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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.2 São Paulo dez. 1999

 

RESENHAS

 

Róbson Ramos dos Reis

Departamento de Filosofia da UFSM

 

 

Hans-Georg Gadamer 1997: Verdade e método. Petrópolis, Vozes. ISBN: 85-326-1787-5

Ao final de 1997 foi lançada a tradução para o português do clássico Verdade e método, de Hans-Georg Gadamer (Petrópolis, Editora Vozes). Este livro denso, de leitura exigente inclusive no original alemão, é um marco no desenvolvimento da tradição hermenêutica. A partir dele podemos falar de um significado filosófico geral da hermenêutica: uma hermenêutica filosófica. O livro não é sistemático, incluindo várias introduções e digressões, nas quais aparece a vasta erudição histórica do seu autor, oferecendo uma oportunidade singular de aprendizado mesmo para o leitor especializado. Muitas são as influências filosóficas no livro: Platão, Hegel (apesar da profunda crítica à filosofia da reflexão e à metafísica especulativa idealista), mas sobretudo Heidegger. Tendo sido aluno do jovem professor Martin Heidegger, Gadamer herda um conceito ampliado de hermenêutica, em que a compreensão é vista como o projeto humano de mundo, submetido às determinações da pré-compreensão e da histori- cidade. Também o conceito não enunciativo da verdade, e o seu desdobramento no pensamento tardio de Heidegger, aparece claramente em Verdade e método.

O esforço de Gadamer consiste em aprofundar uma noção de verdade, presente na experiência do compreender e interpretar, que não se esgotaria na verdade possível de ser estabelecida no domínio das ciências. O fenômeno da compreensão e interpretação está presente nas relações humanas para com o mundo, manifestando-se na experiência da arte, da filosofia e da tradição histórica. Trata-se de uma experiência da verdade que mostra o quanto o fenômeno hermenêutico não pode ser restrito à metodologia das ciências do espírito (Geisteswissenschaften). Com a visibilidade do fenômeno hermenêutico na experiência da arte e da tradição histórica, Gadamer pretende o reconhecimento de uma experiência da verdade que não deve ser apenas filosoficamente justificada, mas que seria ela mesma um modo de filosofar (p. 34).

O livro está dividido em três partes. Na primeira, Gadamer faz uma exposição crítica da estética moderna, abordando a experiência que veicula a verdade da obra. A experiência estética é o paradigma para a indicação da relação problemática entre verdade e método, pois mesmo nos casos em que se possa falar de um método nas "ciências da arte" (seja na crítica ou na história da arte), ele cumpriria apenas um papel auxiliar em relação a tal experiência. A vivência da arte não é subjetiva, mas nela experimentamos uma verdade que não é alcançável pelo método. Com essa crítica, Gadamer inicia uma exposição das noções de conhecimento e verdade correspondentes ao fenômeno hermenêutico em sua totalidade. Para isso, um dos pontos centrais é a caracterização da obra de arte por meio do conceito de jogo (Spiel). O modo de ser da obra de arte consiste em tornar-se uma experiência que transforma aquele que a experimenta (p. 176). A possível subjetividade na experiência estética é a própria obra, e não quem a experimenta. Dessa concepção resulta a subordinação da estética à hermenêutica, pois a experiência com a obra é uma experiência de compreensão; de outro lado, a hermenêutica está obrigada a determinar-se em seu conjunto para dar conta da justeza da experiência da arte (p. 263).

