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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.1 São Paulo jun. 2000

 

ARTIGOS

 

Por uma ética da precariedade: sobre o traço ético de Ser e tempo

 

Towards ethics of precariousness: about the ethical trait of Being and time

 

 

André Duarte

Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná - UFPR

 

 


RESUMO

Heidegger jamais considerou Ser e tempo como uma investigação ética nem dedicou qualquer de suas obras à discussão específica dessa questão, aspecto que vem sendo criticado como sintoma de uma insidiosa precariedade ética instalada no coração de sua reflexão ontológica. A crítica recorrente afirma que, em Ser e tempo, Heidegger teria inviabilizado a reflexão ética ao comprometer-se com o "solipsismo existencial", isto é, com o isolamento do "si-mesmo decidido" em relação aos outros, desconsiderando, ainda, a exigência de uma fundamentação última da ação ética. O argumento deste texto considera que Ser e tempo não configura um tratado ético no sentido metafísico tradicional, mas traz consigo os elementos teóricos para a sua reavaliação pós-metafísica ao dar ensejo a uma ética da precariedade. Uma ética da precariedade é desprovida de fundamentos últimos ou procedimentos intersubjetivos capazes de assegurar critérios transcendentais infalíveis de validação da qualidade ética da conduta humana, pois se assenta no reconhecimento da finitude constitutiva do Dasein. A consideração do "ser-para-a-morte" como o "modo de ser mais próprio" do Dasein não implica a irresponsabilidade ética para com os outros, mas tem como seu aspecto positivo a liberação da amizade como o modo próprio da relação ética, inspirando um agir cauteloso e resistente a quaisquer sistemas teóricos que definam padrões últimos quanto à moralidade do agir.

Palavras-chave: Heidegger, Ética pós-metafísica, Ontologia fundamental, Alteridade.


ABSTRACT

Heidegger did not dedicate his philosophical thinking to ethical questions and explicitly denied considering his major opus, Being and Time, as an ethical inquiry, a fact that has been interpreted by many critics as a symptom of a deep ethical failure at the heart of his ontological thinking. The recurrent criticism is that Heidegger's Being and Time avoids any ethical questioning by committing itself to the "existential solipsism" which isolates the authentically resolute self from the others, and by disregarding the requirement of a last foundation able to assure the ethical character of human actions in the world. This text argues that although Heidegger's Being and Time should not be viewed as an ethical treatise in the sense of metaphysics, it brings forth important ethical implications that may procure a post-metaphysical ethics, an ethics of precariousness. An ethics of precariousness does not depend on having access to first principles, foundations or inter-subjective proceedings aiming at transcendental criteria to evaluate and warrant the ethical character of one's actions in the world, since it is based on the acknowledgment of Dasein's essentially constitutive finitude. The consideration of "being-toward-death" as the most proper way of Dasein's being does not imply ethical irresponsibility toward others, but has as its positive consequence the liberation of friendship, understood as the proper mode of Dasein's ethical relation to otherness. Such a post-metaphysical ethics should inspire a cautious acting in the world as well as resistance against theoretical systems aiming at the foundation of absolute standards of morality.

Keywords: Heidegger, Post-metaphysical ethics, Fundamental ontology, Otherness.


 

 

Pensar a ética à luz da reflexão filosófica de Heidegger põe-nos diante de uma dificuldade. Sabe-se que o filósofo jamais dedicou especial atenção à questão da ética no âmbito de sua vasta reflexão filosófica, o que não deixa de ser significativo, dada a amplitude dos problemas discutidos ao longo de seu vasto caminho de pensamento. Além disso, se há inúmeros filósofos contemporâneos que não escreveram uma só linha a respeito da ética, este certamente não é o caso de Heidegger, de modo que a aparente escassez do problema ético em suas obras dá o que pensar, sendo muitas vezes interpretada como sintoma de uma insidiosa precariedade ética de sua reflexão ontológica. Há, inclusive, quem pense tratar-se aí de um indício suficiente a respeito dos motivos teóricos que o teriam levado a envolver-se com o regime político que melhor demonstrou o esgarçamento e a supressão da ética no cenário político do século XX, o Nacional-Socialismo. Nesta linha de raciocínio, se Heidegger não elaborou uma ética é porque seu pensamento retrocedeu aquém do campo conceitual a partir do qual a filosofia moderna confrontou a dimensão ética da existência humana, o campo da autonomia do sujeito moral, redefinido na filosofia contemporânea de modo a incorporar o caráter intersubjetivo do exercício dessa autonomia. Ao recusar esta herança conceitual, Heidegger teria bloqueado a possibilidade de se repensar e refundar a ética, daí resultando, também, o comprometimento político de sua filosofia.

Ainda que de maneira particularmente violenta, Richard Wolin sintetizou as críticas recorrentes ao pensamento heideggeriano ao afirmar que, devido ao aspecto "excessivamente solipsista" da analítica do Dasein, Heidegger seria incapaz de pensar como o homem se reintegra "de maneira construtiva em uma série de metas e relações mundanas orientadas de modo intersubjetivo". Por este motivo, o autor de Ser e tempo teria comprometido seu pensamento com a primazia da "decisão" cega e solitária e com a recusa dos "imperativos morais tradicionais", considerados seja como uma prerrogativa da existência inautêntica, seja como instância de uma "ultrapassada filosofia dos valores". O "empobrecimento ético" da reflexão de Heidegger, afirma Wolin, "deriva-se do fato de que lhe falta o importantíssimo contrapeso do Outro, sem o qual toda reflexão sobre a natureza das relações humanas vê-se ameaçada a sucumbir no abismo niilista da ausência de significado moral". Desvenda-se assim a "inegável coerência teórica por detrás da terrível escolha vital de Heidegger em 1933" (Wolin 1990, pp. 53, 65, 149-50). Nessas considerações, arma-se uma peça acusatória falaciosa que transforma a ausência de uma reflexão especificamente ética na filosofia heideggeriana em uma comprovação irrefutável do seu caráter necessariamente a-ético. Deste modo, desqualifica-se também qualquer consideração refletida sobre o significado da inexistência de uma teoria ética em Heidegger, bem como, e principalmente, invalida-se a investigação a respeito das possíveis implicações éticas de seu pensamento, em seu caráter pós-metafísico ou finitista.

Trata-se aqui justamente de desmontar esta e outras armadilhas teóricas que aprisionam o traço ético da filosofia de Heidegger e, para tanto, questionamos: será que a precariedade de suas considerações a respeito da ética, em Ser e tempo, impossibilita a descoberta do contorno discreto de uma ética da precariedade, implicada em certos aspectos da analítica do Dasein? Se uma ética da precariedade for realmente pensável no horizonte teórico estabelecido por Heidegger em Ser e tempo, ela estará vinculada à inexistência de princípios ou fundamentos metafísicos que possam operar como critérios transcendentais de validação da qualidade ética da conduta humana, sejam eles de caráter monológico ou dialógico. Em outras palavras, uma ética da precariedade seria o efeito colateralnecessário do reconhecimento da finitude do ser e do próprio Dasein, cuja "existência", sendo "lançada" no mundo em que se "projeta", é onto-

logicamente desprovida de fundamentos últimos, é sem-porquê, tornando vão qualquer empreendimento teórico visando fundamentar moralmente ou cognitivamente os seus projetos mundanos. Nem irreal nem inexistente, uma ética da precariedade não poderia expressar prescrições normativas nem ser reconstruída até seu fundamento último, pois extrai seu potencial ético justamente da ausência de quaisquer garantias transcendentais. Se uma tal ética for efetivamente pensável, poderemos dizer apenas que as análises de Ser e tempo nos fazem pressenti-la em sua possibilidade, ainda que ela devesse permanecer silenciosamente não explicitada, não objetificada.1 Nesta perspectiva, a inexistência de uma teoria ética explícita e consistente em Ser e tempo não denunciaria o vazio ético dessa obra, que conteria, ainda que de maneira necessariamente oblíqua, indicações teóricas para uma radical reavaliação da ética, permitindo pensá-la em sua precariedade pós-metafísica. Se Heidegger jamais concedeu primazia à ética em relação à Seinsfrage, a questão do ser, isto não significa que Ser e tempo não contenha importantes "implicações de ordem ética" (Nunes 1992, p. 121), nem tampouco impede a formulação de uma tese ainda mais forte, a de que "a filosofia de Heidegger, tanto a de Ser e tempo, como a da segunda fase, é, em si mesma, uma ética" (Loparic 1995, p. 58).

