o poder de penetrar nos segredos mais profundos e ocultos do Universo. Isso possibilita um poder maior que o de Deus. Essa é uma questão para teólogos, mas talvez eles dêem algumas dicas. Deus começou algo que não pode mais controlar, teólogos constróem sistemas de pensamento para salvar a sua cara; Ele, voluntariamente, limitou o seu poder ao dar ao homem o livre arbítrio; Ele está em guerra com Satã e um dia Ele o destruirá completamente, no dia da vitória.

Mas eu sei de algo muito mais importante e abrangente em suas conseqüências; após a invasão estar concluída, quando o poder do Universo puder ser livremente usado, então, será possível ser maior que Deus, porque se estará acima do bem e do mal, quando isso nos invadir completamente, então nós seremos tão poderosos e grandiosos como Deus, ou mais fortes ainda. A reação em cadeia irá nos encher de uma energia que os cientistas humanos ainda não conhecem. Não será preciso dormir ou comer.

O poder dos invasores não é perigoso? Eles são realmente destruidores e quem luta com eles se destrói. Mas eles não são inteligentes. Portanto, você faz amizade com eles e conhece os seus segredos. Isso anula seu poder de dominação. A finalidade desse poder ainda não foi revelada.

Boss ficará sabendo disso porque, embora a sua percepção seja limitada, ele tem um certo entendimento e uma disposição para aprender, e sinto que temos certas coisas em comum. Ainda há alguns teólogos anêmicos e beatas por aqui, tentando descobrir o que está acontecendo. Portanto, eu não posso contar por telefone. Eles estão interceptando a linha. É desnecessário entrar em uma luta aberta com eles, no momento, uma vez que eles já estão fadados a morrer.”

 

2. O desafio da paciente

No início, o psiquiatra esperava poder falar racionalmente com essa inteligentíssima paciente e colega, mesmo em sua psicose, usando o método de “persuasão” de Dubois. Ele tentaria fazer com que a paciente se afastasse dos horríveis fenômenos visuais e auditivos, chamando-os de meras alucinações sem nenhuma realidade. Ele chegou até a dar um passo a mais, em seu esforço racional, e classificou as expressões alucinatórias de distúrbios metabólicos nos tecidos cerebrais. Acrescentou que se a paciente quisesse ter provas de sua explicação, bastaria examinar as curvas bastante agitadas do seu eletroencefalograma.

Para espanto do médico, a paciente simplesmente riu dessas explicações naturalistas e, desdenhosamente, deu de ombros. “Como se poderia pensar” – retrucou ela insolentemente – “que uma simples percepção ou pensamento humano, seja comum ou incomum, pudesse ser inteligivelmente derivado de processos fisiológicos do metabolismo corporal, de quaisquer funções nervosas ou das assim chamadas ‘atividades nervosas superioras’ que acontecem simultaneamente?” E ela continuou perguntando: “como o médico conseguia visualizar tal transformação dos processos físicos em fenômenos imateriais e mentais? Talvez como um tipo de evaporação mágica?”

O médico retrucou que não era exatamente isso, a fim de salvar a situação. Dizendo-lhe de outra forma, afirmou que o metabolismo fisiológico no sistema nervoso central e os fenômenos mentais podem ser vistos como dois aspectos diferentes de uma mesma coisa. Enquanto a fisiologia aborda as funções do sistema nervoso central em termos de espaço e tempo, a psicologia os estuda enquanto vários fenômenos subjetivos, que são, entretanto, somente os reflexos subjetivos de processos fisiológicos. Para fortalecer a sua posição, comparou esse reflexo subjetivo com o reflexo das ondas luminosas de um objeto, criando uma imagem sobre uma chapa fotográfica.

O psiquiatra estava realmente orgulhoso de sua explicação científica, uma vez que a lera recentemente em um dos mais modernos e importantes livros de medicina psicossomática. Mas, logo depois, teve de render-se novamente, pois a paciente perguntou-lhe: “De que natureza deveria ser o córtex cerebral a fim de que – como tecido orgânico material – pudesse compreender e manter relações desveladoras de sentido com o mundo externo? Ademais, em que deveriam os processos fisiológicos se refletir subjetivamente? Talvez na consciência de um sujeito? Mas de que natureza deveria ser tal sujeito a fim de que pudesse possuir uma consciência? E poderia o doutor explicar o que é consciência e onde ele acha que a consciência humana pode ser encontrada? Talvez dentro da cabeça ou em algum outro lugar? Era essa consciência que acabara de comparar com a chapa fotográfica? Entretanto, será que alguma chapa fotográfica já foi capaz de perceber o que nela se reflete e identificá-lo com a coisa que é?”

Após o fracasso de suas interpretações fisiológicas, o psiquiatra recolheu-se inteiramente na psicologia pura. Admitiu que as alucinações de sua paciente não eram simplesmente nada. Entretanto, afirmou que elas não correspondiam a uma realidade externa, mas representavam apenas uma realidade interna puramente psíquica, consistindo em emoções ocultas e tendências da própria paciente. Essas realidades psíquicas internas estavam sendo projetadas das camadas de seu inconsciente sobre objetos externos.

Infelizmente, o conhecimento psicológico do médico foi recebido de uma forma ainda pior do que a explicação fisiológica de sua psicose. Ela precipitou-se furiosamente sobre ele: “Não me venha novamente com estas baboseiras psicológicas tentando transformar em ficção estes espiões e motociclistas; dispondo deles como meras alucinações e projeções do meu inconsciente ou qualquer outra realidade psíquica. De qualquer maneira, o que vocês, psiquiatras, sabem da realidade? Nada, absolutamente nada. E depois, vocês continuam e subdividem ordenadamente algo sobre o qual vocês não têm nenhuma noção. Ficam tagarelando sobre subjetivo e objetivo, sobre uma realidade psíquica interior e uma realidade real, vinculada ao mundo exterior, pretendendo jogar uma contra a outra como se a primeira fosse real e a última puramente fictícia e alucinatória. Mas o que é que você quer realmente dizer com a palavra alucinação, considerando que você ignora totalmente o que é a assim chamada realidade não-alucinatória? Palavras, nada mais que palavras, e atrás delas nada, precisamente nada, nenhum conhecimento real de qualquer espécie”.

