SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.1 número2La venerable tradición del progresoSobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.2 São Paulo dez. 1999

 

ARTIGOS

 

"A besta desamarrada..."

 

The unfastened beast

 

 

Róbson Ramos dos Reis

Departamento de Filosofia/UFSM

 

 


RESUMO

Neste artigo, o autor examina a abordagem da ciência e da técnica que foi apresentada por Martin Heidegger no seu curso de inverno de 1928, intitulado Introdução à filosofia. A tese central examinada é a de que a ciência e a técnica mostram a impotência originária do ente humano. O conceito de impotência é circunscrito pela determinação concreta da transcendência do Dasein, a cujas determinações negativas acrescenta-se, ainda, aquela que resulta da interpretação ontológica do conceito de jogo.

Palavras-chave: Heidegger, Ciência, Técnica.


ABSTRACT

In this paper the author examines Heidegger's account of science and technology, that is presented in Winter course of 1928 Introduction to Philosophy. The main examined thesis says that science and technology display the primordial impotence of human being. The concept of impotence is circumscribed by the concrete determination of transcendence of Dasein, to which negative determinations adds, yet, that resulting from the ontological interpretation of concept of game.

Keywords: Heidegger, Science, Technology.


 

 

Retornando a Freiburg no ano de 1928, Heidegger1 profere sua primeira Vorlesung no semestre de inverno, na qual a problemática da ciência é retomada em continuidade com a perspectiva de Ser e tempo, porém já com a abertura de novas determinações conceituais.2 O meu objetivo, aqui, consiste em apresentar o desenvolvimento da problemática da ciência no período de transição de sua obra, concentrando-me no texto da mencionada Lição de inverno, no qual surge uma tese sobre a ciência que inclui internamente o fenômeno da técnica. Creio que essa posição pode ser vista em uma passagem registrada no último curso de verão proferido em Marburg. Referindo-se à transcendência do Dasein, Heidegger diz:

Na base desta ultrapassagem, o Dasein está sempre, como dizemos, além do ente; mas certamente de um modo tal que, antes de tudo, experimenta o ente na resistência, como aquilo diante de que o Dasein transcendente é impotente. A impotência deve ser compreendida metafisicamente, quer dizer, essencialmente: ela não pode ser refutada fazendo referência à dominação da natureza, à técnica, que hoje enraivece mundo a dentro como uma besta desamarrada; pois esta dominação é a prova autêntica da impotência do Dasein, que apenas em sua história ganha para si a liberdade. (GA 26, p. 279)

No que se segue, examinarei a abordagem existencial da ciência, que é continuada através da ênfase colocada na negatividade (Nichtigkeit) da transcendência. Ficará delimitado o lugar sistemático em que vigora a tese sobre a natureza da ciência e da técnica. Estarão dados, assim, os elementos que justificam a afirmação de que a técnica é a demonstração da impotência do Dasein. Por fim, concluirei com a qualificação de tal impotência, que deve ser tomada não apenas em relação à constituição ontológica do ente humano, mas sobretudo a partir da determinação da transcendência pelo conceito de jogo (Spiel). A transcendência será vista como o jogo em cujas formações o Dasein está colocado, e em face das quais encontra apoio e preenchimento para sua negatividade, gerando com isto a possibilidade fundamental que instaura ciência e técnica.

 

1. Ciência e transcendência

Com o título de Introdução à filosofia, a Lição trata da pergunta pela essência da filosofia. Essa questão é construída em termos comparativos, concentrando-se nas relações entre filosofia e ciência, filosofia e concepção de mundo (Weltanschauung), e filosofia e história. Esse é o projeto completo da Lição. No entanto, o texto publicado contém apenas as duas primeiras partes, já que a última, de fato, não foi escrita e nem apresentada. Ao longo das exposições, Heidegger retoma elementos da temática ontológica de Ser e tempo, mas também antecipa formulações e tópicos que serão publicados posteriormente.3 Mais relevante, porém, é a retomada da abordagem do fenômeno da ciência, a partir da qual são enunciadas algumas afirmações sistemáticas sobre a técnica.

