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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.2 São Paulo dez. 2000

 

ARTIGOS

 

O "animal humano"

 

The “human animal”

 

 

Zeljko Loparic

Professor do Departamento de Filosofia da Unicamp e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo propõe-se reconstruir o conceito winnicottiano da unidade psicossomática do ser humano. Depois de expor o caráter acontecencial e a estrutura interna do psique-soma, oferece uma análise detalhada das operações da "elaboração imaginativa", começando pela tentativa de definir a natureza dessas operações. Prossegue com o exame das operações mais primitivas (elaborações das funções corpóreas) que garantem a inter-relação inicial básica da psique e do soma, chama a atenção para a constituição do si-mesmo imaginativo, e termina identificando e explicando algumas operações elaborativas mais avançadas, assumidas pelos indivíduos humanos sadios "em primeira pessoa".

Palavras-chave: Psique-soma, Amadurecimento pessoal, Elaboração imaginativa, Si-mesmo, Elaboração mental.


ABSTRACT

The present study aims at reconstructing Winnicott's concept of psycho-somatic unity of the human being. After explaining the historical character and inner structure of the psyque-soma, it starts a detailed analysis of "imaginative elaboration" with an attempt to define the very nature of these operations. It examines next the most primitive of them that which elaborate the body functions thus garantee the initial psyche-soma relation, goes over to the problem of constitution of the imaginative self and ends by identifying and explaing some more advanced operations, assumed by grown up healthy indivuals "in the first person".

Keywords: Psyche-soma, Personal maturation, Imaginative elaboration, Self, Mental elaboration.


 

 

1. As áreas de estudo do "animal humano"

O termo "animal humano" é empregado por Winnicott, nas páginas introdutórias do seu livro Natureza humana (1988), para designar o "tema central" da sua psicanálise e de uma série de disciplinas científicas que estudam a "natureza humana". Depois de conceder que esse assunto pode ser pesquisado tanto nas crianças quanto nos adultos, Winnicott faz notar que a criança é encontrada nas mais variadas áreas de estudos: o seu corpo pertence à pediatria; a alma, à religião; a psique, à psicologia dinâmica (psicanálise); o intelecto, à psicologia; a mente, à filosofia; a desordem mental é reivindicada pela psiquiatria; a hereditarie-dade é propriedade da genética; o meio ambiente, da ecologia; as estruturas da família e as relações sociais mais amplas cabem às ciências so-ciais; pressões e tensões devidas às necessidades conflitantes (escassez) são da alçada da economia e os problemas de humanização da vingança pública, do direito.1

O objeto que confere unidade a essas diferentes áreas de estudo é, diz Winnicott, o "animal humano". O termo pode causar estranheza. O senso comum vê o ser humano como animal racional. Chamá-lo de animal humano parece sugerir uma conotação biologizante que incomoda. O aspecto "físico" da natureza humana é certamente central nas considerações de Winnicott, mas, conforme mostrarei adiante, este não deve ser identificado, sem mais nem menos, com o aspecto "biológico".

Fica mais fácil entender a escolha terminológica do autor se notarmos que o termo "animal" é derivado do adjetivo latino animal, o que respira2. Cícero ainda chamava o homem de divinum animal. Heidegger lembrou que os gregos chamavam até mesmo os deuses e as suas estátuas de "animais" (zõa).3 O uso depreciativo ou mesmo injurioso do termo "animal" só aparece nas línguas modernas depois do século XVII, quando o corpo e, com ele, todos os animais foram declarados pela razão humana, que se considerava esclarecida e se queria soberana, meras máquinas. Ao colocar o animal humano no centro da sua psicanálise, Winnicott inscreve-se numa corrente, hoje em forte ascensão, integrada por pessoas das mais variadas procedências - incluindo desde os pensadores fundamentais, tais como Heidegger e Merleau-Ponty, até os ativistas dos direitos dos animais - que tenta ultrapassar o dualismo cartesiano, reavaliando o sentido da "encarnação" do ser humano e recuperando um conceito pré-mecanicista da natureza humana.