Como poderia a psicologia tradicional do médico, em toda sua fragilidade, resistir a tal ataque frontal constituído de objeções totalmente incontestáveis, apesar da esquizofrenia da adversária? De qualquer maneira, o psiquiatra viu-se obrigado a empreender uma reavaliação de todo o seu modo de pensar.

Primeiramente, buscou ajuda estudando as psicologias européias modernas, baseadas em concepções de um sujeito ou de uma pessoa. Entretanto, ele não conseguiu achar qualquer descrição ou elucidação da natureza deste tal “sujeito” ou “pessoa”, que o capacitasse a entender o simples fato de que a sua paciente podia perceber e vivenciar alguma coisa, sendo essa “alguma coisa” algo significativo, não importando se essa experiência fosse ou não de caráter alucinatório. Em outras palavras, o psiquiatra continuou tão ignorante quanto antes, em relação a qualquer entendimento real sobre a possibilidade de um encontro desvelador de sentido de um sujeito com um objeto, ou de uma pessoa com uma coisa, ou com um outro ser humano.

Obviamente, o médico teve que abandonar as psicologias tradicionais, todo subjetivismo e personalismo, e ver a paciente em si. Certamente, nunca teria tido a coragem de fazer algo tão simples, e aparentemente nada científico, se não tivesse tido acesso, pouco antes, aos ensinamentos da Análise do Dasein que muito o impressionaram com seus insights fundamentais sobre a verdadeira essência da existência humana. A partir desse momento, os desenhos da paciente começaram a ocupar o lugar mais importante do seu pensamento. Era extraordinária a forma como surgiam. Como se aparecessem espontaneamente, máscaras feias e diabólicas emergiam sobre um pedaço de papel branco, sem a interferência da paciente. “Elas surgem”, a paciente dizia, “de nenhum lugar, aparecem repentinamente, emergem de algum lugar por trás do papel de desenho, e de repente elas estão lá, olhando para mim. Os desenhos sempre começam do ponto central, entre as sobrancelhas. Depois disso, aparecem os olhos. Algumas vezes, não há qualquer contorno da cabeça, delimitando esses primeiros traços e diferenciando-os do universo à sua volta, ou talvez do nada, do qual emergem.”

Em seguida, o médico recordou a primeira aparição das assim chamadas alucinações auditivas da paciente. Nesse aspecto também tinha esperança de poder penetrar mais profundamente em sua condição psicótica. Ela tinha que se concentrar para poder ouvir de forma mais atenta possível o menor ruído, como se pairasse no ar uma mensagem pronta para ela, predizendo um inominável horror, algo repleto de desastres. Esse algo, pavoroso e indizível, soterrava-a na forma de uma crescente tensão, invadindo intensamente seus ouvidos, até que, finalmente, ficasse reduzida a eles. O ouvido e a região corporal circundante tornavam-se doloridos e espasticamente contraídos. Na verdade, não era nada específico, mas um horror indescritível, e uma iminente transformação de tudo em nada que, finalmente, libertaria o murmúrio dos pingos de chuva, que a repreendiam com insinuações sobre a sua devassidão.

Se formos honestos, devemos admitir que em nenhuma dessas experiências imediatas da paciente encontramos qualquer evidência que permitisse supor a real presença de representações instintuais primárias dentro dos níveis mais profundos da psique, e afirmar que elas se projetariam a partir de uma espécie de recipiente intrapsíquico chamado “inconsciente” para fora e sobre os objetos do mundo exterior. Se deixarmos de assumir, a priori e no lugar da observação, a presença de entidades psíquicas na paciente, sobre as quais (conforme já admitimos) não temos nem nunca teremos qualquer conhecimento (caso contrário não seríamos obrigados a usar o termo “inconsciente” quando nos referimos a elas – “representações inconscientes” ou “inconsciente individual e coletivo”, por exemplo), então veremos que a realidade da paciente indica algo bem diverso daquilo que a psiquiatria e a psicologia têm nos feito acreditar, até o presente momento.

Veremos que alguma coisa se acerca da paciente, dirige-se a ela de nenhum lugar e de todo lugar, mas nunca do interior de uma psique individual. Este algo se comunica emergindo do papel de desenho, da grande distância de um avião noturno, dos ruídos da rua, do ranger da cadeira do analista. Algo lhe está sendo enviado, tenta ser admitido em sua consciência e aí aparecer. É algo do seu futuro que se dirige a ela, vem ao seu encontro, busca ser incluído em seu presente. Esse “algo”, para essa paciente, é, sobretudo, o âmbito de fenômenos que se revelam em modos erótico-corporais de relacionamento humano com o mundo. É verdade que, em primeiro lugar, foram as severas beatas sectárias e os pregadores ascéticos que pediram admissão à consciência da paciente embora nas assim chamadas alucinações. Entretanto, justamente por proibirem, as alucinações se referem exatamente à coisa que proíbem, por exemplo, à esfera erótica-corporal da vida humana. Como a paciente nunca fora capaz de apropriar-se dessas possibilidades eróticas de amor, não tinha sido capaz de aceitá-las como realmente pertencentes ao seu self responsável. Portanto, um relacionamento livre com todos estes fenômenos do nosso mundo, mais especialmente com um homem enquanto parceiro sexual amado, permanecera inatingível. Desde a sua infância, fora rigorosamente treinada para se alienar dessas possibilidades de relacionamento, que todavia constituíam parte de sua existência. Elas haviam sido consideradas incompatíveis com a dignidade humana, pecaminosas, perigosas. Fora estimulada a ser pragmática, desapegada, desapaixonada e objetiva, inteiramente ocupada em perseguir de forma competente objetivos que só poderiam ser atingidos por um exercício sistemático de pensamento. O resultado inevitável foi uma exorbitante sobrecarga das suas faculdades intelectuais.

