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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.2 São Paulo dez. 2000

 

ARTIGOS

 

O corpo desfeito por Francis Bacon*

 

The body undone by Francis Bacon

 

 

Rogério Luz

Doutor em Comunicação pela Universidade Católica de Louvain - Bélgica
Pesquisador do Núcleo de Tecnologia da Imagem (N-Imagem) da ECO-UFRJ
Fundador e membro do "Espaço Winnicott - Estudos em Psicanálise e Cultura"

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A obra do pintor inglês Francis Bacon conduz, no presente artigo, a um exame da temática do corpo, na arte e na sociedade atuais, sob a ótica de dois dos processos, descritos por Winnicott, que relacionam a psique e o soma: integração e personalização, e seus opostos.

Palavras-chave: Corpo, Pintura moderna, Bacon, Winnicott, Relação psique/soma, Deleuze.


ABSTRACT

The work of the British painter Francis Bacon leads, in the present article, to the examination of the theme of the body, in present art and society, under the view of two processes, described by Winnicott, which relate the psychic and the soma: integration and personalization, and their opposites.

Keywords: Body, Modern painting, Bacon, Winnicott, Psychic/soma relation, Deleuze.


 

 

Que pode a imagem de um corpo, de um corpo humano?

A quase exclusividade da apresentação e do desfazimento do corpo na obra de Francis Bacon, em seus trípticos, crucifixões e inumeráveis retratos - auto-retratos, retratos de amigos e também retratos a partir de reproduções de pinturas famosas, como a do Papa Inocêncio X, de Velásquez -, justificam o interesse da obra do pintor inglês para um certo exame da temática do corpo.

 

Estudo para o retrato do Papa Inocêncio X, 1965.

 

Na arte, essa temática é a da figuração do corpo, do rosto e do próprio olhar: ausência, aparição, desaparecimento. A auto-imagem do ser humano enquanto se desumana, quando se objetiva em imagem, é uma imagem muito especial, um si próprio que se desapropria ao retornar sobre si, isto é, ao voltar atrás, ao retratar-se entre as coisas do mundo.

Na figuração do corpo humano da arte pré-histórica, não há representação do rosto nem, portanto, do olhar. É o caso do "Homem do Poço", no fundo da gruta pré-histórica de Lascaux, na França. Trata-se de uma quase assinatura como se, no meio das figuras animadas, no meio do tumulto animal da vida, uma outra imagem, ou sombra, se intercalasse, não como pólo gerador daqueles desenhos, como autor da obra inscrita, mas, pelo contrário, como o que deixa apenas um rastro secreto, como aquele que subjaz ao movimento, ao que é animado, confundido-se com a pedra, tornada para nós tumular - aquela que guarda o segredo do nascimento da arte. Não é, portanto, uma alma ou subjetividade criadora, mas um corpo deitado, na dor, no sono ou na morte (cf. Blanchot 1971).

Mas há corpo que se debruça sobre seu reflexo na água - rosto e olhar -, tema recorrente na pintura e que a fotografia potencializou. É o caso de Narciso sorvido pela água primordial, absorvido na impossível representação do mesmo pelo mesmo, por si próprio alienado. Ausência mais radical ainda do corpo que a arte tumulária magnifica - arte dos continentes vazios, assombrada por uma presença outra, uma ausência mais originária, uma alteridade absoluta. Corpo dilacerado de Dioniso, corpo torturado do Crucificado, corpo de reis assassinados. Corpos que reaparecem mais (ou menos) potentes: na glória de um renascimento ou no fantasma que clama por vingança.

Nossa modernidade trouxe uma esperança, a de que o corpo pudesse enfim fornecer ao enigma da natureza humana um princípio concreto de explicação - porto e horizonte de um novo humanismo. Corpo orgânico, finito e material, presidido pelo cérebro. Esperança vã? Talvez, se considerarmos a necessidade e ao mesmo tempo a impossibilidade de inscrever o corpo entre as coisas do mundo e da natureza, de fazer a passagem do apresentar-se do corpo atual à representação da ausência de corpo. Nova tentativa de configurá-lo, desfigurá-lo e fazê-lo ressurgir sob outra forma.

Pierre Francastel assinala a importância da figura do ser humano na arte, presente em todas as épocas e culturas: mão espalmada, corpo inteiro, busto, rosto. Os modos de representar variam e podem ser agrupados em três grandes tipos: o simbólico - de um poder divino ou real, mais ou menos rigidamente codificado, sem que os traços individuais predominem; o modo realista - em que o indivíduo aparece como representante de um grupo social, em um contexto cultural específico; e, por fim, o modo individualizado - quando a representação surge dos sinais de uma subjetividade singular. Mantém-se em todos esses casos - apesar de todas as diferenças de época, estilo e escola - a referência a um modelo. Tudo isto, segundo Francastel, sempre supôs uma reflexão "sobre a situação do homem na sociedade e não sobre a posição de um artista em relação ao universo" (Francastel 1995, p. 230).

Com a arte moderna dá-se a ruptura. Entram na cena da arte o sujeito das sensações e a linguagem auto-referente. É dado um passo definitivo: a imitação do mundo é substituída pela análise do sujeito, consciência e corpo produtores de signos, e o interesse pelo tema é substituído pelo exame das estruturas próprias da obra de arte.1 Logo: análise do sujeito das sensações e exame da realidade das formas artísticas.

Ora, para Francastel, sem a preocupação com a figura humana em si mesma, como tal, não há propriamente retrato. É celebre a resposta de Matisse a uma apreciadora que criticava a desproporção de uma de suas inúmeras representações do corpo feminino: "Isso não é uma mulher, minha senhora, é uma pintura".

Para Francastel, o retrato, nas diversas épocas, remete a modos de percepção e concepção do tipo humano, suas relações hierárquicas em um mundo social e natural; reflete e promove sua transformação, articulando-o a novas constelações econômicas, políticas e culturais em formação. A representação da figura humana diria respeito à maneira de se pensar o lugar do indivíduo na sociedade e do ser humano no cosmos. E o autor se pergunta: "Que aconteceu para que a sociedade ocidental apareça hoje como rechaçando finalmente a figura do homem?" (Francastel 1995, p. 214).

Não precisamos concordar integralmente com Francastel para recebermos dele duas lições preciosas: a importância da representação do corpo humano na arte em todas as épocas e a mutação que ela vem sofrendo em nossos dias, mutação da qual Bacon é exemplo revelador. Talvez, ao contrário do que Francastel acredita, é a referência a um modelo exterior e objetivo - o que, para ele, seria o verdadeiro retrato - um mero caso da questão mais geral sobre o movimento reflexionante presente na arte: mais do que um sujeito que se representa (seja de um modo genérico, típico ou singularizado) o que se operaria na figura humana retratada seria a pluralidade e a diversidade de modos de produção da subjetividade. Isso diria respeito antes à história da linguagem (no caso, das linguagens de arte) do que à história das reproduções visuais de figuras humanas.

A imagem do corpo próprio ou do corpo do outro - este esforço para manter, além da morte, a aparência mais fugidia, a que o passar dos anos, como se diz, não dá repouso - não seria a problemática imagem de um movimento de auto-implicação, que se pensa no mito, na filosofia, na ciência ou nas artes?

É essa imagem do ser humano - muito mais do que a imagem das coisas ou dos deuses - que parece afundar-se hoje em uma impossibilidade. Sintoma reativo dessa situação é a representação excessiva do corpo (por exemplo, no noticiário e na publicidade de moda, esporte ou saúde) que enfatiza as qualidades do que o corpo é e deve ser - corpo ideal, atlético, erótico, desejável.

No movimento de verdade da figura humana em Bacon - que, se nada tem a ver com um realismo meramente reprodutivo, também não é expressão subjetiva, fosse ela de um psiquismo perturbado - evidencia-se a distância entre imagem e coisa. A mais estreita intimidade vai de par com o maior estranhamento.

A reprodução do rosto por Bacon, segundo ele nos diz, procura acolher a potência que habita o corpo. O rosto não é a essência de uma personalidade, mas a verdade de sua aparência como um enigma e de seu exílio, daquilo que o leva para fora de si-mesmo, do espaço que há entre a força que o move e o mundo que o acolhe. Se o retrato não é apreensão de uma realidade personológica, também não é uma resultante de seus formantes plásticos. Reduzi-lo à pura forma interna de sua composição, à sua "linguagem", é outra maneira de contornar o enfrentamento do corpo com a imagem, a realidade figural do corpo que a imagem produz e que a ultrapassa, na direção de uma verdade.

Sem dúvida, hoje, o corpo na arte exige um novo quadro de apreciação e avaliação: exigência de um corpo participante e, ao mesmo tempo, parcialização, decomposição e desfiguração do homem em suas apresentações plásticas. Muito particularmente desfazimento do rosto, como lugar abandonado do sentido e da verdade do ser humano, desesperança no rosto como síntese do que seja um corpo e do que ele representa - imagem de poderosos, resumo de um grupo humano qualquer, individualidade irredutível. O rosto apareceria agora como um mapa de forças intensivas.

Não estaríamos ante uma nova experimentação do corpo e da subjetividade? Novas maneiras de ver não deveriam ser convocadas para compreendê-la?2 O retrato do rosto e a noção de sujeito estariam mesmo intimamente imbricados e, por isso, fadados a desaparecer ao mes- mo tempo?

Cremos que um novo regime de produção de verdade sobre o corpo e o sujeito revela-se na arte atual em torno da figura humana e de suas desfigurações. Ele já está presente na modernidade de início do século, quando são abalados os cânones neoclássicos de representação do humano. Se o discurso do quadro é a construção de uma enunciação de verdade - enunciar uma verdade do visível sobre o visível -, essa verdade não é, justamente, da ordem do visível.3

A questão da figura humana não se coloca tanto em termos de analogia entre cópia e modelo, semelhança e dessemelhança, nem na dialética da contradição entre ser si próprio ou alhear-se de si. Ela se coloca fundamentalmente em termos de um devir simultâneo de identidade e alteridade, contrariedade paradoxal e relação exclusiva do mesmo e do outro.

 

Auto-retrato, 1972.

 

Olhar um corpo, nele residir, deixá-lo ser

É nesse ponto que dois aspectos do pensamento de Winnicott, relacionados ao ser percebido, podem ser úteis para compreender o estatuto do corpo e da subjetividade, de sua apresentação em imagem e das transformações que, nos tempos atuais, ocorrem nesta. Esses aspectos estão articulados e falam da residência da psique no soma e do estado de amorfia, o que supõe a não-integração entre partes do corpo, anterior à representação da realidade interna ou externa. São formulações que, em Winnicott, assumem o movimento paradoxal da própria experiência de ser: ser um corpo afetiva e simbolicamente investido.

O sentimento de estar sendo não resulta mecanicamente do instinto de sobrevivência e da necessidade satisfeita; ele tem sua base nos estados de não-integração, não-personalização e não-realização, prévia condição para que um novo impulso rumo ao objeto - afetar e ser afetado pelo mundo - possa surgir, com os benefícios pessoais daí decorrentes, em termos de unificação e contato com a realidade.

Há longos períodos da vida de um bebê normal durante os quais pouco lhe importa que esteja em pedaços ou que seja um ser inteiro, ou que viva no rosto da mãe ou em seu próprio corpo, desde que, de quando em quando, ele possa reunir suas partes e sentir alguma coisa. (Winnicott 1945d, p. 39)

Segundo Winnicott, é possível sentir alguma coisa por meio de duas séries de fatos: o fato da técnica dos cuidados com a criança, proveniente do meio externo, e o fato das moções instintuais que, do interior do corpo, fazem da criança um todo.

O estado informe - que teria o seu similar pulsional na idéia do perverso polimorfo de Freud - exige a compreensão de um corpo fragmentado, de um psiquismo flutuante e de uma relação frouxa entre a psique e o soma, que indica a base, com certeza precária, da criação simultânea do si-mesmo e do outro.

O bom ambiente permite experiências que estão aquém da chamada saúde mental e dos sintomas reativos de temor e de rejeição da "capacidade inata que todo ser humano tem de tornar-se não integrado, despersonalizado e de sentir que o mundo é irreal" (ibid., p. 275).4

Os grandes artistas criativos atestam essa experiência-limite da relação psicossomática. Cremos que não é sem razão que Winnicott vê em Bacon um exemplo destes abismos, anteriores a todo diagnóstico de perturbações psicossomáticas e a toda consideração terapêutica. A criatividade poderá emergir somente a partir de um estado de não-integração.

A busca só pode vir a partir do funcionamento amorfo e desconexo ou, talvez, do brincar rudimentar, como numa zona neutra. É apenas aqui, nesse estado não-integrado da personalidade, que o elemento criativo, tal como o descrevemos, pode emergir. (Winnicott 1971r, p.92)

Winnicott acentua, em diversas passagens, o aspecto mais arcaico dessa experiência de sujeito, relacionando arte e psicose, e retirando a primazia do que se considera correntemente normal e saudável. Sensações intensas encontram sua origem no contato com os selves primitivos, que a arte possibilita. Nesse caso, o fato de ser apenas sadio significa um empobrecimento da personalidade.

Através da expressão artística, há a esperança de manter contato com nossos selves primitivos, onde se originam os sentimentos mais intensos e sensações amedrontadoramente agudas e ficamos realmente empobrecidos se formos apenas sadios. (Winnicott 1945d, p. 285)

E mais: é a experiência amorfa que está na base do brincar e garante que se construa uma existência verdadeiramente experimentada.

...(dá-se) oportunidade para a experiência amorfa e para os impulsos criativos, motores e sensórios, que constituem a matéria-prima do brincar. É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. (Winnicott 1971r, p. 93)

A qualidade de não ter forma se opõe à submissão a padrões impostos, a qual organiza um falso self doentio e dissociado. Winnicott relata o caso de uma paciente que

...durante um momento experimentou um sentimento intenso associado à idéia que ninguém - de seu ponto de vista - durante sua infância compreendera que ela deveria começar por ser informe. (Winnicott 1971h, p. 55)

A moradia da psique no soma supõe a dualidade meio ambiente/indivíduo biológico. O psiquismo humano não é nem inato nem adquirido. Não se trata de descrever o desenvolvimento de um pequeno animal humano, submetido gradualmente a um processo de adestramento que o socializaria. Tampouco o movimento endógeno pelo qual algo que, enraizado nas profundezas do indivíduo, emergiria à superfície em contato com um determinado meio ambiente.

A dualidade originária do sujeito psíquico situa-se entre o corpo e o ambiente, o corpo do bebê e a mãe-ambiente, dualidade entre os estados de excitabilidade e os estados de relaxamento, as relações masculina e feminina com o objeto, a experiência de ser e a experiência instintiva, entre os impulsos eróticos e os impulsos agressivos, entre aquilo que é percebido e aquilo que é concebido. Winnicott não procura conciliar os termos dessas dicotomias sob o comando de um princípio unificador. Cada termo tem direito a se afirmar por conta própria e disso resulta a relação dinâmica entre eles. Winnicott defende o paradoxo como a mais adequada forma do pensamento para exprimir essa experiência de ser - ser um sujeito psíquico.5

Porque o psiquismo se encontra, primitivamente, em algum lugar entre os pólos da díada originária mãe-bebê. Esta é uma afirmação importante para que se entenda o significado da expressão natureza humana em Winnicott, e a descrição da gênese do sujeito em termos de exterioridade. A psique - que é, de início, a elaboração imaginária das partes, sentimentos e funções corporais - assenta suas bases no corpo desde que o ambiente torne isso possível: é a devoção materna que permite que a psique se aloje em um corpo individual.

A psique - a "alma", se quiserem, mas não a "mente" - pode (ou não), durante o processo de maturação, ocupar o corpo inteiro, bem como abandoná-lo em parte ou no todo, em estados patológicos ou mesmo no processo normal, e sempre disponível, durante a vida inteira, a regressão a estados não-integrados, no relaxamento das tensões instintuais. A psique - esse instável conector entre indivíduo e mundo - é um híbrido de identidade e alteridade. Conexão que constitui a existência somatopsíquica experimentada criativamente, oposta tanto à autonomia interna do fantasiar, quanto à submissão a invasões externas padronizadoras.

A localização do self no próprio corpo resulta de um processo complexo. Winnicott postula um estado primário de não-integração como base para entender a progressiva integração entre psique e soma, e a residência da psique no soma.

Em resumo, o suporte do ambiente permite que o bebê alcance um estado de unidade ou integração. "Associada a isso está a chegada do lactente à existência psicossomática, que começa a adquirir um padrão pessoal; eu me referi a isso como o habitar (indwelling: o morar em, o residir em) da psique no soma" (Winnicott 1960c, p. 45).

 

O corpo desfeito por Francis Bacon

Certas características da obra de Francis Bacon levaram Winnicott a tomá-la como testemunho de uma dificuldade inerente à natureza humana: a da emergência e habitação de um psiquismo autônomo no corpo por meio do olhar do outro como espelho que reflete, ou não, a própria alteridade - paradoxo da identificação e do estranhamento absolutos. O artista nos obriga a experimentar aquela dificuldade e a pensar sobre ela. Segundo Winnicott, por meio da distorção e do desfazimento de corpos e rostos, Bacon procura dolorosamente ser visto, o que aponta para o próprio fundamento de um olhar criativo (Luz 1998, pp. 248-259).

Diz Masud Khan que, para Winnicott, o paradoxo crucial da relação mãe-bebê está no fato de o ambiente (a mãe) possibilitar a emergência de um si-mesmo autônomo, o self do bebê (Khan 1982, p. xxxvii). Com isso, Winnicott afirma a indeterminação e a alteridade do sujeito, não uma substância personológica dada ou construída, mas um processo singular e relacional de modulação afetiva.

Ao nos apresentar, de um modo muito próprio, a figura humana, Bacon mostra - se o abordamos a partir do pensamento de Winnicott - dois outros aspectos da vida psíquica intimamente articulados ao ser percebido: o de integração, partir de e voltar a estados de indeterminação e amorfia, e o de personalização, residir ou não residir em um corpo.

A importância da experiência amorfa parece sempre presente em Bacon, da preparação ao acabamento do quadro. Bacon enfatiza o papel do acaso, da busca de uma estrutura que parta do acaso e que evite a imagem ilustrativa comandada racionalmente. Uma estrutura que advém das sensações, estas sim capazes de produzir uma nova vida, uma nova forma orgânica para as imagens. O acaso é visto por Bacon como uma necessidade para que a figura - e não a mera ilustração da idéia, do tema ou do indivíduo - possa surgir. Essa forma/figura, real e verdadeira, parece e aparece "com a coisa", e remete diretamente ao feixe de sensações nervosas que é o corpo, sem mediação de comparação com um referente modelo.

Na história da pintura moderna, a ruptura com o figurativo se dá, segundo Deleuze, sob duas formas: 1) a negação da figura, com o abstracionismo, seja ele geométrico ou expressionista, nos extremos da pura forma colorida e do movimento turbulento dos acasos da linha - Mondrian ou Pollock e 2) a afirmação do Figural contra a figuração, como é o caso de Bacon.6 Deleuze nos mostra que os estados caóticos não são suficientes para que uma forma se configure. Sem dúvida, as formas vêm das forças; estas possuem suas intensidades, vibrações e efeitos próprios. Mas o movimento das puras forças não se mantém como tal, na sua indeterminação puramente intensiva: ele anuncia e possibilita a formação da forma.

Em cada uma das artes, o pensamento artista funciona de maneira específica. A clínica ou estética da pintura, por exemplo, tem a ver com a histeria. Não que Bacon seja histérico. Ao contrário, pela sua pintura, diz-nos Deleuze, é a histeria que se torna arte. As partes do corpo expressam intensidades nervosas. Na pintura de Bacon, o olhar, ao se liberar do corpo orgânico - isto é, ao liberar o olho de sua integração em um todo orgânico - atinge uma intensidade tátil, porque permite que a cor possa agir diretamente sobre o sistema nervoso.

 

Painel da direita de três estudos para uma crucificação, 1962.

 

O corpo em Bacon aparece não como reapresentação do que se apresentou à percepção sob um primeiro modo de presença, diretamente ou face a face, mas como fato, e fato diretamente intensivo. Trata-se, portanto, de captar e de produzir o fato, através do corpo. O fato é um fato corpóreo, um fato intensivo do corpo. O que pode a imagem de

um corpo de forças, que desfaz a representação unitária e totalizadora do corpo orgânico? Quem olha uma obra de Bacon está diante dela não como espectador mas, segundo Deleuze, como testemunha, a exterioridade da testemunha que é afetada na sua indiferença mesma, que se põe ao lado ou em frente daquilo que se exterioriza histericamente. Essa testemunha não é um espectador participante, porque não está incluída no espaço, como na perspectiva clássica, nem olha junto com a pintura para um mundo metamorfoseado, nem participa ludicamente, solicitado a agir para que a obra se ponha em marcha. Diante do fato, a testemunha apenas testemunha, é chamada a testemunhar.

Deleuze reconhece, nas pinturas de Bacon, as Estruturas Espacializantes, de cor chapada ou escovada, os Contornos ou Limites, que as linhas determinam, e, por fim, as Figuras, que esboçam dois movimentos: de emergência do caos e de retorno ao caos. Toda essa configuração parte de Diagramas, isto é, de uma trama traçada e apagada por gestos, com o uso de diferentes instrumentos: mão, pano, escova ou o que estiver por perto.

FB - Veja, você não imagina o quanto o desespero na hora do trabalho pode fazer com que a pessoa pegue a tinta e faça tudo o que está a seu alcance para ver-se livre da fórmula que produz uma imagem ilustrativa... O que estou dizendo é que esfrego um pedaço de pano ou uso um pincel ou apago com qualquer bobagem que tenha à mão, ou jogo por cima terebintina, tinta e outras coisas mais, tudo na esperança de quebrar a inflexibilidade da imagem, para que ela se descubra por assim dizer espontaneamente, segundo sua própria estrutura e não segundo a minha. Depois disso, será a minha vontade que passará a atuar para que eu possa começar a trabalhar de acordo com que o acaso deixou na tela para mim. (Sylvester 1995, p. 160)

Os diagramas - traços e manchas - são pré-pintura: eles mostram o que na tela já está confusamente inscrito. Na verdade, não existe tela em branco. Para Bacon,a tela está repleta de representações que é preciso destruir, apagar, confundir. Com a lógica desses procedimentos e desse vocabulário, Bacon rompe com o Figurativo, evitando a imagem narrativa e ilustrativa. Para tanto, a área do quadro, como área do informe, é trabalhada, por meio de diagramas. O Diagrama põe dois longínquos em relação, ou em não-relação.

DS: É uma questão de conciliar os opostos, suponho - de fazer uma coisa ser ao mesmo tempo coisas contraditórias.
FB: Não é isso que se deseja? Que uma coisa seja tão factual quanto possível e ao mesmo tempo tão sugestiva ou reveladora de áreas de sensação, em vez de parecer simples ilustração do objeto que se pretendeu fazer? Não é em torno disso que gira toda arte?
DS: Você poderia dizer qual a diferença entre uma forma ilustrativa e uma forma não-ilustrativa?
FB: Bom, acho que a diferença é que a forma ilustrativa imediatamente lhe fala, através da inteligência, que ela expressa, enquanto no caso da não ilustrativa, ela primeiro atua nas emoções e depois faz revelações sobre o fato. Agora, por que isso é assim eu não sei. Talvez tenha a ver com a ambigüidade dos próprios fatos, com a ambigüidade das aparências, e portanto, essa maneira de registrar a forma se aproximaria mais do fato por ela ser também ambígua em seu procedimento. (Ibid., p. 56)

Vemos que Sylvester, o entrevistador, sugere tratar-se de uma conciliação entre opostos, que Bacon recusa. Ele insiste na diferença entre a imagem ilustrativa e a imagem que atua diretamente sobre as emoções.

A forma assim figurada é mais realista: funda-se na ambigüidade de fato da experiência dos fatos. Tal "pensamento artista" é paradoxal. Na psicanálise, ele é o de fora, inconsciente no discurso articulado da representação. O sujeito está sempre em exílio na relação que mantém com o território demarcado pela consciência. O acaso tem aí papel fundamental. David Sylvester propõe uma relação entre profundidade e superfície, que Bacon habilmente desloca.

DS - Você está querendo dizer que, quando se deixa o acaso agir, certos níveis mais profundos de personalidade vêm à tona?
FB - É exatamente o que estou tentando dizer. Mas também estou tentando dizer que eles vêm à tona inevitavelmente... eles vêm à tona sem que o cérebro interfira na inevitabilidade de uma imagem. Isso parece provir diretamente daquilo que resolvemos chamar de inconsciente, com a espuma do inconsciente circundando a imagem. É isso que lhe dá vigor. (Ibid., p. 120)

Essa inevitável imagem de superfície, nos termos de Winnicott, lembrar-nos-ia mais os estágios arcaicos, a experiência do erotismo muscular e dos tecidos, anteriores às profundezas do inconsciente reprimido. Espuma e não raiz. Pelas linhas de contorno desloca-se uma fronteira como lugar de troca entre as estruturas espacializantes e as figuras. Nas estruturas chapadas aparecem também os espelhos, que fazem parte do entorno material. São superfícies que, em geral, nada refletem; ao contrário, elas mostram a opacidade e a alteridade. Não há nada por detrás do espelho, mas algo dentro do espelho.

Uma paciente de Winnicott, grande admiradora de Bacon, temia nada ver ao se olhar no espelho. A esse propósito, Winnicott lembra a importância, para o pintor, de proteger com vidro algumas de suas pinturas. Com isso, Bacon expele a própria superfície de reflexão para fora do quadro e com ela o espectador que, nessa exterioridade, vê-se refletido e como que impedido de ver o quadro como representação especular. Questão do olhar - da dificuldade em ser olhado ou percebido que Winnicott assinalara em suas observações sobre a pintura de Bacon. Este afirma:

...o vidro ajuda a unificar o quadro. Além disso, gosto da distância que o vidro coloca entre aquilo que foi feito e o espectador; quero, se assim posso dizer, me afastar tanto quanto possível do objeto [...] é a distância, é o fato de a coisa não estar ao alcance do espectador. (Ibid., p. 86-7)

Se a estrutura vai na direção de envolver a figura, por meio do movimento da linha, a figura - por movimento contraposto - isola-se e deforma-se, ao mesmo tempo contraída e aspirada pelo vazio. Esse paradoxo de aparecer desaparecendo, assinalado por Deleuze, só é possível pela fronteira entre os planos chapados de cor e as figuras.

Com o diagrama de forças, Bacon desorganiza o figurativo e caminha, na forma do corpo e do rosto humano, para o inorgânico e o inumano, isto é, para a forma Figura. Não havendo mais lugar, na pintura de Bacon, para uma psicologia da percepção e da representação, diante de sua obra o pensamento é impelido a uma nova compreensão do corpo e da imagem.

DS - [...] você não é somente conciso; você imprime um certo ritmo, uma distorção, digamos assim. Você torce o que vê de uma maneira que é sua e a maneira como torce as coisas nos faz ver que é significativa da atitude que tem para com a vida.
FB - Não. Neste ponto acho que você está errado. Aquilo que faço com as faces é feito por motivos estéticos, porque acho que isso faz a imagem ser transmitida de maneira mais intensa, mais verdadeira [...] Do mesmo modo que as técnicas do cinema e de tudo quanto é forma de gravação foram aperfeiçoando-se, também o pintor está na obrigação de tornar-se cada vez inventivo. Ele tem de reinventar o Realismo. Ele tem de, com sua criatividade, trazer de volta o Realismo para o sistema nervoso, porque não existe mais um naturalismo na pintura de hoje. Mas alguém seria capaz de responder por que muito freqüentemente, ou quase sempre, as imagens acidentais são mais reais? Talvez porque, não tendo sido modificadas pelo pensamento consciente, elas tenham encontrado um sentido mais puro e verdadeiro [...]. (Ibid., p. 176)

Do Diagrama - que é gesto e ritmo, mas não basta em si-mesmo, destruição que é fundo de possibilidades -, até a Figura, através da sensação colorizante, Bacon produz a sensação de um olhar tátil, superação da dicotomia do olho e da mão. O olho passa a ser órgão do tato, correlato de um espaço de cor próprio da pintura, da sua pintura. Porque não há gênero e espécie em arte: cada Diagrama, e cada Figura que dali emerge, por meio de determinada lógica, é singular, acontecimento singular a ser testemunhado a cada vez. Esse acontecimento é processo de subjetivação: como linha e plano, cor e figura, uma corporeidade, um sujeito corpóreo, centrado em seu isolamento e desaparecimento, é produzido e surge do isolamento como Ícone ou Imagem, mais verdadeiro do que o seria por semelhança figurativa. Uma verdade "tem lugar", um sujeito de verdade ocorre no processo da pintura de Bacon, é um fato de sensação, segundo sua lógica própria, seu logos sensível, que capta a energia que há dentro da aparência e reinventa o mistério da aparência.

Bacon comenta dois retratos que fez do escritor e amigo Michel Leiris:

o que fiz literalmente menos parecido com ele é o que se parece com ele de forma mais dramática. O interessante nesse retrato de Michel é que ele é o que se parece mais com a sua figura, mas quando se pensa na cabeça de Michel, a gente nota que ela é arredondada, e essa do retrato tem uma forma comprida e estreita. Por isso pode-se dizer que ninguém sabe o que faz uma coisa parecer mais real do que uma outra. Eu realmente quis que esse retrato de Michel ficasse parecido com ele: não faz sentido fazer o retrato de uma pessoa se não for para ficar parecido com ela. Mas por ser comprida e fina, essa cabeça nada tem a ver com a cabeça de Michel, mas, mesmo assim, é a que se parece mais com ele. (Ibid., p. 146)

Realidade e verdade não estão do lado da semelhança representativa, mas do artifício da parecença: a imagem surge do acaso e é orientada por um outro princípio de estruturação - não o que procura traduzir a expressão, seja do artista, seja do modelo, mas aquela que, imagem sensorial, produz o fato das sensações, o fato que afeta. Enfim, à representação se substituem o gesto e a sensação, o que faz do espectador um corpo testemunhal.

Nesse sentido, o uso por Bacon do recurso fotográfico é significativo. Nossa modernidade concede aos diferentes procedimentos fotográficos o reino da visão. A fotografia não ilustra apenas, nem narra: ela é nosso olhar. Bacon, fascinado por ela, enfrenta-a em seu próprio terreno. Em especial, as radiografias do corpo humano revelam a plástica dos ossos e carnes, a força de impacto de uma estrutura e as sensações de vida e morte, provocadas, por exemplo, por suas crucifixões.

Sempre que entro num açougue penso que é surpreendente eu não estar ali no lugar do animal. Mas usar a carne dessa maneira particular talvez seja igual à maneira como alguém usaria a espinha, porque estamos sempre vendo imagens do corpo humano através de chapas de radiografia, e isso obviamente modifica o modo como se pode usar o corpo. (Ibid., p. 46)

Bacon não trabalha na presença mas sobre fotos de seus modelos: prefere ficar sozinho mas "com a lembrança deles. (...) O que eu pretendo é distorcer o objeto até um nível que está muito além da aparência, mas, na distorção, volta a um registro da aparência" (ibid., p. 40).

O impacto de uma fotografia - uma vez que nosso sentido de aparência é o tempo todo assaltado pela fotografia e pelo filme, como afirma Bacon - é provado pela

[...] proximidade muito grande que ela tem com o fato; isso me faz retornar ao fato ainda mais violentamente. Através da foto começo a divagar sobre a imagem e meu pensamento vai captando na realidade mais finamente do que conseguiria apenas com os olhos. E as fotografias não são somente pontos de referência; muitas vezes elas são detonadoras de idéias. (Ibid., p. 30)

Em Bacon, não somos espectadores das coisas, de nós mesmos ou de personagens, são as coisas que nos afetam os nervos, desde que asiladas de seu papel utilitário no quotidiano e dispostas de tal maneira que nos obrigam a pensar. Essa exterioridade das coisas, tão próxima e tão longínqua no momento em que é captada por um gesto de arte, é Figura, olhar que nos torna estranhos a nós mesmos, que nos torna outros - essa alteração, essa alteridade a que chamamos processo de subjetivação na arte.

A pintura de Bacon nos afeta e atesta ao mesmo tempo nossa invisibilidade e nosso isolamento. A arte do pintor aponta para uma imagem que nos olha não apenas para nos tornar visíveis, mas para efetuar a ausência de um verbo que não nos diz, de um olhar que nos torna imperceptíveis. São variantes dessa experiência matricial que a pintura de Bacon testemunha.

Em Winnicott, o olhar da mãe não remete o filho ao que é idêntico - à própria mãe, ao ambiente cultural estabelecido. O olhar da mãe não é, portanto, um olhar projetivo. A mãe vê o bebê no que ele tem de diferente. Eis a base para o desenvolvimento do self do bebê, que pode ser então a figura que se isola, é incomunicável e nada tem a ver com a realidade. Olhar não é ver: olho, mas não vejo, esse é o movimento essencial do olhar como vazio da visão. Olho, mas o que vejo é o outro em sua alteridade, que nenhum elemento comum pode reduzir àquele que olha, ao mesmo, a mim mesmo. Importância, pois, da pele, do olho como superfície exterior tátil, antes que algo "penetre" nele, que o atravesse rumo à representação identificadora.

O rosto visão, o rosto olhar, o rosto espelho da alma e o rosto signo da intersubjetividade humana não são suficientes para conceituar nossa atual experiência do corpo. O corpo, representado como sistema de órgãos e funções, torna-se um campo de forças internas e externas. Essas forças se tornam indiscerníveis sobre uma fronteira de contato e de separação. O corpo é atravessado por fluxos que configuram diferentes zonas de sensação e níveis de intensidade mutantes: corpo de desejo, corpo de afetos. Corpo que não se opõe aos órgãos, mas à organização deles em um organismo. É o que nos propõe Deleuze, quando utiliza o que o poeta e dramaturgo Antonin Artaud descobriu e nomeou: o corpo sem órgãos.

O corpo é inteiramente vivo e no entanto não orgânico. Dessa maneira, a sensação, quando atinge o corpo através do organismo, assume aspecto excessivo e espasmódico, rompe os limites da atividade orgânica. Em plena carne, ela é diretamente levada sobre a onda nervosa ou a emoção vital. (Deleuze 1984, p. 33-4)7

Esse corpo - que não é o organismo do indivíduo biológico humano, mas também não é a imagem, consciente ou inconsciente, do corpo próprio - é residência precária e transitória, habitada em seu todo ou em partes, perdida em seus anexos, abandonada ou desaparecida na enxurrada do tempo e das coisas. Corpo que o olhar do outro autonomiza e que a arte faz retornar à primitiva indeterminação da forma, à liberdade de sua potência. Corpo psíquico, que relaciona paradoxalmente vida e ambiente e torna híbridos natureza e cultura. Corpo que, ante as pressões da atualidade, e com a ajuda de Winnicott e Bacon, podemos pensar criativamente.

 

Referências bibliográficas

Aumont, Jacques 1998: El rosto en el cine. Barcelona/Buenos Aires/México, Paidós.         [ Links ]

Blanchot, Maurice 1971a: L'amitié.Paris, Gallimard.

______ 1971b: "La naissance de l'art", in Blanchot 1971a.

Deleuze, Gilles 1984: Logique de la sensation. Paris, Éditions de la Différence.

Francastel, Galienne e Pierre 1995. "Renovação e decadência: séculos XIX e XX", in O retrato. Madrid, Ediciones Catedra.

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Lins, Maria Ivone A. 1988: "Corpo, afeto, representação", in Lins e Luz 1998.

Lins, Maria Ivone A. e Luz, Rogerio 1998: D. W. Winnicott - experiência clínica & experiência estética. Rio de Janeiro, Revinter.

Luz, Rogerio 1988: "Ser imagem para outro (Winnicott/Bacon)", in Lins e Luz 1998.

Sylvester, David 1995: Entrevistas com Francis Bacon - A brutalidade dos fatos (trad. Maria Teresa Resende Costa a partir de Interviews with Francis Bacon, 1995). Cosac e Naify Ed. Ltda (sem indicação de cidade e de data de publicação), p. 160.

Wahl, François 1996: Introduction au discours du tableau. Paris, Seuil.

Winnicott, Donald W. 1945d: "Desenvolvimento emocional primitivo", in Winnicott 1958a.

______ 1954a: "A mente e sua relação com o psique-soma", in Winnicott 1958a.

______ 1958a: Through paediatrics to psycho-analysis. London, Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1982.

______ 1958a: Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro, Imago, 2000.

______ 1960c: "Teoria do relacionamento paterno-infantil", in Winnicott 1965b.

______ 1965b: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1982.

Winnicott, Donald W. 1971a: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.

______ 1971r: "O brincar. A atividade criativa e a busca do eu", in Winnicott 1971a.

______ 1971h: "Sonhar, fantasiar e viver: uma história clínica, que descreve uma dissociação psíquica", in Winnicott 1971a.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: linsluz@iis.com.br

 

 

* Trabalho apresentado no V Colóquio Winnicott: O Corpo, PUC-SP, setembro de 2000.
1 Diz ainda Francastel: "A partir de agora a organização do objeto pictórico, do quadro, não tem outro ponto de referência que aquele que se encontra na própria consciência do artista. De maneira que para destruir a noção tradicional do retrato se associam as duas correntes que já estavam elaboradas nas últimas décadas do século XIX: aquela que substitui a imitação do mundo exterior (A janela aberta, de Alberti) pela análise das representações do espírito gerador de signos sem conexão com a realidade operatória, e a que substitui a tomada em consideração do tema pelas estruturas próprias da obra de arte" (1995, pp. 230-1).
2 Para Aumont, "embora o sujeito do retrato cubista ou o de um retrato de Bacon, por exemplo, já não seja o sujeito pleno do humanismo, isso não o anula como sujeito (quase se poderia fazer uma história da categoria de sujeito no século XX a partir de seu desenvolvimento pictórico através do retrato pintado). O retrato é o gênero pictórico que profere a noção mesma de sujeito" (Aumont 1998, p. 33).
3 Em um sentido abrangente, é o que afirma François Wahl, que parte da convergência construída entre a lingüística de Benveniste, a psicanálise de Lacan e o pensamento de Alain Badiou. Cf. Wahl 1996, p. 10.
4 Cf. tb. Winnicott 1954a, p. 409-25.
5 Como comenta Ivone Lins: "Responsável pela integração do self em uma unidade psicossomática, a personalização diz respeito à residência da psique no corpo, seguida da fruição de uma unidade psicossomática, na experiência. Antes da representação do corpo próprio, a criança usufrui desta experiência.
Do ponto de vista do desenvolvimento, a personalização representa a conclusão de uma etapa e, portanto, uma conquista da saúde. Não é, no entanto, sinal de doença, alerta Winnicott, o fato de a criança poder utilizar relacionamentos onde reina uma confiança máxima para experimentar, por momentos, a perda da integração psicossomática. A possibilidade dessa experiência é de extrema importância para as crianças, sobretudo entre dois e cinco anos de idade, e mais tarde na puberdade. Em um processo sadio, o sentimento de segurança no relacionamento permite a anulação repousante dos processos integrativos, ao mesmo tempo em que favorece a tendência geral, inata, à integração.
Um modus vivendi entre a psique e o soma começa a se instaurar antes da época em que se faz necessário utilizar conceitos tais como verbalização e intelecto, antes portanto da capacidade para representar" (1998, pp. 111-112).
6 Para o desenvolvimento que se segue, cf. Deleuze 1984.
7 Citando todo o trecho de Deleuze: "Para além do organismo, mas também como limite do corpo vivido, existe o que Artaud descobriu e nomeou: corpo sem órgãos. [...] Toda uma vida não orgânica, porque o organismo não é a vida, ele a aprisiona. O corpo é inteiramente vivo e no entanto não orgânico. Dessa maneira, a sensação, quando atinge o corpo através do organismo, assume aspecto excessivo e espasmódico, rompe os limites da atividade orgânica. Em plena carne, ela é diretamente levada sobre a onda nervosa ou a emoção vital. Pode-se acreditar que Bacon encontra Artaud em muitos pontos: a Figura é precisamente o corpo sem órgãos (desfazer o organismo em proveito do corpo, o rosto em proveito da cabeça): o corpo sem órgãos é carne e nervo; uma onda o percorre, que traça níveis nele; a sensação é o encontro da onda com as forças que agem sobre o corpo, `atletismo afetivo', grito-sopro; quando ela também é remetida ao corpo, a sensação deixa de ser representativa, ela torna-se real, e a crueldade será cada vez menos ligada à representação de alguma coisa de horrível, ela será somente a ação das forças sobre o corpo, ou a sensação (o contrário do sensacional)" (1984, pp. 33-4).