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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.1 São Paulo jun. 2000

 

TRADUÇÃO

 

Acontecimento e psicose*

 

Évènement et psychose

 

 

Henri Maldiney

Université de Lyon

 

 

Quer acontecimento e psicose coexistam, quer se excluam, sua conjunção e disjunção têm igualmente sentido. Pois em ambos encontra-se implicada a existência enquanto tal.

A psicose é uma metamorfose da existência cuja significação aparece como um momento existencial tão decisivo que abre a questão: não há, ao mesmo tempo que tempo e espaço, um existencial fora do alcance de ser de um simples vivente?

O primeiro a ter se interrogado sobre a maneira pela qual um acontecimento perturbador nos atinge, e, nesse atingir mesmo, revela seu ser (e o nosso) foi Erwin Straus. Entretanto, ele não relaciona acontecimento e existência, mas, como anuncia o título de seu ensaio, Geschehnis und Erlebnis (1930a),acontecimento e vivência. De outro lado, ele não o faz a propósito da psicose, mas da neurose. Ele visa as neuroses traumáticas que ocorrem depois de um acidente. O que quer dizer "depois de..." ? É essa precisamente a questão.

Não somente depois não significa causalidade, como há acontecimentos em que, diz Viktor Weizsäcker (1940, p. 170),

o processo vital parece abandonar a via do encadeamento causal [...] O curso de um desenvolvimento bem ordenado é bruscamente interrompido, e instaura-se uma nova situação, cuja estrutura pode ser tomada como objeto de uma nova análise causal, mas sem que se possa derivar o segundo estado do primeiro.

O encontro do organismo e do meio, ou o afrontamento do sujeito e do mundo desmente a lei de conservação da forma; ou se produz uma transformação constitutiva, ou a crise do sujeito, constrangido ao impossível, vota-o a desaparecer. Aquilo que é verdadeiro para o sujeito em biologia também o é, ainda com mais razão onde, sob o psicofísico, desponta o humano. Pois apesar de um certo objetivismo remanescente, as análises de Straus nunca perdem contato com aquilo que constitui propriamente a dimensão humana, elevando assim ao nível de questão existencial a questão mesma do acontecimento.

Como Ludwig Binswanger assinala em sua resenha, publicada no ano seguintea (1931), Erwin Straus inicialmente considera acontecimento e vivência - segundo a perspectiva do pensamento ingênuo ou mesmo científico, sempre objetivantes - como momentos separados, definíveis à parte e objetivamente estabilizados. Mas por que, cada qual estabilizado em si mesmo, estes dois termos nos intimam a compreender seu vínculo? Porque a urgência com que nos solicitam relacioná-los procede de uma relação mais originária, na qual se encontram implicados ao nascer. Eles contêm uma relação mais íntima, que precede a que Erwin Straus aparentemente busca. E é a esta relação que eles devem ser o que são.

Os conceitos de acontecimento e vivência participam da mesma antítese que os de individualidade e de mundo. Eles estão em intercâmbio dialético e é impossível pensar um deles sem pensar o outro. (Binswanger 1955 [1931], p. 148)

Esse intercâmbio dialético no qual o acontecimento e a vivência se articulam um ao outro do interior de cada um é indubitável pois ...o que é que pode ser vivido, senão o acontecimento?

A articulação entre o acontecimento e a vivência encontra-se no centro dos problemas jurídicos e científicos postos pelo tipo de neurose que o alemão designa pelo termo "Renten-Neurose". O acontecimento em questão é um acidente, ao qual são imputados distúrbios neuróticos duráveis que justificam o pagamento de uma indenização ou uma pensão. Mas, para que isso ocorra, ainda é necessário estabelecer entre ele e os fenômenos mórbidos observados uma relação, precisamente de causa a efeito. Casualidade bastarda. Pois tais distúrbios têm uma base orgânica e uma origem psíquica. Sua origem pode ser, por exemplo, uma emoção aterrorizante experimentada num acidente de automóvel ou de trem.

Ela suscita distúrbios sem dúvida psíquicos, mas cuja constituição remete a um esquema fisiológico determinado, a uma perturbação específica da vaso-motricidade. Todos os graus são possíveis, desde um complexo neurótico de natureza vaso-motora até um delírio furioso, cujo desfecho mortal mostra claramente que alterações cerebrais, de natureza orgânica incontestável, podem ser suscitadas por vias puramente psíquicas. (Binswanger 1947 [1928], p. 51)

Devido a essa origem, Bonhoeffer denominara "psicogênicos" esses estados mórbidos funcionais. Essa nova palavra - e justamente por essa razão ela teve futuro - introduzia menos a uma nova classe do que a uma nova categoria psiquiátrica. Bonhoeffer distingue desse tipo de estados, chamando-o de "histérico", um conjunto de estados mórbidos cuja resolução e gênese corresponderiam à lógica interna da histeria... "no sentido em que os complexos psíquicos acabam por se desfazer sob a influência de uma direção da vontade cujo momento determinante é função do conteúdo". A seqüência esclarece: "Temos então a impressão", diz Bonhoeffer, "que o estado mórbido desapareceria se o momento psicológico do desejo conseguisse desaparecer" (apud Binswanger 1947 [1928], p. 50).

O que eqüivale a resumir em uma frase a concepção freudiana da histeria. Mas esta frase não é meramente rememorativa: ela anuncia uma reviravolta psiquiátrica. Não somente a histeria, mas todos os estados patológicos nos quais "o momento psicológico do desejo" ou, para sermos mais rigorosos - afastando o psicologismo -, os momentos de sentido são os determinantes da situação, recebem de Boenhoeffer a denominação de histéricos.

"Psicogenético" ou "histérico" qualificam, portanto, duas formações diferentes. Ora, essa terminologia é enganosa. De fato, os estados histéricos não são menos psicogenéticos que os primeiros. Aliás, eles o são ainda mais. Eles não apenas emergiram, como aqueles, por via psíquica, mas também foi através de vias puramente psíquicas que se estenderam, organizaram e fixaram. São psicogenéticos em todos os níveis. Quer nos limitemos a empregá-lo aos fenômenos do primeiro tipo, quer o estendamos às duas séries, o termo "psicogenético" é ambíguo. Esta terminologia incerta acaba denunciando uma confusão exatamente a respeito do psíquico, cuja essência própria não é apreendida enquanto nele não se reconheça a dimensão do sentido. Ludwig Binswanger esclarece e dissipa o equívoco, à luz de sua distinção entre função vital e história interior da vida.

"Em todos esses estados, histéricos e psicogenéticos, trata-se de reações do homem a diversos acontecimentos ou situações exteriores, ou seja, a dados que pertencem à história exterior da vida: morte de um próximo, perda da fortuna, um constrangimento vindo de fora, forçando a decisões penosas, prisão, etc. Mas é no seguinte ponto que eles diferem. A histeria retrabalha espiritualmente esses acontecimentos exteriores, e este estado surge e pode ser explicado através desse trabalho de reelaboração. Naqueles que reagem segundo o modo nomeado psicogenético, falta, ao contrário, esse trabalho espiritual, e é de imediato, ligadas diretamente aos fenômenos fisiológicos que acompanham ou se seguem à emoção, que se instalam, por um tempo mais ou menos longo, perturbações fisiológicas, mais ou menos leves ou graves, do cérebro" (Binswanger 1947 [1928], p. 32).

A emoção, o momento psicogenético, captura e perturba o curso das funções físicas ou psíquicas de uma maneira direta. Esse não é o caso para o histérico. Pois, aqui, a perturbação da função depende de reações psíquicas (à vivência), cujo momento determinante é função do conteúdo. (Binswanger 1947 [1928], p. 32)

É necessário esclarecer: de um conteúdo que tem um sentido. Ora, onde o sentido entra em jogo - e com ele e nele o sentido do sentido - qualquer epistemologia das ciências humanas reage à emergência... do homem. A ruptura entre "psicogenético" e "histérico" anuncia uma linha de fratura de amplitude totalmente diversa. Estes são ainda apenas conceitos regionais, cuja oposição, relativa a um problema particular, permanece por assim dizer em suspenso, no conjunto da vida e da compreensão psicológicas. Entretanto, através deste corte desenha-se uma falha, uma linha de demarcação que atravessa todo o campo da psiquiatria e da psicologia, dividindo a noção, falsamente unívoca, de psíquico.

A palavra psíquico é equívoca. Ela se presta a qualificar duas regiões distintas, lugares de ser de dois processos radicalmente diferentes: um deles funcional, que leva a marca daquela que é justamente nomeada função psíquica (ou psíquico-corporal) do organismo - e de suas perturbações - e o outro intencional - ou espiritual - constituído pela "seqüência de conteúdos" (Binswanger 1947 [1928], p. 32) ou, mais exatamente, pelo encadeamento dos momentos de sentido que confere às vivências sua dimensão psíquica.

"Nomeamos o ponto-origem ou o centro de tais vivências", diz Binswanger, "pessoa (espiritual) individual; e chamamos o encadeamento espiritual que constitui o vínculo interior de seus conteúdos vividos história interior de sua vida" (1947 [1928], p. 53).

Portanto, o reino da função não é universal. Uma emoção aterrorizante, um trauma psíquico, e os estados mórbidos psicogenéticos - sejam fisiológicos, sejam psicológicos - que se seguem, certamente pertencem à mesma esfera psicofísica, mas não pertencem a ela os momentos fundadores de uma história espiritual que decidem sobre a constituição de um si.

Não devemos nos enganar sobre o sentido e o lugar dessa divisão. Nós pertencemos, corpo e alma, a cada uma das vertentes. No que se refere ao corpo, Freud já o assinalara com respeito à histeria. Ao deixar Paris e Charcot, ele submetera ao mestre da Salpétrière o projeto de um estudo comparativo entre paralisias histéricas e paralisias orgânicas.

"Gostaria de demonstrar", ele diz "a seguinte tese: na histeria, as paralisias e anestesias das diversas partes do corpo são delimitadas segundo a representação popular (não anatômica) que os homens possuem delas."