Nosso encontro livre e aberto com certos âmbitos do mundo humano pode ser enormemente obstruído por imposições de nosso obstinado egoísmo, ou por uma cega e extrínseca pressão alienadora, imposta por uma atmosfera inadequada em nosso ambiente de infância. Porém, nenhum ser humano pode jamais silenciar completamente o desafio de tudo o que está destinado a aparecer e vir a seu ser à luz de uma dada existência. Assim, os âmbitos físico-sensuais do mundo humano que não tinham sido admitidos livremente por nossa paciente, importunavam somente sua audição e visão, reclamando cada vez mais insistentemente por sua consciência, embora de modo extremamente restritivo. Tudo o que, até esse momento, a paciente recusara-se a ver, escancarava-se e a encarava, na forma de máscaras “alucinatórias”, ou a espionava de modo “paranóico” nos mais íntimos recessos de sua vida.

Animado pelos insights que obtivera com essas observações, o terapeuta sentiu-se capaz de arriscar uma abordagem nova com essa paciente ostensivamente irada e alucinada. Ele admitiu com delicadeza: “Você tem toda razão. Não tem sentido dar a uma realidade prioridade sobre outra. Seria bastante fútil de nossa parte sustentar que esta mesa diante de nós é mais real que os seus espiões sobre as motocicletas, pelo fato de iludirem minha percepção e serem perceptíveis somente a você. Por que não deixamos que ambos existam como os fenômenos que revelam ser? Então, só há uma coisa digna da nossa atenção. É necessário considerar o conteúdo significativo pleno de tudo o que se desvela para nós. Se você continua encontrando espiões em cada esquina, e se um psiquiatra tentasse reduzir essas percepções a meras alucinações fictícias ou a invenções da sua imaginação, se ele tentasse imputar-lhes somente uma realidade psíquica como projeções do seu inconsciente, então eu teria que concordar com você que ele estaria falando coisas sem sentido, sem darem qualquer contribuição para a nossa compreensão das suas experiências. Pois, quem é capaz de determinar o que significa basicamente ”psíquico”, e o que é imaginação? Qual é a natureza das imagens das assim chamadas imaginações ou ilusões, e onde se espera encontrá-las dentro de uma “psique”? Mas talvez você concorde comigo se eu disser que vejo a realidade dos seus espiões primordialmente no que eles fazem. E o que eles fazem senão espionar? Mas espionagem ocorre somente como forma de preparação para a guerra; portanto, somente quando existe um confronto entre dois inimigos entrincheirados e quando uma parte quer aniquilar a outra, ou pelo menos conquistá-la e dominá-la. O que aconteceria se você permitisse a tudo que existe o direito de existir e se mantivesse aberta a tudo o que quer vir até você, mesmo que a estrutura de sua existência antiga se tornasse muito pequena e tivesse que ser despedaçada e morrer? Por que não tentar desistir de toda esta luta e de defender-se? Deixe que os espiões venham e dê-lhes pleno poder para fazer o que desejam, e apenas veja o que acontece”.

 

3. A descoberta do terapeuta

Logo após, foi bastante espantoso ver como a paciente se sentia compreendida por completo nas profundezas de seu mais íntimo ser e como depositava uma indestrutível confiança em seu terapeuta. Em função disso, seguia seus conselhos com uma energia e perseverança incomuns. Suportou, com uma abertura devota e cordial,, tanto as beatas com seus insultos (“Sua mulher assanhada, sua prostituta”), quanto os espiões com suas armas secretas. Eles a torturavam, perfuraram seu corpo com correntes elétricas de alta voltagem, serravam suas pernas na altura dos joelhos. Conseguiu agüentar tudo isso graças a sua confiança no terapeuta.

O psicanalista, por sua vez, foi recompensado com uma descoberta totalmente nova. Primeiramente, a paciente pôde sonhar que tinha que assumir a direção do serviço de neurologia de um grande hospital. Lá, encontrou uma menininha com meningite. No sonho, a paciente percebeu de imediato que a única esperança de salvar a menina seria através de uma prolongada drenagem do fluido cérebro-espinhal. No estado de vigília, a paciente, surpreendentemente, viu um paralelo entre essa drenagem do sonho e a drenagem analítica à qual estava se submetendo. Dois curtos aspectos desse sonho chamaram a atenção do analista. Ele notou que aquela que no sonho se encontrava tão doente e tão necessitada de tratamento era uma criança e que, além disso, a doença localizava-se em sua cabeça: ela sofria de meningite. Ele se absteve temporariamente de comentar o fato. No entanto, pouco tempo depois, rostos de meninas começaram a se misturar com as percepções óticas de seu estado de vigília e, em seguida, rostos de sadios bebês começaram a aparecer. (Figs. 5 e 6.)

 

Figura 5

 

Figura 6

 

Para o analista, isso significou um benvindo sinal, indicando as tremendas diferenças entre as máscaras distorcidas e maliciosas dos adultos, e os semblantes das crianças, radiantes de fé e de confiança. Perguntou então cautelosamente à paciente se aquelas crianças, que davam gosto de ver, não pertenciam de certa forma àquela parte de seu mundo que havia permanecido saudável e feliz. Uma vez que ela estava aberta para perceber essas crianças normais, não seria possível presumir que, fundamentalmente, ela também poderia viver como uma criança normal e feliz? Já que essa maneira de comportamento talvez correspondesse a seu self próprio e autêntico, o que aconteceria caso, na análise, ela se permitisse ser essa pequena criança, totalmente despreocupada e sem repressões? Se ao agir assim ela se sujeitasse à regra básica da análise, de dizer tudo, será então que não teria início a necessária drenagem da criança doente de seu sonho? Talvez, dessa maneira, a inflamação de seu cérebro – devida muito provavelmente à estafa intelectual – pudesse também desaparecer.

