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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.1 São Paulo jun. 2000

 

ESTUDO DE CASO

 

Sobre O homem morto que caminha

 

On Dead man walking

 

 

Edna Pereira Vilete

Médica, Psicanalista da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

A partir do filme de Tim Robbins, Dead Man Walking, a autora busca entender os atos e a personalidade de Matthew Poncelet, personagem condenado à morte por um assassinato cruel. A relação do assassino com a freira que o acompanha, dando-lhe suporte baseado em empatia e verdade, permite a integração do seu self, com o reconhecimento e aceitação de sua finitude. Os conceitos teóricos de Winnicott sobre a origem da agressividade e do desenvolvimento infantil, bem como sobre a relação da mãe com seu bebê, fundamentam as idéias aqui apresentadas.

Palavras-chave: Agressividade, Morte, Empatia, Verdade, Integração.


ABSTRACT

The author tries to understand the behavior and the personality of Matthew Poncelet, from a Tim Robbins' film called Dead Man Walking. This character was sentenced to death due to a cruel murder. In the film, the relationship between the killer and a nun gave him support based on empathy and truth. This permitted the integration of his self with the recognition and the acceptance of his finitude. The ideas presented in this paper were established based on Winnicott's concepts about the origin of aggressiveness and of infant development, as well as the relationship between the mother and her baby.

Keywords: Aggressiveness, Death, Empathy, Truth, Integration.


 

 

I

Ao trazer sua contribuição original à teoria da agressão, Winnicott nos oferece uma perspectiva de esperança. Deixando de vincular a destrutividade a um instinto de morte (que considerava uma reafirmação do pecado original) ele possibilita a compreensão de um caleidoscópio de variáveis, que surgem como resultado das interações entre a força vital do bebê e o seu ambiente.

Uma oportunidade privilegiada para se compreender a agressão e a destrutividade existe nas situações extremas, como nos atos criminosos. Ao mesmo tempo, quando utilizamos os recursos da Psicanálise Aplicada, podemos compartilhar uma vivência, uma experiência comum, à diferença do material clínico trazido pelo psicanalista que a viveu solitário em seu trabalho. Por isto, quero trazer-lhes a história de Matthew Poncelet, apresentado em um filme de Tim Robbins e magnificamente interpretado por Sean Penn.

Condenado à pena de morte, Matthew pede ajuda à freira Helen Prejean. Aguardando há 6 anos, na prisão, a data da execução, ele necessita de um advogado para fazer a apelação da sentença e o solicita à freira. Começa, então, um relacionamento entre os dois que vai até o momento em que Matt é executado.

Matthew foi condenado por um crime hediondo. Ele e seu cúmplice abordam dois adolescentes que namoravam no carro, estupram e esfaqueiam a moça por todo o corpo e, em seguida, os matam, atirando em suas cabeças. Desde o início Matt se defende e acusa o parceiro dos assassinatos, queixando-se de que somente ele tenha sido condenado à morte. Nem mesmo se sente responsável, justificando-se por estarem os dois "doidões", há dois dias sem dormir e sem sequer saber o que faziam. "Carl ficou maluco" conta Matt, "fiquei com medo. Fiz o que ele mandou, mas não matei ninguém, juro por Deus".

Na audiência de apelação, seria favorável o comparecimento da mãe de Matt. De imediato, ele recusa, acreditando que de nada vai adiantar e diz: "Vai ser só choradeira". Realmente, ao longo do filme, vemos a reação da mãe aos acontecimentos, sua postura encolhida, o rosto sofrido e o choro convulso. Entretanto, diante da insistência da irmã Helen, que diz ser importante para a mãe tentar salvá-lo, ele responde: "Vou pensar, mas tenho o meu orgulho. Não vou me humilhar na frente desta gente!".

Matthew é jovem, parece ter pouco mais de 30 anos e, desde os 16, uma história de delinqüência, com uma prisão anterior. Usa cavanhaque, o cabelo arrumado em um topete, gaba-se das muitas namoradas que teve e que o assediavam. Já na segunda entrevista se insinua, sedutor, para a irmã Helen: "Gosto de ficar sozinho com você. Acho-a muito atraente". Embora inicialmente desconcertada, e constrangida, logo ela lhe responde com firmeza: "Olhe para você! A morte o está rondando e você bancando o macho. Não estou aqui para diverti-lo. Respeite-me!". "Por que devo respeitá-la?", pergunta, "Porque é uma freira?". Ela responde: "Porque sou uma pessoa. E todas as pessoas merecem respeito".