No estudo desse tema, convém "familiarizar-se com os usos de cada um dos métodos de abordagem conhecidos" e tentar "juntar numa única exposição complexa os comentários produzidos a partir de cada um desses pontos de vista".4 O objetivo final das ciências humanas é criar um ponto de vista unificado sobre o ser humano. Para tanto, não é preciso adotar "um único e exclusivo método para a descrição". Winnicott não vai apostar na interdisciplinaridade nem vai pular de galho em galho. Ele optará por um determinado procedimento de observação e de teorização que estuda o "desenvolvimento" do ser humano no interior da disciplina denominada "psicologia dinâmica", isto é, a psicanálise.5 O "principal objetivo" do livro Natureza humana é precisamente o de "indicar gradualmente os caminhos pelos quais foi descoberto que o desenvolvimento emocional é complexo e, não obstante, capaz de ser pesquisado pelo método científico" (ibid., p. 12; itálicos meus). Winnicott não deixa dúvida: a sua psicanálise é uma prática médica6 baseada numa teoria científica da saúde e da doença do animal humano, elaborada em diálogo constante com outras disciplinas científicas que se debruçam sobre esse mesmo tema.7

Essa posição epistemológico-metodológica, presente nas páginas iniciais de Natureza humana, é típica do modo de teorização winnicottiano em geral, tendo sido explicitada repetidas vezes ao longo da sua obra. Por exemplo, num texto de 1967, depois de reiterar que a psicanálise é uma ciência que, como todas as outras ciências humanas - entre estas a psiquiatria, a pediatria e a psicologia -, "observa e constrói teorias para coordenar as observações", Winnicott separa esse grupo de disciplinas da religião, da filosofia, da poesia e, notadamente, da alquimia. Com esse ponto de ironia, Winnicott deseja afastar da psicanálise não somente as não-ciências, mas também as pseudo-ciências, ou seja, as disciplinas que, como a alquimia, "tentam montar em dois cavalos ao mesmo tempo".8

 

2. A acontecencialidade do animal humano

O que diz a teoria winnicottiana do desenvolvimento humano? Diz que "um ser humano é uma amostra temporal da natureza humana".9 O que é a natureza humana? Quase tudo o que temos.10 E o que significa esse quase tudo o que temos? Essencialmente, a tendência inata à integração, ao longo de um "processo" de crescimento e de amadurecimento. Não se trata de uma essência eterna, pois Winnicott entende que "a natureza humana evoluiu, assim como os corpos humanos e os seres humanos evoluíram, no curso de centenas de milhares de anos". Ele não contesta a filogênese da espécie humana, ou seja, da própria tendência à integração, ainda que não tenha nada ou quase nada a dizer sobre esse assunto. Mas, ao mesmo tempo, Winnicott observa que "há muito pouca evidência de que a natureza humana se alterou no curto espaço registrado pela história".11 A ontogênese dos humanos não mudou durante o período da vida humana sobre a Terra do qual temos conhecimento histórico. O conceito winnicottiano de natureza humana pode, portanto, ser entendido como designando a estrutura fixa da nossa ontogênese ou, na linguagem menos biologizante e mais característica de Winnicott, do nosso amadurecimento emocional ou pessoal, governado pela tendência inata à integração.