Permitir que ela fosse uma criança pequena foi o “abre-te Sésamo” que descerrou as comportas que durante tanto tempo haviam impedido que suas verdadeiras potencialidades se expressassem. Era como se ela tivesse esperado por essa permissão durante toda a vida. Toda a fachada de seu antigo modo de vida – os padrões excessivamente conscienciosos de dedicação ao trabalho, de esforço ilimitado para atingir determinados objetivos nela inculcados durante tanto tempo – desmoronou com toda a força de sua prodigiosa vitalidade, dando lugar aos impulsos infantis de chupar os dedos, dar pontapés e gritar. Em casa, ela começou a brincar com seus próprios excrementos, usando-os para pintar enormes folhas de papel de rascunho, que se traíam de longe por seu odor. (Fig. 7.) Dentro da banheira, também besuntava todo o corpo com suas fezes. Inesperadamente, trouxe uma mamadeira para a sessão de análise, que chupava deitada no divã, como se fosse criancinha. A seu pedido, o analista teve que alimentá-la com a mamadeira, enquanto ela permanecia encolhida como um bebê no divã.

 

Figura 7

 

Para dar continuidade à terapia, era vital permitir-lhe a mais completa liberdade de ação em sua “encenação” infantil, como também aceitá-la totalmente e sem reservas, exatamente como ela se revelava. Tudo estaria perdido se o analista, através de um mínimo gesto ou tom, insinuasse qualquer aversão, ou até mesmo sorrisse um tanto indulgentemente à vista da mamadeira. Caso fizesse isso, ele teria, inevitavelmente, assumido o medonho papel daqueles pais ascéticos, privando para sempre a paciente da possibilidade de encontrar seu próprio caminho.

Ela tinha certeza de que se lambuzar com as fezes era, de alguma forma mágica, extraordinariamente benéfico para o universo. Estava apenas esperando ficar menstruada para também poder se besuntar com seu sangue. Sentia que isso provocaria a liberação total da fissão atômica.

Se não trouxe um benefício para o universo, essa permissão trouxe-o pelo menos para a paciente. Até esse momento, ela tinha sido atormentada por dores de cabeça intoleráveis, como se a parte superior de seu crânio estivesse aberta, e o cérebro exposto repleto de dor. Agora sua cabeça estava muito leve, livre de pressão. Pela primeira vez, sentia-se completa e inteiramente bem consigo mesma. Mas esse contentamento infantil durou apenas alguns dias. Era muito evidente que a atitude permissiva do terapeuta, combinada com a virtual redenção a ela concedida por esse benéfico intervalo infantil, estava começando a evocar na paciente sentimentos de amor e gratidão por ele. Ocasionalmente, enquanto sugava a mamadeira, levantava os olhos e olhava para o analista. Em tais momentos, o brilho caloroso de uma criança pequena substituía o olhar vago e vazio que havia em seus olhos. Esses sentimentos envolviam-na completamente. Eles não tinham relação alguma com seus estudos altamente especializados e nem podiam ser relacionados com a atitude altruísta rígida e recatada que sua educação reforçara. Portanto, só podiam ser vivenciados como algo alarmantemente estranho, perigoso e pecaminoso. Como conseqüência, seguiu-se uma série de experiências muito penosas e perturbadoras.

Ele havia comprado um ingresso para assistir a um concerto e, na noite, da apresentação, deparou-se com uma sofisticada senhora vestida de preto enquanto esperava em um ponto de táxi, a caminho do auditório. Podia sentir o olhar desdenhoso daquela mulher sobre ela, o que lhe provocou uma estranha sensação. Não queria perder a mulher de vista, mas ela confundiu-se com a multidão. Quando desceu do táxi, sentiu alguém puxá-la pelo braço. Virou-se para ver quem era, mas não havia ninguém. Devia ter sido a diabólica senhora vestida de preto. Chegando ao teatro, aquela mesma senhora sentou-se a seu lado, a mesma que tanto a atemorizara no caminho. A paciente ficou horrorizada, rígida, e não conseguiu ouvir praticamente nada da música. Assim que começou o concerto, teve certeza de que, no minuto seguinte, aquela senhora, ou o maestro de seu pódio, dariam o sinal para o destruição do mundo. Fugiu do local com todas as suas forças. No dia seguinte, uma amiga de outra cidade quis visitá-la, mas a paciente negou-se a vê-la. Estava convencida de que a amiga estava implicada em uma trama que almejava destruí-la.

No outro dia, a paciente foi ao restaurante costumeiro. Teve de usar óculos escuros, pois supunha que os malfeitores haviam feito algo a seus olhos, fazendo-a ficar quase cega. Assim que experimentou a comida, teve uma forte dor de estômago. Para ela, era um sinal de que havia sido envenenada. Então, as aparições das máscaras, que a tinham deixado em paz no período em que estava em seu paraíso infantil, retornaram. Novamente, o analista pediu-lhe que desenhasse os rostos. Rapidamente, entre as sombrias feições daquelas velhas tias puritanas e rostos demoníacos deformados, começaram a aparecer os primeiros esboços de uma bonita mulher, sedutora e sensual, disfarçada com uma máscara preta nos olhos (Fig. 8.) A própria paciente não havia notado esse elemento novo e o analista chamou sua atenção para esse detalhe deliciosamente saudável.

 

Figura 8

 

Ela desculpou-se por ter negligenciado esse detalhe, dizendo que nenhum de seus desenhos realmente emanava dela, mas que somente fluíam através de suas mãos. Quando desenhava, nunca tinha a impressão de algo particular que pudesse ser transmitido ao papel. Disse, confirmando assim suas afirmações anteriores, que era como se rostos viessem em sua direção de algum lugar do espaço, emergindo da branca extensão do papel à sua frente. Sua mão começava a desenhar, e os rostos começavam a aparecer e a olhá-la do bloco de desenho. Não podia dizer de onde eles vinham. Juntos, a paciente e o analista encontraram um nome para essa bonita máscara: “Dama do Carnaval”. O terapeuta ousou perguntar se este novo rosto não poderia representar uma esfera da vida da qual ela sempre havia se excluído (o lado relacionado com as potencialidades eróticas e femininas de mulher adulta) e que agora estaria tentando se revelar. Logo depois, foi invadida por rostos de meninas, nebulosos e indefinidos, parecendo abertos a tudo, e que sua mão transmitiu automaticamente ao papel. A seguir, para sua grande surpresa, figuras de prostitutas esboçaram-se no bloco de desenho (Figs. 9, 10 e 11.)