A representação popular do corpo baseia-se na maneira pela qual um homem apreende seu corpo ao mesmo tempo que o mundo, no qual, através dele, se comporta. O corpo próprio, motor, expressivo, significante, não é o corpo objeto da anatomia fisiológica ou das expressões galvânicas de Charcot. Ele justifica seu nome de corpo próprio pelo fato de atualizar, a cada vez, um momento da história interior da vida de alguém. A palavra que o designa em alemão, Leib, é diretamente aparentada a leben: viver. No antigo alto-alemão lib ou lip, em novo alto-alemão lip ou libes significam tanto vida quanto corpo ou pessoa. "Mei Liv","meu corpo" ou "minha vida", é a expressão para "eu".

Ora, no título de seu ensaio de 1927, Lebensfunktion und innere Lebensgeschichte [Função vital e história interior de vida], Binswanger atribui à vida ambos os registros: do funcional e do pessoal. É nela, portanto, que ele localiza a cesura. Ela pertence a duas jurisdições: há uma história interior e uma história exterior da vida. Interior e exterior em relação a um si que decide de si próprio.

A história exterior da vida é feita de reações a acontecimentos ou a situações, a restrições ou a incitações que podem surgir de tudo que em nós, ou a nosso redor, nos coloca em paixão sob o tempo. Um luto, uma perda, uma pulsão, um pavor, todos os traumas psíquicos que, como diz Kant, são estados "patológicos" do sentido interno, mostram-se tão estranhos à autogênese do si quanto um ataque ou um grito na rua - que por vezes, mais do que aqueles, nos intimam a ser. O "pulsional" pertence à história exterior da vida - que, com respeito ao si, é, com toda impropriedade, destinal. O verdadeiro corte encontra-se entre história e destino.

O acontecimento e a história interior da vida têm em comum o fato de serem irrepetíveis. Seu encontro é único, gênese do presente. Eles são irrepetíveis como o é a frase, que sempre responde - caso seja realmente falante - à condição do momento. E, como ela, eles têm sentido. Em que consiste o sentido de uma vivência de acontecimento? Aqui, sentido e vivência são indissociáveis. Um acontecimento só é vivido segundo a história interior da vida se esta, nele, interioriza-se para si abrindo caminho. Não em uma continuidade sem ruptura, mas no dilaceramento desse instante vertiginoso em que se buscam e se fogem, ambas adiante de si, a interpelação e a resposta. A integração do acontecimento é uma transformação constitutiva.

Aquilo cuja eficácia Erwin Straus tenta compreender são - decisivos ou dramáticos - acontecimentos perturbadores. O que eles atingem no homem é a história interior da vida. Entre o acontecimento e a vivência não há relação causal. O encontro, seu encontro, no qual eles têm lugar, tece-se em um espaço de sentido. Straus (1930a, pp. 11ss.) enfoca-o através de uma análise diferencial de uma vivência de acidente.

Um homem é atropelado e morto por um automóvel. Ele jaz ali, na rua. Entre os que se precipitam ao seu redor encontram-se um médico que já há muito tempo deixou de se impressionar com esse tipo, para ele habitual, de espetáculo, e um rapaz que pela primeira vez encontra-se repentinamente em presença (presença, aliás, sempre ambígua e malograda) de um homem morto de morte violenta.

O médico cumpre calmamente, metodicamente, aquilo que a situação exige de seu dever profissional. Tudo isso sem participação interior: nele, a vivência não se prolonga. O rapaz, ao contrário, durante várias semanas não conseguirá esquecer a visão do morto. Todo seu comportamento mudou. Ele sente-se oprimido, silencioso, angustiado, medroso: não quer sair sozinho na rua.

Uma impressionabilidade passageira transforma-se pouco a pouco em suscetibilidade crescente, que chega à defesa com relação à morte e seus diversos semblantes: os do envelhecimento, do morrer, da perda do vigor, da miséria. Algo mais deve ser notado. Várias impressões sensíveis encontradas na vivência original - a qualidade da luz e da sombra, dos odores e do vento - assumem um caráter especificamente repugnante, que elas irão em seguida conservar, mesmo separadas do fenômeno original; de maneira que, reaparecendo a qualquer momento, anos mais tarde, continuam exercendo uma ação inexplicavelmente forte, que as distinguem de todas as excitações análogas. (Straus 1930a, p. 13)

Se o acontecimento não teve, nesses dois homens, o mesmo destino, é porque - já de início - a vivência não era a mesma. O acontecimento sobreveio-lhes, revelou-se a eles, aqui e ali, numa impressão originária; e esta diferia de um para o outro.

Para o médico, o morto estendido à sua frente era um homem qualquer, um exemplar da espécie homo sapiens. Seu olhar não chega à pessoa individual cuja existência foi aniquilada. Ela, a pessoa individual, aparece somente aos próximos e aos amigos na participação e no luto (como para Antígona a pessoa de Polinice). Para o médico realizou-se, mais uma vez nesse acidente, o universal morte, destrutibilidade da existência humana. Esses dados universais já lhe são familiares há muito tempo, e ele sabe que pertence à natureza deles realizar-se segundo intervalos mais ou menos longos (...). (Straus 1930a, p. 13)

Mas se a vivência do médico tem por fórmula "um homem" foi vítima de um acidente, a fórmula adequada à vivência do rapaz é "o homem" pode morrer. O acontecimento tem para ele uma significação representativa completamente diferente (Straus 1930a, p. 13). O que se abre para ele por meio de um acidente singular é o "complexo simplicial": morte-mortalidade-precariedade-ameaça sempre em iminência no ser-para-a-morte do homem enquanto tal.

Ao viver esse tema - para ele novo - universalmente significante e significativamente existencial, o rapaz assiste uma mudança radical de seu horizonte de vida. A morte tornou-se-lhe sensível, enquanto potência sempre à espreita e em prontidão e, com ela, a ameaça ligada à sua própria existência pessoal. (Straus 1930a, p. 13)

Entretanto, nem a significação universal da morte, nem a percepção objetiva de um morto são em si perturbadoras. Só pode sê-lo uma relação íntima entre o morto e a morte na qual o rapaz esteja implicado. Não se trata da proposição de uma relação, mas de uma relação vivida, sofrida. A visão do morto não perturba o rapaz pelo fato de elevar seu pensamento ao conhecimento lógico-teórico da mortalidade que o atingiria, como a conclusão do silogismo: "O homem é mortal - Eu sou homem - Portanto, eu sou mortal."

Aqui, não há meio-termo: "eu sou homem", mas um "homem eu sou" se ilumina (ou obscurece) na presença desse cadáver que emerge da mortalidade, da qual ele é - diz Erwin Straus - o representante. Da função representativa dessa vivência depende seu poder de perturbar.

No entanto, isso não tem nada a ver com um esquematismo transcendental que forneceria a um conceito sua imagem. Não se trata de conceito. A condição mortal implica uma facticidade que não é um fato nem uma idéia, nem a passagem de um ao outro. Ela não tem representante e não tem nada para representar. Se o rapaz é atingido, é porque ele é imediatamente colocado em sua presença ou arrancado dela, por sua história interior. Assim, Straus não evoca apenas a função representativa da vivência, mas sua modalidade histórica. A "modalidade histórica" da vivência perturbadora é a repentinidade da "primeira vez": Plötzligkeit - Erstmaligkeit (1930a, p. 13) Erstmaligkeit: a primeira vez. Esse caráter de primeira vez não é extrínseco à vivência do acontecimento. Ele é sua dimensão constitutiva. Ele configura interiormente sua incomparável novidade. Incomparável pelo fato de essa vivência, em termos de sentido, não se explicar em relação a outras. Ela não deve seu caráter perturbador a um efeito de contraste, que lhe conferiria um relevo particular na série ordinal dos fenômenos exteriores ou das afecções do sentido interno. Primeira vez e repentinidade estão implicadas na vivência. Elas escapam a qualquer explicação temporal, por serem da ordem do aspecto.

Elas se encontram co-implicadas em uma transformação (Umgestaltung) da história interior da vida. "Com a primeira vez cumpre-se a transformação e, ao mesmo tempo, a primeira vez funda-se na transformação" (Straus 1930a, p. 23). É ela que é vivida segundo o modo perturbador. A perturbação é inerente à impressão originária e não uma conseqüência ou um efeito de momentos conscientes ou inconscientes.

Primeira vez e repentinidade, dizíamos, são da ordem do aspecto, não do tempo. A distinção do aspecto e do tempo, categorias gramaticais, não foi levada muito em conta pelas ciências psicológicas. Entretanto, Erwin Straus reconheceu-a, sem identificá-la, em Depressão e vivência do tempo (1960 [1928]). Embora a ignore, é ela que confere o pleno sentido à distinção que ele realiza, conforme Hönigswald, entre "tempo imanente à vivência" e "tempo transcendente à vivência".

O tempo transcendente é medido pela duração e pela mudança das coisas que nos rodeiam. É o tempo do Umwelt e da Zuhandenheit. A medida do tempo imanente é o desenvolvimento da personalidade. O tempo transcedente passa. O tempo imanente progride, cresce com a história da pessoa. O tempo do eu não é medido pela quantidade de excitações externas ou internas. Estas podem ser por vezes até mais numerosas em nossos dias de estagnação que em nossos dias de crescimento. (Straus 1960 [1928], p. 129)

Esse duplo jogo do tempo permite fundar a inteligibilidade específica das ciências humanas, ali onde a distinção de Jaspers entre relação causal e relação compreensiva não é suficiente. As relações compreensivas fundadas sobre conexões eidéticas - ou conexões de essência - certamente têm direito ao sentido, mas elas não têm poder sobre as transformações constitutivas que fazem - ou que são - a história de alguém. Em seu estudo sobre a temporalidade depressiva, Erwin Straus liga significação e temporalização. Esse vínculo é universal. A presença habita seu mundo segundo o modo pelo qual ela abre o tempo. A temporalização do depressivo é o modo que ele tem de se significar.