A fim de considerar em que medida Ser e tempo guarda consigo os vestígios dessa ética precária, impronunciável, será preciso investigar as razões em função das quais essa obra não constitui um tratado ético no sentido tradicional, bem como, por outro lado, demonstrar a inconsistência das críticas que denunciam o "vácuo ético" da analítica existencial. Veremos que o solipsismo existencial de Ser e tempo não implica a aniquilação do campo em que se podem travar as relações éticas, pois ele abre justamente a possibilidade de que o "si-mesmo" e o "outro" sejam, pela primeira vez, encontrados de maneira própria. Por sua vez, a crítica relativa à ausência de uma reconstrução do fundamento ético capaz de avalizar a conduta humana mostrar-se-á improcedente, visto ser incompatível com a precariedade intrínseca de um ente cuja finitude solapa qualquer projeto fundacionista. Tais críticas apenas obstruem o reconhecimento das condições teóricas a partir das quais poder-se-ia pensar uma ética da precariedade, em conformidade com o modo de ser do Dasein e com o próprio acabamento da metafísica no presente tecnológico.

Por certo, a exploração do traço ético de Ser e tempo não pode desconhecer que Heidegger não atribuiu um caráter ético à analítica do Dasein, tornando preciso interrogar o porquê desta recusa. Após demonstrar que a questão sobre "o sentido do ser" requer uma "explicação prévia e adequada de um ente (Dasein) no tocante a seu ser",2 Heidegger afirma que a análise levada a cabo em Ser e tempo distingue-se daquelas propostas pela psicologia filosófica, pela antropologia, pela biologia e pela ética, as quais visam aspectos ônticos da existência humana, e não uma determinação originariamente filosófica das suas estruturas existenciais. Além disso, Heidegger frisa o caráter preparatório da análise do ser do Dasein, que não constitui a meta fundamental de Ser e tempo, mas apenas "o primeiro desafio no questionamento da questão do ser", este sim o verdadeiro fio condutor da investigação (Heidegger 1988, vol. 1, §5, p. 44; 1986, pp. 16-7). Em um curso de 1928, intitulado As fundações metafísicas da lógica, Heidegger repetirá o mesmo argumento ao subordinar o plano da investigação ética àquele do questionamento ontológico em se tratando da análise do ente que compreende ser:

A constituição do ser do Dasein é tal que a possibilidade intrínseca da compreensão de ser, que lhe pertence essencialmente, torna-se demonstrável. Deste modo, o assunto não concerne nem à antropologia nem à ética, mas a esse ente em seu ser enquanto tal, e, portanto, à sua análise preparatória; a metafísica do Dasein ainda não é o foco central. (Heidegger 1984, p. 136; 1990, GA 26, p. 171)

Quase vinte anos mais tarde, Heidegger voltaria a considerar a relação entre ontologia e ética, instigado agora por Jean Beaufret, que lhe perguntara como "precisar a relação da ontologia com uma ética possível". A questão evocava uma outra pergunta, que um jovem amigo lhe fizera logo após a publicação de Ser e tempo: "Quando o senhor escreverá uma ética?" Na Carta sobre o "humanismo", Heidegger afirma o caráter mais originário do "pensamento do ser" em relação ao surgimento tardio das chamadas disciplinas filosóficas, como a ética, a lógica e a física. Para ele, mais importante do que a distinção e a relação entre ética e ontologia é reavivar o pensamento originário do ser, praticado antes que a Academia platônica o transformasse em filosofia e esta se fizesse uma ciência (Heidegger 1995, p. 84; Heidegger 1976, p. 354). Modificaram-se os argumentos, tanto mais que a analítica do Dasein foi abandonada como exigência preliminar para a interrogação do ser, que agora é questionado em termos do acontecimento de sua verdade epocal; entretanto, não se alterou no essencial a antiga recusa heideggeriana em elaborar uma ética. Na Carta sobre o "humanismo", Heidegger chega mesmo a interpretar a crescente demanda por uma ética como sintoma da "desorientação", que advém quando "só se pode confiar na estabilidade do homem da técnica, entregue à massificação, planejando e organizando o todo de seus planos e ações em conformidade apenas com a técnica", a tal ponto que ele não sabe mais como se comportar senão seguindo à risca preceitos e regras (Heidegger1995, p. 83; 1976, p. 353, tradução modificada).

Compreende-se assim que a recusa heideggeriana em escrever uma ética não significa tornar o próprio pensamento imoral, mas é a própria condição para se investigar mais a fundo o que está em jogo na atual desorientação humana, que reclama insistentemente por diretrizes práticas e valores morais. Recusar-se a escrever a doutrina ética exigida pelos homens do presente é recusar-se a escrever com as tintas da metafísica, evitando comprometer o pensamento com as próprias causas de nosso dilema. Escandalosa quanto seja, e Heidegger estava consciente da necessidade de suscitar um tal escândalo, apenas esta recusa poderia chamar a atenção para a exigência de repensar a ética para além da expectativa por princípios fundantes e imperativos, por regras de conduta ou valores primeiros. É por isso que, na Carta sobre o "humanismo", Heidegger afirma a necessidade de ultrapassar a ética em seu sentido metafísico tradicional e reconhecido, a fim de pensar a "essência do ethos" como a "morada do homem", donde a conclusão de que "mais essencial para o homem do que todo e qualquer estabelecimento de regras é encontrar um caminho para a morada na verdade do ser", isto é, preparar-se para a escuta obediente ao pensamento do ser (Heidegger 1995, pp. 85, 95; 1976, pp. 354, 361). Mas tais argumentos ainda não esgotam a questão. Se a recusa heideggeriana em elaborar uma ética não deriva de uma recusa do ético per se, mas reflete o seu reconhecimento de que nenhum código moral pode se pretender legitimamente fundado e, deste modo, impor-se aos homens pela força da razão, também está em jogo nesta recusa a pertinência de se pensar a ética como "filosofia primeira", à maneira de Levinas.3