 

Figura 9

 

Figura 10

 

Figura 11

 

Como acontecera com as anteriores maneiras infantis de comportamento, esta abertura de si mesma para um âmbito feminino mais maduro trouxe uma enorme sensação de alívio. Experimenta uma grande onda de novas energias, começa a fazer excursões, cursos, consegue ler novamente, fala com estranhos sem medo, dorme ininterruptamente oito ou nove horas por noite, sem qualquer medicação pela primeira vez em vinte anos. Mas o poder tirânico de uma mentalidade familiar parental ascética provavelmente não aceita uma derrota com tanta facilidade. Assim, após um curto período de 5 dias, a paciente começa a mover-se furtivamente, queixando-se que as beatas estavam novamente atrás dela, sussurrando-lhe que ela era uma mulher das ruas, e que a primeira coisa que se sabia era que ela se masturbaria em público.

Apesar da evidência da resistência (e depois de um sonho na mesma sessão apontar-lhe o caminho) o analista aventurou-se a dar um novo passo.

A paciente sonhou que uma colega sua havia passado por uma série de tratamentos de choque de insulina, durante os quais ela sofre um ataque epiléptico, sentindo-se depois especialmente bem. O terapeuta lembrou-a que, estando acordada, ela muitas vezes expressara o desejo de receber um choque de insulina, para que pudesse sofrer um ataque, uma explosão induzida de forma médica, farmacologicamente determinada, na qual ela pudesse se soltar em um selvagem abandono passional, mas onde fosse mantida a impessoalidade, e sua responsabilidade completamente eximida. Por que é que ela não podia, mesmo em seus sonhos, deixar-se levar voluntariamente, pelo menos uma vez, por um verdadeiro acesso de delírio louco? Por que é que ela só podia proporcionar-se algo artificial e planejado, esse choque insulínico substitutivo? E além disso, ela não ousava nem mesmo assumir a responsabilidade por esses ataques induzidos de insulina. Ela os renegava, imputava-os a outra pessoa, deixando que sua colega fosse convulsionada por eles.

Como uma reação esclarecedora a essa questão, veio a primeira explosão impulsiva: “Cale a boca, seu idiota. Eu quero gritar”. “Por que você não faz isso, então?”perguntou o analista. “Se eu gritasse do jeito que quero, pessoas viriam e pensariam que alguém estaria sendo morto”, foi o que ela respondeu.

“Você realmente acha necessário submeter-se à opinião dos outros a esse ponto tão extremo? Isso não seria levar longe demais o cuidado e a cautela para com os outros?” perguntou o terapeuta.

“Sim nunca fiz nada em minha vida, a não ser aquilo que os outros esperavam de mim”, ela admitiu. “Nunca tive coragem de agir espontaneamente, não da maneira que eu sentia.”

O terapeuta deu-lhe um pouco mais de coragem, dizendo: “Tão terrivelmente boa, sempre.” Depois disso, a paciente realmente conseguiu dar um grito meio sufocado.

O terapeuta ousou dar um incentivo final: “Muito bem. Quase tão alto quanto uma criança de verdade”.

“Cale a boca”, ela gritou novamente, dessa vez mais zangada que antes. Disse então, depois de um breve silêncio: “Eu quase me sinto um pouco excitada sexualmente agora”.

“Quase?” retrucou ceticamente o terapeuta. Ela começou a se debater no divã, mas teve que se levantar, pois a sessão havia terminado.

Ao ir embora, disse: “Não me reconheço mais. Quem sou eu?”

“É para isso que você veio à análise”, respondeu o analista.

Dois dias depois, a paciente iniciou a sessão dizendo que tinha se alimentado com a mamadeira naquela dia (coisa que vinha fazendo há meses) para fugir das sensações sexuais em sua pélvis. “Gostaria de me desculpar pelo meu comportamento na última sessão, por ter-lhe dito cale a boca.”

O analista opôs-se a essa apreensão e a essa manifestação de decoro perguntando: “Você acha realmente que tal desculpa é necessária entre nós? Além disso, fui eu quem lhe pediu que fosse absoluta e francamente aberta e honesta aqui”

Logo após, a paciente espreguiçou-se relaxadamente e disse: “Eu não me sentia tão forte e em tanta harmonia comigo mesma há décadas”. Não havia mais qualquer vestígio de sentimentos de estar sendo pressionada ou de alucinações auditivas no últimos dois dias. Ela tinha conseguido encontrar pessoas nas ruas, nos restaurantes e no teatro, de forma bastante diversa de seus sintomas psicóticos. Mas as risadas duraram pouco. Durante a sessão, a sensação de bem-estar foi abruptamente interrompida por um silêncio apreensivo e tenso. Após uma longa pausa, disse com hesitação que sentiria um impulso para se despir e para sair correndo nua pela rua. Chocara-se enormemente com esse impulso: ”Vou me sentar”, continuou, “uma sensação horrível que vem de baixo toma conta de mim, se eu sentar, posso forçá-la melhor a voltar para baixo. Percebo que anatomicamente sou perfeita lá embaixo, mas tenho a sensação de que ali existe senão um grande e repugnante buraco".