Ao contrário, ele mostra seus preconceitos. Não gosta de negros. "A escravidão já acabou", diz, "e ainda reclamam. Não gosto de gente que se faz de vítima. Gosto de rebeldes".

Em uma entrevista na TV, fala de uma irmandade ariana, e de sua admiração por Hitler. "Era um líder! Pode ter exagerado, mas ele tinha a idéia certa!".

"Você tem que ser apresentado como um ser humano", já havia recomendado seu advogado, "para que poupem sua vida. Vão pensar no crime e em você como um monstro. É mais fácil matar um monstro do que um ser humano". Apesar de ser também advertido por ele de que não gostariam de ver um assassino dando palpites sobre política, mais adiante declara, em um jornal, que não gosta do governo americano, que, se pudesse, começaria de novo e faria uma coisa útil, como virar terrorista e explodiria prédios do governo.

Sua arrogância se mostrara já, desde o julgamento. Na entrada do tribunal, ao encontrar, de passagem, os pais da jovem que violentou, diz, irônico, provocador: "Não vou para a cadeira elétrica". Chama o juiz de "chefe" e, mesmo quando o júri o declara culpado, sorri com desdém.

Os episódios acima descritos deixam também evidentes os mecanismos de dissociação de Matthew. Helen fica indignada com ele, por suas declarações na mídia e lhe diz: "Quem lê isso pensa que você é louco. Admirador de Hitler? Terrorista? Explodir gente?". Matthew esclarece: "Não disse gente, prédios do governo, não gente!", "Como explodir um prédio sem machucar alguém?", pergunta a freira, acrescentando: "Você é um tolo! Está facilitando tudo para matarem você. Fazendo-se de nazista doido que merece morrer".

Esta falta de integração que lhe permitiria compreender os significados dos seus atos e palavras, bem como suas conseqüências, é tão extrema que nos surpreendemos com sua resposta à pergunta de Helen: "Você já pensou naqueles jovens?". Como se fosse um espectador da tragédia e não o seu autor, diz: "É terrível o que aconteceu com eles". Grave, a freira tenta corrigir o seu engano: "Sobretudo porque não tinha que acontecer".

Helen prossegue, tentando fazer com que ele sinta os sentimentos alheios: "Já pensou no que você e Vitello fizeram aos pais deles?". Ele responde: "É difícil sentir pena, quando estão tentando me matar". "Então pense", insiste Helen, "os filhos deles foram mortos, estuprados e deixados na mata para morrerem sozinhos. Como você se sentiria se isso acontecesse a você? O que iria querer fazer com o assassino?". "Ia querer matá-lo", concorda Matthew. Em momentos anteriores, quando a conversa se dirigia para o que acontecera na noite do crime, Matthew se esquivava dizendo: "não quero falar disso" ou "vamos mudar de assunto". Desta vez, entretanto, reafirma sua inocência: "Eu entendo o que eles sentem, mas estão atrás da pessoa errada". Bruscamente acrescenta: "Quero o detector de mentiras". Diante do espanto de Helen, esclarece: "Não vai mudar nada, mas quero que minha mãe saiba que não matei ninguém".

A apelação é recusada, e a três dias da execução Matthew conclui: "Então é o fim. Minhas férias na casa da morte.".

A irmã Helen não tivera, até então, contato com criminosos, nem realizara semelhante trabalho. O capelão do presídio discorda de que seja ela, tão inexperiente, a pessoa destinada a acompanhar Matt: "São todos trapaceiros", adverte ele, "eles se aproveitarão de você tanto quanto puderem".

Às vésperas da execução, quando Matthew lhe fala do fim, Helen lembra-o de Jesus e das passagens do Novo Testamento em que ele enfrentara a morte sozinho. Matt contesta, recusando o modelo de humildade que Jesus representa, dizendo: "Ele ofereceu a outra face, vemos as coisas de modo diferente".

Helen argumenta que é preciso força para tanto e apresenta uma versão diferente de Jesus, como um rebelde que defendeu as prostitutas, os mendigos, os pobres e esquecidos. Por terem sido respeitados e amados, eles passaram a se valorizar e se tornaram fortes, ameaçando os poderosos, que teriam, por isso, matado Jesus. Mostrando, ainda uma vez, a visão distorcida que tem de si mesmo, Matt se anima: "Como eu, certo?". "Não, não é como você. Ele mudou o mundo com amor. Você ajudou um assassino".

