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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.2 São Paulo dez. 1999

 

NOTA BIBLIOGRÁFICA

 

Alguns escritos recentes sobre a ética em Heidegger1

 

Some recent publications on Ethics in Heidegger

 

Zeljko Loparic

Curso de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP

 

 

Na última década, cresceu consideravelmente o número de trabalhos que assinalam a existência da temática propriamente ética em Heidegger. Dahlstrom (1992) afirma que Ser e tempo "oferece algo como uma meta-ética fenomenológica ou, melhor, o ponto de partida de uma ética que, se desconhecida, leva ao empobrecimento da filosofia moral" (p. 167). Riedel (1992) detém-se na interpretação heideggeriana do conceito de éthos, como lugar do morar humano em meio aos entes, para concluir daí "a necessidade de repensar a tarefa da ética na época da física atômica" (p. 100). Dallmayr, além de criticar a objeção de decisionismo irracional, reconstrói, de maneira cuidadosa, a interpretação heideggeriana do conceito do mau (das Böse), em Schelling, e a sua recuperação do conceito de justiça a partir da díke de Anaximandro. Bernasconi escreveu vários artigos nos quais adverte os levinasianos de que Heidegger, em 1928, mostrou que a analítica do Dasein de Ser e tempo não implica o egoísmo (1993, p. 25) e que há nela um "lugar para a ética" que não é mais "simplesmente subordinada à ontologia e assim reduzida a um tipo de apêndice ou suplemento" (p. 39).

No seu livro Política negativa, S. Gebert, revelando o impacto da Edição Completa sobre os intérpretes de Heidegger, mostra-se mais consciente ainda das diferentes dimensões da problemática da ética na sua obra. Gebert sustenta que, em Heidegger, 1) a ética muda de lugar, ela não é mais uma ética da lei da vontade ou dos valores, mas uma ética do "dever o seu Dasein", 2) o ser devedor/culpado existencial-ontológico é o fundamento da lei moral, 3) esse fundamento tem o sentido de um ser-lançado que o homem tem-que (muss) assumir (p. 105). Já Guignon (1993) afirma que a analítica existencial de Heidegger "nos dá um modo de ver as questões éticas substanciais como parte inevitável de qualquer tentativa de entender seres humanos" (p. 231). Sendo assim, Heidegger abre espaço para "o pluralismo de valores, a tolerância e os direitos individuais". Além disso, Heidegger explica porque a reflexão moral desempenha um papel fundamental em nossa reflexão sobre nós mesmos. O conceito heideggeriano de historicidade própria implica o reconhecimento de que o nosso estar-no-mundo consiste em estarmos envolvidos em relações de responsabilidade com outros seres humanos concretos e de que esses comprometimentos não são objeto de escolha arbitrária. Tendo nos tornado a pessoa que somos, não há como abandonar os nossos comprometimentos sem deixar de ser quem somos (p. 233). Finalmente, as análises heideggerianas são de importância capital para a compreensão da responsabilidade dos psicoterapeutas para com seus pacientes (p. 236).

Merece destaque particular um artigo claro e incisivo de P. Thurnher sobre a ética fundamental de Heidegger. Thurner concorda com os que afirmam a existência, em Ser e tempo, de pontos de partida para uma ética do si-mesmo próprio, no sentido de Kierkegaard. Contudo, prossegue o autor, a intenção principal de Heidegger não foi a de fundamentar uma "ética existencial individual". O seu propósito foi "destruir" a ética tradicional no seu todo, a fim de abrir o terreno para uma ética capaz de estabelecer o fundamento primeiro de todo o agir humano. O pensamento de Heidegger pode ser caracterizado como "ética fundamental com o mesmo direito com o qual ele pode ser caracterizado como ontologia fundamental" (1991, p. 136). Para justificar essa tese, Thurnher lembra que, em Ser e tempo, existem dois tipos de agir: o agir como efetuação de resultados e o agir como instituição (Stiftung) ou perfazimento (Vollbringen) a manifestidade (Offenbarkeit) do ser. O segundo agir, por ser originário, é o fundamento do primeiro, derivado. O pensamento de Heidegger, pode, portanto, de acordo com a sua intenção primeira, ser lido como ética fundamental que trata do agir originário e institui o fundamento do todo o agir derivado. Os dois sentidos estão reunidos no conceito de cuidado, que é a ocupação com os entes intramundanos acompanhada de solicitude para com outros seres humanos, ambas fundadas no cuidado pela manifestidade, isto é, pelo ser (p. 139).