Deixou a sessão analítica muito tensa e deprimida. Durante a noite, telefonou ao analista, queixando-se: “Existe em mim uma tensão amedrontadora, é mais intensa do que qualquer um possa agüentar. Eu simplesmente não consigo agüentar isto”. O médico aconselhou-a a livrar-se um pouco dessa tensão desenhando. Mais tarde, em um segundo telefonema, a paciente gritou ao telefone: ”Quero rasgar meu ventre com uma faca de entalho. Quero talhar minhas artérias e sugar meu próprio sangue. Só de pensar nisso fico com água na boca”. O terapeuta foi rapidamente a seu encontro. Encontrou-a sentada sobre sua cama, com uma expressão perturbada. Sua chegada mal foi notada, ela ouvia atentamente aqui e ali, como fazem normalmente esquizofrênicos alucinados. Recuava alarmada ao mínimo som. Finalmente, deixou claro ao analista que cada som tinha novamente um significado misterioso.

Esse pavor intolerável de um desastre recém-iniciado e o inominável final cataclísmico exigiam uma intervenção imediata: “Como alguém poderia melhorar”, perguntou o terapeuta, “sem que o antigo mundo, neurótico, entrasse em colapso durante o processo? Ele é muito estreito e rígido para sobreviver. E se esse tipo de destruição da antiga prisão neurótica está acontecendo com você, será isso tão pavoroso? Estar tão cheia de apreensão como você está, e nada ouvir exceto morte e destruição, pode apenas significar que a pessoa ainda está aprisionada no erro de acreditar que seu próprio mundo, egocêntrico e neurótico, é a única possibilidade de existência e que, quando ele dá sinais de desmoronar, isso significa a chegada do juízo final. Para o ser real, essencial que é você, o que está acontecendo agora está muito longe de ser o fim. É uma mera modificação ocorrendo na sua forma de se mostrar.”

Ainda um tanto cética, mas readquirindo confiança, ela conseguiu dar um sorriso pálido. Mas isso durou apenas um breve momento. Depois, seu olhar caiu sobre uns desenhos sanguinários, que ela havia espalhado pelo chão durante a noite (fig. 12), solicitando novamente sua atenção por completo, e ela se encolheu para dentro de si mesma.

 

Figura 12

 

“Ah”, observou o terapeuta imediatamente, “você pensa que deve ter medo desses impulsos sanguinários. Bem, esse é apenas um segundo erro de sua parte. O suicídio é sempre apenas um erro, no sentido de utilizar um recurso inadequado. Você se sente compelida a efetuar um corte físico em seu corpo. É um ímpeto para ver seu sangue correr, porque você ainda não ousaria abrir seu coração e deixar seus sentimentos fluírem. Você gosta de mim porque eu tento apoiá-la”.

Essas explicações foram rapidamente seguidas por uma enorme diminuição da sua tensão. “Se você diz isso, talvez eu possa tirar o nariz de toda esta sujeita e respeitar um pouco mais livremente. Mas pode alguém gostar realmente de você? Isso não é pedir demais? Se eu ficar dependente de você, não serei um peso?”

“E uma pequena criança, cada recém-nascido, não tem legítimo direito ao cuidado dos pais? E você, que no seu mais íntimo ser é uma pequena criança, não teria um duplo direito de ser protegida, por ter sido dolorosamente privada do que tanto necessitava tempos atrás, no momento certo, quando era fisicamente pequena? Não seria correto você ser agora amplamente recompensada por isso?”

Para fazer essas afirmações, o terapeuta recorreu ao material biográfico que ela lhe havia fornecido, que revelavam o fato de que sua mãe fora alguém muito eficiente, tendo transformado sua própria casa em uma hospedaria. Estranhos necessitados, oitenta ou noventa a cada vez, eram acolhidos e cuidados na casa. Era somente para seus próprios filhos que a mãe não tinha tempo. A paciente ficou tocada com esse convite. No dia seguinte, trouxe sua mamadeira novamente, e deixou-se de novo ser uma criança pequena. Seu próprio comentário foi o seguinte: “Quando estou assim, sou realmente eu mesma. Agora não tenho mais nenhum barulho ou vozes em meus ouvidos. Foi muito exaustivo ter que ouvir tal dínamo de sons vindos do além”.

Por duas semanas nada mais ocorreu, exceto que a paciente deitava-se na posição fetal e era alimentada com a mamadeira pelo analista. À noite, dormia maravilhosamente bem, oito ou nove horas seguidas. “Esta permissão de ser uma criança pequena é como uma base firme para mim, um chão sólido onde eu posso me estabelecer. Se você não me tivesse possibilitado isso na semana passada, sei que teria enlouquecido para sempre.

Realmente necessito ter uma base sólida como essa antes de ousar deixar-me envolver por sentimentos mais intensos. E eu preciso saber que posso voltar sempre para essa base, caso as coisas se tornem muito difíceis. Ou terei que ficar sem isso de uma só vez logo que crescer? Ao dizer isto, seus olhos abriram-se em uma expressão horrorizada.”

O terapeuta confortou-a imediatamente. “Não se preocupe em crescer. Apenas se permita ser exatamente o que você é, tão inteiramente quanto possível e por quanto tempo quiser. Se seguir esse conselho, o amadurecimento vai se dar por si mesmo, no devido tempo”.

Ao ouvir essas palavras, o medo surge novamente em seu rosto. Depois dessa fase terminou a sessão com um misto de espanto e de apreensão: “Ah, agora esses sentimentos por você estão aflorando novamente”.