Ao chegar a data da execução, a realidade da morte, da finitude, se impõem. Na véspera, haviam sido tomadas as medidas de Matthew para confeccionar o caixão, e os relógios passam, daí por diante, a marcar o tempo no dia que transcorre. À meia noite, ele deve ser executado com uma injeção letal.

Pela manhã, ele trapaceia com Deus. Indagado pela irmã se havia lido a Bíblia na noite anterior, contesta dizendo que o texto o fazia ficar sonolento e ele não queria dormir. Agradece o esforço da freira em tentar salvá-lo, mas conclui em um tom soberbo: "Deus e eu temos um acordo. Sei que Jesus morreu na cruz por nós. Sei que vai cuidar de mim no dia do Juízo".

Helen esclarece que a redenção não é uma entrada franca porque Jesus já pagou, e que cada pessoa tem que fazer sua própria redenção, o que é trabalhoso. Fala, ainda, sobre o capítulo 6 da Epístola de João, em que Jesus diz: "Saberás a Verdade e a Verdade te libertará". Matthew gosta da frase e vê nela a solução do seu problema: "Se eu passar pelo detector de mentiras, eu consigo".

Somente a três horas da execução sua angústia se torna evidente, e ele confessa que não dormira na noite anterior: "Estou cara a cara com a morte". Só então fala da execução, do seu medo de sofrer, de demorar a morrer. "Coitada da minha mãe", diz, e pede, ainda, que Helen fique com ele: "Vou precisar de alguém até o final".

O detector mostra resultados inconclusivos, pois o stress dos momentos finais poderia ser confundido com a mentira. Sem se dar conta Matt se denuncia ao dizer: "Eu não senti stress. O cara tem certeza?". E, inconformado: "Não acredito que falhou, que não deu certo!"

A freira insiste, então, que fale sobre aquela noite, mas Matt recusa e se mostra irado, revoltado, porque os pais dos jovens vão vê-lo morrer, e ameaça dizer, para eles, palavras de ódio.

"Por que tinha que estar lá naquela noite? Você admirava Vitello, queria impressioná-lo?", pergunta Helen, tentando entender o que acontecera, mas Matt continua se esquivando, desculpando-se, acusando novamente o cúmplice, provocando, assim, a ira, a impaciência de Helen, que acaba por lhe dizer: "Não o culpe, você culpa Vitello, o governo, as drogas, os negros, os Percy, o casal por estar lá...". "E onde está Matthew Poncelet nisto tudo? Inocente, vítima?".

O diretor do presídio se aproxima, avisando que o tribunal de apelação havia negado outra vez o seu pedido e os procedimentos para a execução são feitos. Ele telefona para se despedir da família e chora: "Eu não era assim, mãe... Eu era... eu era pequeno". "Por que fiz isso?".

Fica pesaroso depois, ao lado de Helen, que olha com angústia para ele e para o relógio. Percebendo que ele sacode a cabeça, pergunta-lhe o que se passava. E só então, a trinta minutos da meia-noite, Matt fica diante da sua verdade. "Minha mãe fica dizendo que foi Vitello, que eu não devia ficar com ele. Não queria que pensasse assim. Foi como você disse, eu podia ter ido embora. Mas não fui, eu fui vítima, fui um maldito covarde. Ele era mais velho e durão, e eu tentava ser tão duro quanto ele. Não tinha coragem de enfrentá-lo. Disse à minha mãe que eu era covarde. Ela dizia que não era eu. "Não foi você, Matt, não foi você."

Chorando, conclui: "o rapaz... Walter... eu o matei".

Chora, silenciosamente, e confessa que, na véspera, ajoelhou-se e rezou pelos dois. "Nunca fiz isso antes".

Mais adiante olha o relógio, apruma-se, engole o choro:

"O tempo voou. Estou com frio". Matt treme de medo.
Ao ser chamado, afinal, ele protesta, querendo as suas botas: "Um marmanjo morrendo de fraldas e pantufas?".

O guarda que conduz o cortejo para a câmara de execução grita, anunciando: "Dead man walking" (Homem morto caminhando).

