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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.2 São Paulo dez. 1999

 

RESENHAS

 

Orestes Forlenza Neto

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

José Outeiral 1999: Meros ensaios. Escritos psicanalíticos. Rio de Janeiro, Revinter. ISBN 85-7309-331-5

Um livro de 155 páginas, de leitura agradável, envolvente e subs- tancioso. Com prefácio e duas partes. Parte 1 - Clínica psicanalítica. Parte 2 - Literatura psicanalítica.

Já na capa identificamos o veio artístico de Outeiral, que nos brinda com bela aquarela de sua autoria retratando Frida Kahlo. No Prefácio, Outeiral nos convida a "destruir", no sentido winnicottiano, seu "escrito" (como ele prefere designar) e a criar o próprio. Seus marcos referenciais teóricos "se orientam pelas contribuições de autores como D. Winnicott (e os demais do Middle Group da British Psychoanalytical Association) e W. Bion, que, a partir de S. Freud, deram novos desenvolvimentos à psicanálise".

No capítulo primeiro, intitula- do "Espaço e limite: a clínica da transicionalidade", o tema é tratado com leveza e profundidade tecendo conjuntamente a fábula, a precisão conceitual, os autores (André Green, Winnicott, Masud Khan, Pontalis, Renata Gaddini), tudo na medida certa e com estética agradável (como o restante do livro). Na patologia examina o essencial de alguns "pesos-pesados" (no bom sentido) da psicanálise (Khan, Giovacchini, Bollas, Bion, etc.). Tudo de forma concatenada, num percurso que vai do bebê que cria o seio, da mãe suficientemente boa, da ilusão que é a base dos objetos e fenômenos transicionais, a ilusão-desilusão, os paradoxos winnicottianos, as técnicas de abordagem do analista suficientemente bom, a preocupação materna primária, o fracasso e o sucesso do ambiente (com a decorrência do falso self e do verdadeiro self), a regressão à dependência, o descongelamento, a esperança e o "going ou being" quando é retomado o desenvolvimento comum, principalmente para o grupo de pacientes que sofreram as intrusões por falhas maternas em fases muito iniciais do desenvolvimento. Os outros dois grupos são neuróticos e os que atingiram a posição depressiva.

A transicionalidade tem caráter universal, com exceção daqueles que devido a falhas ambientais intensas e reiteradas ficaram fora dela. Cumpre sempre ressaltar a importância das formulações da área transicional e de seus fenômenos estudados em várias disciplinas (antropologia, lingüística, educação, religião, filosofia e principalmente na teoria do conhecimento). Aquilo que foi descrito como a primeira possessão não-eu por Winnicott no paradoxo de pertencer ao mundo interno e externo, a base da simbolização e da criatividade é a matéria-prima dos grandes estudiosos da humanidade. Fato que até hoje não foi valorizado pelo pensamento kleiniano.

No segundo capítulo - "A conquista de uma nova terra. Agir, sonhar e mudança psíquica na adolescência" - são retomadas considerações sobre um caso clínico já publicado pelo autor em outro livro (Psicanálise brasileira - 1995), em que é salientada a relação entre o sonho e as atuações (melhor dito, a comunicação através de atuações) de uma adolescente. Com a diminuição das atuações foi se ampliando o espaço para surgir material onírico, como uma conquista de novos espaços para o self, o espaço imaginativo capaz de gerar pensamentos e emoções, como alternativa para a expressão de ansiedades. O autor passa a incluir alguns pensadores e autores (Bergson, Segal, Bruno Salésio, Grimberg, Ana Maria Azevedo, Betty Joseph, Badaracco, Meltzer, Masud Khan, Green e outros), sempre de forma primorosa e, no essencial, ligados a suas propostas, sem nos cansar com bibliografia e enriquecendo o assunto, com o referencial da transicio- nalidade winnicottiana, usando ma- terial clínico rico e suficiente para elucidar seus vértices. No particular dos sonhos e do reverie ele consegue a integração, também com Bion, e cita frase de uma entrevista de Virgínia Bicudo (1955): "Bion e Winnicott surgem na mesma época. Eu não vejo conflito na teoria deles. É só integrar".

Segue-se "A agressividade e a inveja na teoria de D. Winnicott" (terceiro capítulo). Em seqüência de idéias claras e didáticas sobre a agressividade e inveja no vértice winnicottiano e salientando o papel positivo da agressividade na criação da exterioridade, que deixa de ser vista apenas como uma reação à frustra- ção. Chama a atenção para a raiz etimológica da palavra: agredere que significa ir na direção de alguém. A agressividade é parte da motilidade primária e do amor instintivo. Usada para a descoberta do ambiente (desde os movimentos fetais) que vai compondo o reconhecimento do mundo não-eu, com três etapas: pré-preocupação, preocupação (ou concern) e o da personalidade total. No subtítulo da inveja ele deixa clara a posição de Winnicott que não aceita a inveja primária, bem como o instinto de morte, embora Winnicott reconheça a atuação da inveja como uma das "expressões da natureza humana".

"Sobre a idéia de perversão em Masud Khan" (quarto capítulo) - com este título o autor trata de um assunto muito complexo e acredito que o leitor terá alguma dificuldade de entender, entretanto, ele nos fornece generosa bibliografia e citações que re- meterão a leituras complementares esclarecedoras.

O último trabalho da parte clínica é "O paradoxo e o non-sense na clínica psicanalítica". O autor inicia com uma frase de Winnicott citada por A. Green - "Responda `sim' ou `não'". Winnicott diz: "Eu não respondo sim nem não: o objeto transicional é e não é o seio".