Na segunda parte, a apropriação da verdade manifesta na tradição histórica obrigará uma crítica à consciência histórica e à limitação meto- dológica da hermenêutica. Após uma longa introdução, Gadamer posiciona-se criticamente, sobretudo em relação à hermenêutica romântica e epistemológica. Considerando as ciências do espírito, Gadamer resistirá aos ideais metodológicos que ainda buscariam um saber puramente objetivo, constituído por uma metodologia capaz de abstrair dos horizontes de compreensão do intérprete. A historicidade do existente humano implica que a experiência daquilo que deve ser interpretado é possível por uma apropriação e potencialização dos horizontes da compreensão. Isso conduz a uma recuperação da hermenêutica pré-romântica, com a análise do fenômeno hermenêutico em termos da unidade de compreensão, interpretação e aplicação. Da fusão interna da compreensão e da interpretação - a interpretação sendo a forma explícita da compreensão - segue-se que a linguagem e o aparato conceitual da interpretação pertencem estruturalmente à compreensão (p. 459). Porém, o mais significativo desta retomada da tradição da hermenêutica teológica e jurídica está na incorporação do momento da aplicação, ou seja, a compreensão acontece na aplicação do texto à si- tuação atual do intérprete. Compreen- der é aplicar, e isso evidencia o quanto o fenômeno hermenêutico representa um acontecer, um processo possibilitado pela imersão no próprio acontecer da tradição (p. 462). O conceito de fusão de horizontes complementa esta análise. Com a aplicação supera-se a distância temporal entre o texto e o intérprete. A partir desse aspecto Gadamer propõe a reabilitação qualificada da autoridade e do preconceito, apoiando-se na análise da estrutura prévia da compreensão fornecida por Heidegger. Se toda situação de interpretação é condicionada por um horizonte, a elaboração dessa situação significa a obtenção de um horizonte interpretativo correto. Isso implica, por sua vez, a fusão dos horizontes, mais precisamente, a formação de um horizonte único da compreensão. Compreender é, portanto, um processo de fusão dos horizontes do presente e da tradição (p. 457). Esse tópico leva, ainda, a aproximar a compreensão ao diálogo, que é igualmente estruturado por uma lógica de pergunta e resposta. Verdade e método coloca-se no plano de uma historicidade completa, reconhecendo nesse factum não tanto um limite enredado nas aporias do historicismo, mas a condição positiva de toda compreensão.

A terceira e última parte do livro é a mais densa e especulativa. Sua pretensão é a de demonstrar o alcance universal do fenômeno hermenêutico. Ao conceber a realização da consciência histórico-efeitual como a fusão de horizontes, a experiência hermenêutica é conceitualizada por um modelo conversacional. Nela está presente uma abertura tanto em direção ao "outro" (o que deve ser interpretado), quanto uma abertura em quem se deixa atingir pelo outro (p. 532). Tal abertura significa a permeabilidade de princípio nos horizontes interpre- tacionais. O conceito-guia para a determinação da universalidade do fenômeno hermenêutico será, então, o de linguagem. Tomada a partir da tradição de Herder e Humbolt, a linguagem é vista como processo consti- tuidor de mundo. A fusão de horizontes é proporcionada pela linguagem, no sentido de que a compreensão é um acontecer de natureza lingüística. Essa lingüisticidade (Sprachlichkeit) da compreensão é encontrada tanto naquilo que deve ser interpretado, como na própria realização da compreensão. Sendo marca da finitude humana (p. 663), a linguagem é o centro a partir do qual desdobra-se a experiência de mundo. Trata-se de uma experiência de natureza conversacional, na qual o sentido que chega à linguagem aponta para uma estrutura ontológica universal. Daí o conhecido lema: "Ser que pode ser compreendido é linguagem" (p. 687). Nesse ponto, são recupe- radas as análises do modo de ser da arte e da história, conduzindo a uma hermenêutica universal localizada na relação humana com o mundo. O desdobramento da verdade presente neste fenômeno é apanhado, então, pela noção de jogo, que fora introduzida na primeira parte do livro. Aquilo que vem ao encontro na experiência do belo e na compreensão da tradição possui o modo de ser do jogo: o acontecer da verdade ao qual estamos submetidos em toda compreensão (p. 708).