 

II

No primeiro encontro com a irmã Helen, a mãe de Matt lhe mostra o seu desconsolo: "Tento entender o que fiz de errado. Ele começou a se meter em encrencas aos 15 anos". Na audiência, diz ao júri que ele sempre fora um bom menino e, porque então se descontrola e chora, não chega a mostrar os retratos que trouxera: um bebê risonho, um menino pequeno, parecendo feliz e envolvido com um brinquedo.

Esta é a questão que nos desafia - médicos, psicanalistas e educadores - o que transforma um bebê risonho em um assassino cruel?

Quando pensamos na história de Matthew, no perfil que o autor vai traçando do personagem, o orgulho e a arrogância são as características que sobressaem. "Não vou deixar que me humilhem", diz em mais de um momento, ao longo do filme. "Peço que Deus sustente as minhas pernas na caminhada final", uma caminhada na qual, a propósito, ele insiste em querer usar as suas botas.

Orgulho, vaidade, arrogância, onipotência, uma suscetibilidade a se sentir humilhado, fazem-nos lembrar do pensamento de Winnicott de que a criança pode sentir a realidade externa - o princípio de realidade - como um insulto. Este e inúmeros outros importantes pensamentos e conceitos se ramificam e se entrelaçam na sua teoria de desenvolvimento. Dentre eles, a vivência do bebê de um objeto subjetivo - a ilusão de que a mãe é uma extensão sua, de que faz parte do seu self. Para tanto, sabemos que a mãe devotada necessita emprestar seus recursos de ego ao bebê, livrando-o, assim, do desamparo que viveria se percebesse sua verdadeira condição de extrema necessidade e dependência. Esta ilusão é uma experiência de onipotência e, sem ela, acreditava Winnicott, não seria possível à criança desenvolver uma capacidade de reconhecer e aceitar a realidade externa, aceitar a existência do mundo do não-eu e estabelecer uma relação com ele.

O reconhecimento, o desenvolvimento dessa capacidade, esta transição é, entretanto, para Winnicott, potencialmente dolorosa e, por isto, cabe à mãe mais esta tarefa - a de apresentar o mundo à criança em pequenas doses.

Estas suas idéias, das vicissitudes que as crianças enfrentam no reconhecimento do não-eu, complementam-se com as de outros autores, estudiosos do desenvolvimento humano, em especial com as de Margaret Mahler (1977), em sua pesquisa sobre o processo de separação-individuação vivido pelo bebê.

Em todo este processo, interessa-nos a fase aguda em que a criança, por seu desenvolvimento perceptual e amadurecimento, não pode mais recusar a constatação de ser a mãe uma pessoa separada, com existência própria. Isto se faz acompanhar de uma consciência paralela, de que terá que lidar com o mundo por conta própria, ela se vendo, agora, pequena e indefesa. Tal percepção é a ruína da experiência anterior de grandeza e onipotência de que se achava até então possuída, e que atingira um clímax quando aprendeu a caminhar.

A partir, assim, de Winnicott e Mahler, podemos considerar este momento um ponto crucial do desenvolvimento humano; o princípio do prazer será substituído pelo princípio de realidade, o narcisismo primário do bebê e a crença em sua própria onipotência, e na dos pais, deve ceder, dando lugar ao funcionamento autônomo do ego, investido agora com um narcisismo secundário sadio, que surge através das capacidades reais e das aquisições e conquistas da criança.

O ambiente deve favorecer para que esta transição seja gradual e não traumática, respeitando a vulnerabilidade narcísica da criança, e sua ambivalência em querer funcionar, ora de maneira independente, ora insistindo em uma coerção aos pais para que continuem, por vezes magicamente, atendendo a suas necessidades e desejos.

Os que acompanham o crescimento de uma criança nesta fase, conhecem sua insaciabilidade, sua insatisfação geral, com rápidas oscilações de humor e acessos temperamentais de raiva - as birras - que então acontecem, e que exigem dos pais, mais do que nunca, paciência e disponibilidade. A ausência de empatia, entretanto, de compreensão da fragilidade e do sofrimento da criança, pode deixá-la para sempre entregue a um sentimento de desamparo ou, então, acentuar atitudes desafiantes que representam uma luta para resgatar a onipotência perdida. A criança pode, a partir destas vivências, utilizar recursos egóicos que são mecanismos de autodefesa, visando um propósito que Winnicott já descreveu, relacionado a etapas anteriores.