O capítulo inteiro é um grande e forte aperitivo. Ele vai examinando os conceitos de paradoxo e non-sense, a relação que alguns autores vêem entre esses dois conceitos (Deleuze, 1969), e passa por autores nacionais (Leite, Bittencourt). Examina o paradoxo e o non-sense em Lewis Carroll, T. S. Eliot, James Joyce, Samuel Beckett e mais profundamente em Winnicott.

No paradoxo, as qualidades espaciais não são excludentes: o objeto transicional pertence ao mundo interno e ao mesmo tempo é um objeto achado no ambiente. "O espaço potencial dos fenômenos e objetos transicionais não é externo nem interno... a primeira possessão não-eu é um paradoxo". "A capacidade de estar só tem como matriz o estar só na presença de alguém". Além dos paradoxos são também examinadas as defesas paradoxais de "tornar-se culpado para não se sentir culpado".

Todo o capítulo nos convida a prosseguir a viagem proposta, com boa e ampla bibliografia.

A segunda parte do livro - "Literatura psicanalítica" - inicia-se com "Frida Kahlo: um estudo sobre a questão do trauma". O autor vai tecendo paralelos entre a vida de Frida Kahlo e os conceitos de trauma em psicanálise. Parte da definição clássica de trauma e, usando o trabalho de Masud Khan de 1963, nos encaminha para o desenvolvimento do conceito de Trauma Acumulativo de Khan "onde nova ênfase é dada ao relacionamento mãe-filho" ... em que a mãe exerce o papel (ou falha repetidamente nele) de escudo protetor. "Os traumas se acumulam de forma silenciosa e só adquirem o valor de trauma acumulativamente e retrospectivamente". Escreve Khan: "É a intromissão das necessidades e conflitos pessoais da mãe que caracteriza como fracasso no papel que desempenha como escudo protetor".

As idéias de Khan são expostas de forma clara e minuciosa, e as conseqüências das falhas são encadeadas de forma brilhante no trabalho de Khan, que finalmente diz: "Nunca podem ser. Sua capacidade para levar uma vida serena e descansada é muito limitada. Têm de se deixar absorver por alguma coisa, se atormentarem, incitarem-se; do contrário, cairão no tipo mais apático de não existência e do não-ser".

Segue-se um exame da técnica analítica com tais pacientes "ecologicamente perturbados no ambiente infantil". Ele salienta principalmente o papel da chamada "atuação" como comunicação e reencenação da penosa situação traumática. Os estudos referentes a Frida Kahlo, bem lúcidos e desenvolvidos, vão esclarecer e estimular o leitor.

Segue-se o ensaio "Sadismo: o marquês de Sade e a psicanálise". Este capítulo me pareceu o menos winnicottiano (ignorou Winnicott?). É uma revisão do sadismo na obra de Freude Klein fundamentalmente, mas que nos deixa a sensação de vazio: e Winnicott? E Fairbaim? Eu não sou da opinião que se deva ter fidelidade ideológica, mas os dois autores fal- tantes realmente contribuíram de modo original para o tema.

O último capítulo se intitula "O Dibuk: os destinos da paixão na Adolescência". Trata-se de um texto muito rico sobre a cultura hassídica, em que o misticismo faz parte do cotidiano. A maior parte das informações chegaram por tradição oral, entretanto o texto é enriquecido pelo trabalho de grandes pesquisadores em arte, religião, cultura e teatro. A definição de Dibuk (espírito maligno que se incorpora num ser vivo e assume o comando de sua personalidade) é apenas o fundo de belos contos místicos e peças teatrais. O escrito de Outeiral é agradável e nos informa ao mesmo tempo que fornece bibliografia e citações para quem queira se aprofundar. Tudo motivado por uma peça - "O Dibuk" - assistida pelo autor que diz: "encontramos uma `velha' história de identificação, paixão e morte na adolescência, um amor contrariado pelos pais, cenário de um drama edípico encontrado muitas vezes na literatura, [...] como Romeu e Julieta". O Dibuk passa-se entre o jovem Hanã e Lea, sua amada. A união dos dois é impedida pelo pai da moça, o rapaz morre e seu espírito (Dibuk) apossa-se de Lea. Há o exorcismo, mas depois Lea quer se unir ao jovem e morre.

A partir desta peça e de outros contos hassídicos, Outeiral investiga a psicologia da adolescência ("transgrido logo vivo") valendo-se dos Freuds (Sigmund e Anna), juntando as teorias da melancolia de Freud, escolha objetal narcísica, interdição do incesto, até chegar a propostas sobre a "possessão". O decorrer do texto é esteticamente agradável, sensível e inteligente. Não escreverei mais, cabe ao leitor descobri-lo e deleitar-se.

Nos "Meros Ensaios" não encontramos nenhuma revolução teórica, tampouco descoberta inovadora. Entretanto, as teorias (principalmente winnicottianas) são expostas de modo claro, preciso e didático. Podemos dizer que o autor transita por elas com facilidade, seu modo de apresen- tá-las, sempre ligadas à clinica na primeira parte e à literatura, teatro e arte de modo geral, na segunda parte, possibilitam ao leitor uma boa realização das teorias. Tais fatos indicam a leitura deste livro.

Para resenhar este livro, talvez fosse necessário outro livro de igual tamanho, pelo menos é o que nos propõe o autor. O livro tem tudo que podemos desejar: informa, cria, convida-nos a criar e tem um autor que revela, pela diversidade de suas paixões e amores (arte, literatura, antropologia, etc.), que está de acordo com as recomendações de Freud para "ser" um psicanalista.