A questão em torno do caráter científico ou não da filosofia impõe a interpretação da ciência enquanto tal, para cuja explicitação Heidegger ainda mantém a abordagem de Ser e tempo, esboçada como o programa de um conceito existencial de ciência.4 Trata-se de mostrar quais são as condições estruturais instituidoras de um comportamento cujo propósito exclusivo é o descobrimento e a verdade. De um lado, a resposta apresentada mantém a tese do caráter derivado do descobrimento científico, isto é, que tal comportamento é possível a partir de modos mais básicos de comportamento com os entes, os quais, mesmo não sendo teóricos, são descobridores de entes. De outro lado, a ciência é descrita em sua estrutura positiva, o que equivale a dizer que, em seus conceitos fundamentais, toda ciência de objetos adota pressuposições ontológicas sobre os seus respectivos domínios de investigação. O resultado da gênese ontológica é que os atos fundamentais possibilitadores do conhecimento científico devem ser buscados na objetificação e na tematização, que projetam uma identidade ontológica constituída em termos de propriedades e substrato de propriedades. Tal projeção constitui uma derivação da compreensão de ser. Ou seja, os entes não são identificados a partir de sua posição no sistema de comportamentos intencionais (dirigidos a fins práticos), mas a partir de si mesmos, enquanto unidades ontológicas dotadas de propriedades (e capazes de figurar em relações), independentemente das ações intencionais dos homens.5 Em última instância, porém, o comportamento científico é possibilitado pela projeção de ser que acontece na compreensão de ser, que é o traço definitório do Dasein, enquanto transcendente em relação aos entes.

Conseqüentemente, Heidegger ainda busca a ação originária (GA 27, p. 179), que instaura o modo de existir em função do descobrimento e da verdade. No entanto, o conceito lógico de ciência (que a considera apenas em termos de resultados enunciativos) e o conceito proposicional de verdade são qualificados como as faces de um mesmo erro fundamental (p. 49). Uma das implicações desse erro seria o problema da assim chamada crise nas ciências, que é ampliado para além de sua acepção epistemológica, tal como está apresentado em Ser e tempo (§ 3). Haveria tal crise não apenas no que tange à estrutura interna da ciência, mas na relação da ciência com a existência singular, e com a sua posição no todo social e histórico (GA 27, p. 27). Mesmo divergindo das formulações usuais sobre essa suposta crise, Heidegger pretende exibir o seu fundamento no limite interno da ciência, o que somente uma interpretação existencial seria capaz de alcançar. É nesse contexto que surge uma primeira afirmação sobre a técnica, quando é abordado o caráter prático da ciência, manifesto na sua possível utilização. O triunfo da técnica com base nas ciências naturais seria a evidência desta trivialidade. No entanto, tal concepção ainda pressupõe que a ciência seja tomada em termos de resultados utilizáveis. Conseqüentemente, a relação interna entre ciência e técnica não pode ser buscada no plano da aplicação, pois nesse plano se considera apenas o conceito lógico de ciência. Para Heidegger a ciência é em si mesma prática, mas esse traço somente é apanhado pela determinação de sua verdade, o que é possível apenas na interpretação existencial. Além disso, somente uma tal clarificação permite determinar em que medida a cada ciência pertence uma técnica. De qualquer forma, a essência da ciência talvez não possa prescindir da técnica, e, como afirma Heidegger (GA 27, p. 42), uma conseqüência essencial não é a própria essência.

Aparentemente, o exame chega aos mesmos resultados de Ser e tempo. Há um sentido originário de verdade, relativo tanto à condição de descobrimento dos entes, quanto àquilo mesmo que a possibilita: a verdade ontológica. O comportamento científico é possibilitado pelo projeto de ser que acontece na compreensão de ser, e que discrimina os pressupostos ontológicos instituidores do domínio de objetos a ser investigado por uma ciência. Compreensão de ser, entretanto, é a característica estrutural do Dasein, que deste modo é ser-no-mundo e transcendência. Ou seja, é o factum de estar aberto em direção às três possibilidades ônticas fundamentais - relação com os entes subsistentes e disponíveis, relação com outros existentes humanos e relação consigo mesmo - que caracteriza sua transcendência. Desse modo, não apenas devemos reconhecer sentidos de verdade e suas relações de derivação, mas também que a ciência encontra seu limite naquilo mesmo que a possibilita, e sobre o qual não dispõe, nem está apropriada para captar: na projeção de ser instituída pela compreensão de ser do Dasein transcendente.

Não fosse pela ausência da interpretação temporal, estaríamos diante do quadro completo pintado em Ser e tempo. Entretanto, gradativamente novos elementos se fazem presentes. Ao comentar o procedimento genealógico da fenomenologia hermenêutica, que em parte apresenta derivações entre estruturas originárias e derivadas, Heidegger refere-se à impressão de trivialidade que resulta quando se obtém sucesso na expressão da conexão entre a verdade originária e derivada. Suspeitando da possibilidade de que tal conexão pudesse ser conhecida de uma vez por todas, ele afirma que a apreensão de tais relações deve sempre ser renovada, e que com isso se mostra um novo abismo (Abgrund, GA 27, p. 50).