Na noite seguinte, teve um sonho muito obsceno e incestuoso com seu pai. Falou do sonho, no dia seguinte, de forma tão casual e desafetada que era de se suspeitar. Além disso começou, repentinamente, a discutir um assunto médico. Algumas horas depois, telefona em um estado desesperador: “Quando eu estava indo embora hoje, tive uma sensação misteriosa. Quando estava falando aquelas coisas médicas, não era eu que estava lá. Quem estava falando era uma enorme mulher estranha, parada de pé a meu lado. Eu me perdi novamente naquele papel tão artificial de médica adulta, e o pior de tudo é que não conseguia mais vê-lo, apesar de você ter me dado a mão quando fui embora. Tive a sensação de ter repentinamente perdido a ambos, meu pai e minha mãe. Eu estava novamente tentando enganar-me, e fazer o papel do grande adulto. Depois da sessão, fui à cidade comprar algumas roupas bonitas para poder ficar atraente para alguém, mas havia um homem parado diante da loja para a qual me dirigi. Ele olhou para o prédio e escreveu algo em uma caderneta. Sei que escreveu algo a meu respeito e sobre o que pretendia fazer, e ele tinha que relatar isso à polícia. Fiquei terrivelmente assustada e corri atabalhoadamente para casa. Então aquela terrível tensão voltou a meus ouvidos e também aquelas dores de cabeça na base do crânio, como se ela fosse explodir. E ouço os barulhos de dínamo novamente, e tenho que escutar cada carro que passa para descobrir o significado pavoroso que ele tem. Estou toda presa a meus ouvidos novamente!”

Ajudado por sua experiência anterior com a paciente, o analista pôde dizer: “Talvez essas sensações que você teve com relação a mim, e que você teve por seu pai durante o sonho, assim como seu desejo de ter roupas bonitas e de ser atraente, ainda sejam um tanto grandes demais e incontroláveis para você. Não acho que a pequena menina, que você realmente é, já possa começar a enfrentar essas sensações. Talvez seja melhor você não fazer nada, ou querer começar a fazer nada, ou querer começar a fazer algo, sem antes perguntar à pequena menina dentro de você se está bem para ela”. Assim que ela se permitiu ser uma criança novamente, a sensação de segurança voltou e as manifestações psicóticas desapareceram.

Mais ou menos nesse período, os desenhos bidimensionais da paciente e suas pinturas foram substituídas por uma modelagem tridimensional. No início, ela se mantinha continuamente obrigada a modelar uma figura feminina na forma de um rígido crucifixo. (Fig. 13.) Assim que foi terminada, essa modelagem transformou-se (aparentemente de forma espontânea em suas mãos) em uma graciosa dançarina. (Fig. 14). Repentinamente, a cruz e a dançarina lutavam por um lugar em seu mundo. Como ela poderia resolver esse conflito por meio da argila? A solução veio somente bem mais tarde, em um exercício de meditação planejado pela própria paciente, quando ela repentinamente se deu conta de que Deus penetra em tudo, mesmo em uma dançarina prostituta.

 

Figura 13

 

Figura 14

 

Mas, por dezenas de vezes, estas faces opostas ainda se alternaram: a face de uma criança feliz, livre de sintomas, e a psicótica atormentada. A fase psicótica podia ser prevista, com uma precisão empírica, toda vez que era confrontada com o âmbito de sua feminilidade sensual e emocionalmente amadurecida. A mais veemente exacerbação esquizofrênica que a paciente iria enfrentar durante sua análise foi por exemplo antecipada por três sonhos que pressagiavam essa confrontação. No primeiro sonho, uma serpente rodeava-a. A cobra aproximava-se “como um gato, permanecendo ao redor de uma tigela de leite quente, da qual ela não se afastaria enquanto não tivesse devorado tudo. Eu estava terrivelmente assustada. Pensei que a única coisa a fazer seria pular para escapar desse círculo. Pulei, mas a cobra parou de serpentear e foi atrás de mim. Investiu contra mim várias vezes, e cada vez eu tinha que saltar. Depois ela estava sob mim, e rodopiava, ficando novamente atrás de mim. Eu tinha que ficar pulando para evitar que ela arremetesse contra mim. Ela manteve esse jogo comigo, até que acordei, por absoluto cansaço e medo”.

O terapeuta perguntou se era tão surpreendente para a paciente que ela estivesse tão cansada o tempo todo e sem forças para qualquer tipo de trabalho, se tinha que usar toda sua energia nesse incessante pular fora do caminho da serpente, a mensageira do campo sensual e terreno de sua vida.

“Sim!” ela continuou ansiosamente, “mas não seria horrível se serpentes começassem a sair de mim, ou se eu mesma me tornasse uma cobra? Por acaso você seria capaz de me dizer como é que é eu poderia me comportar então?”

“Por acaso não seria característico de sua parte”, interveio o terapeuta, “que mesmo quando você se imagina como uma serpente, a primeira coisa que lhe vem à mente é determinar qual o comportamento correto?”

O segundo sonho estava ligado ao ditador Hitler, que veio a seu quarto. Ele lhe era particularmente repulsivo, devido à sua testa baixa, que lhe dava uma aparência estúpida e selvagem. Para puxar assunto, a sonhadora começa a falar a respeito de estudos estatísticos sobre a incidência de doenças mentais na Alemanha. O sonho acaba nesse ponto. O terapeuta pergunta por qual razão, dentre todos os homens possíveis, somente um ditador inferior tinha permissão para entrar no seu mundo dos sonhos. Além disso, notou como era curioso o fato de que o único relacionamento com ele fosse através de uma conversa científica.

Sim, os homens ainda são totalmente incompreensíveis para mim”, concordou a paciente. “Por exemplo, eu nunca ousaria tomar aulas de dança . Morreria de medo se alguém me convidasse para dançar. Só me sinto à vontade com meus colegas se puder falar de medicina com eles.”

No terceiro sonho, ela viu irromper um incêndio numa loja. Era a loja onde levara suas roupas de verão para serem remodeladas. Algumas horas depois de acordar desse sonho, teve uma severa urticária, que se alastrou por todo o corpo, mas que atingiu especialmente a parte interna das coxas. O analista registrou em silêncio essa comunicação física, e depois recapitulou o sonho, comentando: “Algo pegou fogo e está queimando; algo que, de certo modo, está relacionado com seu desejo feminino de ser atraente. Mas, em primeiro lugar, não foi você mesma que queimou com seu desejo de atrair. Isso seria ousar demais. O sonho não mostra você queimando. Somente a loja, isto é, algo anônimo. Em segundo lugar, o fogo da vitalidade aparece para você apenas na forma de uma conflagração destrutiva, um perigo”.