Pensar a ética como filosofia primeira, afirma Levinas, seria a única alternativa para escapar à influência do imperialismo ontológico reinante na tradição filosófica ocidental, ao qual o pensamento heideggeriano teria permanecido cativo. O pensar de Heidegger ainda compartilharia da "violência" metafísica que subordina a relação com o ente e, em particular, a relação ética para com o outro, à primazia ontológica da "compreensão de ser", por meio da qual se garantiria a captura e dominação de todo ente, negando-lhe, parcialmente, sua particularidade entitativa. Em oposição ao modelo da compreensão do outro que o projeta contra o "fundo familiar" da "plenitude circundante" do já apreendido e usufruído pela minha "liberdade" e "poder" - modelo que, segundo Levinas, culminaria na tentação suprema do "homicídio", isto é, na vã tentativa de uma posse absoluta que, por sua vez, demonstraria justamente que o outro sempre me escapará absolutamente -, trata-se de pensar o modo do encontro do outro em que ele "cessa de nos concernir a partir do horizonte do ser, isto é, de se oferecer aos nossos poderes". É em sua "invocação" que o outro se torna acessível enquanto "puro ente", isto é, como "rosto" que "significa outramente" na ruptura da rede de remissões significantes que perfaz o horizonte luminoso da compreensão de ser. A relação com o outro não se daria primeiramente como compreensão e, apenas então, como invocação, pois o outro "não nos afeta a partir de um conceito" de que tomamos "consciência", mas como ente que "conta como tal". Falar com o outro e compreendê-lo são relações inseparáveis, de modo que invocar alguém já é reportar-se ao "indivíduo puro" oferecendo-lhe uma expressão dessa compreensão. Deste modo, a relação com o outro não cai sob o primado da "ontologia", mas da ética ou da "religião", em que o vínculo com o outro não se "reduz à representação" mas se dá numa "invocação não precedida de compreensão", ou seja, desprovida do movimento de transcendência ou "ultrapassamento" do ente para o ser. Segundo Levinas, não é a partir do "ser em geral" que o outro me vem ao encontro, pois ele "não entra inteiramente na abertura do ser em que já me encontro como no campo de minha liberdade", escapando, necessariamente, a toda compreensão que o refira à sua "história", seu "meio" e seus "hábitos". Compreender o outro é já não tê-lo encontrado como "rosto", pois "o humano só se oferece a uma relação que não é poder" (Levinas 1997, pp. 26-33, passim). Tem-se aqui uma avaliação crítica do pensamento de Heidegger cujo pressuposto reside na identidade estabelecida por Levinas entre a compreensão de ser heideggeriana e o modo como a tradição filosófica definiu as relações de conheci- mento, representação e conceitualização do ente em seu ser, o que o leva a afirmar que a

compreensão, em Heidegger, logra alcançar a grande tradição da filosofia ocidental: compreender o ser particular já é colocar-se além do particular - compreender é relacionar-se ao particular, único a existir, pelo conhecimento que é sempre conhecimento do universal. (Levinas 1997, p. 26)

De fato, para Heidegger, a compreensão de ser que nos é constitutiva implica sempre um movimento circular em relação ao ente particular compreendido, no sentido de que tal compreensão jamais se dá a partir de um grau zero, pois é sempre o meio no qual já se está desde que se existe. Entretanto, nem por isto uma tal compreensão desprender-se-ia do ente particular para habitar um suposto ser universal e neutro, nem, tampouco, obstruiria a possibilidade fundamental de uma compreensão de ser que não refira o ente compreendido ao horizonte familiar do já conhecido e apoderado, como se fosse impossível ao Dasein que compreende ser encontrar qualquer ente e, mais particularmente, os outros, em sua alteridade mais própria. Se para Heidegger o "ser é sempre o ser de um ente" (Heidegger 1988, vol. 1, § 3, p. 35; 1986, p. 9),4 tal fórmula não implica conceber o ser como o "senhor do ente", segundo a feliz expressão de Derrida, pois "o ser não é um princípio, não é um ente primeiro, uma arquia que permita a Levinas fazer deslizar sob o seu nome o rosto de um tirano sem rosto" (Derrida 1967, pp. 200, 208).5 De qualquer modo, não se trata aqui de estabelecer uma confrontação entre Heidegger e Levinas, assunto complexo que não poderia ser tratado a contento neste momento. Por outro lado, o que importa indicar agora é que, a despeito das diferenças que os afastam, ambos os pensadores dedicaram-se a pensar, cada qual a seu modo, como o encontro do outro pode ser resguardado da violência inerente à sua remissão ao horizonte do já significado, do já compreendido e assimilado. A ausência de uma primazia do ético em relação ao ontológico no pensamento heideggeriano não significa que ele tenha se empenhado em defender a hierarquia tradicional entre a ontologia, pensada como filosofia primeira, e a ética como seu mero derivado, pois Heidegger questiona justamente essa subordinação tradicional e a violência metafísica que ela implica. Segundo as palavras de Derrida,

se toda "filosofia", toda "metafísica", sempre buscaram determinar o ente primeiro, o ente excelente e verdadeiramente ente, o pensamento do ser do ente não é esta metafísica ou esta filosofia primeira. Ele não é sequer ontologia, se a ontologia é um outro nome para a filosofia primeira. (Derrida 1967, pp. 200-1)6

Eis porque Heidegger, na Carta sobre o "humanismo", ao reinterpretaro pensamento de Ser e tempo como uma primeira tentativa para pensar a "verdade do ser como o elemento primeiro do homem enquanto um ec-sistente (eksistierendes)", ele identifique a "ontologia fundamental" a uma "ética originária" (ursprüngliche Ethik). E se, neste mesmo texto, ele finalmente acabou por afirmar que "o pensamento que questiona a verdade do ser e com isso determina a morada da essência do homem a partir e na direção do ser, não é nem ética nem ontologia", ele recusou tais termos e a "a linguagem conceitual a eles agregada" porque julgou que eles não seriam "repensados pelos leitores de acordo com a coisa (Sache) a ser pensada, mas essa é que seria concebida de acordo com o sentido habitual dos títulos estabelecidos" (Heidegger 1995, pp. 88, 89; 1976, pp. 357-358, tradução modificada). Em outras palavras, desde que ética e ontologia não sejam circunscritas pelas categorias da metafísica, mas sejam "pensadas originariamente", ambas permanecem essencialmente relacionadas aquém de toda hierarquia. Se não se encontra em Ser e tempo uma doutrina ética à maneira dos volumes produzidos pela metafísica, nada impede reconhecer os indícios de uma ética da precariedade por sob certos aspectos da analítica do Dasein, como pretendemos demonstrar a partir de agora.

Para investigar esse viés ético presente em Ser e tempo cumpre começar pelas passagens em que Heidegger analisa como se dão as relações do Dasein para consigo e para com os outros, no cotidiano. Nos § 25 a 27 Heidegger dá curso à sua desmontagem das certezas primeiras da filosofia moderna, que pensa o "quem" do Dasein cotidiano como um sujeito, como um eu substancial que se manteria invariante e idêntico a si mesmo em suas "mudanças de atitude e vivência", concepção que, do ponto de vista ontológico, pensa-o como "simples presença" (Vorhandenheit), mesmo quando "rejeita a substância da alma ou o caráter de coisa da consciência e de objetividade da pessoa" (Heidegger 1988, vol. 1, § 25, p. 165; 1986, p. 114). O processo de desmontagem da categoria do sujeito, fundante para a metafísica moderna, inicia-se com o anúncio de uma desconfiança - "pode ser que o quem do Dasein cotidiano não seja sempre justamente eu mesmo" - que logo cede lugar a um questionamento mais incisivo: "E se a constituição de ser sempre meu do Dasein fosse uma razão para ele, na maior parte das vezes e antes de tudo, não ser ele próprio?" Esse processo de desmontagem culmina, pouco mais adiante, na descoberta de que o eu pode vir a mostrar-se como "seu `contrário'", isto é, que a "perda de si mesmo" é um "determinado modo de ser do próprio eu" (Heidegger 1988, vol. 1, § 25, pp. 166-7; 1986, pp. 115-6, tradução modificada). Heidegger pretende pôr em relevo que o "si mesmo" não é uma propriedade substancial e já sempre dada ou meramente presente em todo ser humano, mas tem de ser concebido existencialmente como "um modo de ser" do Dasein (Heidegger 1988, vol. 1, § 25, pp. 167-8; 1986, pp. 116-7). A "existência" não designa o "conteúdo qüididativo" do ente que, sendo, comporta-se com o ser que é "seu" e que ele "tem de ser" em termos de sua possibilidade de ser ou não ser ele mesmo. Não se trata de afirmar que este ente tenha possibilidades,como se elas fossem propriedades de um ser simplesmente presente, mas sim que o Dasein "é sempre a sua possibilidade", motivo pelo qual pode escolher-se, ganhar-se ou perder-se, fugindo ou esquecendo-se de si mesmo. Porque ele é essencialmente a "possibilidade própria de se apropriar", pode comportar-se em relação ao seu ser segundo os modos de ser da "propriedade" (Eigentlichkeit) ou da "impropriedade" (Uneigentlichkeit), designações que não podem ser compreendidas em termos morais, mas como determinações ontológicas da existência (1988, vol. 1, § 9, p. 78; 1986, p. 42, tradução modificada).7