Na França, o tema de ética e finitude em Heidegger foi abordado por vários autores nos últimos dez anos. J. Grondin lembrou, em 1988, ser necessário refletir, no lastro de Heidegger, sobre os "recursos éticos da finitude" e pôr em dúvida se, tendo sido demonstrados os limites da razão, a única moral concebível é a apresentada por Kant. Em 1992, D. Moyse retomou o tema da ética e finitude para salientar que, sobre a exigência de Heidegger de que o homem tem-que tornar-se mortal, não é possível erigir uma ética "semelhante àquelas que encontramos na

história da filosofia desde Platão até Kant" (1992, p. 109). Essa impossiblidade seria uma conseqüência direta do trabalho de desconstrução empreendido por Heidegger. Apoiando-se em R. Schürmann2, a autora afirma ser preciso recolocar a questão da relação entre a teoria e a prática de maneira a respeitar os resultados da desconstrução heideggeriana da oposição e mesmo da separação entre a "teoria" e a "prática". Schürmann tem razão ao afirmar que Heidegger pensa um agir an-árquico, no sentido de ser "privado de começo, portanto de assentamento ou de fundamento" (p. 112). A tentativa de Heidegger de assimilar Kant foi errada - nesse ponto Cassirer tem razão - mas isso não significaria que Heidegger ter-se-ia fechado à "dimensão moral". Ele desconstruiu, e não aniquilou a ética. À luz dos seus resultados, faz-se necessário abandonar a tendência tradicional de encontrar "`soluções' capazes de garantir para o homem a saída da miséria real", reconhecer a finitude humana e "redefinir a estância do homem na terra" (p. 121).

Nos últimos anos, foram editados pelo menos três livros em inglês diretamente dedicados à ética em Heidegger. Em 1995, J. Hodge publica Heidegger and Ethics, cuja tese central diz que a ética é "o problema decisivo, ainda que não formulado", do pensamento heideggeriano (p. 1). Partindo dessa tese, Hodge propõe-se "buscar uma dimensão ética em Heidegger, anterior a qualquer distinção entre ética e metafísica" (p. 2). Para ela, a desconstrução da metafísica implica a desconstrução da ética (p. 177). Essa ética desconstruída não estaria tratando, em primeiro lugar, do que os seres humanos como "agentes" adultos devem fazer, mas daquilo que permite que os seres humanos "floresçam" (p. 12), isto é, formem-se, individualizem-se e adquiram identidade própria (p. 201). Hodge, que não esconde a sua filiação às teses feministas, insiste que a "ontologia fundamental" de Heidegger lida precisamemente com esse tipo de problema. Na medida em que implica o que temos que fazer para que os outros floresçam, essa ontologia poderia ser lida como "ética originária" (p. 189). Para poder tratar de como assegurar o que possibilita a vida humana, o segundo Heidegger desenvolve os conceitos de morar e de estância (p. 24). A objeção de decisionismo não "reconhece que a verdade não é simplesmente uma questão de saber e de significado, mas também uma questão de identidade e propósito". Essa crítica também negligencia "a conexão entre a explicitação da verdade e a análise do Dasein como cuidado e como [estrutura de alguém que existe] essencialmente preocupado em afirmar-se como um si-mesmo com um futuro" (p. 194). Hodge tenta, por fim, explicar porque "a natureza ética das pesquisas de Heidegger não foi reconhecida". Em primeiro lugar, diz Hodge, por que Heidegger não trata de princípios universais do dever nos contextos objetivados, e sim dos modos originários de ser si-mesmo e de estar com outros, temática relativamente nova na ética ocidental. Além disso, não se compreendeu, de maneira adequada, "a natureza finita, transitória e transicional tanto da pesquisa filosófica como da natureza humana". Tampouco foi levada a sério a "relação que existe entre o pensamento de Heidegger em Ser e tempo e a tradição cristã". Finalmente, a tese errônea das implicações políticas inaceitáveis do conceito de resolutidade fez com que "o conteúdo ético de Ser e tempo fosse apagado a favor de argumentos sobre o caráter pernicioso do seu autor" (p. 203).

O recente livro de J. Young, sobre Heidegger e a política (1997), é a primeira tentativa sistemática, em língua inglesa, de responder de maneira clara e bem argumentada, às objeções políticas contra a obra de Heidegger.3 Nesse contexto, Young propõe uma análise detalhada da ética originária de Heidegger, ao mesmo tempo em que rebate as críticas dirigidas a este. Young mostra que, em Heidegger, a "ontologia determina a ética" (p. 66) e o "ser determina os valores" (p. 100). Sendo assim, está correta a observação retrospectiva feita por Heidegger, na Carta sobre o "humanismo", afirmando que "a ontologia fundamental de Ser e tempo contém uma ética fundamental" (p. 102). Em Heidegger, insiste Young, "Sein [ser] e Sollen [dever] são inseparáveis" (p. 207). Os principais conceitos dessa ética são finitude e autenticidade, ou autonomia temporalizada. Os principais valores são o si-mesmo autêntico e a relação libertadora para com outros seres humanos. A relação com outros, isto é, a solicitude, é uma "relação moral", pois ela se reduz, no essencial, ao princípio kantiano de respeito: "nunca trate a humanidade em sua pessoa ou na dos outros como um mero meio, mas sempre como um fim em si". Heidegger deixa bem claro, acrescenta Young, "que este princípio obriga, constitui, o Dasein autêntico quando diz que, sendo resoluto e existindo como tal, o Dasein deixa os outros com os quais está aí `ser' no seu mais próprio poder-ser" (p. 104). Apoiado nessa análise da ética originária de Heidegger, Young rebate as objeções habituais, em particular a do decisionismo. Essa objeção seria paralela à crítica dirigida a Kant, igualmente infundada, de que nenhuma regra de conteúdo pode ser derivada do seu imperativo categórico. O próprio Heidegger assinalou, lembra Young, que a crítica de Scheler ao formalismo da moral kantiana estava "fundamentalmente errada" e que a ética da autodeterminação da vontade pura, revelada no sentimento de respeito pela lei moral, não precisa ser complementada por uma "ética material" (p. 89).4 Tampouco procede a objeção de amoralismo contra Heidegger. É correto dizer que Heidegger opera uma crítica implacável da filosofia dos valores, mas não para cair no amoralismo e sim para oferecer, "no seu `pensamento do ser', uma alternativa à teoria do valor e da obrigação da filosofia do valor", ainda que essa alternativa tenha permanecido, antes de 1946, "mais destrutiva do que construtiva" (p. 208). Young tira desse resultado algumas conclusões importantes sobre as implicações políticas do pensamento heideggeriano. Esse 1) difere em todos os pontos essenciais da ideologia nacional-socialista, 2) proíbe a adesão ao nazismo, 3) é perfeitamente compatível com a ortodoxia político-moral do Ocidente. A aventura política de Heidegger foi um erro de juízo prático, um engano ôntico, não imputável ao pensamento do ser.

Quando, em 1998, F. Olafson publica Heidegger e o fundamento da ética, ele sabe que está explorando uma dimensão do pensamento heideggeriano já devidamente reconhecida na literatura de língua inglesa. O propósito desse livro primoroso, que focaliza quase exclusivamente Ser e tempo, é mostrar "como o conceito de estar-com [Mitsein] gera a noção de solicitude [Fürsorge] e como a resolutidade - uma virtude existencial, estreitamente ligada à autenticidade - `empurra-nos para o Mitsein solícito para com outros'" (p. 5). Ser e tempo, entende Olafson, faz uma contribuição importante para a "compreensão de todo o lado ético das nossas vidas". As análises de Heidegger têm "pelo menos, o caráter de uma proto-ética e essa é de importância capital para qualquer pesquisa sobre os fundamentos da ética" (p. 2n). Partindo desses pressupostos, Olafson procede a uma discussão precisa dos conceitos heideggerianos de verdade, de responsabilidade, de confiança, de bem e de mal, produzindo um trabalho que deverá contribuir decisivamente para firmar a ética heideggeriana como um campo de estudos próprio.