 

2. Compreensão de ser e transcendência: a negatividade do Dasein

As pressuposições ontológicas da ciência repousam na transcendência do Dasein, e é nela que a ciência encontra o seu limite, o seu outro (GA 27, p. 211). Ou seja: enquanto investigação sobre entes, a ciência não pretende a tematização do ser; e enquanto possibilitada pela positividade de um domínio de entes, ela não é capaz de atingir o ente em seu todo (GA 27, p. 212). Aquilo que permite a investigação científica, a abertura do domínio de entes, lhe permanece fechado, e é na base dessa inacessibilidade que uma ciência pode pesquisar (GA 27, p. 224). Esse é um dos sentidos da afirmação de que em todo desocultamento de ser acontece também o ocultamento (GA 27, p. 213). No entanto, a própria transcendência pode chegar a ser tematizada, quando o Dasein desenvolve a possibilidade do filosofar, o que será visto como o acontecer expresso da transcendência.6 Concluindo sua interpretação da ciência, Heidegger antecipa uma posição definida sobre a relação entre ciência e técnica. Sobre o projeto de ser que está pressuposto na ciência, ele afirma:

Em e com tal projeto também já deve subsistir uma relação com o ente, e em verdade uma relação singular, caracterizada pela tendência ao cultivo, à dominação e ao governo do ente. Techne não é uma forma embrionária da episteme, mas é parte essencial dela. (GA 27, p. 225)

Tal afirmação ganha sustentação com a qualificação diferenciada da noção de transcendência. Ao apresentar o conceito de verdade ontológica, Heidegger já afirmara que a transcendência não se esgota no desocultamento de ser (GA 27, p. 209). Compreensão de ser é um momento essencial da transcendência, mas esta não se resume na projeção de ser (GA 27, p. 308).7 Este excedente refere-se ao caráter não indiferente da transcendência. Caso a compreensão de ser seja entendida em termos de um conhecimento neutro de categorias, como um saber a priori de essências e idéias, então a ela pode ligar-se uma impressão de indiferença (GA 27, pp. 326-7). Porém, enquanto ultrapassamento do ente na compreensão de ser, a transcendência perde completamente a sua indiferença (GA 27, p. 326). Mesmo sendo uma propriedade universal do Dasein, nem a compreensão de ser é indiferente, nem a transcendência uma estrutura inofensiva (GA 27, p. 325). Ao mostrar essa determinação da transcendência, não apenas vêm à tona a agudeza e acrimônia do ser-no-mundo, mas sobretudo abre-se o âmbito para situar as afirmações já citadas sobre a técnica e a impotência do Dasein.

As requalificações da transcendência são obtidas a partir de quatro determinações, que sintetizo a seguir.

a) A transcendência como abandono ao ente (Preisgegebenheit). A abertura em relação a si mesmo, aos entes transcendentes, e aos instrumentos e objetos não é uma simples tomada de conhecimento. Há, isto sim, uma entrega, um abandono ao poder superior dos entes (Übermacht). Tal superioridade não apenas engloba as violências da natureza, mas também os poderes e as violências que o Dasein abriga em si mesmo (GA 27, p. 326). Transcender não é a condição indiferente de referido a objetos, mas o abandono à superioridade e ao poder dos entes. Somente assim torna-se possível uma contraposição, um comportamento de disputa com os entes. Com isso pode surgir a possibilidade do sucumbir e do vencer, da segurança e da tranqüilidade, da prosperidade e da dominação (GA 27, p. 326).

b) A transcendência como a condição de estar lançado (Geworfenheit). O abandono ao ente não acontece de forma exterior, mas se dá no atravessamento da potência dos entes. O Dasein possui natureza, não apenas como objeto possível de conhecimento, mas na acepção ampla do conceito, a saber, como aquilo sobre o que não se tem poder de decisão e disposição (GA 27, p. 329). A facticidade do abandono aos entes determina a transcendência como impotente diante do "fato" de já acontecer e da possibilidade de deixar de acontecer (GA 27, pp. 331-3).

c) A transcendência como dispersão (Zestreuung) e singularização (Vereinzelung). A co-originariedade nas três direções do transcender implica a dispersão na multiplicidade de relações. A preponderância em uma delas não exclui as outras, mas determina a necessidade de compromisso e compensação. A negatividade essencial do Dasein está na impossibilidade de decidir-se por apenas uma direção de relacionamento com os entes (GA 27, pp. 333-4). Considerando as duas determinações anteriores, a dispersão acarreta singularização: o ser com outros é limitado a um círculo restrito; o ser com coisas e instrumentos é restrito a um acesso determinado; e o ser consigo mesmo está limitado a possibilidades de autocompreensão e contraposição (GA 27, p. 334). Uma mesma face desta concretização é a limitação da verdade do Dasein, tanto em sentido quantitativo como qualitativo. A tese de que a abertura do ente é em si mesma ocultamento, não verdade, tem um sentido quantitativo e qualitativo. Inicialmente, não sabemos e não conhecemos tudo, e nossos meios para tal são limitados. Esta é uma barreira externa, oriunda da riqueza do próprio ente (GA 27, p. 334). A não verdade qualitativa não é o mero ocultamento, mas a ilusão, o engano, o atordoamento e a cegueira.8