O que vemos claramente", diz ele, é uma organização na direção da invulnerabilidade. Devemos esperar diferenças de acordo com o estágio de desenvolvimento emocional no qual o adulto, a criança ou o bebê adoecem. O que é comum, a todos os casos, é isto - o bebê, a criança, o adolescente ou o adulto nunca mais devem vivenciar a angústia impensável [...] vivenciada inicialmente em um momento do fracasso das provisões ambientais. (1968c, p. 154)

Dentre as organizações de defesa então estabelecidas Winnicott categoriza a do falso self. Nela podemos inserir o self grandioso e relacioná-lo a Matthew Poncelet, quando se vê, por exemplo, sua pretensão em se igualar a Jesus Cristo, sua admiração por um líder como Hitler, ou a auto-imagem que possui de um rebelde destruidor. A propósito, lembrando Otto Kernberg, nesse falso self, a grandiosidade e a auto-idealização patológica são reforçadas pelo sentimento de triunfo sobre o medo e a dor, embora, para tanto, seja necessário infligir medo e dor aos outros. Aqui, ainda, a auto-estima pode ser aumentada pelo prazer sádico da agressão sexual que, de imediato, remete-nos não só ao crime cometido por Matthew, mas também ao seu comportamento anterior de ameaçar e atemorizar casais que namoravam.

Não temos muitos elementos para tentar entender a patologia de Matthew Poncelet dentro de uma perspectiva genética, embora possamos dispor de alguns fragmentos da sua história. Um deles se relaciona à fraqueza que ele atribui à mãe, por reagir às dificuldades sempre chorando ou por sua negação em reconhecer a fraqueza do filho e vê-lo tal qual é - covarde, medroso, agressivo, violento.

Winnicott deixa claro em sua obra que a mãe acolhedora, que se oferece ao bebê, deve ser também aquela que tenha força suficiente para estabelecer e enfrentar o término desta intimidade, e ser, assim, no dizer de M. Mahler, a parteira da individuação do filho. Falando, por exemplo, de desmame - este marco da separação mãe-bebê -, Winnicott é incisivo:

Faz parte da coisa boa que ela acabe um dia. [...] O desejo de desmamar deve partir da mãe. Deve ser, portanto, corajosa para suportar a cólera do bebê e as terríveis idéias que acompanham essa cólera e fazer, assim, aquilo que aprimora a tarefa da boa amamentação. (Winnicott 1964a, p. 91)

A mãe deve, portanto, reconhecer e suportar o ódio da criança bem como aceitar que se torne para ela a mãe ruim, durante certo tempo. Aceitar significa sobreviver como a mãe forte, que é capaz de cuidar sem ter mais os recursos de onipotência com que era até então investida pela criança. Aceitar, portanto, significa não ser destruída ao deixar de ser o objeto subjetivo do bebê. Por isto, talvez, Matt repita tantas vezes na sua história: "Não chore, mãe". Mas aceitar significa, também, não retaliar, o que Matt encontrou em Helen Prejean. É ela quem diz a um guarda que a censura por defender assassino tão cruel: "Não justifico o comportamento dele, mas é errado matar alguém para ensinar que é errado matar".

Entretanto, curiosamente, apesar do que é dito, o filme foi reprovado por alguns críticos como favorável à pena de morte. Teria sido porque, somente a 30 minutos da execução (e provavelmente determinado por ela) Matthew Poncelet admite e reconhece seu crime? Winnicott já havia compreendido, como há pouco vimos, que o falso self se estabelece como defesa contra o que seria inimaginável ou, em outras palavras, a exposição do self verdadeiro pode representar, para o indivíduo, seu aniquilamento. Poderíamos pensar, então, que o aniquilamento real enfrentado - a morte iminente e irremediável - faria ruir a muralha protetora e deixaria a verdade, afinal, aparecer. Quando Winnicott nos fala, porém, de que o bebê se sente infinitamente exposto ao tomar contato com a existência do mundo - e da expectativa de perseguição que então surge - ele acentua que "somente se alguém lhe dá segurança, tomando-o nos braços é que o sentimento do `Eu sou' pode ser agüentado ou arriscado" (Winnicott 1965a, p. 216). Foi esta a tarefa da irmã Helen presente até o final.

"A Irmã Helen pode me tocar?", solicita Matthew ao diretor do presídio. Atendido, é com a mão da freira em seu ombro que caminha até o local da execução. E mais ainda, ela lhe diz: "Quero que a última coisa que veja seja um rosto de amor. Olhe para mim quando fizerem isto".