Entre o tempo do eu, imanente ou vivido, e o tempo transcendente, aquele dos outros ou das coisas, a harmonia pode ser rompida; pode produzir-se uma defasagem no sentido de um avanço ou um atraso. É o que ocorre no tédio. No tédio, a tensão de duração do tempo imanente é maior que aquela do tempo transcendente, de maneira que as antecipações ou apelos do eu, ultrapassando as relações do Umwelt ou do Mitwelt, permanecem precariamente apoiadas no vazio. "O tédio estabelece-se quando a impossibilidade de dar ao tempo transcendente um conteúdo que nos seja próprio é vivida ao mesmo tempo que nosso poder agir próprio" (Straus 1960 [1928], p. 130).

O poder agir do depressivo, pelo contrário, encontra-se em perda, e o tempo imanente de suas vivências mais lento, e em seguida bloqueado.

Com o bloqueio do tempo imanente desaparece, na depressão, a possibilidade de quitar-se de suas vivências desenvolvendo-as em direção ao futuro. Não é possível para o depressivo fazer do passado transcendente um passado imanente (Straus 1960 [1928], p. 138),

um passado que lhe seja próprio.

Entretanto, um ponto permanece obscuro: a articulação dos dois tipos de temporalidade. Straus (1960 [1928], p. 129) declara: "Enquanto seres psicofísicos, pertencemos aos dois tempos". Isso eqüivale a regredir em relação à distinção estabelecida por Binswanger, entre função vital e história interior da vida. Ao reportar à esfera psicofísica o tempo transcendente e o tempo imanente à vivência, Erwin Straus os homogeneiza. Atribui a ambos um meio comum, onde o tempo implicado na vivência é abusivamente projetado fora de sua própria dobra para ser explicado objetivamente. Suprimir a questão de sua articulação sem resolvê-la implica, ao mesmo tempo, em retirar o sentido do acontecimento. A articulação dos dois tempos distinguidos por Straus coloca a mesma questão que a das duas espécies ou tipos de acontecimentos designados em alemão pelos termos Geschehnis e Ereignis. Sua articulação constitui a questão crucial do acontecimento, da qual o próprio acontecimento é a resolução. Straus coloca e responde a esta questão com uma lucidez total.

Do Geschehnis ao Ereignis há passagem de uma ordem a outra. Esta passagem consiste em uma apropriação. Os processos e os acontecimentos (Geschehnis) exteriores só se tornam acontecimentos (Ereignis) com sentido, na sua ordenação com relação à história da vida individual. Um acontecimento concernindo a função vital em um momento qualquer do tempo transcendente, que é também aquele de nossas afecções subjetivas, encontra-se apropriado à história interior da vida e ordenado com relação a seu desenvolvimento. "Por esta ordenação na história interior da vida, escreve Straus, um momento de valor é acrescentado aos dados exteriores indiferentes" (1960 [1928], p. 129). Esse momento de valor dá-lhes sentido. Mas poder-se-ia dizer que o sentido sobrevém ao acontecimento? Sobre sua relação, sobre a maneira pela qual eles se articulam, existe um desacordo entre Erwin Straus e Ludwig Binswanger.

É o acontecimento a água pura que a fortuna nos verte e que cada um, a seu bel-prazer, transforma em vinagre ou vinho?

Ou, ao contrário, ele impõe à vivência um sentido determinado?

Ou o sentido do acontecimento e o sentido da vivência, encontram-se entre si numa relação completamente diferente?

A questão engaja o sentido da história interior da vida. Esta, tal como Binswanger (1947 [1928], p. 129) a entende, é "a história da pessoa espiritual individual". O que quer dizer espiritual? Exatamente o que eu disse, ele responde, "designando a (livre) decisão como o fenômeno original (Urphänomem) da historicidade da vida" (1947 [1928], p. 62). A decisão deve ser compreendida como liberdade, liberdade de algo para algo; seu fundamento é a própria presença, a cada vez minha.

Straus funda o vínculo histórico das vivências em um outro princípio. Ele empresta seu esquema da relação que estabelece entre Geschehnis e Erlebnis. Ora, dessa relação assim compreendida segue-se que a liberdade individual é limitada por essência. Existem, diz Straus, acontecimentos cujo sentido temático é tal que ele determina de maneira coercitiva um viver humano completamente determinado. Assim, ele descreve um Zwang zur Sinnentnahme: um constrangimento à assunção de sentido (1930a, p. 83). Há uma relação obrigatória de sentido do acontecimento à vivência. O exemplo que ele dá é de um incêndio em um teatro.

Suponhamos que, durante uma representação, chamas apareçam em qualquer lugar do palco, sem que o incêndio faça parte da ação. O mais provável é que, à vista disso, os espectadores, tomados de pânico, precipitem-se para as saídas. O acontecimento incêndio explodindo na cena constrange todos os espectadores a uma mesma maneira de viver o acontecimento e de comportar-se quanto a ele... A concordância é tripla. O acontecimento incêndio, fenômeno natural, impõe uma concordância perceptiva na qual todos concordam sobre o sentido primeiro: incêndio, uma concordância no nível mais profundo da assunção de sentido: perigo de morte, e uma concordância na reação: fuga.(1930a, pp. 86ss)

Trata-se portanto de um constrangimento em vários níveis. A idéia de uma coerção ao sentido - quer o acontecimento o imponha, quer ele lhe seja imposto - é vivamente combatida por Ludwig Binswanger. "O sentido, ele diz, não se produz entre dois pólos": entre um acontecimento que seria simplesmente do mundo e uma vivência que seria simplesmente do eu. "A individualidade é, segundo a expressão de Hegel, aquilo que seu mundo é enquanto seu" (1955 [1931], p. 157). O sentido é aquilo em que cada um, por sua abertura ao outro, abre-se a si mesmo. "A separação entre acontecimento e sentido é tão artificial quanto aquela entre vivência e sentido" (1955 [1931], p, 157).

O desacordo entre E. Straus e L. Binswanger começa no momento perceptivo. "A percepção", diz o segundo, "deve ser compreendida, segundo o próprio Straus, como um ato de tomada de sentido e mesmo como o primeiro dentre eles - é por isso que ela pode, por sua vez, ser ordenada ao sistema do tempo imanente à vivência e apreendida `como uma mudança no curso da história individual' (Straus 1930a, p. 94). Até aqui, estou num perfeito acordo com Straus. A questão, para mim, é saber se o conceito de imposição de sentido permite apreender o estado de coisas em questão de modo realmente justo" (1955 [1931], p. 153).

A resposta é não! Colocar em jogo tal coação eqüivale a imputá-la a um acontecimento posto em si. Ora, essa posição contradiz a própria situação perceptiva. Na realidade, uma percepção sempre se esclarece de um sentido, pois nela ressoa uma impressão originária que a envolve, perpassa e a afina a seu tom.

"O decisivo, no incêndio do teatro, não é o acontecimento chama enquanto fenômeno natural, mas o aspecto geral que a situação imediatamente toma" (1955 [1931], p. 157).

E sob que aspecto ela se mostra?

Dizemos: "a situação". Ora, ela não é um simples estado de coisas, mas sim um estado de ser. "É um ser para ..., para um estado de coisas determinado. E o que está , existindo seu aí, neste e com esse estado de coisas é, diz Binswanger, a individualidade". Por sua maneira de se abrir a um ente ou a um estado de coisas "a individualidade já se resolveu a um modo de ser determinado: ser enquanto espectador, enquanto um entre ou com muitos, enquanto amigo com o amigo" (1955 [1931], p. 157); mas ela já se resolveu também para com essa relação consigo que consiste em estar numa situação relativamente perigosa. Essa forma de presença que é estar-no-teatro assume aqui como sua possibilidade própria - sem qualquer claustrofobia- a eventualidade de um perigo. Esta direção de sentido "possibilidade de perigo", que é inerente à constituição ontológica do ser-aí, pertence sob uma forma característica ao estar-no teatro" (1955 [1931], p. 157).

Se algo pudesse impor a significação "perigo de morte" seriaessa situação, e não o acontecimento "em si". Mas essa situação por si mesma não constrange. Se alguém "constrange" é a própria individualidade. Ora, tampouco ela constrange. Ela apenas abre e determina seu ser-aí a uma nova situação, à situação "perigo de morte que ameaça". Nessa situação a chama não é, nem foi, nem nunca será percebida num primeiro momento como objeto"chama" isolado, mas encontra-se antecipadamente integrada como momento significando "sinal de alarme" num contexto geral: situação de perigo mortal. Mesmo que ela brilhe muito, esse chamejamento é um momento parcial da situação "perigo de morte" e não a propriedade de uma simples coisa. Mas, no contexto geral, o momento diretamente vinculado ao perigo de morte é um momento tal, que "nele" se determina não somente o ser da chama como perigoso, mas o ser da individualidade comoem perigo. Nesse modo de ser, a individualidade se decide de modo relativamente unívoco, porque aqui está em jogo seu ser maispróprio, seu-ser-para-a-morte (Heidegger)" (Binswanger 1955 [1931], p. 157s).

A visão das chamas comporta certamente um momento pático significante. Mas o fato de que a significação "perigo de morte" não esteja concluída ou interpretada, mas imediatamente compreendida e vivida, não pode ser colocado a título de objeção à tese de Straus. Erwin Straus não faz da chama - enquanto fenômeno natural - em fenômeno originário da percepção, nem um objeto natural perturbador em si, provocando uma reação perturbada. "Como entender, ele se pergunta, que as chamas sejam notadas por todos, ao passo que um ou outro episódio sobre o palco deixa de atrair a atenção de uma parte dos espectadores? E ele responde: "Antes de ser percebida como chama, ela se faz reconhecer como um acontecimento na esfera da percepção ou na esfera da realidade" (Straus 1930a, p. 67).

O homem encontra-se voltado para esta esfera numa interrogação ou uma expectativa incessantes. Quando um acontecimento aí se produz, ele ao mesmo tempo decide sobre a importação de um sentido e sobre uma transformação da vivência - aos quais ninguém pode se esquivar. (Straus 1930a, p. 87)

Isso, entretanto, sob uma condição:

"Só há constrangimento onde o acontecimento tem lugar num meio do qual participamos continuamente, um meio como a natureza, no qual se realiza nossa própria existência [eigenes Dasein]" (Straus 1930a, p. 97).

