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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.1 São Paulo jun. 1999

 

RESENHA

 

 

Scarlett Marton

 

 

Haar, Michel 1999: La philosophie française entre phénoménologie et métaphysique. Paris, Presses Universitaires de France. ISBN 2-13-049752-7

Metafísica se diz de várias maneiras. É a tentativa de conhecer o que não é passível de ser conhecido, o que se põe além dos limites da experiência sensível, no entender de Kant; consiste em inventar um mundo verdadeiro, essencial, imutável e eterno, em detrimento deste em que nos encontramos aqui e agora, de acordo com Nietzsche; diz respeito a um pensar que, por não se colocar a pergunta pelo Ser, acaba por encerrar-se nos parâmetros exclusivos do ser do ente, na ótica de Heidegger.

Nenhuma dessas posições, no entanto, ganha adesão unânime dos filósofos franceses contemporâneos; nenhuma delas parece capaz de agregar Sartre, Merleau-Ponty, Derrida, Michel Henry e Lévinas. Ora, o mais recente livro de Michel Haar persegue o objetivo de mostrar que, por trás da aparente falta de consenso na filosofia francesa contemporânea, existe um pólo aglutinador. E ele reside justamente no fato de ela jamais colocar-se como tarefa empreender a "destruição da metafísica".

Reunindo cinco ensaios de notável rigor analítico, Michel Haar empenha-se, com A filosofia francesa entre fenomenologia e metafísica, em questionar a partir dessa perspectiva a empresa filosófica dos cinco pensadores franceses. Enquanto Sartre e Merleau-Ponty parecem indiferentes à destruição da metafísica, não vendo o interesse que uma tentativa nessa direção possa apresentar, Michel Henry e Lévinas chegam a entender a metafísica de forma extremamente positiva. Concebendo-a como a relação de transcendência pela qual o ente se torna suscetível de acolher o Outro e de, ultrapassando-se, converter-se no Outro, Lévinas desloca-a do terreno teórico para o domínio ético. Julgando que o acontecimento metafísico par excellence reside na imanência da identidade a si, imanência essa que o sentimento revela, Michel Henry pensa a afetividade do sujeito por si mesmo como o absoluto. Por outro lado, se Lévinas retoma o termo metafísica num sentido não-crítico, Derrida dele faz um uso estritamente pejorativo; e não chega a definir o que entende por metafísica, limitando-se ora a identificá-la com a presença pura ora a remetê-la a um sistema de oposições binárias.

Mas não se detém aí o trabalho de Michel Haar. A estratégia a que ele recorre é tal que, ao perguntar pela relação que os diferentes pensadores entretêm com a "questão da metafísica", termina por investigar os móveis que presidem os seus escritos. É com perspicácia que põe em cena a trama de seus textos, que traz à luz a argúcia de suas elaborações, que revela a astúcia de seus projetos.

Que se retome, por exemplo, o ensaio "Proximidade e distância em relação a Heidegger no último Merleau-Ponty". Nele, o autor analisa duplamente a distância e a proximidade. Seu ponto de partida consiste em questionar as razões que levaram Merleau-Ponty a abandonar a atitude crítica em relação a Heidegger e a dele sentir-se próximo a partir de 1959, com O visível e o invisível. Ainda presente na metafísica pós-cartesiana, a subjetividade persiste em Husserl com a figura do Eu transcendental constituinte. Na tentativa de libertar a fenomenologia desse fardo, Merleau-Ponty acaba por atribuir à subjetividade, sob a forma de propriedades do corpo, o que são os traços do Ser. Na Fenomenologia da percepção, ao descentrar o sujeito, ele é sem dúvida tributário da obra de Heidegger. Contudo, além de não reconhecer tal proximidade, insiste, então, em marcar distância. Mas, aqui, estamos apenas no início do caminho trilhado pelo autor do ensaio em questão. Pois, trata-se para Michel Haar de fazer ver que, embora atraído pelo pensamento do Ser e pela superação da subjetividade, o último Merleau-Ponty não pode impedir que sua ontologia resvale numa metafísica. É, pois, no momento em que se quer próximo de Heidegger que dele mais se distancia.