d) A transcendência como des-amparo (Halt-losigkeit) e preenchimento (Erfüllung). A transcendência não contém em si a base, o apoio e a consistência requeridas pelo abandono, pela condição de estar lançado e pela dispersão. O acontecer da existência humana ocorre por meio de uma escolha, o que somente é possível pelo caráter des-amparado da transcendência. Compreensão de ser e transcendência exigem do Dasein a obtenção de apoio e sustentação (GA 27, p. 337). Esse des-amparo não significa um simples vazio, mas é a indicação de preenchimento. Des-amparo na unidade da dispersão, no relacionamento com os entes, é em si mesmo a sustentação de possibilidades de amparo (GA 27, p. 342). Se são atingidas ou não, Heidegger afirma, esta é uma questão subordinada. A abertura e o desocultamento de ser não é o descobrir indiferente dos entes, que seria seguido de uma possível consideração teórica sobre eles. Mais do que isso, trata-se de um estar dominado pelos entes, uma contraposição e disputa nas direções da transcendência (GA 27, pp. 342-3).

 

3. A Weltanschauung, ciência e técnica

Tendo apresentado a transcendência em sua concretude não indiferente, Heidegger volta-se para o problema da Weltanschauung9. O seu objetivo principal é a relação entre filosofia e concepção de mundo. O tema relaciona-se com a questão da ciência e da técnica, pois Heidegger adotará a posição formal de que a ciência somente é possível com base em uma concepção de mundo determinada (GA 27, p. 229). A seguir, destacarei apenas os elementos pertinentes para o tópico em questão.

De um ponto de vista negativo, Weltanschauung não significa uma intuição, reflexão ou observação do mundo, assim como mundo em sentido próprio não é a totalidade dos entes (GA 27, p. 233). Concepção de mundo quer dizer tomada de posição em face do ente em seu todo (GA 27, pp. 233-4). Dasein é Weltanschauung, precisamente porque é transcendência, isto é, busca de sustenção e amparo nas direções em que está aberto para os entes. A negatividade e o des-amparo da transcendência determinam esta noção de Weltanschauung, ou seja, o buscar apoio no ser-no-mundo, segundo as possibilidades delineadas no transcender (p. 237).

Considerada em seu enraizamento no Dasein, a Weltanschauung pode ter formação e elaboração. A concepção de mundo elabora-se diferenciadamente em função da manifestação do des-amparo da transcendência, e de acordo com as maneiras de sua experimentação e interpretação. Heidegger afirma que ela se encontra sob determinadas leis essenciais de seu acontecer (GA 27, pp. 346 e 356). Em particular, as formações de concepção de mundo estão submetidas à degeneração e à substituição (GA 27, p. 346). Duas possibilidades de formação de Weltanschauung são examinadas. Trata-se de uma diferença básica (GA 27, p. 356), em que os dois tipos mantêm relações entre si, e não podem ser separados. A distinção é estabelecida tanto pelo modo como o des-amparo da transcendência é patente, quanto pela direção em que se pretende apoio e amparo.

A transcendência é o abandono ao ente enquanto potência superior (Übermacht) que impera completamente sobre o Dasein. O ente em seu todo é esta potência (GA 27, pp. 357-8). O Dasein está entregue a ela, que o sustenta e ameaça10. O des-amparo pode manifestar-se como desabrigo (Ungeborgenheit), como uma desproteção no abandono aos entes. A essa forma de apresentação do desamparo corresponde um modo de sustentação: o abrigar-se, o conseguir defesa, poder e força (GA 27, p. 359). Ou seja, a sustentanção tem o sentido de submeter-se à potência superior, abrigando-se no ente em sua totalidade (GA 27, p. 359). O amparo é encontrado no próprio ente ultra-potente. Aqui se estabelece a primeira possibilidade fundamental da Weltanschauung: quando o amparo formado possui a natureza do abrigar (Bergung).