A entrada da existência na teoria de Straus não poderia deixar de chamar a atenção de Ludwig Binswanger. Situando a imposição do sentido no nível da existência, Straus atribui-lhe um estatuto específico, irredutível à condição de um simples ente. Como é que o autor de Função vital e história interior da vida e de Sonho e existência poderia deixar de concordar com isso? Não sem denunciar ao mesmo tempo um equívoco. De fato, a existência se identifica tão pouco com sua base natural quanto a história interior da vida com a função vital. E se o acontecimento sempre tem a ver, em seu ser mesmo, com um sentido, é porque a dimensão mesma do sentido encontra-se implicada na existência. Levar em conta a existência (Existenz) (Binswanger 1955 [1931], p. 155), que torna caduca a noção de vivência, coloca em causa, por tabela, a de história interior da vida. Pois a história em questão é a de um existente. Da vida à existência há descontinuidade, a mesma que levou Heidegger, entre 1922 a 1927, a transformar as implicações fundamentais da vida (Leben), o mundo e o cuidado, em dimensões existenciais do ser-aí (Dasein).

Voltemos à situação do rapaz subitamente confrontado a um homem morto na rua. Sem dúvida, ela foi imaginada. Mas ela é semelhante àquela, real, de um dos pacientes de Erwin Straus, rapaz de 17 anos. Seu tio havia morrido repentinamente, tombando já cadáver sobre a cama, da qual, pela primeira vez após uma gripe, tentava levantar-se convalescente. O rapaz tinha visto o corpo no dia seguinte.

Desde então, sentia-se forçado a pensar na morte e a se perguntar se os mortos ainda sentiam alguma coisa, se eles sabiam algo a respeito de seu estado de morte. Ele temia encontrar mortos e via espectros por toda parte. (Straus 1930a, p.18)

Como comprender essa situação? Um acontecimento apenas afeta o existente enquanto acontecimento da existência. Ele não poderia ser reconstruído através de conceitos. Ele não eqüivale a uma construção de conceitos na intuição. A universalização e a concretização pressupostas por tal construção não são dados numa descrição fenomenológica. Essas operações traduzem (e traem), no espaço da representação, a presença-"aí" de um morto que se revela numa proximidade absoluta.

Por que um homem morto - principalmente se ele acaba de ser vítima de um acidente - parece ocupar tão pouco lugar? Com efeito, aquele que o descobre não deixa de chocar-se com a restrição de seu espaço. Ele se encontra inscrito em limites que não são propriamente seus, pois ele não os coloca transgredindo-os, e tampouco ele os nega ao colocá-los, como faz precisamente o vivente. Este encontra-se presente em nosso espaço comum por seu automovimento ou suas tensões motoras. Vivente, um homem habita o espaço; ele não se encontra inserido nele. Mesmo imóvel, seu corpo possui um gradiente de abertura e um quociente de profundidade. Estes se encontram em troca e em mudança incessantes, expressas de modo extremo na estatuária, por exemplo, nas cabeças khmers, cujas superfícies rítmicas interiorizam o próprio espaço que irradiam. Mas alguém que jaz, amontoado nele mesmo, alojado no espaço, aí se encontra como que incrustado. Essa inércia, essa construção, induz por ressonância, naqueles tocados por esse aspecto, uma diminuição da motricidade, um rebaixamento do tom, que podem chegar até a inibição - que, por vezes, manifesta-se nos velórios por alucinações de movimento.

O que o aspecto do morto nos faz testemunhar? Para dizê-lo, farei referência a duas palavras da língua alemã.

A primeira, Wesen, é o antigo infinitivo para ser. Ela é própria para nomear a existência segundo a dupla diátese de ativo e médio. No ativo, o processo desenrola-se fora de seu autor. No médio, o autor é o lugar do processo. Ora, além do sentido ativo de Sein, ser, Wesen tem uma dimensão autotransitiva: ser-se. A segunda palavra é Verwesen. Hoje ela significa fanar-se, decompor-se, putrefazer-se. Mas vamos devolvê-la à sua origem. Ela é formada de Wesen e do prefixo Ver, e pertence a essa série de palavras em Ver, que significam um malogro ou um fracasso. Versprechung, lapso, é enganar-se ao falar, Versprechen indica um malogro no interior da própria fala. O que se expressa de forma admirável no termo popular para significar uma fala delirante: ele "desfala"b. Paralelamente, Verwesen é des-ser. O aspecto do morto testemunhaumdes-ser. O aspecto do morto mostra um des-ser, um ser que se reabsorve, fora da transcendência, em uma retroscendência.

Como somos atingidos? Não ficamos transtornados por uma meditação sobre a morte, mas diretamente por uma impressão originária inerente ao aparecimento de um morto em uma proximidade absoluta. No próximo absoluto não existe diante de: ficamos envoltos. Só nos envolve o espaço marginal, que aqui se tornou universal, revelando seu sentido primeiro de fundamento de mundo. O espaço marginal, o das apresentações, é um espaço potencial, ao qual nos afinamos com todas nossas potencialidades. Para aquém de qualquer experiência ou atenção central, estamos presentes para um fundamento de mundo onde temos nossa ancoragem permanente.

O que esperamos de uma ancoragem, sem podermos nos esquivar desta fé originária, desta Urdoxa, é sua estabilidade. Tentamos mantê-la a qualquer preço, já no nível da percepção, mesmo que para isso seja necessário sacrificar um movimento real a um movimento aparente. Eis-me de pé sobre uma ponte de madeira olhando correr a água da torrente. Num certo momento, inesperado, sinto repentinamente, irresistivelmente, sem violência, a ponte avançar por sobre a água, e sinto-me movendo com ela num único automovimento. Pois o tempo primeiro desse auto-movimento não é, como diz Aristóteles, o do movimento realizado, mas aquele, ao contrário, de uma partida perpétua []. De móvel que era, a água torna-se o lugar estacionário de minha ancoragem, uma área de repouso em relação à qual este tronco de madeira, no qual meu olhar fixou-se um instante, começa a mover-se. A percepção objetiva da água corrente deu lugar a uma outra. Não é mais a ponte ligada às margens e à terra que constitui doravante minha área de ancoragem, mas sim a água da torrente - e, com relação a ela, tudo escorre. Doravante é ela que constitui o fundamento de mundo sobre o qual eu me fundeio para garantir uma presença coerente aos acontecimentos que aí se produzem.

Um acontecimento perturbador é aquele que desestabiliza sem retorno essa ancoragem. Quem é por ele atingido não mais consegue se fundear. É o que ocorre com o paciente de Straus, testemunha desse des-ser. Esse des-ser é experimentado numa relação consigo, nesse sich-umwillen (ser-em-vista-de-si-mesmo) que constitui a existência. Ora, a existência assim compreendida é ao mesmo tempo o mais universal e o mais pessoal.

Falamos de acontecimento perturbador. O acontecimento é a própria perturbação. Como ele se produz? O paciente de Straus não foi atingido de frente. Nós não nos comunicamos num frente-a-frente, mas no marginal, lugar de nossas apresentações comuns e de nossas potencialidades. Todo encontro tem lugar no nível das potencialidades, ainda não desenvolvidas, onde - se for autêntico - ele existe. As psicologias da vivência não conseguem justificar a eficácia de um acontecimento. A noção de vivência não está aí para substituir o sentido do ser-no-mundo. Onde o ser-no-mundo foi perturbado, o mundo não mudou apenas em seu horizonte, mas em seu fundamento.

Um acontecimento é uma transformação da presença como ser-no-mundo em vista de si. Ela se encontra momentaneamente ameaçada em sua fundação mesma pela impossibilidade em que se acha - por falta de ancoragem - de se fundear. Como diz Straus, a repentinidade da primeira vez, que é a de uma impressão originária, "funda-se nessa transformaçao". (Straus 1930a, p. 23). A impressão originária é o ressentirc dessa transformação crítica do ser-no-mundo. O ressentir tem sentido sem comportar qualquer signo. Livre de toda intencionalidade, ele se significa. Ele traz consigo uma significação pática, não derivada do conhecimento, a partir da qual ele se ilumina, face iluminante para si.

As significações que, em Geschehnis und Erlebnis, Straus coloca na base da experiência perturbadora do rapaz são significações da ordem do conhecimento. Mas a imposição de sentido colocada à vivência não explica como é que uma significação da ordem do conhecimento pode transmutar-se num momento afetivo inerente à percepção do morto. Ora, justamente no mesmo ano, em Die Formem des Räumlichen (1960 [1930b]), Straus descobria e esclarecia aquilo que ele próprio chamou momento pático da percepção.

Por momento pático, entendemos a comunicação imediata que temos com as coisas sobre o fundo e segundo seu modo de doação sensível [...] O pático pertence ao estado mais original da vivência: ursprünglichstes Erlebnis. (1960 [1930b], p.151)

Também Hölderlin colocara na base da experiência e existência poéticas uma ursprüngliche Empfindung: impressão originária. Tal impressão, cuja repentinidade inaugural funda-se sempre numa transformação, não é uma vivência isolada em si. Ela é um "se viver com o mundo" (Straus 1935, p. 372). Todo ressentir é, da mesma forma, em sua singularidade, inteiramente uma maneira de ser-no-mundo sobre um modo definido, segundo um estilo de ser determinado. Um estilo não envolve o quê, mas como de um se dar. Como é jeito ou maneira. Um acontecimento perturbador é uma mudança no aspecto do mundo e na abertura do ser-no-mundo. O que muda é a maneira pela qual a existência relaciona-se consigo e com o mundo, é a maneira de ser-no-mundo com vistas a si mesmo ou através do mundo precedendo a si-mesmo. O acontecimento perturbador é o acontecimento mesmo da mudança que, sempre crítica, é sempre decisiva - no sentido de um dilaceramento ou de uma transformação.

O pático revela-se na crise sob uma forma agônica, a de uma luta mortal, como diz Weizsäcker, com o ôntico (1950 [1940], p. 184; tr. fr., p, 220). "Atualmente, o ser em estado de crise não é nada: ele se encontra todo em potência" (ibid., p. 220). Mas "crise" (Krisis) significa primitivamente "decisão"; e a decisão é o ato por excelência - e que depende apenas de um si. A aliança do se submeter e do pessoal no momento pático mostra que o se submeter não é uma coerção. A menos que forjemos o seguinte non-sense: uma coerção a ser si. A receptividade ao acontecimento e, co-originariamente, a abertura a seu sentido são próprias a um si, o que se manifesta, no negativo, por uma recessão ou seu desaparecimento comuns na psicose, e especialmente nas formas mais extremas e profundas da esquizofrenia.