O próximo passo na desconstrução heideggeriana das certezas da filosofia moderna explicita porque não se pode conceber o Dasein como um eu isolado dos outros e do mundo, demonstrando que "ser-no-mundo" é "ser-com" os outros em um "mundo compartilhado", distintamente dos entes que se encontram simplesmente presentes ou "à mão" (Zuhanden) dentro do mundo, os entes intramundanos. A "coexistência" (Mitdasein) não é a mera agregação de sujeitos fechados em si mesmos nem uma circunstância que pudesse ser abolida na eventual solidão, mas tem de ser pensada existencialmente,como constituição ontológica do Dasein: apenas porque existir é co-existir pode o Dasein encontrar-se a sós (Heidegger 1988, vol. 1, § 26, pp. 169, 172; 1986, pp. 117, 121). Heidegger busca também desmontar a prioridade concedida à "simpatia" como a via de acesso do eu ao outro na análise fenomenológica, concepção que pressupõe o isolamento de uma coisa sujeito ante outra coisa sujeito, de tal modo que o eu do outro é definido como nada mais que um "duplo de si" mesmo; por outro lado, tanto a simpatia quanto os diversos modos da "preocupação" para com os outros só são faticamente possíveis enquanto fundados no existencial do "ser-com", constitutivo do próprio existir. No entanto, o aspecto que mais interessa considerar aqui é o de que os outros não são todos aqueles além de mim dos quais me distingo; muito pelo contrário, Heidegger mostrará que os outros são sempre aqueles em meio aos quais se está e dos quais primeiramente não se diferencia ninguém. Esta imediata familiaridade entre um e outro se dá por causa de um motivo bastante preciso, expresso por Heidegger nos seguintes termos: "na maioria das vezes e antes de tudo, o Dasein se entende a partir de seu mundo, e a coexistência dos outros vem ao encontro nas mais diversas formas, a partir do que está à mão dentro do mundo" (Heidegger 1988, vol. 1, § 26, p. 171; 1986, p. 120, tradução modificada). Não se está afirmando que o Dasein encontre o outro no mundo como um assunto de sua "ocupação", pois não se trata aí de um instrumento à mão e sim de um outro ente dotado do mesmo caráter ontológico, com o qual ele se "preocupa" no contexto de suas ocupações cotidianas. Ou seja, cotidianamente o Dasein encontra os outros, os entes intramundanos e a si próprio a partir da "familiaridade com o mundo" (Weltvertrautheit) que lhe é própria; isto é o mesmo que dizer que tais encontros apenas acontecem na medida em que o eu e os outros, assim como os demais entes intramundanos, já caíram na "totalidade originária" dos nexos de "referência" que constitui a "significância", a "estrutura do mundo" em que o Dasein já sempre existe com os outros e que já tem de estar previamente aberta, isto é, compreendida, como se demonstra no § 18. Em síntese, tanto o manual do mundo circundante quanto os outros entes dotados do modo de ser do Dasein vêm ao encontro no âmbito das ocupações mundanas guiadas pela "circumvisão".Daí porque os outros não se dêem como sujeitos dispersos, isolados, pairando junto a todas as outras coisas mundanas, mas sejam encontrados antes de tudo na concretude da "preocupação das ocupações". Acontecendo a partir da "familiaridade" do Dasein para com "totalidade referencial da significância" do já compreendido, não é fortuito que a preocupação para com os outros se dê predominantemente nos modos da "deficiência e indiferença", em que o outro sequer chama a atenção, mas desaparece de nossas vistas à maneira do instrumento que some nas mãos do Dasein absorto em sua ocupação. Daí a afirmação de que "esses modos indiferentes da convivência recíproca facilmente desviam a interpretação ontológica para um entendimento imediato desse ser como puro ser simplesmente presente de muitos sujeitos" (Heidegger 1988, vol. 1, § 26, p. 173; 1986, p. 121, tradução modificada).

Ora, tudo isto equivale a afirmar que, cotidianamente, os outros não são primeiramente encontrados em sua alteridade própria, nem o Dasein encontra-se propriamente a si mesmo, e isto, a tal ponto, que Heidegger chega mesmo a afirmar que "o conhecer-se mais imediato e essencial necessita de aprender a conhecer-se", tanto quanto a "convivência necessita de caminhos específicos para se aproximar do outro ou para `procurá-lo'" (Heidegger 1988, vol. 1, § 26, p. 176; 1986, p. 124). No mais das vezes, portanto, o outro não é encontrado em sua alteridade própria, como "poder-ser" que ele é, mas apenas como um outro eu, como um "duplo do eu" com o qual me preocupo de maneira deficiente ou indiferente, quando não de maneira positiva e extrema, dominando-o de várias formas, o que se dá corriqueiramente. Na maioria das vezes o outro não me é em nada estranho, mas já se encontra previamente interpretado, isto é, inserido na rede da significância que perfaz a mundanidade; em primeira aproximação, o outro me é tão familiar quanto eu mesmo o sou para mim. Cotidianamente o Dasein interpreta-se a partir de suas ocupações e preocupações, permanecendo às voltas com as ilusões de sua suposta distância e diferença para com os outros; no entanto, sem que tenha percebido ele já se encontra submetido à "tutela", ao "domínio" e ao "poder" da "ditadura" da "publicidade" que a tudo "obscurece" e "nivela", regendo soberanamente todas as suas interpretações a respeito de si, dos outros e dos entes intramundanos (Heidegger 1988, vol. 1, § 27, pp. 179-80; 1986, pp. 126-7). O "quem" do Dasein cotidiano em sua convivência com os outros é o "impessoal", o contrário do si mesmo em sentido próprio, o "neutro" ou o "ninguém" que lhe retira o peso da responsabilidade de ser. Em uma passagem que parece confirmar o veredicto levinasiano, Heidegger afirma que

de início, o outro está "aí" pelo que se ouviu impessoalmente dele, pelo que se sabe e se fala a seu respeito. O falatório logo se insinua dentre as formas de convivência originária. Todo mundo presta primeiro atenção em como o outro se comporta, no que ele irá dizer. A convivência no impessoal não é, de forma alguma, uma justaposição acabada e indiferente, mas um prestar atenção uns nos outros, ambíguo e tenso. Trata-se de um escutar uns aos outros secretamente. Sob a máscara do por um outro, o que realmente acontece é a oposição entre um e outro. (Heidegger 1988, vol. 1, § 37, pp. 235-6; 1986, pp. 174-5, tradução modificada)

Entretanto, a esta altura da analítica estamos apenas no limiar de um percurso que ainda há de se revelar profundamente ético, pois indicará a possibilidade de que o Dasein venha a encontrar a si e ao outro em sua propriedade, permitindo assim que o rosto do outro, assim como o próprio rosto, sejam encontrados em sua misteriosa estranheza, sem que tenham sido ofuscados pela luz fria da neutralidade impessoal em que "cada um é o outro e ninguém é si mesmo". A partir do § 40, em que Heidegger discute pela primeira vez a "disposição fundamental da angústia", a analítica existencial assumirá um caminho que lhe permitirá restituir a força do segredo da existência, liberando o si mesmo e o ser do outro da camisa-de-força dos conceitos e interpretações já tramados.

O caráter ético da analítica transparece ao se esclarecer de que modo a "relação do Dasein para consigo deve abrir o outro como outro" (Heidegger 1988, vol. 1, § 26, p. 174; 1986, p. 122), isto é, como há de se estabelecer a "ligação própria que possibilita a justa isenção que libera o outro em sua liberdade para si mesmo", aspecto que ainda merecerá maior atenção mais adiante (Heidegger 1988, vol. 1, § 26, p. 177; 1986, p. 125). Trata-se aqui da investigação das condições existenciais da "modificação existenciária" que possibilitará reconfigurar o "si-impessoal" (Man-selbst) do Dasein decaído e perdido de si no âmbito das suas ocupações cotidianas compartilhadas, levadas a cabo na convivência modulada pelo "falatório", "curiosidade" e "ambigüidade" (§ 38). Como se sabe, as condições ontológicas dessa modificação se apresentam nas análises heideggerianas da "angústia" e da "antecipação da morte" enquanto instâncias do reconhecimento da própria finitude, isto é, da "possibilidade da impossibilidade absoluta" em que o Dasein foi lançado, possibilidade atestada existenciariamente pela escuta ao chamado silencioso da "consciência". É a resposta decidida ao estranho chamado da consciência que o remete de sua dispersiva familiaridade no mundo à "estranheza" originária (Unheimlichkeit) da sua destituição de um fundamento último e seguro. Apenas essa modificação do "si impessoal" que desencobre o "si mesmo próprio" pode permitir ao Dasein a possibilidade do encontro de si e dos outros em sua alteridade própria, sem o que nenhuma relação ética se faria possível.

Contudo, esta possibilidade fática é justamente aquela que os críticos do pensamento heideggeriano mais teimam em recusar, descartando pela raiz a perspectiva de encontrar qualquer implicação ética no coração da analítica existencial. Habermas (1989, p. 150), por exemplo, criticou a estrutura dualista da ontologia fundamental, na qual, pensa ele, o ser-com só seria possível no modo da "ditadura dos outros", enquanto a possibilidade fundamental de ser si mesmo em sentido próprio só se abriria para uma existência kierkegaardiana, "radicalmente isolada diante da morte" e afirmando-se no "niilismo heróico" do reconhecimento de sua "impotência e finitude". A despeito da posterior reavaliação da renovação teórica trazida à cena filosófica contemporânea por Ser e tempo, também Hannah Arendt enfatizou, em um texto de 1946, os problemas derivados da rígida contraposição heideggeriana entre o si mesmo próprio e o si-impessoal, a qual impossibilitaria o reconhecimento de que a individuação não apenas pressupõe, como até mesmo depende, do caráter originário da convivência humana em sua inerente pluralidade:

A Existenz por sua própria natureza nunca é isolada. Ela só existe na comunicação e no reconhecimento da existência dos outros. Nossos pares não são, como em Heidegger, um elemento da existência ao mesmo tempo estruturalmente necessário e um impedimento a que se seja si-mesmo; pelo contrário: a Existenz só pode desenvolver-se no estar junto dos homens em um mundo comum dado. (Arendt 1990, p. 47)

Neste mesmo artigo, Arendt sintetizava seus argumentos ao afirmar que

a característica mais essencial do si mesmo é sua absoluta ipseidade [absolute Selbstigkeit], sua separação radical de todos os seus pares. Heidegger introduziu a antecipação da morte como um existencial a fim de definir este caráter essencial, pois é na morte que o homem efetiva o principium individuationis absoluto. Apenas a morte o arranca de sua conexão para com seus pares, que, enquanto si-impessoal, impedem-no constantemente de ser si mesmo [Selbstsein]. Embora a morte seja o fim do Dasein, ela é ao mesmo tempo aquilo que garante que o que importa em última instância sou eu mesmo. Com a experiência da morte como a nulidade enquanto tal [Nichtigkeit schlechthin], tenho a oportunidade de dedicar-me exclusivamente a ser um si-mesmo e, no modo da culpa axiomática, libertar-me de uma vez por todas do mundo comum que me envolve. (p. 37)8

Ainda nesta mesma linha argumentativa, Levinas afirmaria que

a relação fundamental do ser, em Heidegger, não é a relação com outrem, mas com a morte, em que tudo que há de não-autêntico na relação com o outro se denuncia, pois se morre sozinho. (Levinas 1988c, p. 50-1)

De fato, a partir da análise da disposição fundamental da angústia, no § 40, Heidegger orienta a analítica na direção de uma radical dissolução da trama da significância secretada pelo Dasein em suas ocupações cotidianas compartilhadas. A disposição da angústia é o modo da abertura deste ente em que ele é trazido para "diante de si mesmo em seu próprio ser", revelando-se, assim, o que antes perfazia a imperceptível fuga de si para a prisão "tentadora", "tranqüilizante" e "alienante" da interpretação pública de si e dos outros (§ 38). A angústia é angústia diante do "ser-no-mundo como tal" e, nela, o manual intramundano e a coexistência dos outros "afundam" temporariamente na "insignificância" (Unbedeutsamkeit), a tal ponto que o mundo das ocupações e preocupações em que o Dasein cotidianamente decai, ao mostrar-se por um instante em seu "nada", deixa de operar como o horizonte da interpretação pública de si, dos entes intramundanos e dos outros. A angústia revela o Dasein como "ser-possível", como "ser-livre para a liberdade de escolher-se e apreender-se", trazendo-o para diante da possibilidade que ele já é (Heidegger 1988, vol. 1, § 40, pp. 250-3; 1986, pp. 186-8, tradução modificada). Em outras palavras, a angústia é a disposição que abre o Dasein para a compreensão da morte como a sua "possibilidade mais própria, irremissível e insuperável", desencobrindo o "ser para a morte" de que o Dasein cotidiano foge ao ocupar-se e preocupar-se (Heidegger 1988, vol. 2, § 50, pp. 32-3; 1986, pp. 250-1). Como ninguém pode substituí-lo em sua morte, o Dasein "só pode ser propriamente ele mesmo quando dá a si essa possibilidade", de sorte que nem o ser-junto a uma ocupação nem o ser-com os outros podem ser instâncias de uma individuação radical, capaz de lhe revelar seu poder-ser mais próprio. A modificação existenciária que arranca o Dasein do si-impessoal e o entrega a si mesmo em sua propriedade dá-se como a "recupe- ração de uma escolha", pois apenas quando escolhe o escolher ele torna possível o seu próprio poder-ser (Heidegger 1988, vol. 2, § 54, p. 53; 1986, p. 268).

No entanto, é lícito questionar: como é que o Dasein pode recuperar a possibilidade de escolher por si próprio se, no mais das vezes, ele escolhe como todos os outros escolhem, isto é, à luz da ditadura do público e do si-impessoal? Para que o Dasein perdido no impessoal se encontre, faz-se necessária uma "testemunha" que o revele como sendo o ente que já é sempre a sua possibilidade de ser si mesmo, e Heidegger encontra na "consciência" e em seu "clamor" silencioso esta instância originária. Se a consciência discursa tão-somente no "modo do silêncio" isto não a remete ao plano das potências misteriosas, mas indica apenas que o seu clamor não pode ser planejado nem vem de um outro de quem se pudesse esperar qualquer mensagem comunicativa, mas "provém de mim e, no entanto, por sobre mim", alcançando-me de maneira total e indubitável sem que eu seja o agente deste efeito, que se impõe sem que eu possa esperá-lo ou querê-lo (Heidegger 1988, vol. 2, § 57, p. 61; 1986, p. 275). É o clamor da consciência que dá a compreender ao Dasein sua "propriedade" e "seu ser-em-débito" (Schuldigsein) mais próprio, condição ontológica de suas dívidas, faltas e responsabilidades cotidianas para consigo e com os outros. O "débito originário" só pode ser pensado como modo de ser do Dasein e nunca como falta ou violação das prescrições que estabelecem o que deve e pode ser feito, em função de que podem-se atribuir culpas morais ou legais. Em outras palavras, o fundamento ontológico de todas as faltas possíveis não pode ter ele mesmo o caráter de um "não" privativo, mas tem de ser pensado positivamente.