Considerando a importância da obra no debate contemporâneo, o proveito da tradução seria imediato, caso a edição brasileira não estivesse tão prejudicada. Os erros de revisão (na colocação de vírgulas, por exemplo) são inaceitáveis. Nem a tradução, nem a revisão da tradução, correspondem à experiência e ao cuidado requeridos por essa importante obra da filosofia do século XX. A lista de problemas é extensa para esta resenha, mas vejamos alguns exemplos. O leitor encontrará frases em que faltam palavras e grupos de palavras, tais como não, é, pelo, no que, com a qual, etc. (pp. 40, 45, 45, 65, 71, 124, 322, 337, 350, 390, 435, 507, 512, 527, 551, 556, 649, 669). O mais grave é que até sentenças inteiras estão ausentes em algumas passagens (pp. 40, 41, 98, 153, 322, 364, 414, 424, 435, 511, 556, 576). Eis um caso (o texto em itálico está ausente na tradução): "Assim como antes havíamos destacado o significado constitutivo da pergunta para o fenômeno hermenêutico, e o fizemos pela mão da conversação [Gespräch], trata-se agora de demonstrar a lin- güisticidade do diálogo[Gespräch], que subjaz, por sua vez, à pergunta, como um momento hermenêutico" (p. 556).

A uniformidade nas traduções muitas vezes não é mantida: a palavra Gespräch é traduzida por diálogo (p. 453) e também por conversação (pp. 383, 555 ss.). A conhecida expressão wirkungsgeschichtliches Bewusstsein aparece como consciência histórico-efeitual (p. 505), mas também como consciência da história efeitual (pp. 451, 504-5, 533). Folgerungen, no subtítulo II, 2.2, aparece como deduções, mas na p. 376 é traduzido por conclusão. A palavra Selbstgefühl é traduzida por auto-sentimento (p. 47)e por auto-senso (p. 52). O termo Einsicht é traduzido por penetração de espírito (pp. 480, 526), intuição (p. 534), clarividência (p.535) e acepção (p.649). Algumas opções de tradução discutíveis são adotadas para termos conhecidos do vocabulário filosófico: Geltung certamente não é vitalidade (p.31), mas sim validade; Klärung não é esclarecimento (p.31), mas sim clarificação; Wahrheitsanspruch é pretensão de verdade, e não reivindicação de verdade (p. 32); bestimmen não é convocar (p. 36), mas determinar; erfahren não é sentir, mas experimentar (p.33); aufbauen não é elaborar, mas construir(p.69); reflektierende Urteilskraft não é juízo reflexo, mas capacidade de julgar reflexionante (p. 89); Bestimmtheit não é determinatividade (p. 646), mas determinidade. Além disso, assumindo a equivocada tradução do termo técnico Dasein por pré-sença (difundida na edição brasileira de Ser e tempo, de Martin Heidegger, também pela Editora Vozes), o tradutor consolida um erro de difícil identificação para o leitor não informado (pp. 16, 27, 202, 387, 389, 391-3, 395-7, 399, 400, 445).

E há erros que simplesmente adulteram o sentido do texto, por exemplo, na seguinte frase:

É uma consciência nova e crítica, que desde então vem acompanhando todo o filosofar responsável, e que os costumes lingüísticos e de pensamento, que se formam para o indivíduo, na comunicação com o seu mundo circundante, colocam diante do fórum da tradição histórica, da qual todos nós fazemos parte. (p. 36)

Uma tradução adequada poderia ser:

É uma consciência nova e crítica, que desde então tem que acompanhar todo filosofar responsável, e que coloca os costumes lingüísticos e de pensamento, que se formam para o indivíduo na comunicação com seu mundo compartilhado [Mitwelt], perante o fórum da tradição histórica, à qual todos em comum pertencemos.(p. 36)

Por fim, se o leitor seguir o índice analítico, buscando, por exemplo, as palavras intensionalidade e intuição, encontrará nas páginas referidas apenas intencionalidade, mas não intuição. É lamentável que, estando já na terceira edição, a editora ainda não tenha providenciado uma revisão e correção rigorosas desta obra clássica da filosofia contemporânea.