Winnicott sabe que, segundo a biologia, a ontogênese é determinada pela hereditariedade e pelo ambiente. Ele dirá, por analogia, que a tendência ao amadurecimento é "inata" ou "herdada" e que a sua realização depende do ambiente facilitador. No entanto, essa analogia darwiniana12 não deve ser usada para atribuir a Winnicott um retorno ao naturalismo, nem para esquecer as questões sobre a ontogênese dos seres humanos que ele deixa em aberto ou para as quais sugere respostas claramente não naturalistas. Quanto ao ambiente, a posição de Winnicott é clara: para que um bebê humano possa crescer como um ser humano, é necessário existir um ambiente facilitador não meramente biológico, mas também especificamente humano; sendo assim, as máquinas ou animais não podem criar uma pessoa (1988, p. 94). Quanto à hereditariedade, Winnicott jamais esclareceu, por exemplo, se esta é meramente genética ou se, além do DNA, manifesta-se no ser humano uma origem ainda mais alta. Tudo indica, porém, que o seu pensamento deixa espaço para que esta segunda hipótese possa ser considerada. Veja, por exemplo, a sua afirmação de que "os genes não bastam" (1976, p. 94; tr. p. 84). Ou, então, a sua preocupação com o início da natureza humana: "Onde começa a natureza humana ela mesma?", pergunta ele. Como resposta a essa pergunta ele afirma ser a concepção a única data certa, pois "na hora do nascimento já existe uma [...] marcante individualidade". É constitutiva dessa individualidade "a experiência do primeiro despertar que dá ao indivíduo a idéia de existir um estado de não-estar-vivo cheio de paz, que poderia ser pacificamente alcançado através de uma regressão extrema" (1988, p. 132; tr. p. 154; itálicos meus). Ou considere, ainda, a sua afirmação de que "o indivíduo emerge não do inorgânico, mas da solidão" e que esse estado "surge antes do reconhecimento da dependência". Ou, finalmente, a sua tese de que, embora "o bebê (ou o feto) não tenha capacidade alguma de se preocupar com a morte", deve existir, em qualquer bebê, "a capacidade de ser concernido [capacity for concern] pela solidão da pré-dependência, já que esta foi de fato experienciada" (ibid., p.133; tr. p. 155; itálicos meus). Por razões expostas nessas e em muitas outras passagens, Winnicott distingue claramente a tendência à integração pessoal da tendência ao crescimento corpóreo.13 A primeira é essencialmente uma questão de experiência e de formação de um si-mesmo espontâneo e pessoal num ambiente facilitador, enquanto a segunda depende da constituição genética. Mesmo assim, esta última não é meramente física, visto que o crescimento de uma criança pode ser seriamente prejudicado pelas suas relações psíquicas com o ambiente. A tese de que Winnicott distingue a herança ambiental da genética é confirmada pela sua afirmação de que esta última é um fator "externo" ao indivíduo (1986a, p. 22).

Se o amadurecimento pessoal não é um desenvolvimento meramente biológico, dirigido para fins biologicamente predeterminados, convém não descuidar da terminologia e evitar, ou até abandonar, o uso das expressões com conotações fortemente biológicas, mesmo aquelas que são usadas inercialmente por Winnicott, tais como "maturação" e "processo (de maturação)". O termo "maturação" pode convenientemente ser substituído por "amadurecimento"14. Ao invés de falar em "processo" que produz ou do qual resulta o ser humano, parece mais adequado dizer que a natureza humana "acontece". Creio ser esclarecedor, no presente contexto, recorrer a Heidegger, que diz que o ser humano não é, tal como uma coisa qualquer, um mero ente, e sim um acontecente (geschichtlich), e que a sua existência tem o sentido de uma acontecência (Geschehen)15, a qual, por sua vez, é um modo de temporalização do ser humano. Na linguagem de Heidegger, o homem existe como um estendimento (Erstreckung) entre o nascimento e a morte, ele é alguém que nunca terminou de nascer e que desde sempre já começou a morrer, em suma, um acontecente, que é simultaneamente um nascente e um morrente.16

A interpretação do conceito winnicottiano de amadurecimento em termos da acontecencialidade de Heidegger permite a constituição de um horizonte ontológico unitário para a compreensão da ciência winnicottiana da natureza humana. Nesse horizonte, a "natureza humana" é sinônimo de "acontecência", de "temporalização". A afirmação de que o ser humano é "amostra temporal" dessa natureza passa a significar que esse ser concretiza um poder-ser que, considerado tal como é experienciado pelos indivíduos humanos, deve ser dito surgir do nada e voltar ao nada (não sendo, portanto, uma forma atemporal do tipo platônico ou aristotélico). A recorrente tese de Winnicott de que o ser humano, além de crescer fisicamente, vai resolvendo sucessivamente as mais diversas tarefas de integração, entre elas a da unidade de si mesmo e do mundo em que habita, recebe uma interpretação natural em termos da ontologia heideggeriana da constituição do si-mesmo cotidiano. Várias posições, à primeira vista enigmáticas, recebem uma interpretação quase imediata, por exemplo, a de que a vida de uma pessoa é "um intervalo entre dois estados de não-estar-vivo [unaliveness]", sendo que "o primeiro dos dois, a partir do qual emerge o estar-vivo [aliveness], dá colorido às idéias que as pessoas costumam ter sobre a segunda morte".17 Também não é difícil entender o sentido da afirmação de Winnicott de que o ser humano, ao longo da sua vida, é chamado para resolver as mais diversas tarefas de integração, a derradeira sendo a de integrar a morte natural, que é o "selo final da saúde" (1988, p. 12).18