Como o ente cujo ser é a "cura" (Sorge), o Dasein existe lançado no mundo em que se projeta e cotidianamente decai. Entretanto, se ele é o fundamento lançado de seu "ter-de-ser", trata-se aí de um fundamento que não se fundou a si mesmo, pois o Dasein, desde que é, já se encontra lançado nas possibilidades mundanas em que se projeta. Ser o fundamento lançado é assumir-se como "poder-ser" sem jamais assenhorar-se de uma vez por todas de si mesmo: "sendo fundamento, o Dasein é em si uma nulidade (Nichtigkeit) de si mesmo", pois não pode assumir como seu o projeto em que é-lançado. Além disto, sendo "livre" para suas possibilidades existenciárias, ele continuamente abdica de todas as outras que não escolheu, visto que a liberdade de escolher implica ter de suportar não ter escolhido todas as outras possibilidades. Assim, "enquanto lançado, o projeto não se determina apenas pelo nada de ser-fundamento. Enquanto projeto, ele é essencialmente um nada".O nada do estar-lançado e o nada do projeto condicionam ontologica- mente a "possibilidade do nada" da impropriedade do Dasein decaído nas ocupações do mundo circundante, donde a conclusão heideg- geriana de que, "Em sua essência, a cura está totalmente impregnada do nada. A cura - o ser do Dasein - enquanto projeto lançado diz, por conseguinte: o ser-fundamento (nulo) de um nada" (Heidegger 1988, vol. 2, § 58, pp. 72-3; 1986, pp. 284-5, tradução modificada).9

Assim, a modificação existenciária que restitui o si mesmo próprio dá-se enquanto escuta que compreende propriamente o clamor da consciência, isto é, enquanto um "querer-ter-consciência" do "ser-em-débito" originário que o Dasein é continuamente, compreensão a que corresponde a "decisão antecipadora" de assumir-se como o mortal que ele é (Heidegger 1988, vol. 2, § 62, p. 98; 1986, p. 306 e passim)10 Na escuta e compreensão próprias do clamor inefável da consciência, que nada exprime, nada indica e nada tem a dizer pois diz "o nada que originariamente domina o ser do Dasein" (Heidegger 1988, vol. 2, § 62, p. 98; 1986, p. 306), a interpretação mundana e cotidiana de si e dos outros é "ultrapassada" e reduzida à "insignificância". Isto equivale a afirmar que o Dasein é subitamente arrancado do conforto tranqüilizante da familiaridade ruidosa em que, o mais das vezes, se dá sua compreensão de ser, para ser trazido à singularidade silenciosa e estranha (unheimlich) de seu poder-ser mais próprio:

A compreensão do clamor da consciência desentranha a perdição no impessoal. A decisão recupera o Dasein para o seu poder-ser si-mesmo mais próprio. É na compreensão do ser-para-a-morte enquanto possibilidade mais própria que o poder-ser próprio se torna totalmente transparente em sua propriedade. Na aclamação, o clamor da consciência ultrapassa todo prestígio e poder "mundanos" do Dasein. O clamor singulariza o Dasein inexoravelmente em seu poder-ser em débito, dispondo-o a ser propriamente aquilo que é. (Heidegger 1988, vol. 2, § 62, p. 99; 1986, p. 307, tradução modificada)

Em outras palavras, é apenas na "estranheza", modo fundamental do ser-no-mundo, que este ente reúne-se no face a face com seu poder-ser mais próprio, num "conhecimento de si" que se compreende em sua finitude constitutiva, como o "nada inconfundível" de sua precariedade (Heidegger 1988, vol. 2, § 58, p. 75; 1986, pp. 286-7).

A despeito da ênfase concedida à angústia, à estranheza e à morte na análise do tornar-se si mesmo em sentido próprio, em momento algum Heidegger poderia ter estabelecido uma rígida contraposição hierárquica entre as possibilidades positivas de ganhar-se ou perder-se, entre o si mesmo próprio singularizado em sua estranheza originária e o si-impessoal perdido nas ocupações compartilhadas com os outros. Pelo contrário, Heidegger chega mesmo a afirmar que apenas um "muro tênue separa o impessoal da estranheza de seu ser" (Heidegger 1988, vol. 2, § 57, p. 64; 1986, p. 278), de maneira que os modos da ocupação e da preocupação não podem ser "descartados de seu ser próprio em sua propriedade" (Heidegger 1988, vol. 2, § 53, p. 47; 1986, p. 263). Por isto mesmo, fala-se apenas em modificação ou modalização existenciária da impro-

priedade da relação para consigo, para com os outros e para com os entes intramundanos, sem que se pretenda em momento algum abolir a cotidianidade, o ser-com e o si-impessoal aí vigente. Afinal, a existência própria não sobrevoa a decadência do cotidiano, mas tem de ser compreendida existencialmente como uma "apreensão modificada da cotidianidade" (Heidegger 1988, vol. 1, § 38, pp. 240-1; 1986, pp. 178-9). O argumento heideggeriano afirma tão-somente que

o Dasein é propriamente si mesmo apenas na medida em que, como ser-junto a... na ocupação e ser-com na preocupação, ele se projeta primariamente para o seu poder-ser mais próprio, e não para a possibilidade do si-impessoal. (Heidegger 1988, vol. 2, § 53, p. 47; 1986, p. 263, tradução modificada)

O mesmo argumento se exprime ainda na seguinte passagem:

A aclamação do si-impessoal significa conclamar o si-mesmo mais próprio para assumir o seu poder-ser, e isso enquanto Dasein, ou seja, enquanto ser-no-mundo das ocupações e ser-com os outros. (Heidegger 1988, vol. 2, § 58, p. 67; 1986, p. 280, tradução modificada)

As mesmas ressalvas já se faziam presentes na menção ao "`solipsismo' existencial" implicado na "singularização" proporcionada pela disposição fundamental da angústia, que abre o Dasein como solus ipse para sua estranheza ao romper subitamente a sua familiaridade com a trama da significância tecida com os fios da interpretação pública. Também naquela passagem do § 40, Heidegger se apressava em qualificar tal solipsismo afirmando que ele "não dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo", visto que o "Dasein se singulariza, mas como ser-no-mundo" (Heidegger 1988, vol. 1, § 40, pp. 252-3; 1986, pp. 188-9). Se os outros não são partícipes desse processo de individuação, não há qualquer recusa da originariedade do ser-com os outros nem qualquer isolamento ou egoísmo metafísico implicado no principium individuationis descrito por Heidegger, o qual tem conseqüências intrínsecas no que diz respeito à relação do Dasein para com os outros, como, de resto, torna-se claro na sua afirmação de que "enquanto possibilidade irremissível, a morte singulariza somente a fim de tornar o Dasein compreensivo para o poder-ser dos outros, na condição do ser-com" (Heidegger 1988, vol. 2, § 53, p. 48; 1986, p. 264). Estes argumentos encontram sua síntese mais enfática no § 60, em que se explicita de maneira mais expressa a dimensão ética da analítica, motivo pelo qual a passagem merece ser citada mais longamente:

Com a decisão conquistamos, agora, a verdade mais originária do Dasein, porque a mais própria. [...] Essa abertura própria, porém, modifica, de forma igualmente originária, a descoberta do "mundo" e a abertura da coexistência dos outros nela fundada. Quanto a seu "conteúdo", o "mundo" à mão não se torna um outro mundo, o círculo dos outros não se substitui, embora, agora, o ser para o que está à mão, em sua compreensão e ocupação, e o ser-com da preocupação com os outros, sejam determinados a partir de seu poder-ser mais próprio. A decisão não desprende o Dasein, enquanto ser-si-mesmo mais próprio, de seu mundo, ela não o isola num eu solto no ar. E como poderia se o Dasein, no sentido da abertura própria, nada mais é propriamente do que ser-no-mundo? [...] Somente a decisão de si mesmo coloca o Dasein na possibilidade de, sendo com os outros, se deixar "ser" em seu poder-ser mais próprio e, juntamente com este, abrir a preocupação que libera numa antecipação. O Dasein decidido pode se tornar a "consciência" dos outros. Somente a partir do ser si mesmo mais próprio da decisão é que brota a convivência própria, e não dos compromissos ambíguos e invejosos das alianças tagarelas características do impessoal, e nem de qualquer coisa que, impessoalmente, se queira empreender (Heidegger 1988, vol. 2, § 60, pp. 87-8; 1986, pp. 297-8, tradução modificada, itálicos meus).