Amarrado à maca, preparado para receber a injeção letal, exposto aos olhos dos que assistem, fortalecido pelo amor de Helen, ao invés de palavras de ódio, ele se dirige aos pais dos jovens com um pedido de perdão: "Foi terrível tirar seu filho do senhor. Espero que minha morte lhes traga alívio".

Com a morte de Matt, a missão de Helen chega ao fim. É sobre o seu trabalho e as implicações que tenha sobre a tarefa do psicanalista que poderíamos, agora, refletir.

 

III

Ao chamar de amor o vínculo existente entre a mãe e seu bebê, e mostrando que este é um bom princípio, Winnicott se apressa a esclarecer que não era romântico, e nem falava de sentimentalismos. "Os filhos são um fardo, esclarece, e se trazem alegria é porque são desejados [...] e duas pessoas concordaram em chamá-lo não de fardo, mas de bebê" (Winnicott 1964a, p. 149).

Curiosamente, ao advertir Helen sobre a tarefa que teria de realizar com um condenado à morte, o capelão do presídio lhe pergunta se ela sabe em que estaria se metendo, se se trata de curiosidade mórbida ou de compaixão exagerada. Conclui: "Aqui não há romance".

E nós, psicanalistas, sabemos no que nos metemos quando lidamos com um paciente que necessita regredir às etapas da dependência, chegando ao trauma original, quando, para tanto, demanda que o analista seja seu objeto subjetivo? A esse respeito, Winnicott diz: "Não me agradaria deixar a impressão de que essa tarefa, que consiste em refletir o que o paciente traz é fácil. Não é, e emocionalmente é exaustiva" (Winnicott 1971a, p. 161). Essa tarefa consiste em vivenciar uma condição semelhante à preocupação materna primária, uma disponibilidade que possibilita ao analista acolher o paciente, testando e experimentando em si mesmo seus estados emocionais, diretamente sofridos, ou reprimidos e dissociados, já que é este o meio de descobrir e entender o que se passa com ele.

Talvez por isto a irmã Helen, dirigindo seu carro para ir ao encontro de Matt, relembra um episódio da sua infância em que, cercada de outras crianças, ela persegue e mata a pauladas um pequeno animal, encontrando, assim, em si própria, as mesmas sementes de violência e destrutividade que nele, Matthew, mostravam-se.

A interpretação sensível de Susan Sarandon como Helen Prejean lhe valeu o Oscar de melhor atriz de 96, e nos permitiu identificar toda a gama de sentimentos que a relação com Matt provocava em sua personagem: medo, insegurança, desconfiança, credulidade, ira, indignação, compaixão, amor. Sua entrega emocional, a transparência dos seus sentimentos levaram Matt a perceber e lhe dizer no início dos seus encontros: "Você é muito sincera", o que, provavelmente foi a base para que ele pudesse confiar e lhe confessasse, afinal, o seu crime.

A atitude da irmã Helen é aquela que se torna um requisito da técnica no trabalho clínico com determinados pacientes, pois, segundo os preceitos de Winnicott, se falta a determinados pacientes um sentimento de ser, ele espera do analista o que, um dia, foi necessitado, ou seja, a capacidade da mãe (que é parte do bebê) de ser alguém que é; e não alguém que faz.

Ao se referir, ainda, às psicoterapias dos distúrbios de caráter, Winnicott diz ser necessário, no terapeuta, uma reação que seja a demonstração prática do seu amor, isto é, uma disposição para sustentar o eu não integrado do paciente e enfrentar a agressão com firmeza, e o ódio com ódio adequado e sob controle. Talvez por ter sido a irmã Helen disposta e capaz para tanto é que, após confessar o seu crime, chorando, Matthew lhe diga que nunca tivera um amor verdadeiro: "Precisei morrer para encontrar o amor. Obrigado por me amar".

Winnicott não era, entretanto, romântico, tampouco quanto ao tratamento dos distúrbios de caráter. Admitia que, se existisse uma tendência anti-social já fixada e uma atitude endurecida no paciente, reforçada por ganhos secundários, a psicanálise não estaria indicada.