Infalivelmente, a fase alternada de bem-estar podia ser restabelecida trazendo a paciente de volta ao âmbito pré-sexual de uma criança. Mas essa experimentação estava longe de ser um jogo científico. Era fundamentalmente a única e indispensável medida terapêutica pela qual alguém poderia tornar acessível a ela uma genuína maturação, uma lenta “reunião” de todas as pontencialidades de sua vida, e a integração das mesmas em um ser maduro, independente e autoconfiante. Só era necessário expor gradativamente o que era pedido a ela, no sentido de sustentar suas exposições aos ataques das áreas da vida inerentes aos fenômenos do amor adulto.

No início da fase final da terapia, apareceu um sonho que apontou um novo caminho à paciente. A sonhadora entrou em sua casa, que era grande e espaçosa, mas vazia, parecendo demolida e ameaçada de desabar. Inicialmente, a paciente estava desanimada. Depois ela notou que dois trabalhadores estavam ocupados com as reformas. Para sua grande surpresa, reconheceu-os como sendo ninguém menos que os artistas Michelângelo e Picasso. Nesse momento, sentiu que tudo ficaria bem.

Após esse sonho aventurou-se, em sua vida acordada, a dar importância a seu considerável talento para o desenho, levando-o a sério e apreciando-o. Iniciou seu treino como escultora. Ousou também, progressivamente, apropriar-se das pontencialidades sensuais e eróticas da vida, que até então tinham sido tão repelidas. Isso ocorreu como em qualquer terapia bem sucedida que usasse a linha analítica clássica. Novamente foi um sonho que, de forma impressionante, iluminou o terapeuta com relação a esse desenvolvimento. A paciente relatou da seguinte forma tal sonho: “Sou uma conferencista universitária e estou para dar uma palestra a uma classe de mulheres universitárias estudantes de medicina, sobre o Amphioxus lanceolatus. Assim que entro no anfiteatro, percebo imediatamente que já tinha dado aquela conferência para todas aquelas alunas. Não fazia sentido repetir a palestra. Então, começo a rir, e de repente todas estão rindo comigo. Nós todas esquecemos a conferência. Instaura-se uma atmosfera cordial e aconchegante, e nós todas conversamos alegremente a respeito da vida sexual”.

É verdade que, no início, no próprio sonho, a relação com os primórdios rudimentares da vida sexual (Amphioxus lanceolatus é o mais primitivo dos vertebrados) é ainda remota, intelectual e objetivada, resultando em um tópico de uma conferência científica. Mas a paciente abandona rapidamente esta velha atitude de “já ter estado aqui antes” e abre-se consideravelmente para a esfera da sexualidade.

Um ano antes, uma aproximação nessa área do nosso mundo teria, sem dúvida, precipitado uma nova recaída em severas alucinações psicóticas. Como testemunha disso, há o sonho com Hitler, para quem a paciente deu uma palestra. Esse sonho foi seguido de uma severa crise psicótica.

O presente sonho, pelo contrário, trouxe a esperança de que brevemente a paciente seria capaz de, também estando acordada, relacionar-se com os fenômenos erótico-sensuais de uma maneira aberta e livre, e que esse âmbito da realidade também apareceria em sua existência sob a forma de fenômenos correspondentes a nosso mundo cotidiano, e nunca mais como coisas “alucinadas”. Desde esse sonho, ocorreram sete anos de observação, e durante tal período jamais reapareceu qualquer vestígio de sintomatologia esquizofrênica.

No final de sua última sessão analítica, a paciente perguntou espontaneamente ao seu médico: “O que, em seu trabalho, realmente me curou?” Imediatamente, ela mesma deu a resposta: “Em primeiro lugar, foi o simples fato de poder telefonar e encontrá-lo a qualquer hora, dia ou noite, sempre que eu achasse necessário. Por muito tempo não acreditei que alguém pudesse estar sempre a meu lado. Lentamente, aprendi a confiar em você, pois dezenas de experiências provaram que você não me desapontaria. Somente então ousei viver através de você, por assim dizer, até sentir minha própria força crescer. Desta crença em sua confiabilidade, nasceu uma crescente fé no mundo todo, que eu nunca sentiria antes. Anteriormente, eu vivia apenas pela minha força de vontade, e estava sempre me puxando para cima pelas cordas de minhas próprias botas, até ficar suspensa no ar. A confiança em você deu-me a coragem de enraizar-me interiormente no verdadeiro fundamento de minha existência. O segundo fator terapêutico eficiente, igualmente importante, foi sua compreensão de meus delírios e alucinações paranóicos, o fato de você levá-los a sério. O reconhecimento de seus significados e valores genuínos capacitou-me a perceber a totalidade de meu próprio ser e a unidade entre eu e o mundo”.

Pode-se alegar que muitos bons terapeutas e psicanalistas teriam se conduzido com tal paciente intuitivamente de maneira similar, sem estarem familiarizados com a abordagem daseinsanalítica. Não negamos que isto possa ocorrer, embora o autor, de sua parte, provavelmente estaria completamente perdido com este caso se a compreensão daseinsanalítica do homem não o tivesse ajudado a tempo. De qualquer maneira, pelo menos até o presente momento, somente os insights daseinsanalíticos foram capazes de nos proporcionar um entendimento explícito da eficácia dessas técnicas intuitivamente aplicadas, que vêm mais ao encontro das genuínas necessidades de nossos pacientes do que aquelas mais tradicionais. Dessa forma, a compreensão daseinsanalítica nos torna mais independentes de nossos ocasionais vislumbres intuitivos, aumentando assim, consideravelmente, a confiabilidade de nosso trabalho.

 

 

Tradução: Duda Carvalho Araújo
Revisão: Martha Gambini

 

 

1 Tradução do cap.1, "A Patient Who Taught the Author to See and Think Differently", de Boss, Menard 1963 Psychoanalysis and Daseinanalysis. New York, Basic Books.