Um outro ponto em que há acordo entre Heidegger e Winnicott é que a acontecência humana é intrinsecamente difícil. Para Heidegger, a existência é um "peso" (1927, par. 29), pois temos de manter aberto o mundo e nos deixar interpelar pelas coisas. Quanto a Winnicott, ele escreve:

O fato, porém, é que a vida é difícil em si mesma, e a psicologia refere-se aos problemas inerentes ao desenvolvimento individual e ao processo de socialização; mais ainda, na psicologia infantil temos que nos defrontar com a batalha em que nós próprios estivemos uma vez, ainda que, em geral, já a tenhamos esquecido, ou da qual jamais estivemos conscientes. (1988, p. 10; itálicos meus)19

Como em Heidegger, a dificuldade interna da vida não advém da sua finitude, do ter-que-morrer, mas antes do ter-que-continuar-sendo. É daí, desse ter-que-ser que surgem, segundo Winnicott, todas as outras necessidade [needs] humanas, inclusive a de dar conta das "tensões instintuais" e dos "instintos". O que faz a diferença entre o animal humano e o resto dos animais não é a instintualidade, mas a necessidade de operar a "elaboração imaginativa de todas as funções corpóreas" (1988, p.40). O homem não é "movido" - empurrado a tergo - por tais forças, ele acontece porque tem-que-acontecer, porque, por essência, é acontecencial, sendo essa acontecência estruturada, na origem, por um trabalho da psique sobre o corpo.

 

3. A estrutura psicossomática do animal humano

O animal humano "é físico, se visto de um certo ângulo, psicológico, se visto do outro" (ibid., p. 11; tr. p. 29). Quando olhamos para o bebê, no seu início, "a psique e o soma não podem ser distinguidos, a não ser de acordo com a perspectiva a partir da qual se está olhando" (1958a, p. 244; tr. p. 411). Os dois pontos de vista ou ângulos considerados por Winnicott opõem o soma à psique, não o corpo físico (body) à mente espiritual (mind) (1988, p. 11; tr. p. 29). A "natureza humana", insiste ele, "não é uma questão de corpo e mente - e sim uma questão de psique e soma inter-relacionados" (p. 26; tr. p. 44, itálicos meus). O corpo físico, como tal, é externo à natureza humana. Esta não é psico-física, e sim psico-somática. Quanto à mente, ela é "uma ordem à parte, e deve ser considerada como um caso especial do funcionamento do psique-soma".20 Em suma, a natureza humana não é um composto cartesiano, uma unidade inverossímil de mente espiritual (racional) e de um corpo físico, mas um psique-soma, "com a mente florescendo na beira do funcionamento psicossomático".21

O ponto de Winnicott está claro: a animalidade desse animal não advém do seu lado físico, mas do seu elemento somático, da "anatomia viva". A sua humanidade é devida à psique. A união desses dois "aspectos", a sua inter-relação, decorre do traço-de-união22 entre os dois, do hífen: "Os tecidos são vivos, eles são parte do animal inteiro [of a whole animal] e são afetados pela variação dos estados da psique desse animal" (p. 26; tr. p. 44, itálicos meus).23 Para compreender a ontologia implícita nessa concepção winnicottiana do seu objeto de estudo, faz-se necessário examinar separadamente cada uma dessas três partes da unidade psicossomática que constitui a natureza humana, perguntando: O que é a psique? O que é o soma? O que é e como se estabelece o hífen?24

 