Essa concepção de mundo pode sofrer a degeneração, originando a outra posssibilidade: a Weltanschauung como amparar, sustentar (Haltung). Quando o abrigar perde sua função de sustentação, na medida em que se torna serviço (Betrieb), aparece outra possibilidade de encontrar apoio, a saber, no sustentar-se enquanto tal (GA 27, p. 360). Com isso se processa um deslocamento no peso da direção de transcendência, ganhando ênfase o próprio comportar-se do Dasein. O Dasein mantém-se a si mesmo nas possibilidades que apresenta diante de si. Em tal forma, o comportar-se ganha o peso central, mas enquanto comportamento para com os entes que não deixam de possuir a potência (GA 27, p. 368). Nessa formação, o comportamento em todas as direções da transcendência torna-se contraposição, disputa com os entes (GA 27, p. 368). O ente encontra-se descoberto como o que deve ser vencido, dominado, governado (GA 27, p. 368). Se o amparo antes era buscado no abrigar-se na potência superior dos entes, agora o apoio está no próprio sustentar-se, no amparar tomado em si mesmo11.

Com base nessa distinção, é possível mostrar como ciência e técnica são possíveis apenas na última forma de Weltanschauung. Como modos de formação da transcendência, ciência e técnica representam um tipo específico de ser-na-verdade do Dasein. Ou seja, o desocultamento do ser e o descobrimento dos entes obedecem uma diferenciação em cada um dos casos. No primeiro, todo desvelamento dos entes não surge de um investigar e pesquisar: eles não são apropriados em termos de saber e conhecimento (GA 27, pp. 362 e 370). A diferença veritativa discrimina o sacral, por oposição ao profano (GA 27, p. 362), e algo como a ciência não faz nenhum sentido (GA 27, p. 370). Ao contrário, ciência e técnica são possíveis apenas em uma Weltanschauung que adquira a forma do amparar-se na própria sustentação do Dasein.

Com essa nova formação, ocorre também uma mudança na verdade. Na medida em que o ente em sua totalidade aparece como aquilo diante de que há uma contraposição, como o que deve ser dominado, torna-se necessário um conhecimento acerca do que sejam os entes. Um conhecimento sobre como e o que são, independentemente de que possam oferecer abrigo ou não (GA 27, p. 368). Para que seja possível a dominação e o governo, os entes devem ser descobertos tais como são em si mesmos, ou seja, segundo sua constituição e legalidade (GA 27, p. 369). Com esse tipo de Weltanschauung, o Dasein atinge uma postura fundamental diante dos entes, de tal forma que somente então eles podem chegar a ser manifestos em si mesmos. E Heidegger conclui decididamente:

Somente em um tal Dasein, que está determinado fundamentalmente pelo amparar-se a si mesmo, que foi propriamente escolhido e no qual é essencial a contraposição com o ente, pode haver algo assim como pesquisa e ciência. (GA 27, p. 369)

Com isso, a verdade do Dasein submete-se a um desdobramento inaudito. A positividade da ciência pressupõe âmbitos específicos de descobrimento e de verdade. Entretanto, o tornar desvelado obedece a direção de contraposição com o ente, isto é, busca dominação e regulamentação. Então, a técnica pode surgir:

Com esta transformação dos diferentes domínios do ente, a verdade em domínios particulares se transforma, somente então surge uma técnica em sentido próprio, e uma nova articulação e ordenação da sociedade. (GA 27, p. 371)

 

4. Potência e impotência do Dasein: o jogo da transcendência

Os elementos precedentes exibem a fundação da ciência e da técnica na transcendência do Dasein, mas não apenas como a pressuposição da projeção de ser. Não se trata apenas da projeção da Vorhandenheit e a tematização de domínios regionalizados. Também não se trata de uma derivação do comportamento científico a partir do comportamento puramente operativo e dirigido a fins práticos. A perda da indiferença da transcendência e a formação das possibilidades de Weltanschauung apresentam as bases últimas da ciência e da técnica.

A impotência do Dasein, da qual a técnica - como uma besta libertada - seria a prova paradoxal, pode ser mostrada claramente. Inicialmente, o próprio limite da ciência seria expressão de tal impotência, na medida em que tematiza apenas domínios específicos de entes, pressupondo, para tal, um desocultamento do ser, sobre o qual não tem poder nem ingerência12. A impotência do Dasein também reside na natureza da transcendência, na negatividade e no des-amparo que determinam o desocultamento de ser. Enquanto possíveis a partir de uma possibilidade singular de sustentação, a ciência e a técnica são testemunhos expressos da negatividade e do des-amparo da transcendência do Dasein. De outro lado, a utilização de uma expressão milenarista como qualificativo da técnica (a besta aprisionada que é libertada) não deve induzir a uma interpretação apocalíptica da impotência do Dasein. Ou seja, não há uma redenção ameaçada pela técnica, que seria alcançada quando a besta fosse finalmente derrotada. Na Lição de inverno de 1928, a técnica e a ciência são possíveis no interior de uma Weltanschauung, que, por sua vez, constitui um modo essencial do acontecer do Dasein e de sua transcendência.