Que venha à baila, ainda, o ensaio "O jogo de Nietzsche em Derrida". Aqui, o autor examina as dificuldades que a excessiva proximidade de Derrida em relação a Nietzsche acarreta. É certo que o pensador francês se recusa, desde o início, a inscrever o autor de Zaratustra na tradição metafísica, como fez Heidegger. E assim rejeita que a filosofia nietzschiana possa deixar-se aprisionar como mera inversão do platonismo. É certo ainda que tem em Nietzsche bem mais do que referência privilegiada, inspiração ou modelo; a ele jamais aplica a desconstrução, sobre ele jamais faz incidir a suspeita. Sem nunca deixar de poupá-lo, dele toma de empréstimo temas, estratégias, direções. Mas nem por isso se pode dizer que seja nietzschiano. Quem seria, pois, Nietzsche para Derrida? Ora, é justamente esta questão que Michel Haar toma como ponto de partida no ensaio em pauta. Assinalando a ausência, nos escritos do autor da Gramatologia, de um corpo a corpo com a doutrina nietzschiana da origem da linguagem, com a idéia de que na palavra sobrevive algo da experiência corporal, com a genealogia do estilo, ele bem mostra que, para fazer de Nietzsche um filósofo à sua imagem e semelhança, Derrida se vê obrigado a negligenciar a teoria das forças, a filosofia da vida e do cosmos.

Que se lembre, por fim, do ensaio "Sartre contra Heidegger: uma defesa cega da metafísica". Então, o autor começa por perguntar-se por que Sartre procura contrapor-se com tanta veemência a Heidegger, por que procura confrontar cada uma de suas posições filosóficas com as dele sempre no intuito de refutá-las. Esse insistente confronto, essa contraposição persistente, esconderia por um lado uma cumplicidade não admitida; tanto é que várias das teses de O Ser e o Nada encontram inspiração em Ser e Tempo. Revelaria, por outro, um receio oculto; afinal, as conseqüências acarretadas pela destruição da metafísica da subjetividade, empreendida por Heidegger, representam uma ameaça para Sartre. Empenhar-se em fazer ver que, na verdade, o filósofo francês não pôde enfrentar o problema da metafísica, não pôde pôr em questão o primado da subjetividade, é o que faz o autor deste ensaio. Examinando de que maneira se contrariam as concepções que Sartre e Heidegger têm da consciência e do Dasein, de que forma se opõem suas interpretações do nada e da angústia, do outro e da morte, enfim, de que modo se contrapõem as perspectivas da metafísica e da ontologia, ele deixa claro em que medida, neste embate, Sartre se distancia de Heidegger, mesmo quando dele julga estar próximo.

Autor de diversos escritos sobre Nietzsche e Heidegger, Michel Haar a eles recorre como instrumentos de trabalho. A partir deles, questiona as atitudes filosóficas de cada um dos cinco pensadores que examina. Mas não se contenta em pôr em cena Merleau-Ponty e Sartre e Lévinas e Derrida e Michel Henry - e tampouco com fazê-los dialogar com Heidegger e Nietzsche. Investiga ainda como se posicionam em relação à fenomenologia. É desta herança que partem Sartre e Merleau-Ponty; é ela também que obriga Derrida a distanciar-se da física nietzschiana; e, sob outra roupagem, é enquanto "fenomenologia do absoluto" que se faz presente na obra de Lévinas e de Michel Henry, na medida em que entendem ambos que o absoluto - seja a transcendência do Outro ou a imanência da identidade a si - se dá num encontro imediato.

Estes são alguns dos pontos que fazem de A filosofia francesa entre fenomenologia e metafísica um profundo inventário crítico. Se, com ele, Michel Haar conclui pela persistência da metafísica no pensar filosófico francês hoje, através dele, deixa clara sua própria posição. Com a metafísica da subjetividade, por certo, ela não comunga.