4. A psique

Essencial para Winnicott, o termo "psique" não é corrente na psicanálise tradicional. Esta prefere, para se referir ao mesmo domínio de fenômenos, os termos "alma", "mente", "aparelho psíquico", "sujeito", entre outros. Winnicott nunca explicitou as razões da sua escolha. Esta se deve, pelo menos parcialmente, à etimologia. Em grego antigo comum, "psyché" significa primeiramente vida, inclusive vida animal, e só secundariamente alma imaterial ou imortal, si-mesmo consciente ou pessoa enquanto centro de emoções, desejos e afetos. Seja como for, segundo Winnicott, a psique está no bebê, num certo sentido e grau, desde o início da vida. Ela não é uma substância ou uma instância, e sim um modo de operar da natureza humana. "A psique se inicia", diz Winnicott, "como uma elaboração imaginativa do funcionamento físico" (p. 19). A identificação entre a psique e a elaboração imaginativa do corpo é feita já em 1949, quando Winnicott diz que "psique" significa "a elaboração imaginativa das partes somáticas, dos sentimentos e das funções, isto é, do estar-vivo fisicamente [physical aliveness]" (1958a, p. 244). Numa outra formulação, lê-se que a psique "surge como uma organização da elaboração imaginativa do funcionamento corpóreo" (ibid., p. 123; cf. 1988, p. 52)25.

Em certos textos, entretanto, a psique é considerada não como elaboração imaginativa, mas como seu resultado, como algo "forjado" (forjed) a partir do "material fornecido pela elaboração imaginativa das funções corporais" (1988, p. 52; tr. p. 70). No que se segue, preservarei os dois sentidos e, conforme o contexto, chamarei de psique quer a própria atividade de elaboração imaginativa quer os seus produtos, obtidos em diferentes fases do amadurecimento pessoal.26

Apesar de ter um papel ativo e de não ser redutível ao funcionamento do corpo, a psique não existe separada do funcionamento fisiológico, em particular, do funcionamento cerebral. O uso winnicottiano da palavra "psique" não sugere nada "que possa ser conectado com o espírito [spirit]" (1989a, p. 565; tr. p. 430), entidade que, de acordo com a interpretação tradicional, possui a propriedade de poder existir independentemente do corpo. Pela mesma razão, Winnicott exclui do seu vocabulário a palavra "alma" (soul), a não ser para designar "uma propriedade da psique", que também depende, em última instância, do funcionamento cerebral, podendo ser sadia ou doente. Trata-se, reconhece Winnicott, de um ponto de vista pessoal, "contrário ao ensinamento de quase todos os sistemas religiosos" (1988, p. 52). Finalmente, Winnicott distingue cuidadosamente a psique da mente (mind), esta última podendo ser tomada como o "intelecto" ou como o modo de ser "esperto e tedioso", que, quando se separa da psique, "gera uma área em que o pensamento, o pensar sobre as coisas, possui uma espécie de vida própria" (1989a, p. 566). Nesse caso, observa-se um modo patológico de funcionamento do psique-soma, chamado de "mentalização"27.

Embora relacionada ou hifenizada ao soma pessoal, a psique não tem uma localização: "O indivíduo não sente a psique como se estivesse localizada no cérebro, ou em qualquer outro lugar" (1958a, p. 244; tr. p. 411). Podem, entretanto, "existir localizações bastante lógicas no sentido de estarem relacionadas ao modo pelo qual o corpo funciona". Por exemplo, o corpo incorpora e expele substâncias. Em virtude disso, "um mundo interno de experiência imaginativa pessoal entra [...] no esquema das coisas, e a realidade compartilhada é em geral considerada como externa à personalidade" (p. 252; tr. p. 422). A psique não tem nem pode ter um lugar porque o psique-soma forma "o único lugar" a partir do qual um indivíduo "pode viver" (p. 247; tr. p. 415). Em oposição às doutrinas filosóficas e religiosas tradicionais, Winnicott não pensa que o corpo é o cárcere da "alma"; para ele, ao contrário, o corpo é a única base sobre a qual esta pode desenvolver-se de maneira sadia.