Tais determinações da impotência do Dasein ainda permanecem, entretanto, no marco da ontologia fundamental e da analítica existencial de Ser e tempo. A impotência do Dasein repousa na transcendência e em suas qualificações negativas. É a finitude do Dasein que está na raiz da ciência e da técnica. No texto sob análise aparece, porém, um elemento novo, a partir do qual a impotência do Dasein não estaria vista apenas na finitude existencial. Trata-se da caracterização da transcendência pelo conceito de jogo.13

Desenvolvida a partir da elucidação do conceito de mundo, a noção de jogo é apresentada naquele que seria o seu significado metafísico e originário. De um ponto de vista formal, a noção abrange tanto a realização do jogo, quanto a sua regulamentação. Entretanto, aqui não se atingiria o originário, pois no jogar haveria mais do que um comportar-se e um seguir regras. Partindo da expressão de que "há uma certa alegria [Freude] no jogo", Heidegger indica que no jogo localiza-se uma atmosfera, um "clima" (Stimmung): ou seja, o encontrar-se nele. O conceito de jogo é apresentado, então, em seus traços elementares: a) o jogo não é uma seqüência mecânica de processos, mas um acontecer livre (que não exclui a regra) no qual o decisivo não é o agir, e sim o estar situado em tal acontecer; b) a regulamentação do jogo é formada pelo jogar, não sendo necessário, porém, que o jogar alcance a forma de um sistema de regras; c) o jogar proporciona a ocasião para a formação e transformação, para a variabilidade da regra no próprio jogar.

Com base nessas delimitações, Heidegger volta-se para a transcendência, afirmada como o jogo no qual o Dasein está posto. O jogo não é um comportamento específico, mas o que possibilita, de forma latente, tal especificação. E o jogo é em si mesmo excedente, estando previamente aberto e em andamento (GA 27, p. 313). Em sua unidade, o jogo é um formar (bilden) livre, mas que proporciona uma certa unissonância na maneira em que se processa o jogar. Deste modo, o jogar é uma ligação, um aderir ao que está em curso no jogo. Nesta adesão há, porém, novas formações. A transcendência é da natureza do jogo, e isto não significa jogar com o ente, ou até mesmo com o ser, mas jogar o ser, estar no acontecer que forma ser (GA 27, p. 315).

Surge agora um outro sentido da impotência do Dasein: o de estar posto no jogo da transcendência. O Dasein está posto nesse jogo, mas não como a facticidade de não poder escolher ser Dasein, e sim por encontrar-se no jogo formativo da transcendência, do qual não dispõe, porém no qual está ligado ou em correspondência. Sobre a história do aparecimento e desdobramentos das Weltanschauungen, o Dasein não tem poder, mas encontra-se no seu jogo formativo. Esse talvez seja o sentido básico da impotência que é demonstrado pela técnica. E ao concluir a Lição, Heidegger formula o que seria a filosofia, dados esses elementos. Com o filosofar estaria em questão não o descrever e tornar objeto a transcendência, precisamente porque ela não se deixa descrever (GA 27, p. 395). Mais do que isso, filosofar é o transcender expresso. O transcender que acontece expressamente no Dasein significa mostrar a transcendência, isto é, deixar que encontre formação no seu jogo (GA 27, p. 395).

Para encerrar, quero deixar indicada a direção de continuidade desse pensamento, que aparece no último parágrafo do texto, que precederia a consideração planejada sobre a história. Heidegger escreve:

No deixar acontecer da transcendência enquanto filosofar jaz a serenidade [Gelassenheit] originária do Dasein, a confiança do homem no Da-sein e em suas possibilidades. (GA 27, p. 401)

 

Referências bibliográficas

Alderman, Harold 1978: "Heidegger's Critique of Science and Technology", in Murray (org.) 1978, pp. 53-64.         [ Links ]

Ballard, Edward G. 1970: "Heidegger's View and Evaluation of Nature and Natural Science", in Sallis (org.) 1970, pp. 37-64.

Ballard, Edward e Scott, Charles 1973 (orgs.): Martin Heidegger: in Europe and America. The Hague, Martinus Nijhoff. Bast, Rainer 1986: Der Wissenschaftsbegriff Martin Heideggers. Stuttgart, Frommann-Holzboog.

Brandom, Robert 1992: "Heideggers Categories in Being and Time", in Dreyfus e Hall (orgs.) 1992, pp. 45-64.

Dreyfus, Hupert e Hall, Harrison (orgs.) 1992: Heidegger: a Critical Reader. Oxford, Blackwell.

Gadamer, Hans-Georg 1990: Wahrheit und Methode (6ª edição). Tübingen, J. C. B. Mohr.

Gethmann, Carl-Friedrich 1991a: Lebenswelt und Wissenschaft. Bonn, Bouvier.

______ 1991b: "Der existenziale Begriff der Wissenschaft. Zu Sein und Zeit, § 69b", in Gethmann 1991a, pp. 181-208.

Greider, Alfons 1992: "What Did Heidegger Mean by `Essence'?", in Macann (org.) 1992, pp. 181-212.

Gründer, Karlfried 1962: "Martin Heideggers Wissenschaftskritik in ihren geschichtlichen Zusammenhängen", Archiv für Philosophie. II, 1962, pp. 313-35.

Heidegger, Martin 1986: Sein und Zeit. Tübingen, Max Niemeyer.

______ 1978: Metaphysische Anfangsgründe der Logik. In Gesamtausgabe 26 (Sommersemester 1928). Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.

______ 1996: Einleitung in die Philosophie. In Gesamtausgabe 27 (Wintersemester 1928/29). Frankfurt a/M, Vittorio Klostermann.

Kisiel, Theodore 1973a: "On the Dimensions of Science in Husserl and the Young Dr. Heidegger", Journal of the British Society for Phenomenology, vol. 4, 1973, pp. 217-34.

______ 1973b: "The Mathematical and the Hermeneutical: on Heidegger's Notion of the Apriori", in Ballard e Scott (org.) 1973, pp. 109-120.

______ 1992: "Heidegger and the New Images of Science", in Macann (org.) 1992b, pp. 325-41. Macann, Christopher (org.) 1992a: Martin Heidegger. Critical Assessments (vol. 1). London/New York, Routledge.

______ (org.) 1992b: Martin Heidegger. Critical Assessments (vol. 4). London/New York, Routledge.

Murray, Michael (org.) 1978: Heidegger and Modern Philosophy. New Haven/London, Yale University Press. Richardson, William 1968: "Heidegger's Critique of Science", New Scholasticism, vol. 42, 1968, pp. 511-36.

Sallis, John (org.) 1970: Heidegger and the Path of Thinking. Pittsburgh, Duquesne University Press.

Seigfried, Hans 1976: "Descriptive Phenomenology and Constructivism", Philosophy and Phenomenological Research, vol. 37, 1976, pp. 248-61.

______ 1978: "Heidegger's Longest Day: Being and Time and the Sciences", Philosophy Today, vol. 22, 1978, pp. 319-31.

______ 1991: "Heideggers Technikkritik", in Gethmann 1991a, pp.

209-42.

Wolzogen, Christoph von 1997: "Von `Weltanschauung'. Heidegger und die Begriffsgeschichte eines fragwürdigen Begriffs", Heidegger Studien, 1997, pp.123-42.

 

 