No mesmo ano de 1931, em que foi publicado Geschehnis und Erlebnis, Hans Kunz tentava determinar a relação do homem psicótico com o acontecimento da psicose em um ensaio intitulado: Os limites da interpretação psicopatológica do delírio. Seu estudo refere-se em primeiro lugar ao mais aparente, mas também ao mais secreto dos delírios: o delírio esquizofrênico. O delírio é geralmente definido como "o estado de alguém que emite idéias falsas em oposição total à realidade ou à evidência" e a característica do delírio esquizofrênico é sua incorrigibilidade: ele permanece inacessível a qualquer tentativa de correção. Essa inacessibilidade esconde uma outra: ele é inacessível à nossa compreensão. Assim, nós o definimos negativamente com relação a nós, mas não em si mesmo segundo sua constituição própria.

A maioria dos esquizofrênicos expressam-se, e com freqüência falam deles mesmos. Mas não se pode eludir a questão colocada por Kronfeld e à qual ele respondera negativamente: "Em que medida trata-se, nos esquizofrênicos, de uma tradução verbal adequada do acontecimento mórbido que neles se desenrola?" (Kunz 1931, pp. 679ss.). A resposta de Kunz é da mesma forma negativa:

A potência e a profundidade do acontecimento que se repercute em delírio primário não tem uma relação adequada, mesmo longínqua, com sua versão verbal (...) Há discordância entre a linguagem dos doentes e um acontecimento objetivo por detrás. Ele é vivenciado incomparavelmente mais do que é possível à fala comunicar-se. (Ibid., p. 682)

Assim, para aquém de todas as expressões delirantes, algo se passa - que é um acontecimento -, o acontecimento de uma transformação. "O delírio primário esquizofrênico é o reflexo verbal, intelectual, da metamorfose da existência como tal" (ibid., p. 681).

Que função cumpre o delírio?

Para o esquizofrênico ele é um meio - o único - de explicação e de compreensão de si, ou seja, desta metamorfose existencial. Mas ele é uma expressão duvidosa.

O delírio representa a única possibilidade que o esquizofrênico possui de experimentar e de viver a metamorfose de sua existência própria. Mas essa possibilidade é aquela de um modo de expressão na qual a transformação da presença é ocultada. (Ibid., p. 681)

O acontecimento do delírio esconde um outro.

Ele é o recobrimento do que se passa nele e a título de que ele acontece. O esquizofrênico pressente muito bem o que está acontecendo quando fala do fim do mundo ou quando diz estar massacrado ou lentamente dominado pela atmosfera do delírio. Mas ele não sabe o que este acontecimento é [...] Entre o viver em seu tom próprio e o existir efetivamente vivenciado há uma falha. (Ibid., p. 681)

Pois o "`primário', o `originário', o que é propriamente o acontecimento no delírio primário, justamente não é o `delirante', nem a tonalidade delirante, mas a metamorfose inteira da existência, a mudança total do modo de ser-no-mundo" (ibid., p. 692).

Ao delírio primário opõem-se suas ramificações artificiais: os delirios secundários. Eles consistem em falas e pensamentos delirantes organizados em temas que são racionalizações retrospectivamente destinadas a introduzir uma lógica numa situação incompreensível, da qual o delírio primário é a impenetrável testumunha. Tomo como exemplo as Memórias de um nevropata do Presidente Schreber. Tal tentativa de racionalização deixa sua marca em operações de desdobramento paralelas e na sua articulação coerente em um sistema cosmo-teológico. Desdobramento progressivo dos perseguidores: de Flechsig de um lado, de Deus de outro. Desdobramento também do próprio Schreber: de uma parte presa da perseguição, de outra da volúpia da alma. Conjunção desses contrários na unidade de uma nova ordem.

Na dupla condição de Schreber pode-se encontrar a lógica da passagem entre as duas formas de existência do eu paranóide, cujas estruturas são respectivamente as da autodiástole do Eu em si-mesmo - ou seja, da inflação - e da alo-diástole, experimentada em um outro, aqui sob as espécies da projeção secundária. O Eu inflativo quer ser tudo por ele mesmo, entre outras coisas homem e mulher, justamente como Schreber desejava ser ao mesmo tempo um homem e a mulher que ele estaria possuindo. A inflação total não é suportável. Ela cede lugar à projeção secundária que negocia seus benefícios de outra maneira.

"Desta vez", diz Leopold Szondi, "é o objeto que, através da projeção, torna-se onipotente e o sujeito, ao contrário, totalmente impotente. Mas, apesar dessa impotência, o eu tem o sentimento latente de sua potência. Pois se ele é perseguido de fora, é porque ele é maior que o perseguidor" (Szondi 1956).

Assim é Schreber. Porque a ordem do mundo está de seu lado, ao passo que seu perseguidor, Deus, o Deus superior, é apenas um deus otiosus, que nada conhece da realidade do mundo além daquela que lhe é instilada sob a forma de veneno de cadáveres. Ora, Schreber, o único vivente, tenta entrar em relação com Deus por meio de uma ligação de nervos de volúpia. Assim, Deus, desfrutando de Schreber, não mais pode pensar em se retirar dele. Mas - e é nisso que consiste a perseguição - Deus sempre tende a se retirar e a criar motivos que justifiquem essa retirada, levando Schreber à estupidez de "não pensar em nada". De modo que a luta de Schreber consiste em esforçar-se por pensar sempre, para que Deus mantenha seu contato com ele e para que Schreber torne-se a mãe de uma nova raça de homens que não sejam sombras de homens malfeitos às pressas. A perseguição consiste na incessante ameaça da retirada de Deus que, deixando Schreber apenas em esboço, abandona-o ao nada. Há aqui uma espécie de inversão da doutrina cabalística da criação pelo zimzoum, segundo a qual o retraimento de Deus deixa um campo aberto ao lugar do homem, constituído pelo exílio.

O nada, para Schreber, é completamente diferente, de maneira que com esse nada nós acessamos o delírio primário sob a forma do que ele denomina assassinato da alma. Um assassinato é cometido por um outro. Mas no assassinato de alma o outro está no interior. O assassinato de alma é um aniquilamento do poder de se poder. Ele realiza, em meio ao horror, o seguinte non-sense: ser podido por um outro. O assassinato de alma conduz-nos a toda uma série de situações que têm em comum, como assinala Lacan, o fato de que a fala pára no momento em que o sujeito vai ser colocado em questão, onde se encontra em jogo o momento pático característico das frases em eu. Para possuir a chave que abre a porta já é preciso estar no interior.

A situação mais impressionante, no limite do próprio e do estrangeiro, é aquela em que Schreber defende desesperadamente a apropriação de seu ato próprio, que lhe é, como ele diz, "miraculado". Trata-se do milagre do urro. Dezenas de vezes por dia, com a boca escancarada, Schreber ratifica o abismo, (ca´ os [caos], raiz greg. bocejar), mas ao mesmo tempo o repele com um grito. Lembremos a frase de Straus: "O sentir é para o conhecer aquilo que o grito é para a palavra" (1956 [1935], p. 329). O grito nos conduz ao nível pré-objetivo do sentir, ao ressentir da metamorfose da existência, ou seja, ao próprio acontecimento da psicose. O grito é ao mesmo tempo acontecimento e expressão do acontecimento. Ele faz de qualquer momento em que explode um presente, o único presente. Pois ele exprime a metamorfose da existência que constitui o único acontecimento que pôs fim a todos os outros. Na psicose não há mais acontecimentos. A intimação da presença resolve-se em rasgo: a transformação não ocorre. O tornar-se outro em antecipação de si é substituído pela irrupção em si da alteridade pura.

O grito de Schreber deve ser aproximado de um outro que, no entanto, não explodiu: o grito reprimido de Suzanne Urban (cf. Binswanger [1952] 1957). Seu marido, que perdera um irmão morto de um câncer na bexiga, sofria ele próprio da bexiga e tinha ido a Paris para consultar um urologista e submeter-se a uma citoscopia:

Fui ao médico com meu marido e fiquei na sala de espera: escutava, tremendo e chorando, seus terríveis gemidos. O médico disse-lhe que ele tinha uma pequena lesão na bexiga mas, virando-lhe as costas, dirigiu-me uma expressão tão horrivelmente desprovida de esperança que todo meu corpo enrijeceu e minha boca escancarou-se de terror: então o médico rapidamente segurou minha mão para fazer-me sinal de que eu não deveria mostrar nada do que sentia. (Binswanger [1952] 1957, p. 369)

Esta cena primitiva está na origem da esquizofrenia de Suzanne Urban. Ela é marcada por dois traços: a terrível mímica e o bloqueio do grito. Toda a cena - nesse espaço cênico que é justamente o consultório do urologista como lugar do drama - está concentrada na expressão. A partir daí, o mundo de Suzanne Urban fica inteiramente infectado pelo câncer. Ela contava que, como os médicos consultados fizeram-na vislumbrar os sofrimentos cruciantes em que seu marido passaria seus últimos anos,

tudo isso me abalou tanto que voltei mais morta do que viva, incapaz de pensar em outra coisa que não fosse abreviar seus sofrimentos matando-o e em seguida me suicidando. Supliquei aos médicos que me dessem veneno. Essa idéia infeliz levou-os a obrigar-me a deixar minha casa para ir a G. - o primeiro estabelecimento psiquiátrico - essa armadilha terrível na qual caí. (Ibid., p. 370)

Foi ao voltar para casa, três meses depois da cena perturbadora, que o delírio transtornou a existência de Suzanne Urban. A fase reveladora do delírio, que o definiu sob o signo do terror, e que constitui, segundo a expressão de Binswanger, sua fase atmosférica, encontra-se em estreita relação e, por assim dizer, em ressonância com a cena primitiva. Para Suzanne Urban, o mundo inteiro transformou-se em atmosfera. Como diziam seus próximos, ela começa a presentir perigo por toda parte. Como as almas no Hades ou como se o mundo tivesse se transformado em fumaça. O presentir é próximo do tocar. Numa neblina espessa (Nebel und Nacht) tudo se encontra imediatamente sobre nós, e nossa relação com o entorno é contato, sem ser, por falta de um espaço do jogo, comunicação.