Creio que esse resumo da literatura recente sobre Heidegger e a ética fornece evidência suficiente para dizer que esse tema está na ordem do dia e que permanece aberto a contribuições decisivas. Fica claro também, parece-me, que todas as teses centrais em torno das quais organizei a minha própria contribuição5 encontram paralelos nas pesquisas resenhadas. Não digo isso tão-somente para reforçar a plausibilidade das minhas afirmações, mas também para enfatizar o tamanho do erro dos críticos de Heidegger, que construíram argumentações sofisticadas para eliminar da sua obra alguns dos seus momentos essenciais, modificando radicalmente, e mesmo invertendo, o seu sentido, além de restringir substancialmente o seu alcance.6

 

Referências bibliográficas

Bernasconi, Robert 1993: Heidegger in Question. New Jersey, Humanities Press.

Dahlstrom, Daniel O. 1991: "Seinsvergessenheit oder moralische Naivität?", in Pappenfuss e Pöggler (orgs.) 1991, vol. 1, pp. 167-79.

Dallmayr, Fred 1993: The Other Heidegger. Ithaca, Cornell University Press.

Gebert, Sigbert 1991: Negative Politik. Berlin, Duncker e Humblot.

Grondin, Jean 1988: "Persistence et les ressource éthique de la finitude chez Heidegger", Revue de métaphysique et de morale, 1988, n. 3.

Guignon, Charles (org.) 1993a: The Cambridge Companion to Heidegger. Cambridge, Cambridge University Press.

______ 1993b: "Authenticity, Moral Values, and Psychotherapy", in Guignon (org.) 1993a: pp. 215-39.

Heidegger, Martin 1927: Die Grundprobleme der Phänomenologie. GA 24. Frankfurt a/M, Klostermann.

Hodge, Joanna 1995: Heidegger and Ethics. London, Routledge.

Loparic, Zeljko 1990: Heidegger réu. Um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Campinas, Papirus.

______ 1995: Ética e finitude. São Paulo, Educ.

Margreiter, Reinhardt e Leidlmair, Karl (orgs.) 1991: Heidegger: Technik - Ethik - Politik. Würzburg, Königshausen e Neumann.

Moyse, Danielle 1992: "La morale bouleversée: la question de l'éthi-

que chez Martin Heidegger", Heidegger-Studien, n. 8 (1992), pp. 103-21. Olafson, Frederick A. 1998: Heidegger and the Ground of Ethics. Cambridge, Cambridge University Press.

Pappenfuss, Dietrich e Pöggler, Otto (orgs.) 1991: Zur philosophischen Aktualität Heideggers, 3 vols. Frankfurt a/M, Klostermann.

Riedel, Manfred 1991: "Naturhermeneutik und Ethik im Denken Heideggers", in Pappenfuss e Pöggler (orgs.) 1991, vol. 1, pp. 75-100. Frankfurt a/M, Klostermann.

Schürmann, Reiner 1987: Heidegger on Being and Acting: From Principles to Anarchy. Bloomington, Indiana University Press.

Thurnher, Reiner 1991: "Heideggers Denken als `Fundamentalethik'?", in Margreiter e Leidlmair (orgs.) 1991, pp. 133-42.

Young, Julian 1997: Heidegger, Philosophy, Nazism. Cambridge, Cambridge University Press.

 

 

1 Esta nota é baseada na parte final do Posfácio à segunda edição do meu livro Ética e finitude (S. Paulo, Iluminuras, 2000).
2 Cf. Schürmann 1987. Para uma discussão desse livro, cf. Loparic 2000, Posfácio.
3 O meu Heidegger réu trata do mesmo assunto, no contexto dessa discussão vigente em 1990.
4 A crítica de Heidegger a Scheler encontra-se em Heidegger 1927, GA 24, p. 193.
5 Cf. Loparic 1995.
6 Desde 1995 continuo repensando as teses básicas apresentadas em Ética e finitude, levando em conta o modo como esse livro foi recebido, as partes não trabalhadas da obra de Heidegger e a literatura secundária. Desse esforço resultou, no período de 1996 a 1999, uma série de artigos em que a concepção heideggeriana de responsabilidade e a sua aplicação aos casos concretos são temas centrais. Nesses trabalhos, que deverão ser publicados dentro de breve, sob o título Ensaios sobre a responsabilidade, guiei-me por três problemas. Primeiro, explicitar o que Heidegger diz sobre os assentos não-mais-metafísicos, isto é, decididamente finitistas de um existir humano responsável. Segundo, determinar o sentido heideggeriano da responsabilidade originária humana na época da técnica. Terceiro, fazer ver que a responsabilidade assim interpretada tem implicações concretas para o quotidiano.