1 As seguintes abreviaturas serão utilizadas para citar as obras de Heidegger: SZ - Sein und Zeit; GA 26 - Metaphysische Anfangsgründe der Logik;GA 27 - Einleitung in die Philosophie.
2 Se é certo que em Ser e tempo não há uma abordagem sistemática da técnica - a técnica é apenas mencionada, quando Heidegger identifica na atitude teórica a construção técnica do projeto experimental (SZ, p. 358) -, também é correto que o tratamento do fenômeno da ciência ocupa um lugar decisivo no inteiro programa da ontologia fundamental. A interpretação do ser a partir da temporalidade representa o plano mais básico no projeto de uma fundamentação tanto de uma ontologia formal, quanto das possíveis ontologias dos domínios específicos de investigação científica, e é em tal projeto que fica demonstrada a concretude e a necessidade da pergunta pelo ser. Essa problemática está reconstruída sobretudo nos trabalhos de Alderman (1978), Ballard (1970), Bast (1986), Gethmann (1991b), Gründer (1962), Kisiel (1973a, 1973b, 1992), Richardson (1968) e Seigfried (1976, 1978 e 1991).
3 Não apenas o emprego abundante do conceito de essência indica o papel central que esta noção ocupará na obra posterior, como também encontramos no texto da Lição a formulação dos diferentes significados do conceito de verdade, tal como presentes em A essência do fundamento. Sobre o desenvolvimento do conceito de essência (Wesen) na obra de Heidegger, ver Grieder (1992). Além da naturalidade com que Heidegger manifesta-se sobre tópicos contemporâneos (a psicanálise, o marxismo, a sociologia cultural, etc.), também chama a atenção a ausência da temporalidade e da interpretação temporal.
4 Vigora, portanto, a diferença entre um conceito lógico de ciência - em que esta é tomada como resultado e como conjunto sistemático de enunciados verdadeiros em relações de justificação - e um tratamento da ciência em termos de comportamento e possibilidade do Dasein, isto é, definido pelo propósito prático que identifica o modo de ser cognitivo (SZ, p. 357).
5 Uma tal mudança não representa uma completa descontextualização dos entes, no tocante às ações finalizadas, mas sim a sua identificação a partir de padrões de ação voltados para o descobrimento enunciativo e para a prática discursivo-inferencial. Ver Brandom 1992, p. 57.
6 Heidegger já indica uma transformação no seu conceito de filosofia, pois não atribui à filosofia o caráter de ciência, o que implica necessariamente uma alteração em sua concepção de método. Não obstante a acepção passiva do termo, na sua origem há um agir originário. O transcender é visto como uma ação originária da liberdade do Dasein, a qual, mesmo pertencendo à sua natureza elementar, necessita de liberação e condução. É digno de nota que esta "violência contra si mesmo" (p. 220) não esteja identificada com a interpretação fenomenológica da compreensão de ser, mas associada com a história da filosofia. Entretanto, a significação plena dessas afirmações vem à tona apenas ao final do texto da Lição, em particular com a noção de construção.
7 Na medida em que a transcendência é a determinação básica do ente que é ser-no-mundo, e na medida em que não se resume à compreensão de ser, conclui-se que ser - o que é projetado na compreensão de ser - não é equivalente a mundo. Essa posição ainda terá como conseqüência a afirmação de que o problema do mundo não se identifica com a questão do ser, apesar de subsistir uma conexão estrutural entre ambos (p. 391).
8 A negatividade da transcendência, como limitação da verdade, é exemplificada a partir de um produto da técnica: o rádio. Ao mesmo tempo em que os limites do diretamente experimentável e cognoscível são ampliados e até mesmo superados, o que significa a elevação da possibilidade da verdade, de outro lado, o comportamento do usuário em face de tais possibilidades exibe também a limitação qualitativa da verdade. O usuário torna-se escravo do aparelho, pois não tem a possibilidade de ouvir, mas tem em vista o saltar de uma emissora para outra, trazendo, colocando a perder a própria compreensão de verdade e não verdade (p. 335). Esse exemplo mostraria algo essencial: o aparecimento da não verdade e da ilusão a partir do próprio Dasein (p. 335).
9 O conceito de Weltanschauung tem sido objeto de consideração já no início mesmo de seus escritos, desdobrando-se também em obras tardias. Ver Wolzogen 1997, p. 132.
10 E mesmo no tocante à relação consigo mesmo, pois este si mesmo é, de certa forma, um poder estranho (p. 357). Heidegger identifica aqui, e não na aplicação do conceito de substância à essência interior, a origem da representação de alma e espírito (p. 358).
11 Heidegger observa que não se trata de encontrar amparo no próprio Dasein, mas sim no amparar-se em possibilidades apresentadas. No primeiro caso, trata-se do tipo principal de degeneração dessa Weltanschauung, que resultaria em três formas elementares de subjetivismo (pp. 373-4).
12 Porém, aqui há um sentido em que ciência e técnica não são provas da impotência do Dasein. Mesmo que a ciência seja possível apenas em uma atitude de confronto com os entes, Heidegger não tem em vista uma concepção pragmatista da verdade e do conhecimento. Apesar de todo conhecimento estar orientado para a dominação e para o senhorio, requerendo para isso a pesquisa dos entes em sua legalidade, disso não resulta a identificação da verdade com o seu efeito em termos de utilidade. É o próprio ente que decide a verdade do conhecimento (GA 27, p. 376). Essa aparente declaração de realismo impede, portanto, que a impotência do Dasin seja localizada numa limitação interna do conhecimento. O comportamento orientado para o descobrimento é possibilitado num confrontar-se com os objetos, isto é, quando os entes são problematizados e colocados no discurso (GA 27, p. 377). Heidegger tampouco abraça um relativismo das Weltanschauungen. Antes disso, o "tudo vale" é precisamente o sinal da covardia e da impotência diante da coragem à veracidade (GA 27, p. 232).
13 As observações que seguem de forma alguma apresentam suficientemente a muito original interpretação oferecida ao conceito de jogo na Lição do inverno de 1928. De outro lado, uma importante fonte do desenvolvimento da hermenêutica filosófica pode ser vista aqui. Altamente desejável seria, por exemplo, um estudo comparativo da abordagem ontológica do conceito de jogo feita por Gadamer em Verdade e método (1990, pp. 107-39) com o conceito originário de jogo apresentado por Heidegger.