Fora justamente essa a situação de Suzanne Urban por ocasião da cena primitiva, onde ela ficara entregue à terrível expressão do médico. Já em circunstâncias ordinárias, uma expressão não está no mundo, mas é o mundo que se abre a partir dela. Estamos aprumados à transcendência do semblante do outro. Mas quando ela tem esse poder fascinante experimentado por Suzanne Urban, a expressão é o mundo. Ela se impõe numa proximidade absoluta, como aquela de um rosto percebido, à noite, colado contra a vidraça, anulando todo o espaço do cômodo - e cuja expressão sem distância encontra-se sobre nós.

Uma expressão surgida do nada é um acontecimento-advento em relação ao qual aquele ou aquela que ela captura fica sem reserva marginal. De fato, é com freqüência uma expressão, embora mascarada por circunstâncias exteriores mais impressionantes, que se encontra no início de uma esquizofrenia, como no caso dessa doente de Roland Kuhn1. Jovem auxiliar de enfermagem, ela ajustava tiras de gesso na própria testa para manter suas idéias no lugar. O momento que decidiu sua história, que decidiu sobre a fisionomia que o mundo assumiu para ela, e sobre a maneira pela qual este se modificou definitivamente, é uma expressão. Ela almoçava na mesa de sua casa, sentada diante de seu pai. Todos esta vam lá, com exceção de seu irmão, que permanecera no quarto. De repente, no primeiro andar, onde ficava o quarto do irmão, ressoa uma detonação. Seu irmão tinha se matado com um tiro de fuzil na cabeça. A jovem segue a família, que se precipita para junto do morto ensangüentado. À tarde, ela vai à lavanderia, onde o corpo de seu irmão havia sido colocado para esperar o exame legal. E ela levanta o lençol que o recobria. E, no entanto, não foi de forma alguma a visão do irmão morto a origem de seus distúrbios. Como ela acabou por se lembrar no final de um longo tratamento, o que a havia transtornado fora a expressão do rosto do pai no momento do tiro de fuzil - sem que, então, nem ele nem ela tivessem pronunciado qualquer palavra.

A fala calada, como o grito bloqueado de Suzanne Urban, marca o momento em que, no Mit-Welt, o contato substitui a comunicação. Um grito lançado no mundo teria liberado Suzanne Urban dessa fixação rígida na qual, imóvel, ela ficara submetida à expressão. Essa expressão tornou-se o acontecimento insuperável que, a partir de então, a doente apenas reproduz indefinidamente, e que absorve antecipadamente a possibilidade de qualquer outro acontecimento. A angústia diante do câncer infinitiza-se e não deixa nenhum lugar aos apelos do mundo. O tema do câncer não pode se emancipar, não pode, de objeto parcial, tornar-se parte total de um mundo terrificante, senão através de uma atmosfera universal saída diretamente da expressão aterrorizante.

"Essa pura Stimmung imaterial", diz Hörderlin, "é o eco da impressão viva original [...] que ressoa em Stimmung capaz de um infinito" (Hölderlin 1992, p. 96 [trad. fr. p. 628]). O que é válido para a obra e a existência poética de Hölderlin também o é para a existência sem obra de Suzanne Urban. Só que a Stimmung dessa existência é exclusivamente a da angústia que, em ruptura com a confiança, é doravante a Urdoxa de seu mundo, de um mundo que, sem acontecimento, não mais se torna mundo. Tampouco há acontecimentos na psicose melancólica ou na mania. A única ação da qual o melancólico é capaz é a queixa. Sua forma canônica é a seguinte:

Ah, se pelo menos eu tivesse
( ou se eu não tivesse) feito isto ou aquilo ...
...Não me acharia aqui (aqui de onde parte minha queixa).

O melancólico, em sua queixa, evoca um acontecimento do passado, por detrás do qual, por recuos sucessivos, aparece, a cada etapa, um outro. Esse acontecimento, que faz parte de um passado concluído, é substituído por seu contrário, que nunca ocorreu e, a partir deste, o melancólico entrega-se a protenções vazias, como em O ano passado em Marienbad. Esse suposto acontecimento está na origem de um antimundo, cuja realização é confiada ao destino, à pura negatividade na forma da universalidade (cf. Hegel 1941, p. 204). O melancólico, exatamente através disso, nega-se até em seu passado. Ele é pura negatividade na forma da singularidade. Ele se faz espírito desaparecido e torna-se sua própria Erínia. Sua queixa substitui qualquer acontecimento. Será que ela própria seria um?

Parece bastante apropriado considerar-se as protenções vazias do melancólico como a contrapartida de uma existência toda em retenção, e, nisso mesmo, retida em seu passado. Inversamente, o maníaco, todo em protenção, sem nenhum apoio no passado, existiria apenas a advir. Na realidade, em ambos os casos, passado e futuro são ilusórios, devido à falta do presente. O melancólico e o maníaco não têm verdadeiro presente, e, por essa razão, estão excluídos do acontecimento. Considerado segundo a tensão de duração (nele implicada), que faz dele um ponto-origem, um presente pode dar-se em incidência pura ou em incidência que se verte em decadência. Mas não há presente de absoluta decadência que se apresente sem chegada a si. A não ser precisamente o presente da melancolia, onde o indicativo, modo pessoal, opinativo e posicional, retorna por involução à forma nominal mais estagnante que existe: a do particípio passado. O tempo imanente à vivência ou, melhor, a tensão de duração implicada no existir é abolida.

A fuga de idéias maníaca, esse salto por cima da experiência que é a marca de um estado festivo (Binswanger 1933, pp. 19, 32), não é sustentada, como poder-se-ia crer, por um presente de incidência absoluta. O presente maníaco é um presente de inversão infinita, onde aquilo que vem do futuro, o inesperado, encontra-se indefinidamente invertido por um contramovimento que tem o único objetivo de opor-se à possibilidade mesma de uma vinda. Nenhuma discriminação é feita entre o tempo que vem e o tempo que vai, nenhuma diferenciação de ordem aspectual entre incidência e decadência. Eles e elas se anulam na indiferença e, com eles e elas, seu limite potencial: o presente (cf. Guillaume 1964, pp. 62 §6, 66 §14).

Entre presente e acontecimento, o vínculo é indissolúvel. Eles são o agora-isto-aqui de uma mesma transformação. Viktor von Weizsäcker afirma-o a respeito das formas biológicas: sua gênese consiste de transformações constitutivas cuja operação determina um aqui e, a partir desse aqui, a espacialidade daquilo que o rodeia. A mesma coisa para o tempo.

A análise do movimento biológico levou-nos a afirmar a primazia desse movimento sobre o espaço. O movimento não é determinável a partir de certas posições locais (e temporais) no seio do espaço (e do tempo) mas, ao contrário, o movimento orgânico engendra a configuração espaço-temporal. O movimento do organismo não se desenrola no espaço e no tempo, é o organismo que move o espaço com o tempo. (Weizsäcker 1940, p. 145 [trad. fr. p. 181])

Porque ele é automovimento. Um automovimento em que cada um leva em conta aquilo que o outro faz, só pode ser compreendido como uma troca de formas.

"A forma do movimento é comum ao organismo e ao meio. A forma", diz Weizsäcker, "é o lugar de encontro (ele mesmo automovente) do organismo e do Umwelt". E ele completa: "Ela é gênese do presente em todo momento" (ibid., p. 141 [trad. fr. p. 179]).

O que é verdade para o vivente também o é para o existente. A gênese do presente dá-se em unidade com a transformação da existência que, por si, constitui o acontecimento. Aqui, a noção de acontecimento impõe-se ainda com mais força, pois o existente, mesmo no nível do sentir, se ele se sente si com o mundo, ressente ambos segundo seu ser, um como existente e o outro como ente. As transformações constitutivas da forma biológica encontram seu análogo nas transformações constitutivas da existência como ser-no-mundo. Assim como é a partir do Aqui e do Agora constituídos em Presente que se engendra o espaço-tempo do vivente, assim também é a partir do acontecimento que é engendrado o mundo de um existente. O acontecimento não se produz no mundo. O mundo abre-se no acontecimento. E isto começa no sentir.

No sentir produz-se um acontecimento que se dá à minha própria luz, que só se ilumina com ele. O acontecimento é um rasgo na trama do ente. É à luz desse rasgo que algo aparece entregando seu céu.

De todos os fenômenos que nos são familiares, o mais extraordinário é o fato de sua aparição. Pois se não é senão por sua manifestação que tomamos consciência dos princípios das coisas, é em última instância a sensação que é também o princípio do conhecimento desses princípios, e é nela que se enraíza todo o saber. Mas a busca de suas origens não pode vir de nenhum outro fenômeno além dela mesma: a sensação dada pelos sentidos. (Hobbes, Théorie du corps, §25)2

No lugar de "sensação", vamos dizer "sentir".

Mas, para aquém da aparição do que quer que seja, o mais extraordinário - tão injustificável quanto irremediável - é o próprio aparecer cuja essência é sem porquê. O que Ludwig Binswanger (1947 [1928], p. 60) exprime em outros termos: "Vemos que a manifestação, o fato de aparecer, o phainesthai não pode ser aprendido em outra origem além dele mesmo". Não há o que distinguir entre aparecer e ser. Eles fazem apenas um no acontecimento. O acontecimento é o jorrard do mundo. Mas esse jorrar não é um projeto. A esquizofrenia mostra-o a contrario.

O delírio é uma luta. Schreber suscita uma potência adversa, contra a qual ele possa ter que combater. Trata-se, certamente, de uma tentativa de encontrar o acontecimento. Mas ele só se encontra em presença de seres surgidos de seu projeto. Há realmente presença onde não há co-pre-sença? Pode haver abertura a eles ali onde não há mais o aberto? O projeto de Schreber consiste em subtrair-se à ameaça do nada. Que nada? Embora ele seja diferente daquele do melancólico, como o pleno-demais difere do vazio - mas ambos inativos - trata-se, nos dois casos, de um nada-ente. Do qual seria inútil esperar - fora de seu rasgo - a surpresa de ser. A história de um delírio esquizofrênico é feita do desfile de figuras do nada, uma sucedendo à outra. A redução dos perseguidores no delírio de Schreber, sua multiplicação no delírio de Suzanne Urban, têm por efeito dividir a compacidade do aterrorizante. Seria essa uma maneira de escapar à proximidade absoluta de sua própria opressão, ou seria um agravamento do terror, como pensa Binswanger, pelo fato de que, a partir de então, o doente encontra-se totalmente à mercê do mundo de onde os perseguidores o atacam?

A questão fica colocada, mas o malogro permanece.

"A presença", diz Kierkegaard, "desviou-se de sua relação com o fundamento, que se volta contra ela". O que se volta contra ela é o Nada. Ele retorna sob uma forma imprópria que não é o Nada do qual o ente pode surgir para si na surpresa do ser, mas um nada compacto. Freqüentemente, esse nada compacto toma a forma de um pseudomundo que não se torna mundo a partir do acontecimento. Sua compacidade é a de um mundo de rumores ou de um rumor de mundos, de onde emergem falas geladas que o esquizofrênico tem que pôr em funcionamento a qualquer preço. Assim como ocorre com o grandioso rumor processional, que se amplifica a partir da megalomania repetitiva de quedas e ressurreições, cujo desenvolvimento delirante pode ser seguido nos escritos de AdolfoWölfli. Escrever (ou pintar) é a única maneira que ele tem de existir esse mundo, de nele existir sua essência fixada em seu ser-advindo (Wesen ist Gewesen). Contra esse rumor que nele fala com a fala de uma consciência de si estrangeira, ele só pode se manter falando-a.

Por vezes, essa compacidade se faz sutil: o Nada é experimentado ou pressentido sob a forma informal do vazio. Sob essa forma, que convém tanto à eclosão quanto à extenuação do real, ele revela sua ambigüidade. Esta se manifesta em particular no ponto de junção e de separação da vida cotidiana e do delírio. Aqui, a ambivalência do nada coloca em causa as fronteiras e o sentido da realidade: aparece que o delírio constitui no ser-doente a ressaca da normalidade, a contramanifestação defensiva da transcendência, única segundo a qual alguém pode existir.

O caso Georges, analisado por Roland Kuhn (1946), é um exemplo tópico. Recolhidas de centenas de sessões, suas falas esparsas convergem e se articulam em um mundo onde ele não possui nada de próprio, nem mesmo seu nome. Tendo sido na sua primeira infância Georges, pronunciado à francesa por sua mãe, ele teve que, com a idade de três anos, responder pelo nome de Georg, pronunciado com sotaque alemão por sua babá. Isto não pertence mais à ordem do ter, mas do ser. Se "a individualidade é aquilo que seu mundo é enquanto seu", o mundo de Georges é um mundo que não é o seu, onde ele não é nada propriamente.

Filho de uma prostituta, ele é "o filho de muitos pais". Ele foi agarrado em meio ao vôo, no ar. O ar é também, de outro lado, o meio de toda dispersão, onde desaparece aquilo que, segundo a expressão popular, "é lançado aos ventos". Quando criança Georges brincava com a areia, ele não sabia fazer nada com sua pá, além de desmanchar um monte de areia para jogá-lo sobre outro. E é assim que ele mesmo é "remexido como que com uma pá" quando se encontra em meio a outras pessoas. Então, ele perde sua forma, ele se aplaina. A areia dispersa-se numa área cada vez maior, ela se torna - e Georges com ela - a poeira das ruas que os homens carregam na sola de seus sapatos. Se vier uma ventania, a areia é levada embora, e Georges dissolve-se no ar onde ele foi uma vez "agarrado em meio ao vôo". Tal espécie de existência é uma existência no estado zero.

A fisionomia geral do mundo, a partir da qual Georges se compreende sem conseguir articular-se, repousa sobre a oposição de dois mundos, por ele colocados sob o signo dos germânicos e dos romanos. Essa idéia foi-lhe inspirada pelo Hermann, de Kleist. O mundo dos germânicos é o mundo da floresta, justamente aquele da floresta germânica onde foram aniquiladas as legiões romanas de Varus. Ele é, ele era o mundo primitivo. Nele todos viviam independentes, sem que ninguém nunca fosse forçado a "respirar o hálito do outro", ou viesse tomar seu fôlego, seu espaço vital e seus bens adquiridos unicamente por suas forças próprias. Só esse mundo está no passado. Ele é o passado. Ele não existe mais.

O mundo do germânicos é o da comunidade, o mundo dos romanos é o da Sociedade. O romano tem coisas demais à sua disposição; ele é dependente de uma grande quantidade de bens de consumo e garante esse contexto de vida não por si próprio, mas explorando os outros em função de seu conforto. Ao mundo dos romanos Georges assimila o mundo da rua, que é o da multidão, uma multidão apressada, sempre em movimento. Na rua, as pessoas correm umas atrás das outras, para se alcançar ou ultrapassar. Por sua extração, Georges é um homem da rua. Era daí que vinham todos "seus pais". Mas, enquanto o traço comum dos homens da rua é ir e vir incessantemente, Georges, por sua vez, permanence parado. Ele se esquiva do movimento geral para não ser "enlaçado aos outros". Para evitar entrar em seu ritmo, ele adota uma forma de andar insólita, que o faz logo ser reconhecido como louco. Entretanto, por mais diversas que sejam as direções seguidas pelos passantes, a rua que os contém estende-se numa única perspectiva, em direção ao futuro. Mas Georges não tem futuro. O espetáculo da rua se desenrola como um filme; e a vida de cada homem é ela mesma um filme, onde tudo que ele vive fica gravado. Para Georges, a película passa depressa demais. Por mais que ele corra para aí inscrever sua imagem, sempre chega tarde demais; a película de sua vida nunca chega a ser gravada. Dele nada permanece, nada dura no tempo. Sempre o estado zero.

Sem passado, sem futuro, ele tem um presente? "O presente é", ele diz, "o trabalho cotidiano e o comércio cotidiano com os outros homens". Desse comércio, ele foge. "Deve-se ter o presente em si." Mas ele acrescenta que passa sempre "ao largo" do seu.

Ora, aquilo que ele é segundo o modo do nada ser, Georges quer sê-lo por si, fazer disso sua possibilidade própria. Ele busca sempre uma forma de fugir do contato. No asilo, sempre se postava nos lugares de passagem entre duas portas e lançava rapidamente aos que passavam aquilo que chamava de um "Spott". Designava por essa palavra um gênero particular de brincadeira, demandando uma réplica imediata, no taco-a-taco, seguida de uma resposta imediata. É preciso, sobretudo, livrar-se o mais rápido possível dessa tirada que se lança ou que é devolvida. Essa predileção por lugares de passagem e pelos passes rápidos é uma predileção por aquilo que não permanece, por aquilo que não tem tempo de ser. O ideal desse homem da rua que foge de todos os encontros foi durante muito tempo ser um guarda de trânsito. "A realidade", diz Georges, "é aquilo que está aí". Ora, um guarda de trânsito é o centro e o regulador de um movimento do qual ele não participa. Esse modo de existência é para Georges uma ironia em relação "ao que está aí", a mesma ironia que a do "Spott".

A ironia é a marca secreta da defesa esquizofrênica, aqui apresentando o sentido que Hegel lhe dá na Introdução às lições de estética. Ela é o destino do Eu absoluto, no sentido de Fichte, cumprindo-se em seu desaparecimento Esse eu "inteiramente abstrato e formal" é o "absolutamente simples em si". Mas ele o é ironicamente. Pois essa simplicidade tem a forma da negatividade.

De um lado, o eu é sem conteúdo. Toda determinidade é absorvida nessa liberdade e unidade abstratas. De outro lado, ele é todo conteúdo. Não há conteúdo válido para além do que ele colocou. Aquilo que só é pelo eu, eu posso, enquanto Eu, da mesma maneira, aniquilá-lo novamente. [...] Aquilo que é em si e por si é apenas uma aparência, um Schein, um simples parecer que tudo deve ao eu, que disso dispõe à força a seu bel-prazer. (Hegel 1953, pp. 100s.)

É esse o sentido da ironia genial: "ela é a concentração do eu em si-mesmo, que rompeu todos os vínculos e só consegue viver na beatitude do desfrute de si" (ibid., p. 102).

A forma imediata da negatividade irônica é, portanto, a frivolidade de todo o substancial, de todo o objetivo, de tudo que vale em si e por si. Ao eu que permanece fixado a esse ponto de vista, tudo parece nulo e vão, salvo sua própria subjetividade. Mas esta, por isso mesmo, é oca e vazia; ela é a inconsistência mesma, a vacuidade do vazio. (Ibid., p. 103)

Entretanto, nota Hegel, a consciência irônica do eu desfrutando de sua inconsistência não é um estado final. Pois

há um outro lado do eu que não pode se satisfazer com este usufruto de si. O eu experimenta a falta de si-mesmo: ele tem sede de estabilidade e substancialidade. A infelicidade e a contradição surgem do fato que, de um lado, o sujeito quer entrar plenamente na verdade e dirige seu desejo para o objetivo e, de um outro, não consegue se livrar dessa solidão, desse recolhimento em si; ele não consegue arrancar-se dessa interioridade abstrata insatisfeita e encontra-se invadido por essa mesma nostalgia que vemos elevar-se da filosofia fichteana. (Ibid., p. 103)

Ela também se ergue da existência de Georges, cuja dimensão irônica desaparece quando o delírio se instaura.

No sentido em que Jung fala de "grandes sonhos", esse delírio é um grande delírio. Ele devolve ao Nada a eficácia do não agir. Nele e por ele Georges é o aí do Nada, de um Nada que não é nem aquele de uma "palhaçada transcendental" (Fr. Schlegel), nem de uma "solução final" liquidando o ser com o ente.