Sua principal contribuição ao tema se encontra, sem dúvida, na área da prevenção. Seus trabalhos sobre o objeto transicional e o espaço potencial oferecem alento e esperança para compreender e evitar o estabelecimento de patologias narcísicas como a que descrevi, em que a destrutividade é idealizada e o self deformado e agigantado como defesa, ante a perda traumática do objeto subjetivo. Ao acentuar a importância do objeto transicional, ele nos mostra a necessidade de um processo gradual de desilusão; entretanto, autor que é dos paradoxos, ele nos diz também que a tarefa de aceitação da realidade nunca é completada, que nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna e a realidade externa; deixa, assim, evidente, que a ilusão pode e precisa continuar.

Se o objeto transicional perde o significado, define ele, isso se deve ao fato de os fenômenos transicionais se tornarem difusos e se espalharem em uma área intermediária, semelhante àquela que fica entre a mãe e o bebê, que separa mas ao mesmo tempo une, e onde estão o sentimento religioso, a arte, a criatividade científica.

Em uma confidência à irmã Helen, Matt conta a primeira vez em que o pai o levou a um bar, quando tinha 12 anos. Quis, então, que o menino escolhesse o uísque que tomariam: "Olhei para as prateleiras", conta Matthew, "e apontei uma garrafa dizendo: quero aquela com o peru bonitinho desenhado, e todos deram risadas". E completa "saímos bêbados do bar naquela noite".

Na adolescência, temos mais uma etapa da individuação; nela se dá o afastamento da dependência da infância para atingir a condição de adulto, em um processo que é tão tormentoso e vulnerável quanto o dos estágios primitivos e que envolve, igualmente, um sentimento de desilusão. Como lá atrás, essa transição precisa levar tempo e da mesma maneira é vital que haja não a continuação de uma experiência de onipotência, mas o desabrochamento e a continuação da capacidade criativa.

Em seu episódio adolescente, Matt conta-nos um ritual de passagem, em que, bruscamente, deixa a concepção ingênua da infância para, prematura e falsamente, desfrutar um prazer adulto. Cabe aqui a insinuação de Winnicott de que a experiência de onipotência pode ser substituída pelo sentimento de onipotência, tal como ocorre no sexo antes do tempo, no uso de drogas e no comportamento violento dos jovens.

Winnicott deixou-nos um legado precioso para se contrapor à destrutividade do mundo atual, onde, atônitos, vemos até mesmo crianças matarem, usando armas sofisticadas. Diante deste panorama de violência podemos perguntar: onde estão os contos infantis, as cantigas de roda, os jogos de grupo, a música, as dramatizações, a pintura, a modelagem, a descoberta lúdica do conhecimento, tudo aquilo que pode, junto a um adulto confiável e responsável, fazer parte dos fenômenos transicionais e da brincadeira?

Com Winnicott aprendemos que, fora dessa área intermediária, não há salvação possível para o homem, que, entregue ao seu desamparo, à angústia por sua pequenez e finitude, debate-se, sobrevivendo a cada dia.

Em seus trabalhos sobre criatividade ele pergunta e responde:

Sobre o que versa a vida? Podemos curar nosso paciente e nada saber sobre o que lhe permite continuar vivendo [...] existem pessoas tão firmemente ancoradas na realidade objetivamente percebida que estão doentes [...] em virtude de sua perda de contato com o mundo subjetivo e com a abordagem criativa dos fatos. (Winnicott 1971a, p. 138 e p. 97)

É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. O espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo pode ser visto como sagrado para o indivíduo porque é aí que ele experimenta o viver criativo.

Dead man walking - homem morto caminhando. A frase proclamada entre a cela e a câmara de execução ganha, pois, para nós, agora, um novo sentido, dizendo-nos que, alienado de si mesmo, perdido de sua subjetividade e destruindo para sobreviver, Matthew, ao cometer o seu crime, ainda que vivo, já estava morto.

 

Referências bibliográficas

Davis, Madeleine e Wallbridge, David 1982: Limite e espaço. Rio de Janeiro, Imago.         [ Links ]

Kernberg, Otto 1995: Transtornos graves de personalidade. Porte Alegre, Artes Médicas.

Mahler Margareth et. al 1977: O nascimento psicológico da criança. Rio de Janeiro, Zahar.

Winnicott, Donald W. 1965a: A família e o desenvolvimento individual. São Paulo, Martins Fontes.

______1964a: A criança e seu mundo. Rio de Janeiro, Zahar.

______1968c: "O conceito de regressão clínica comparado com o de organização defensiva", in Winnicott 1989a.

______1971a: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago.

______1989a: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas.