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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.2 São Paulo dez. 2000

 

ARTIGOS

 

Experiências corporais. A vida de Beckett e as histórias de Malone

 

Body experiences in Beckett’s life and in Malone stories

 

 

Maria Ivone Accioly Lins

Doutora em Psicanálise pela Universidade de Paris-X, Nanterre - França
Psicanalista da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
Fundadora e membro do "Espaço Winnicott - Estudos em Psicanálise e Cultura"

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Do ponto de vista teórico, o trabalho ressalta a originalidade de uma visão das doenças psicossomáticas que aponta, não apenas para os aspectos negativos da cisão psique/soma, mas que leva em conta, igualmente, seus aspectos positivos. Da biografia e da ficção de Samuel Beckett são retirados os elementos para uma ilustração da teoria do adoecer psicossomático e dos bloqueios da criatividade causados por falhas ambientais. Falhas precoces dos cuidados maternos são relacionadas às experiências que se encontram na origem tanto de uma dissociação entre a psique e o corpo, como de uma deficiência no estabelecimento de uma área intermediária de experiência, lugar da criatividade. A noção de espaço potencial como lugar de criatividade e de experiências restauradoras aponta para a originalidade de uma clínica que não se limita à análise das representações do mundo interno do paciente.

Palavras-chave: Falhas ambientais, Cisão psique/soma, Distúrbios psicossomáticos, Criatividade.


ABSTRACT

From the theoretic standpoint, the work points out the originality of a vision of the psychosomatic illnesses that not only points to the negative aspects of the psychic/soma scission, but that also takes into account, equally, its positive aspects. The elements for the illustration of the psychosomatic illness theory and of the creativity block onset by environmental failures are taken from maternal care are related to the experiences found in the origin of a disassociation between the psychic and the body, as well as of a deficiency in the establishment of an intermediate area of experience, the location of creativity. The notion of the potential space as a location of creativity and of restoring experiences points to the originality of a clinic that is not limited to the analysis of the representation of the patient's internal world.

Keywords: Environmental failures, Psychic-soma scission, Psychosomatic disturbances, Creativity.


 

 

As obras literárias têm sido objeto de especulações, por vezes fáceis, dos especialistasem decifrar as causas ocultas das manifestações de criatividade. Os escritores são postos no divã por alguns estudiosos das teorias do inconsciente, que utilizam o conceito de projeção comochave-mestradesta curiosa modalidade de "clínica psicanalítica".

Sem pôr em questão o aspecto projetivo das obras de arte, antecipo que minhas inferências sobre a narrativa de Samuel Beckett não se baseiam em um suposto caráter simbólico ou representativo de sua escrita. Quando decidi me aventurar em um ensaio psicanalítico sobre "experiências corporais", na vida e na obra de Beckett, busquei minha chave-mestra nas idéias de Donald Winnicott.

Percorro caminhos trilhados por outros autores, entre os quais Didier Anzieu que, há quase duas décadas, utilizou a teoria dos fenômenos transicionais na elucidação das condições de emergência da obra literária de Beckett. Compartilhando com Didier Anzieu a idéia winnicottiana de que o lugar da criação é o espaço intermediário entre o mundo real e o mundo imaginário, diria que as experiências corporais dos personagens beckettianos se situam entre as experiências corporais reais do escritor e aquelas por ele imaginadas.

É nesse lugar, chamado por Winnicott de espaço potencial, que situo meu ensaio. A partir de uma leitura singular, visto ser minha a leitura, debruço-me sobre dois relatos: um deles, que supostamente trata de realidades, a biografia de Beckett, e outro, suposto ficcional, sua obra literária.

Rasteando a biografia de Beckett e sua ficção, relaciono as deficiências do seu ambiente com os distúrbios psicossomáticos que tanto o afligiram e com a luta por ele travada, consigo mesmo e com seu meio, na busca das condições necessárias à emergência de sua criatividade.

 

A biografia e a ficção

Em uma biografia meticulosa, pautada no rigor da pesquisa documental, a vida de Beckett é contada por Deirdre Bair, sua biógrafa americana, a partir de informações colhidas em encontros com o próprio Beckett e, com o consentimento deste, do testemunho de pessoas que mantiveram com o escritor os mais diferentes tipos de relação.

Ao mesmo tempo em que fala das excentricidades, sofrimentos corporais e dificuldades emocionais de seu biografado, Bair deixa perceber como, paradoxalmente, de maneira velada e ao mesmo tempo escancarada, Beckett permeia seus escritos de elementos incontestavelmente autobiográficos. Na fala dos personagens beckettianos encontram-se declarações dadas por ele em entrevistas, e mesmo parágrafos inteiros de cartas escritas a Thomas McGreevy, seu amigo e confidente. Para Ludovic Janvier, tradutor de grande parte da ficção beckettiana, as histórias de Beckett não apenas emanam dele, elas o concernem. Segundo Anzieu, ao agenciar tempo, lugar e intriga dentro de uma lógica do absurdo e dos paradoxos, Beckett acredita poder universalizar sua vida de modo a que ela represente a vida de todos os homens.

Radicado em Paris desde os 31 anos, o irlandês Beckett, anglófono por sua origem, decide, aos 40 anos, escrever sua obra diretamente em francês. Entre 1948 e 1950, escreve nessa língua os romances que compõem sua trilogia, dando início ao estilo beckettiano, marca da genialidade do autor. É sobre Malone morre, considerado o mais autobiográfico dos três romances, que me detenho neste ensaio.

Em que situação ambiental Malone se encontra? Deitado em uma cama no quarto que pertenceu, provavelmente, à sua mãe já morta, Malone quase não pode se mover. Uma bengala com um gancho na ponta serve-lhe para aproximar e afastar a pequena mesa onde são colocados, diariamente, uma tigela de sopa e um vaso para suas necessidades. Para passar o tempo, enquanto espera sua própria morte, resolve escrever algumas histórias, utilizando-se de um minúsculo pedaço de lápis, com ponta dos dois lados, e algumas folhas de papel. Sua primeira história é o relato da situação em que se encontra.

 

Os primeiros dias de Beckett e os últimos dias de Malone

Beckett nasce em 1906, em um elegante bairro de Dublin: um bebê magro e comprido, pálido, adoentado, que chora sem parar durante suas primeiras semanas de vida, deixando os pais sob grande tensão. Embora no seu registro de nascimento, feito em junho, conste que nascera no dia 13 de maio, ele sustenta ter nascido em 13 de abril, numa sexta-feira santa, e afirma com ironia que seus pais, por prudência, devido ao seu estado de saúde ou por simples esquecimento, só o registraram dois meses depois1.

Se Beckett fala das circunstâncias que envolveram seu nascimento, Malone inicia seu relato descrevendo as situações que o envolvem enquanto espera sua morte.

De qualquer modo cedo estarei totalmente morto. [...] Será, então, o mês de abril ou de maio. [...] Pode ser que me engane e ultrapasse o São João e mesmo o Quatorze de Julho, festa da liberdade. Que digo, sou capaz de ir até a Transfiguração, tal como me conheço, ou à Assunção. [...] Serei neutro e inerte. Isto será fácil para mim. Importa apenas prestar atenção aos sobressaltos. Aliás, tenho menos sobressaltos depois que estou aqui. Ainda tenho evidentemente movimentos de impaciência de tempos em tempos. É deles que devo me defender no momento, durante quinze dias ou três semanas. Sem nada exagerar, certo, chorando e rindo tranqüilamente, sem me exaltar. (Beckett 1951, pp. 7-8)

Nessa primeira passagem, Beckett apresenta as cartas de seu jogo: ironia e dados pessoais. Malone parece mais um recém-nascido, sujeito, durante as primeiras semanas, como todo bebê, a sobressaltos. Se ele deve chorar e rir tranqüilamente, sem se exaltar, Beckett, desde cedo, como veremos mais adiante, precisou controlar suas dores, seus medos e seus afetos.

Malone continua falando de si:

Não apenas me deixam aqui, mas ocupam-se de mim! [...] A porta se entreabre, uma mão põe o prato sobre a mesinha que está lá para isso, retira o prato da véspera, e a porta se fecha novamente. Isso é feito para mim todos os dias, à mesma hora provavelmente. [...] É a sopa. Devem saber que já não tenho dentes. Eu a tomo uma vez sobre duas, uma vez sobre três, em média. Quando meu vaso está cheio coloco-o sobre a mesa ao lado do prato. Então fico vinte e quatro horas sem vaso. Não, tenho dois vasos. Tudo é previsto. Estou nu na cama, mas tem as cobertas que aumento e diminuo o número segundo as estações. [...] O essencial é alimentar-se e eliminar, se se quiser resistir. Vaso, tigela, eis os pólos. No começo as coisas se passavam de modo diferente. A mulher vinha ao quarto, se agitava à minha volta, se indagava de minhas necessidades, de minhas vontades. Terminei, mesmo, por fazer-lhe compreender minhas necessidades e minhas vontades. Tive dificuldade. Ela não compreendia. Até o dia em que encontrei os termos, os acentos, adaptados ao seu caso. Tudo isso deve ser meio imaginário. (Beckett 1951, pp.16-7)

 

Aqueles que cuidam de Beckett e aquela mulher que cuida de Malone

As deficiências ambientais podem persistir até a idade adulta, causando o que Masud Khan denomina "trauma cumulativo".

Aos cinco anos de idade, Beckett ingressou em uma escola dirigida por duas solteironas alemães cujos ideais de disciplina superavam em grande escala os objetivos da aprendizagem. A consecução de tais ideais, compatíveis com os interesses dos pais, Mary e William Beckett, implicava sufocar a individualidade de seus alunos.

May, como era chamada a mãe de Beckett, uma mulher alta, magra, de olhar agudo, usando comumente costumes escuros de corte masculino, dava a todos a impressão de frieza. De humor extremamente instável, passava, facilmente, do riso e da brincadeira bem-humorada ao choro. Acometida, com freqüência, por cefaléias, depressões e acessos de cólera, retraía-se em seu quarto, numa espécie de silêncio hostil.

O caráter de May não a impedia de passar muito tempo a divertir Beckett, Frank, seu irmão cinco anos mais velho, e os primos. Ela organizava concursos de pintura, dos quais, sentada ou de quatro, participava em pé de igualdade, demonstrando o mesmo entusiasmo que as crianças. Todos riam às gargalhadas. O humor de May, entretanto, oscilava loucamente, levando-a, de súbito, a exigir silêncio e obediência absoluta.

Criança ousada, Beckett costumava saltar do cume de um pinheiro, braços e pernas abertas, agarrando-se a um dos galho mais baixos. As surras de May não o dissuadiam de tal brincadeira. Um dia, tendo colocado uma caixa de fósforos dentro de uma caneca de gasolina, levou a maior sova de sua vida. May, com a mão muito inchada de tanto bater no filho, precisou servir-se de um galho de pinheiro para continuar a espancá-lo.

A luta entre eles, tendo se iniciado muito cedo, durou por quase toda a existência de May, sob a forma de crises de furor e de depressão. Se May não aceitava de modo algum que Beckett ocultasse suas emoções de medo ou afeto, Beckett, por sua vez, estava decidido a defender sua independência da ingerência materna.

Malone continua a escrever sobre aquela mulher que lhe trazia o vaso e a sopa:

Foi ela que me arranjou esse longo bastão. [...] Como é grande minha dívida para com os bastões. Quase esqueço os golpes que eles me deram. É uma mulher velha. Não sei por que ela é boa para mim. Sim, chamemos isso de bondade, sem ironia. Para ela é, certamente, bondade. [...] Talvez ela faça parte do quarto, de algum modo. Nesse caso não pede um estudo à parte. Mas não está fora de cogitação que ela faça o que faz por caridade ou por um sentimento de piedade ou de afeição para comigo. Tudo é possível, vou acabar por acreditar nisso. Mas é mais cômodo supor que ela me é devotada da mesma maneira que o quarto. (Beckett 1951, pp. 17-8)

Embora se mostrasse afetuoso e mais tolerante, Bill era um pai extremamente exigente no que dizia respeito à forma física dos filhos. Ele os lançava na piscina antes mesmo que soubessem executar a mínima braçada. Por vezes, forçava-os a igualar-se a ele, grande atleta, obrigando-os a ultrapassar os limites razoáveis de suas resistências. Beckett e Frank jamais choravam ou se queixavam. Mostravam-se intrépidos e indiferentes ao sofrimento físico.

Lembro aqui que, em nota de 1969 adicionada a seu artigo sobre as doenças psicossomáticas, Winnicott afirma que "chorar, gritar, berrar, protestar iradamente são coisas muito importantes que ligam a psique ao soma" (Winnicott 1989vm, p. 92).

Diante das crises de mau humor de May, Bill se distanciava fazendo grandes caminhadas, enquanto os filhos e os empregados recolhiam-se a seus aposentos até que a raiva dela passasse.

Mais tarde, indagado sobre sua infância, Beckett responde: "Meus pais fizeram tudo o que pode tornar uma criança feliz. Mas eu, freqüentemente, me sentia só. [...] Meu pai não me batia; minha mãe não fugia de casa" (Bair 1978, pp. 24-5). Novamente a ironia beckettiana: Beckett esconde e ao mesmo tempo denuncia que a mãe lhe batia e o pai se ausentava.

 

Os tempos do colégio e da universidade

Até a adolescência, é por críquete, rúgbi, natação e mesmo boxe, na categoria peso médio, que Beckett se sente atraído e demonstra competência. Reservado em seus contatos com os amigos, na hora da bagunça mostra-se charmoso e com tal presença de espírito que rapidamente se torna o líder. Logo em seguida, entretanto, retira-se deixando os colegas surpresos e consternados por sua indiferença glacial. Com o passar do tempo, Beckett torna-se cada vez mais instável: suas brincadeiras já não são blagues inofensivas; elas denotam, ao contrário, um nível de maldade que amedronta os companheiros.

Aos 17 anos, tem início sua vida universitária no Trinity College. Mais novo que a maioria dos colegas, destaca-se no golfe, chegando a ganhar um campeonato dos universitários dublinenses. Pouco a pouco, começa a se interessar pelo estudo das línguas vivas, adquirindo, no último ano do curso, a reputação de aluno brilhante embora pouco ortodoxo. May, durante a adolescência de Beckett, ao mesmo tempo que cuida, excessivamente, da alimentação e da saúde do seu caçula, passa grande parte do seu tempo a vigiar o comportamento e as companhias do filho.

Com 20 anos, depois de uma viagem de férias à França, Beckett começa a participar de recepções onde encontra os intelectuais dublinenses, gravitando, com mais freqüência, em torno do meio artístico. Torna-se um rapaz extremamente bonito, confiante e gracioso, despertando paixões entre as colegas. Mostra-se indiferente a todas, menos a Edna, uma mulher bem mais velha que ele, livre, pronta a desafiar as convenções através de uma conduta escandalosa para a época: bebe e fuma em público, usa roupas de cores berrantes e decotadas, comparece a reuniões públicas sem chapéu. Edna aceita uma ligação com Beckett, mas rompe a relação friamente sem ouvir as queixas do seu amante. Nessa época, Beckett reencontra a prima Peggy, que reside na Alemanha, por quem se interessa bastante, apaixonando-se, mais tarde, por ela.

No final de seu período universitário, tem início o cerco dos pais, preocupados com seu futuro profissional. Bill trabalhou sempre em construção de edifícios. Encarregado, no início de sua carreira, de avaliar o material necessário à realização de cada projeto, uma das mais importantes funções para alguém que não tem diploma universitário, aos 30 anos já possuía uma fortuna considerável. O grande desejo dos pais, sobretudo de May, era que Beckett entrasse nos negócios da família. Momento dramático, em que o futuro Prêmio Nobel da Literatura prefere freqüentar pubs, cabarés e embriagar-se a pensar em seu futuro. Aos 21 anos, primeiro da classe, Beckett recebe seu diploma de Bacharel em Artes.

 

Dois anos em Paris

Aos 22 anos, dentro de um programa de intercâmbio universitário, Beckett vai para Paris, onde é nomeado conferencista em inglês na Escola Normal Superior e encarregado de um curso na Sorbonne. Em Paris, faz contatos com intelectuais e artistas franceses brilhantes. Conhece Joyce, com quem manterá, até a morte deste, laços estreitos de amizade e de admiração.

Terminados seus estudos em Paris, Beckett pede à mãe para passar pela Alemanha, antes de voltar para Dublin. May, que já se mostrara furiosa ao ouvir os rumores da paixão de Beckett pela prima Peggy, não só nega seu pedido como ameaça não lhe enviar mais um tostão, caso não volte, imediatamente, para casa. Por sorte, tendo recebido um prêmio em um concurso de poesia, Beckett parte para Kassel com seus próprios recursos. Embora não correspondido, satisfatoriamente, em sua paixão, encontra na casa dos tios um refúgio das invasões maternas. A tia, uma mulher livre, artista plástica casada com um judeu, jamais importunava a vida dos filhos. De volta a Dublin, Beckett é recebido por May com extrema frieza.

 

Os distúrbios psicossomáticos de Samuel Beckett

Lembremos mais uma vez Winnicott, pioneiro ao ressaltar a importância das experiências corporais, proporcionadas pelo meio am-biente desde as etapas mais precoces da existência, para a constituição do indivíduo enquanto unidade psicossomática capaz de usufruir de um modo de vida criativo.

O útero da mãe, primeira residência do ser humano e, mais tarde, o colo materno, as mãos e a expressão do rosto são o primeiro meio ambiente do bebê. Falhas precoces dos cuidados maternos podem levá-lo a dolorosas experiências que se encontram na origem tanto de uma dissociação entre a psique e o corpo, dissociação responsável pelas doenças psicossomáticas, como de uma deficiência no estabelecimento de uma área intermediária de experiência, chamada por Winnicott de espaço potencial, lugar da criatividade.

Para Winnicott, os distúrbios psicossomáticos são a expressão de um mecanismo de defesa, que, em um de seus aspectos, consiste numa regressão a um estado muito precoce, ou seja, ao momento anterior à integração entre a psique e o soma. Trata-se de uma organização muito poderosa, que protege o indivíduo do risco de ser desintegrado por agentes externos (cf. Winnicott 1966d).

Voltemos à vida de Beckett e ao seu meio ambiente.

Enquanto trabalha com Joyce na tradução de sua obra para o francês, Beckett se sente incapaz de escrever, fato que chama de sua "constipação verbal". Uma constipação intestinal aparecerá em seguida.

De volta ao seu país, em 1930, aos 24 anos, ele é nomeado professor do Trinity College. Embora passe a morar em um apartamento da Universidade, as intrusões maternas em sua vida o fazem sentir que não poderá mais viver em Dublin. A despeito de uma excelente saúde física, começa a adoecer com freqüência. Furúnculos na nuca e na região genital, resfriados, gripes e insônias são acompanhados de estados graves de depressão. Os pais, alarmados, aceitam, a contragosto, que ele passe o Natal na Alemanha. Em Kassel, os primos vivem em festa permanente, passando de um cabaré a outro. Beckett, incapaz desta vez de segui-los, e já indiferente à prima, que passa, justamente neste momento, a se mostrar interessada nele, piora da gripe e sofre de graves problemas intestinais.

No ano seguinte, ele é acometido de uma pleurite muito dolorosa. Não consegue dar aulas, passa os dias e as noites na cama, de cortinas fechadas, na escuridão completa. Os amigos cochicham: "é a cabeça que não vai bem". Seu estado é tão deplorável que os pais lhe proporcionam uns dias em Paris. Seus males são quase todos curados. Consegue publicar alguns poemas.

De volta a seu apartamento na Universidade, permanece deitado em posição fetal, com o rosto voltado para a parede e a cabeça coberta. A família, informada de seu estado, decide que ele deve, novamente, viajar de férias para a Alemanha. Beckett se recupera o suficiente para se levantar e caminhar dentro do apartamento, enquanto aguarda o final do semestre para partir. Seu estado de angústia toma a forma física de sufocação. Ao chegar à casa dos tios, envia um telegrama à Universidade pedindo sua demissão do cargo de professor assistente. May, furiosa, escreve inúmeras cartas ao filho, exprimindo sua cólera e a ordem de que volte para casa. Bill, sem se mostrar caloroso, continua a enviar-lhe, mensalmente, algum dinheiro.

May, cada dia mais furiosa, fecha-se em silêncio, rompido apenas para exigir do marido e do filho mais velho a resposta de quando seu caçula vai voltar para casa. Beckett tenta, pacientemente, explicar que deseja ser escritor e que para isso precisa de tempo; explicação aceitável para Bill, mas não para May.

Depois de permanecer seis meses na Alemanha, Beckett decide passar por Paris. Seus sofrimentos psíquicos se manifestam através de nova erupção de furúnculos, dos quais ele fala apenas, confidencialmente, a McGreevy.

De volta à Irlanda, as doenças de Beckett se multiplicam: resfriados e gripes tenazes, reumatismo do braço e do ombro esquerdo, e o antraz que reaparece no pescoço; uma incisão torna-se necessária, fazendo jorrar torrentes de pus. Tudo isso deixa Beckett sem forças durante dias.

Alarmada, May cessa de pressioná-lo e começa a cuidar do filho. Compra sua cerveja predileta e insiste que ele beba à vontade, pois assim melhorará seu apetite, sinal de boa saúde. Beckett, em carta a McGreevy, escreve: "o quisto mal localizado tem seu lado bom". O que mais atormenta Beckett é sua incapacidade para escrever.

Em junho de 1933, Bill é acometido de uma crise cardíaca que o leva à morte em cinco dias. Beckett, com 27 anos, cuida do pai todo o tempo da doença e de May durante os primeiros dias do luto. À medida que ela retoma suas forças físicas, Beckett perde as suas. As doenças se sucedem: dores de cabeça, noites mal dormidas, sensação de pânico que acelera os batimentos cardíacos. Um novo quisto, dessa vez na palma da mão, impede-o de escrever e de bater à máquina. No final desse mesmo ano, repentinamente e de maneira dramática, as doenças de Beckett tomam um novo rumo. Passa a acordar no meio da noite, ensopado de suor. Com batimentos cardíacos cada vez mais fortes e desordenados, é acometido por um pânico cego, que ameaça sufocá-lo. Com medo de sonhar, evita dormir. Não consegue urinar e sofre de uma constipação intestinal grave. Beckett só consegue relaxar se o irmão dorme com ele na mesma cama e o segura durante seus pesadelos.

O estado de saúde de Beckett se agrava a tal ponto que os médicos da família já não entendem nada de seus furúnculos, gripe e dores articulares. Convencido de que se trata de doenças psicossomáticas, Thompson, um antigo colega de escola, médico interessado pela Psiquiatria, insiste para que Beckett se submeta a um tratamento psicanalítico. May, forçada por Frank, concorda com o tratamento, mesmo que para isso Beckett tenha que morar em Londres para não dar o que falar na sociedade dublinense.

 

Dois anos entre Londres e Dublin

Beckett passa rapidamente por Londres para sondar as possibilidades de se submeter a uma análise. De volta, apresenta uma vitalidade e um sentimento de bem-estar nunca vistos. May põe em dúvida a necessidade do tratamento, o que leva Beckett a recair no antigo estado de letargia.

De volta a Londres, no início de 1934, Beckett dirige-se à Clínica Tavistock, onde começa sua análise com Bion, um analista em começo de carreira, apenas nove anos mais velho que ele. Iniciada a análise, Beckett começa a escrever um romance e consegue publicar alguns textos, escritos anteriormente, o que contribui para levantar sua moral. Mais tarde, Beckett escreverá sobre sua análise:

Costumava deitar no sofá e procurava voltar ao passado. Penso que isto, talvez, tenha me ajudado a controlar o meu pânico. Chegava, certamente, com algumas memórias da vida no útero. Memórias intra-uterinas. Lembro de sentir-me enjaulado, aprisionado e incapaz de escapar, gritando para sair, mas ninguém ouvia, ninguém estava escutando. Lembro de estar sofrendo, mas incapaz para fazer qualquer coisa. (Cf. Mahon 1999, p. 1382)

Voltemos a Malone que, sentindo estar morrendo, tenta refletir: "[...] Grande sofrimento. Eu me dilato. Se explodisse? O teto se aproxima, se afasta, em cadência, como quando eu era um feto. [...] Tudo está pronto. Menos eu. Nasci na morte, se ouso dizer. Louca gestação" (Bair 1978, pp. 182-3).

Beckett decide passar férias em Dublin, onde já chega depois de um período de dores urinárias intensas e persistentes. Embora encontre a mãe excessivamente nervosa, em carta a McGreevy diz que a análise o ajudou a enfrentar situações deste tipo, mesmo necessitando de soníferos e do irmão a seu lado, enquanto dorme, para sentir-se aliviado dos males físicos.

Ao retornar a Londres, decepcionado com a escassez de sua produção literária, começa a se isolar, a adoecer e a ter dúvidas quanto à efi-ciência de sua análise. Beckett passa o Natal com May que, vendo o filho no mesmo estado, decreta que a análise foi um sinistro fracasso e lhe implora que recupere o dinheiro gasto, reerga-se e prove que é um homem.

Em janeiro de 1935, Beckett, seguindo as instruções de Bion, mais uma vez volta para Londres. Ao mesmo tempo que se diverte com as histórias de pacientes extorquidos por analista exploradores, se indaga, seriamente, se vai continuar sua análise. Cada vez que pensa estar melhor, palpitações, falta de ar e dores no peito fazem-no acreditar que sofre de angina e que vai morrer, subitamente, como seu pai.

Contra a vontade de Bion, Beckett volta a Dublin. May decide acompanhá-lo em sua volta a Londres. Em dívida com a mãe, que lhe comprou um quadro muito desejado, só lhe resta concordar, ao preço de uma explosão de furúnculos acompanhada de tremores noturnos, mais um quisto sebáceo no pescoço e um quisto anal que provoca dores insuportáveis.

Depois que a mãe volta para Dublin, Beckett anuncia a Bion que, no Natal, encerrará o tratamento, pois os resultados não correspondem ao tempo e ao dinheiro gastos. Bion, deixando de lado a ortodoxia, convida Beckett para jantarem juntos e assistirem a uma conferência de Jung. O conferencista relata o caso de uma menina de dez anos que tinha pavorosos sonhos mitológicos. Segundo Jung, tratava-se de um sonho premonitório, tendo a garota morrido no ano seguinte. Beckett fica muito impressionado com a conclusão do famoso psicanalista. Diz Jung, de sua paciente: "Ela nunca nasceu totalmente".

Beckett faz dessa frase a pedra angular de sua análise. Ela vinha ao encontro de suas idéias sobre as experiências intra-uterinas, tantas vezes expressas em cartas e comentários. Ele dá exemplos detalhados de sua fixação ao ventre materno: todo comportamento seu, do simples gosto de permanecer no leito à necessidade de ir, com freqüência, ver sua mãe, manifesta um nascimento anormal. Considera Beckett que

Se ele não nasceu totalmente, se tem muitas recordações pré-natais e se rememora o nascimento como doloroso, parece-lhe lógico que esse processo abortado, defeituoso, tenha tido como conseqüência o desenvolvimento impróprio e incompleto de sua personalidade. Explicação que lhe dá um enorme sentimento de reconforto. (Bair 1978, p. 196)

As conclusões de Beckett, a partir da conferência de Jung, reforçam sua decisão de encerrar sua análise e voltar definitivamente para Dublin. Esse momento coincide com cartas de May nas quais fala de suas mudanças: decidiu olhar o futuro com otimismo e abandonar o grande luto pelo marido.

Logo que Beckett chega em casa, a mãe abandona seu otimismo. Como era de esperar, a amabilidade de May dá lugar às vituperações. Beckett, mais uma vez vítima de dolorosa pleurite aguda e de abcesso anal, entrega-se aos cuidados maternos. Os tremores e as angústias noturnas de Beckett são cada dia mais graves, deixando-o incapaz de sair de casa e de escrever.

Decidir-se por uma profissão rentável torna-se imperioso para ele, que pensa, então, em trabalhar na Galeria Nacional de Dublin. Parte para a Alemanha sob pretexto de visitar galerias de arte, ao mesmo tempo em que daria seqüência à sua atividade literária. Passados alguns meses, na véspera de completar 31 anos, Beckett retorna à sua casa. Mais um empreendimento havia fracassado.

O comportamento de May em relação ao filho não muda. Beckett consegue tomar consciência de quanto a odeia. Suas angústias noturnas reaparecem mas, desta vez, suporta-as de maneira diferente. Escreve Beckett:

Tenho a impressão que passarei aqui o resto de minha vida, de maneira tolerante, sem experimentar muito remorso, a tirar o melhor partido possível das comodidades que isso me oferece. Afinal, os esforços eu os fiz. Mas talvez me engane. (Bair 1978, p. 239)

A bebida, as caminhadas a esmo e os males psicossomáticos rea-parecem. Na véspera do dia do casamento do irmão, Beckett, ao chegar em casa embriagado, leva um corte na cabeça e percebe que perdeu a chave. Vendo-o nesse estado, May grita-lhe que chegou a hora de ele deixar, de uma vez por todas, a Irlanda. No final de setembro de 1937, Beckett toma a resolução de não mais permanecer na Irlanda, chamada por ele de país de seu aborto fracassado. May dá sua última cartada: decide viver sozinha em lugar desconhecido até que Beckett mude de idéia. Sem saber onde a mãe está, Beckett parte para Paris.

A originalidade da teoria winnicottiana dos distúrbios psicossomáticos está em apontar para os aspectos positivos da doença psicossomática. Winnicott defende a existência de um potencial inato à integração, próprio da natureza humana, que leva o indivíduo a não abandonar, totalmente, a ligação entre a psique e o soma. Assim, a doença psicossomática se constitui não apenas em um movimento regressivo, ela é, igualmente, uma defesa mais elaborada, que protege o indivíduo de uma integração que não levaria em conta a existência psicossomática na sua totalidade. Nesse sentido, protege o indivíduo de uma fuga para uma existência intelectualizada ou espiritual, ou de uma fuga para as explorações sexuais compulsivas (cf. Winnicott 1966d). Sem dúvida, Beckett tirou proveito dos aspectos positivos de sua doença.

 

Definitivamente em Paris

Aos 31 anos de idade, Beckett adota Paris como sua cidade. Nesse mesmo ano, conhece aquela que se tornará sua esposa. Suzanne Dumesnil, sete anos mais velha, serve de esteio à sua sobrevivência material, psíquica e profissional. Formada em música, excelente pianista, trabalha, em períodos de penúria financeira, como costureira, para suprir as necessidades do casal. Mais tarde, Suzanne se encarregará de mostrar os manuscritos de Beckett e negociar com seus editores.

Nas palavras de Anzieu,

é ela a tela protetora que o mantém à distância das necessidades do mundo externo e das obrigações sociais; o duplo que dava a réplica nos diálogos instigantes; [...] a amiga discreta que respeita sua intimidade, sua necessidade de retraimento, seu gosto limitado pela vida sexual, seu horror das efusões afetivas; ela é o catalisador sem exigências, em relação a ele, a não ser com os cuidados de sua saúde, a fé no valor de sua obra, e o encorajamento a produzi-la. (Bair 1978, p. 73)

Em Paris, Beckett faz grandes amigos, publica alguns poemas e ensaios. Como escritor, porém, vive por mais de dez anos no anonimato, tendo seus escritos rejeitados pelas editoras. O pouco que consegue publicar fica encalhado nas prateleiras das livrarias.

Malone fala de sua obra, de sua infância e, provavelmente, de seu pai. Diria que suas palavras se aproximam do que diz Winnicott sobre o bloqueio da capacidade criativa. Palavras de Malone:

Viver e inventar. Tentei. [...] Inventar. Não é a palavra certa. Viver também não. Não importa. Tentei. [...] Não soube brincar. Virava, batia as mãos, corria, gritava, me via perder, me via ganhar, exultante sofrendo. Depois, subitamente, lançava-me sobre os instrumentos do jogo, se houvesse, para destruí-los, ou sobre uma criança, para transformar sua felicidade em urros, ou fugia, corria rápido para me esconder. [...]. É que eu já era uma presa do sério. Esta foi minha grande doença. Nasci grave como outros sifilíticos. E é gravemente que tentei não mais sê-lo, não viver, não inventar [...] Viver. Falo disso sem saber o que isto quer dizer. Tentei ali sem saber o que tentava. [...] Depois do fracasso, o consolo, o repouso, recomeçava a querer viver. [...] Aquilo a que queria chegar, [...] era aos êxtases da vertigem, do relaxamento, da queda, de ser engolido, de voltar ao negro, ao nada, ao sério, à casa, àquele que me esperava sempre, que tinha necessidade de mim e de quem eu tinha necessidade, que me tomava em seus braços e me dizia para não mais partir, que me cedia o lugar e me velava, que sofria cada vez que eu o deixava, que eu havia muito feito sofrer e pouco contentado, que eu jamais vi. (Beckett 1951, pp. 34-6)

 

A grande virada

Que mistério envolve a ascensão da carreira literária de Beckett, ascensão que não tem volta? Qual o momento e em quais circunstâncias se deu a grande virada?

Com o fim da Segunda Guerra, depois de colaborar com a Resistência, arriscando sua vida pelos amigos franceses, Beckett se vê obrigado a passar por Dublin, onde permanece algum tempo enquanto aguarda a liberação, pelos bancos irlandeses, da pequena anuidade a que tem direito pela herança paterna.

Numa noite de tempestade, depois de ter bebido razoavelmente, se vê no ponto extremo de um ancoradouro do porto de Dublin. Mais tarde ele dirá: "Intelectualmente, um ano de tristeza e indigência profundas, até esta memorável noite de março [...] jamais a esquecerei -, onde, subitamente, compreendi tudo" (Bair 1978, p. 31). Beckett dá-se conta de que tudo que escreverá, a partir desse momento, jorrará do fundo de si mesmo com suas recordações e seus sonhos, por mais feios e desagradáveis que sejam. Ao mesmo tempo, adquire, naquele momento, a convicção de que em hipótese alguma haverá necessidade de um personagem romanesco, claramente definido, para contar suas histórias, já que não precisa existir qualquer distância entre elas e o narrador.

Malone faz projetos para suas histórias. Aqui, eu diria que as palavras de Malone indicam uma superação do bloqueio à sua atividade criativa.

Desta vez eu sei onde vou. Não é mais a noite de antigamente, de outrora. É uma brincadeira agora, eu vou brincar. Eu não soube brincar até o presente. Tinha vontade, mas sabia que era impossível. Assim mesmo tentei muitas vezes. Acendia tudo, olhava em torno de mim e começava a brincar com o que via. As pessoas e as coisas só pedem para brincar, alguns animais também. Tudo começava bem, eles vinham todos ao meu encontro, contentes que se quisesse brincar com eles. Se eu dizia Agora preciso de um corcunda, rapidamente chegava um, orgulhoso de sua corcunda, que ia fazer seu número. Não lhe vinha a idéia que eu poderia lhe pedir para se despir. Mas eu não demorava a me sentir só, sem luz. Foi por isso que renunciei a querer brincar e fiz para sempre meus o informe, o inarticulado, as hipóteses descuidadas, a obscuridade [...]. Agora isso vai mudar, não quero mais fazer outra coisa que não seja brincar. Não, não vou começar por um exagero. Mas brincarei uma grande parte do tempo, daqui por diante, a maior parte, se puder. Mas não conseguirei talvez melhor que outrora. Vou talvez me sentir abandonado como outrora, sem brinquedos, sem luz. Então brincarei só, farei como se eu me visse. Ter podido conceber tal projeto me encoraja. (Beckett 1951, pp. 9-10)

 

Conclusão

Ver na obra de Samuel Beckett apenas o resultado de projeções da parte mais íntima e mais profunda da vida interior de um artista seria, hoje, limitar o alcance de um ensaio psicanalítico. Sem dúvida, o conceito de espaço potencial oferece novos instrumentos à compreensão da narrativa beckettiana e das próprias condições de sua emergência.

É no meio ambiente proporcionado por Paris, por Suzanne e por seus amigos que Beckett encontra o espaço de experiência, ao qual se refere Winnicott, a partir de 1951, como o lugar do jogo, da cultura e da criatividade.

Em maio de 1946, depois da famosa revelação no porto de Dublin, Beckett chega a Paris com dinheiro no bolso e idéias na cabeça. Começa a escrever com regularidade, só interrompendo seu trabalho pelo cansaço. Tendo rompido com seu país e sua mãe, rompe também com sua língua natal, começando a escrever diretamente em francês.

Beckett dorme durante o dia e trabalha durante a noite. Em quinze meses escreve os dois primeiros romances de sua trilogia. Seu estado é de transe. Quando não consegue mais escrever, procura alívio, como fazia em seus momentos de crise: gira pelas ruas desertas em busca de um café aberto, onde possa engolir enorme quantidade de álcool.

As experiências corporais vividas por Beckett, nesse momento, não escapam à observação de Suzanne nem de seus amigos. Como quase todas as suas obras tratam da morte, os que lhe são próximos temem que ele morra antes de ter terminado.

Podemos dizer, a partir do pensamento de Winnicott, que, ao se colocar na pele de Malone, Beckett se identifica com seu personagem. Ao mesmo tempo, ele é e não é Malone. À medida que os esforços de Malone, para escrever, se fazem cada vez mais penosos, o mesmo acontece com Beckett, que se afunda cada vez mais na sua própria miséria, a tal ponto que o término de Malone morre coincide com transformações alarmantes em sua condição física. Beckett adoece.

É considerando estas transformações que vejo em sua obra literária não a projeção de uma interioridade, mas a atualização de experiências precoces, experiências da superfície, dos contatos sensoriais, do que não aconteceu.

O que faltou a Beckett, assinala Anzieu, foi

o prazer de um sorriso, o calor de uma presença, a maciez do contato, a segurança de ser segurado nos braços ou sob o charme dos sons, de palavras que encantam - isso não pôde ser escrito por ele, e permane ce mais ou menos ausente, tanto em sua obra como em sua vida. A dor que resulta disso não é absolutamente nomeada nem expressa. (Anzieu 1983, p.72)

Beckett morreu aos 84 anos. As doenças psicossomáticas o perseguiram por toda sua existências, mas uma parte de si permaneceu inviolada, inatingida: sua capacidade criativa.

 

Referências bibliográficas

Anzieu, Didier 1983: "Un soi disjoint, une voix liante. L'écriture narrative de Samuel Beckett", Nouvelle revue de psychanalyse, n. 28, outono 1983.         [ Links ]

Bair, Deirdre 1978: Samuel Beckett. New York/London, Harcourt Brace (tr. fr., 1979, Paris, Fayard).

Beckett, Samuel 1951: Malone meurt. Paris, Les Éditions de Minuit.

Mahon, Eugene 1999: "Yestarday's Silence: An Irreverent Invocation of Beckett's Analysis with Bion", Journal of American Psychoanalytic Association (JAPA), vol. 47, n. 4.

Winnicott, Donald W. 1966d [1964]: "Transtorno [disorder] psicossomático - A enfermidade psicossomática em seus positivos e negativos", in Winnicott 1989a.

______ 1989a: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.

______ 1989vm: "II - Nota adicional sobre transtorno psicossomático", in Winnicott 1989a.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: linsluz@iis.com.br

 

 

1 Para os familiares, entrevistados por Bair, tal ocorrência era improvável, uma vez que, segundo os costumes irlandeses, os pais registravam os filhos um mês após o nascimento e os Beckett eram muito bons seguidores das normas. Cf. Bair 1978, p. 15.