Resta ainda questionar se uma tal conclamação ao "ser em débito" mais próprio, ou se a decisão que assume a existência como o "fundamento nulo de seu nada", não constituem um convite perverso ao "mal" (Bosheit). Ora, o reconhecimento da nulidade que marca indelevelmente o fundamento do Dasein como o "ser-lançado na morte" (§ 62) não implica nem uma indiferença nem um incentivo à prática do mal, mas, por outro lado, uma saudável desconfiança diante das "regras manejáveis" e das "normas públicas" concernentes às satisfações e insatisfações cotidianas da convivência, suspendendo todo "cálculo" e "negociação" entre o Dasein e sua consciência. A consciência não adverte, censura ou gratifica, não é instância de uma voz universal e nada tem que ver com a consciência pública acerca do bem e do mal, pois ela apenas proclama o "ser-em-débito" ontologicamente constitutivo do ser do Dasein, este sim a verdadeira "condição existencial da possibilidade do bem e do mal `morais', ou seja, da moralidade em geral e de suas possíveis configurações factuais" (Heidegger 1988, vol. 2, § 58, p. 74; 1986, p. 286). Sem que isto implique pensar a consciência como algo meramente subjetivo, o fato de que em sua essência e fundamento a consciência seja sempre minha (§ 57) é o motivo pelo qual "o clamor não dá a compreender um poder-ser ideal e universal; ele abre o poder-ser como a singularidade de cada Dasein" (Heidegger 1988, vol. 2, § 58, p. 67; 1986, p. 280). A fim de considerarmos as implicações ônticas dessas teses ontológicas, te- mos de afastar a idéia corrente de que Heidegger estivesse propondo a defesa da prerrogativa do heroísmo aristocrático ou solipsista ante a massificação niveladora dos comportamentos regrados e dos valores socialmente disseminados. Antes, e por outro lado, tratar-se-ia de chamar a atenção para a exigência de uma verdadeira apropriação do agir e de seus critérios, para o que também se requer uma cautela desconfiada diante de toda prescrição moral, diante de toda ins- tância universalizante visando oferecer garantias e indicações seguras para o agir correto e bom. De qualquer modo, contra a busca obsessi- va de critérios e certezas para o bem agir, em vista da qual se denuncia o vazio ético do chamado de uma consciência que nada prescreve, sugere ou impede, Heidegger enfatiza, por outro lado, que é apenas

a partir da expectativa de uma indicação útil das possibilidades de "ação" seguras, disponíveis e calculáveis que se sente a falta de um conteúdo "positivo" no que se clama. Essa expectativa funda-se no horizonte da ocupação que compreende e força a existência do Dasein à idéia de um todo negociável segundo regras. (Heidegger 1988, vol. 2, § 59, p. 83; 1986, p. 294, tradução modificada)

A permanecermos no plano de uma exploração das implicações éticas das teses ontológicas de Ser e tempo, pode-se afirmar que o que se espera do Dasein decidido não é que ele se sobrecarregue, de maneira irresponsável, de culpas, faltas e omissões, mas apenas que, dando ouvidos a um clamor cuja legítima compreensão o entrega à sua própria finitude, ele aja de maneira responsável, isto é, que ele responda ao cuidado de si, dos outros e dos entes intramundanos. A compreensão própria do débito ontológico não o dispensa da responsabilidade de ser e de agir, mas é a condição primeira para que ele seja "responsável" e "aja em si", arrancando-se da perdição na publicidade impessoal para ser consigo e com os outros a partir do nada de si mesmo. Somente o Dasein que se reconhece em seu "ser-para-a-morte" pode decidir-se a agir propriamente, ou seja, a apropriar-se do seu agir, assumindo responsabilidades para consigo e para com os outros sem iludir-se com critérios visando garantir o caráter moral de sua conduta. Somente o Dasein decidido terá compreendido que "toda ação em seu caráter fático é necessariamente desprovida de `consciência'", isto é, destituída de critérios racionais e objetivos válidos universalmente, e isto, não porque um tal ente possa se afirmar de maneira soberana e alheia a qualquer dívida moral, mas porque ao se reconhecer fundado "no nada de seu projeto nulo", ele sempre já se reconhece como estando "em débito com os outros". Daí Heidegger afirmar que apenas na medida em que o Dasein decidido escolhe ter consciência do débito mais próprio "subsiste a possibilidade existenciária de ser `bom'"(Heidegger 1988, vol. 2, § 58, p. 76; 1986, p. 288). Em última instância, pensa Heidegger, só se pode agir de modo responsável quando não se têm à disposição critérios ou valores capazes de assegurar a justa certeza quanto ao caráter moral da própria ação. Afinal, se a consciência não propicia indicações práticas é justamente porque, à luz das "máximas esperadas e precisamente calculadas, a consciência negaria à existência nada menos do que a possibilidade de agir" (Heidegger 1988, vol. 2, § 59, p. 83; 1986, p. 294). De uma perspectiva ôntica, agir sem dispor de garantias quanto ao caráter moral de nossas ações não significa abdicar do respeito e da responsabilidade para consigo e com os outros, mas desconfiar e opor resistência a qualquer sistema teórico, qualquer instituição social, qualquer instância ou mecanismo de manipulação, objetificação e controle, em sua pretensão de administrar a precariedade que somos.

Somente agora, ao final do percurso, se faz possível compreender tudo o que estava implicado nas enigmáticas afirmações do § 34, segundo as quais

escutar é o estar aberto existencial [existenziale Offensein] do Dasein enquanto ser-com para os outros [als Mitsein für den Anderen]. O escutar constitui até mesmo a abertura primeira e própria [primäre und eigentliche Offenheit] do Dasein para o seu poder-ser mais próprio, enquanto escuta da voz do amigo que todo Dasein traz junto a si. (Heidegger vol. 1, 1988, § 34, p. 222; 1986, p. 163, tradução modificada)11

Percebe-se agora em que sentido a escuta ao amigo que trazemos conosco é a condição para escutarmos os amigos e sermos com os outros no mundo sem lhes apagar a alteridade. Compreende-se agora, finalmente, de que modo o Dasein decidido e em sintonia consigo mesmo pode se tornar a "consciência dos outros" no modo da "preocupação que libera numa antecipação" (vorspringend-befreienden Fürsorge)(§ 60). Esta preocupação liberadora, anunciada no § 26, mas deixada indeterminada ao longo da obra, bem poderia ser exemplificada no plano ôntico enquanto uma possível forma da amizade, talvez a sua forma mais genuína e rara. Só o ente capaz de escutar o clamor do amigo que traz junto a si, um amigo cuja voz não provém de nenhum lugar do mundo mas apenas dele e por sobre ele mesmo, pode se abrir propriamente para o chamado dos outros, ouvindo-os em sua alteridade. Se a escuta da voz do amigo que todo Dasein traz junto a si é constitutiva da sua abertura para o seu "poder-ser mais próprio", isto significa, como o afirmou Derrida, que "não há propriedade, isto é, proximidade do Dasein a si, sem este `bei sich tragen' do outro diferente" na "própria ausência de um portador da voz" (Derrida 1994, pp. 356, 358). Assim, a escuta não é testemunha apenas da abertura originária que me garante a possibilidade de reconhecer o outro em sua alteridade; de modo ainda mais impor- tante, a escuta testemunha a abertura do Dasein para o outro que cada um já traz junto a si e que se manifesta pela voz silenciosa que apenas requer que eu me torne amigo do outro, que eu reconheça o outro que sou enquanto mortal, acolhendo em mim o outro-que-o-humano na antecipação da morte.