Por várias vezes Georges encontrara uma moça de sua idade, Elfriede. Ela tinha se apaixonado por ele. Mas ele, longe de corresponder a seus sentimentos, mantinha-se à distância, como fazia com todos... até um certo dia, em que pensou ter notado que também ela se mantinha afastada do convívio com os outros. Por ocasião de uma pequena festa entre colegas, que de comum acordo os outros haviam decidido prolongar, Elfriede recusara-se a ficar e, tendo saído ao mesmo tempo que Georges, acompanhou-o até a estação onde ele devia pegar o trem. Ele tomou lugar em um vagão, enquanto ela permanecia de pé na plataforma.

Era um fim de tarde de novembro nublada e chuvosa. Elfriede usava um casaco preto e segurava aberto um guarda-chuva de cor escura. Georges via-a através do vidro. Mal, devido a seus problemas de vista. E de repente não era mais Elfriede, mas uma outra forma que estava ali. Em vez de seus cabelos loiros, ela os tinha negros. Um véu negro cobria-lhe a cabeça e o rosto, e ela usava um vestido preto que ia até o chão. Através do véu negro Georges percebia vagamente a forma de um rosto onde se mostravam somente os buracos negros de uma caveira, enquanto o conjunto da forma era um esqueleto com roupas. O trem partiu. Mas com Georges, ele também levou a forma, cuja presença o acompanhou durante meses e com a qual ele viveu numa constante proximidade. Como o próprio Georges, o espectro circulava em todos os lugares e não estava em parte alguma. E Georges sentia-se totalmente feliz em sua presença. Ele estava convencido que ela tinha um caráter ideal, como Ifigênia no drama de Goethe. A forma espectral era Ifigênia. Ele começou a amá-la como o ideal da mulher. Quando a sua imagem estava lá, todo o resto desaparecia.

Na primeira vez que reviu Elfriede, ele sentiu nojo por sua natureza terrestre. E desde então começou entre Elfriede e Ifigênia um verdadeiro combate, em que cada uma delas, a cada vez, superava a outra segundo as circunstâncias, ou seja, segundo o comportamento da moça. A lei e o estado da partilha exprimiam-se em sua aparência mesma. Quando falava com ela, Georges começava por ver uma pequena imagem de Ifigênia, de apenas alguns centímetros, que pousava sobre o rosto de Elfriede, e que então aumentava, estendendo-se em seguida ao corpo inteiro. Mas se Elfriede falasse muito ou caso se fizesse notar em demasia, a imagem de Ifigênia regredia. Toda a vida de Georges se pautava por essas vicissitudes. Se ele encontrasse Elfriede em companhia de outras pessoas, Ifigência extenuava-se até desaparecer.

O mais importante é o amor real de Georges por essa forma ideal. Mas o termo "ideal", quando empregado na linguagem comum, muito mais volatiza do que esclarece a dimensão real da existência de alguém. Elfriede e Ifigênia são duas figuras egóicas que se movem respectivamente no para aquém e no para além. "O eu", diz Szondi, "não está nem para aquém, nem para além; ele é o ponto entre o para aquém e o para além" (Szondi 1956). Assim se encontra o eu de Georges, entre Ifigênia e Elfiede. Para ele, a existência humana de uma está em razão inversa da existência social da outra.

Permanece a seguinte questão: "Por que", pergunta Roland Kuhn, "não é a imagem luminosa de um anjo celeste que surge diante de Georges, mas a forma subterrânea de um esqueleto velado?". Ele responde: "Antes de tudo, Ifigênia é uma figura tirada do passado, do mundo da floresta onde tudo é reconduzido à sua origem, e da mesma forma o homem a seu esqueleto. Em presença de Ifigênia, Georges vive seu sonho da floresta".

No que essa origem difere daquela outra, insignificante, que era para Georges sua captura em meio ao vôo no ar, onde ele deve novamente dissolver-se como a poeira espalhada pelo vento? Entre as duas a diferença é a mesma que entre a forma espectral de Ifigênia e as imagens ordinárias da morte como último fim. Na forma amada, o esqueleto não é um fim, mas um começo. Como na visão de Ezequiel, os ossos ressecados tornam-se homens sob o sopro do espírito. É em direção a esta origem que Georges se volta e retorna para tomar sentido. É o que aparece em dois desenhos executados por ele. Nos dois é representado um caixão. No primeiro, o caixão repousa sobre uma duna de areia ao lado de uma árvore desfolhada e uma mão de morto, reduzida a esqueleto, apronta-se para agarrá-la. Esse detalhe provém de uma passagem de Kleist, em que a heroína canta a história de uma criança que queria agarrar o reflexo da lua num lago. Sob seu gesto a água se turva, a imagem desaparece. Então, diz Georges - o que não se encontra no texto de Kleist - "sua mão torna-se morta, torna-se areia".

O outro desenho representa, no alto da montanha, uma garganta rochosa com paredes abruptas, na abertura da qual, ao longe, encontra-se suspenso no ar um caixão aureolado de um círculo luminoso. Ainda que esta seja uma imagem do suicídio, este retorno ao nada é um retorno a um não-ser mais primitivo que um mundo, mesmo aquele dos germânicos: é um retorno ao Nada onde o ente se origina. Bem mais que um retraimento do social e da história, trata-se de um retraimento do ente "tomado" nele mesmo em uma compacta falta de justificativa. O Nada até onde penetra o delírio de Georges é o vazio originário, único a partir de onde pode-se advir sem qualquer preparo. "É o vazio do vaso que faz o uso" diz Lao-Tzu. Do vaso ele é a razão de ser, que chama a matéria e a modelagem da argila. A existência "delirante" de Georges é inteiramente modelada a partir do vazio. Ele vive enclausurado numa peça sem móveis. Onde quer que se encontre, desfaz os fios dos tapetes e retira os quadros das paredes. Não suporta nada que cole ou aglutine. A coesão das coisas, assim como a pregnância social, mantêm o ente em um estado concentracionário, sem abertura para si.

O delírio de Georges é uma tentativa de retorno à tábula rasa e ao espaço nu. Pergunta Paul Klee,

Quem não gostaria, como o artista, de habitar onde o órgão central de todo movimento no tempo e espaço, seja ele chamado cérebro ou coração da criação, dá curso a todas as funções? No seio da natureza, no mais profundo da criação, onde se encontra encapsulada a chave secreta de tudo? (Klee 1964, p. 93)

O segredo dessa chave é que ela não se encontra em parte alguma no todo. A chave do ente, aquilo pelo qual ele é, não é o conjunto do ente. Para Paul Klee, ela se encontra no caos, esse não-conceito, esse Nada que não se opõe a nada. Georges, de seu lado, declarava: "Eu sou um homem do caos". Seu delírio é assimilável à "fixação de um ponto no caos", da qual Paul Klee afirma que ela é o "momento cosmogenético" (ibid., p. 4). O mundo delirante é um mundo privado. Mas Georges conseguiu, depois de sua cura, fixar um ponto no caos "de onde a ordem assim despertada irradia-se em todas as dimensões" da existência. Para o Nada que foi a paixão de seu delírio ele encontrou um substituto, ao mesmo tempo simbólico e sensível, no exercício de uma certa profissão, tornando-se contramestre numa empresa de mudanças. Sua maior felicidade, ele disse a seu antigo médico ao encontrá-lo por acaso, é manter-se na entrada dos cômodos que estão sendo esvaziados e supervisionar a evacuação dos móveis. Sem nunca tocar nas coisas que são levadas, ele organiza o retorno ao reino do vazio.

Só aquele que, imediatamente no acontecimento do ente, estiver voltado para a abertura do ser, consegue, como Lao-Tzu, "quando os dez mil seres eclodem num único élã, ser contemplando o retorno" e compreender-se nele. Mas Georges não consegue. Para isso ser-lhe-ia necessário - como é necessário a tantos normopatas - curar-se de sua cura.

De fato, o momento cosmogenético próprio a Georges consiste sempre numa mesma situação, em que o mesmo mundo se repete. Mas aquilo que se abre a partir do Nada - que chamamos Nada ou vazio ou, em chinês, wu ou hsü - não é em primeiro lugar um mundo, mas um acontecimento. O horizonte da existência do si é o lado voltado para nós do acontecimento. Para devolver a existência a si "quando a totalidade do dado torna-se tema" (Heidegger 1935, p. 362), é preciso saber reencontrar na percepção o sentir, no mundo o Umwelt, no projeto a acolhida, no Nada o Aberto, na presença o si. A presença só é a de um si por sua abertura ao acontecimento. Não por ela estar no mundo com vistas a si sob a forma de um projeto que possibilita sua própria faticidade. Mas, sim, por sua transpassibilidade aberta ao inesperado que exclui todo a priori. Sua abertura ao acontecimento é aquilo pelo qual ela existe, e existe enquanto si. O acontecimento é um existencial.

 

Referências bibliográficas

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Klee, Paul 1964: Das bildnerische Denken, Basel, Stuttgart, Spiller (Conferência de Iena, 26 de janeiro de 1924).

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Kunz, Hans 1931: "Die Grenze der psycho-pathologischen

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______1935: Von Sinn der Sinne , 2 ed. 1956, Berlin, Springer.

Szondi, Leopold 1956: Ich-Analyse, Bern, Huber. Weizsacker Viktor von 1940: Der Gestaltkreis, 4 ed. 1950, Stuttgart, Georg Thienne (trad. fr. Le cycle de la structure, 1958, Paris, Desclée de Brouwer).

 

 

Tradução: Martha Gambini
Revisão: Anna Christina Ribeiro Aguilar

*Traduzido de Henry Maldiney 1991: "Évènement et psychose", in Penser l' homme et la folie. Grenoble, Ed. Millon, pp. 251-294. As notas do autor serão indicadas por numerais, as da tradutora por letras.
a À publicação do texto de Erwin Straus, em 1930.
b Num português menos estranho, mas que perderia o sentido do prefixo "des", "não falar coisa com coisa".
c Optamos por traduzir o vocábulo francês ressentir também por ressentir em português, dado o significado particular da palavra no pensamento de Maldiney: "sentir-se junto com o sentir o mundo".
1 Texto inédito de Roland Kuhn.
2 Citado por Binswanger (1947 [1928], p. 60).
d Em francês jet, que é aproximado a seguir à palavra projet, aproximação que se perde na tradução em português.