Apenas uma tal escuta primeira e fundamental a si mesmo, à alteridade que já se é, permite escutar o amigo como outro e, portanto, calar-se diante dele, abstendo-se de ditar-lhe conselhos e indicações quanto ao que verdadeiramente importa em seu existir, tanto porque ninguém está de posse de uma medida universal que pudesse esclarecer o que é objetivamente melhor para o outro, quanto porque "substituí-lo" em seus próprios cuidados e ocupações implicaria dominá-lo e mantê-lo sob o jugo da dependência, ainda que suave, tal como Heidegger o enunciara no § 26. Além deste modo positivo da preocupação em que o outro é aliviado do peso de sua existência, protegido da sua responsa- bilidade ou simplesmente visto como objeto de interesse, desconfiança ou temor, Heidegger também considerou um outro modo positivo e extremo da preocupação, no qual o pôr-se diante do outro não suprimiria nem supriria suas ocupações, mas cuidaria do outro ao restituir-lhe ao próprio cuidado de si. Trata-se do modo da preocupação que concerne ao encontro da "existência do outro" em seu poder-ser mais próprio, e que o ajuda a tornar-se "livre" e "transparente" para o que ele propriamente é (Heidegger vol. 1, § 26, p. 177; 1986, p. 125). Ora, a amizade em um sentido não convencional ou tradicional é justamente este modo raro da convivência, em que o tornar-se a "consciência do outro" não implica proferir-lhe exortações morais, mas, sim, um falar que não oponha a claridade à escuridão, preservando assim a precariedade que garante a possibilidade da amizade no encontro genuíno. Em dois poemas exemplares, "Distâncias" e "Fala também tu", Paul Celan (1999, p. 53 e 59) expressou essa possibilidade precária de um tal dizer e de um tal compartilhar na distância que buscamos detectar nas formulações teóricas de Ser e tempo:

Olho no olho, no frio,
deixa-nos também começar assim:
juntos
deixa-nos respirar o véu
que nos esconde um do outro ...

FALA TAMBÉM TU
fala por último,
diz teu falar.

Fala -
Mas não separa o não do sim.
Dá ao teu falar também o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanto sabes dividir em ti entre
meia-noite e meio-dia e meia-noite.

Olha em volta
vê a vida ao redor -
Na morte! Viva!
Fala a verdade quem sombras fala.12

Tais considerações buscaram evidenciar que se Heidegger não elaborou uma ética, nem por isto seu pensamento tornou-se surdo para a alteridade. Pelo contrário, o pensamento heideggeriano nos mostra que no resguardo da precariedade o cuidado de si é também cuidado do outro.

 

Referências bibliográficas

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Reis, Róbson R. 1998: "Ouvir a voz do amigo...", Veritas, Porto Alegre, 43(1).

Taminiaux, Jacques 1992: La fille de Trace et le penseur professionnel. Paris, Payot.

Villa, Dana 1996: Arendt and Heidegger: the Fact of the Political. Princeton, Princeton University Press.

Vogel, Lawrence: 1994: The Fragile `We': Ethical Implications of Heidegger's Being and Time. Evanston, Northwestern University Press.

Wolin, Richard: (1990) The Politics of Being: the Political Thought of Martin Heidegger. New York, Columbia University Press.

 

 

1 Como afirmou Robert Bernasconi, "Isto não significa que escrever sistemas éticos seja impossível, mas apenas que qualquer tentativa de fazê-lo é uma negação da relação ética, embora tal negação, felizmente, jamais possa ser completa" (Cf. Bernasconi 1993, p. 223).
2 Cf. Heidegger 1988, vol. 1, § 2, p. 33; 1986, 7. Doravante, citaremos a página da tradução brasileira seguida da página da edição original referida. Eventuais modificações no texto da tradução serão indicadas ao final de cada citação.
3 Por certo, tanto quanto para Heidegger, também para Levinas a ética já não poderia mais compartilhar das certezas da metafísica. Entretanto, ele próprio afirmou expressamente "a necessidade profunda de deixar o clima" da filosofia de Heidegger, reconhecendo, porém, que "não se pode sair dela em favor de uma filosofia que se poderia qualificar de pré-heideggeriana" (Cf. Levinas 1988b, p. 18).
4 Segundo a formulação de Loparic, "Diferentes, ser e ente não são um, sem, contudo, serem dois" (Loparic 1995, p. 22).
5 Para Derrida, o "ser, não sendo nada fora do ente [...] não poderia precedê-lo de nenhum modo, nem no tempo, nem em dignidade etc. [...] Assim, não se poderia falar legitimamente em `subordinação' do ente ao ser, em subordinação da relação ética, por exemplo, à relação ontológica. Pré-compreender ou explicitar a relação implícita com o ser do ente não é submeter violentamente o ente (por exemplo, alguém) ao ser. O ser não é senão o ser-deste ente [l'être-de cet étant] e não existe fora dele como uma potência estrangeira, um elemento impessoal, hostil ou neutro. A neutralidade tão freqüentemente denunciada por Levinas não pode ser senão o caráter de um ente indeterminado, de uma potência ôntica anônima, de uma generalidade conceitual ou de um princípio" (Derrida 1967, pp. 200, 208).
6 Sobre as relações entre Heidegger e Levinas, ver também Loparic (1990, cap. VII), Bernasconi (1993, cap. 12), Bernasconi (1991) e Llewelyn (1995).
7 Na Carta sobre o "humanismo", Heidegger enfatiza que "(...) os títulos, `propriedade' e `impropriedade', que preludiam a decadência, não significam uma distinção moral-existenciária nem antropológica, mas a referência `ec-stática' da essência do homem à verdade do ser" (Heidegger 1995, pp. 53-4; 1976, pp. 332-3).
8 Para uma avaliação detalhada da relação entre Arendt e Heidegger, ver Duarte (2000), Villa (1996), Taminiaux (1992).
9 Segundo a formulação de Loparic (1995, p. 18), o estar-aí existe [...] como projeto lançado. Enquanto projeto ou existência em sentido estrito, o estar-aí "deixa estar", ele institui (stiftet) as possibilidades de manifestação do ente no seu todo (inclusive de si mesmo, como ente concreto). Nesse sentido, ele é o fundamento soberano de toda possibilidade e de todo sentido (do afim-de-que, das Worumwillen). Enquanto lançado, entretanto, o estar-aí nunca pode superar o fato de que o seu projetar (ec-sistir) carece de fundamento. Desse ponto de vista, ele é um fundamento nulo (nichtig), que pode apenas assumir a sua nulidade ou nadidade (Nichtigkeit) a título de projeto que, desde já, tomou chão no mundo e se envolveu com as possibilidades "mundanas" (realizáveis no mundo) nas quais se enredou ou cresceu, e que constituem a sua facticidade (Cf. Loparic 1995, p. 18).
10 Observe-se que nem a "decisão" nem o "querer-ter-consciência" podem ser entendidos em termos do primado moderno da vontade como faculdade do sujeito que representa fins e age para consumá-los. Como Heidegger afirma em A origem da obra de arte, "a decisão pensada em Ser e tempo não é a ação decidida de um sujeito, mas sim o abrir-se (Eröffnung) do Dasein do aprisionamento no ente para a abertura (Offenheit) do ser" (Cf. Heidegger 1992, p. 54 ; 1994, p. 55, tradução modificada).
11 A este respeito, ver também Derrida (1994), Finsk (1993), Vogel (1994) e Reis (1998).
12 Devo essa referência ao meu amigo Juliano Garcia Pessanha.