 

5. O soma

A base da vida humana e da ciência psicossomática é a "anatomia viva", o funcionamento fisiológico em geral (1958a, p. 251; tr. p. 341). O corpo "animado" exerce uma atividade e possui uma organização e até mesmo uma temporalidade prévias à elaboração imaginativa. Exemplos disso são as "tensões instintuais", impulsos de natureza biológica que ainda não receberam o formato de instintos, e os próprios "instintos", os "drives biológicos poderosos" já elaborados, "que vão e vêm na vida do bebê ou da criança, e que exigem ação" (ibid., p. 39). A diferença entre os "diversos tipos de demanda instintual" não é significativa para o animal humano. Em decorrência da tendência ao crescimento (é precisamente aqui que se mostra a temporalidade sui generis do corpo), surgem novas maneiras de funcionamento e novos tipos de organização dos tecidos, dos órgãos e do cérebro que possibilitam novos modos de vida, por exemplo, aqueles que permitem o surgimento da agressividade enquanto tal, das paixões,28 da fala e da consciência. Devido ao fato de estar vivo e de crescer, e não apenas em virtude de ser um aparelho físico-químico, o corpo humano guarda para o indivíduo um caráter de opacidade, o que faz com que o alojamento da psique no corpo seja sempre precário e ameaçado, permanecendo uma tarefa que só termina com a morte.29

O que é elaborado psiquicamente não é a máquina fisiológica, mas esse corpo vivo, capaz de mover-se, entrar em repouso, respirar, ficar tenso, mamar, digerir, evacuar, ter coordenação motora, tônus muscular, ficar excitado, ereto, andar e assim por diante. O soma winnicottiano não é o corpo físico, é o corpo vivo personalizado, de modo que tudo o que Winnicott tem a dizer sobre ele está contido nas seguintes palavras: "resultados da elaboração imaginativa" - desde os resultados que surgem como soluções das tarefas da primeira mamada teórica (integração no tempo, no espaço, início das relações de objeto, embasamento do si-mesmo), até os mais avançados (uso do objeto, genitalidade, masculinidade, feminilidade) ou mesmo os altamente sofisticados (a escuta psicanalítica).

Momentos somáticos encontram-se na solução de todas essas tarefas. Consideremos a de adquirir a capacidade de amar. O que significa o amor ao longo do amadurecimento da criança? Significa, na ordem temporal, 1) "existir, respirar e estar vivo", 2) "ter apetite", 3) "ter contato afetivo com a mãe", 4) "integração do objeto de experiência instintual com a mãe inteira do contato afetivo", 5) "fazer exigências à mãe" e

6) "cuidar da mãe" (1965b, p. 14; tr. pp. 25-6). Em todos esses aspectos, o amor do bebê tem um ingrediente corpóreo essencial. Por essa razão, a capacidade amorosa do bebê não pode ser reduzida ao "desejo" do "objeto", a um apetite meramente mental do "sujeito" humano. O mesmo pode ser dito, por exemplo, das agonias impensáveis. Algumas delas são definidas como "cair para sempre", "cair em pedaços", "perder o contato com a realidade", descrições que revelam, inconfundivelmente, o componente somático dos estados em que se originam as psicoses. À luz dessas indicações - que poderiam ser enriquecidas por muitas outras - parece-me plausível dizer que a psicanálise winnicottiana é essencialmente, e não apenas colateralmente, uma teoria da existência psicossomática30. Segue-se daí que a continuidade do ser significa a continuidade do existir psicossomático e que a interrupção precoce dessa continuidade resulta sempre numa doença grave não apenas psíquica, mas sempre, ao mesmo tempo, psicossomática. Quando não é atendido na necessidade de formar a unidade psique-soma, o bebê não é atendido

na sua necessidade de ser. Toda necessidade "existencial" é sempre, também, uma necessidade corpórea. Em particular, toda psicose é, num certo grau, uma doença psicossomática. Esta última é sempre, diz Winnicott, uma defesa contra o "aniquilamento" e contra a perda da "fé", que são os medos típicos de toda e qualquer psicose (1989r, pp. 114 e 117).31

 

6. O hífen: a inter-relação psique-soma

Nem "a inter-relação mútua" entre a psique e o soma nem o modo como é estabelecida são conceitos muito bem definidos em Winnicott.32 Uma coisa é certa: a parceria (partnership) psicossomática não é estabelecida pelo "trabalho intelectual", mas pela "fantasia", concebida, na origem, como elaboração imaginativa da função física. Trata-se de uma caraterística não diretamente observável nos bebês pequenos - sendo, portanto, uma suposição teórica sobre a natureza humana -, mas que, contudo, passa a ser visível desde o momento em que os bebês começam a brincar.33

Como deve mesmo ser concebida a "hifenização" da psique com o corpo? Algumas observações esclarecedoras encontram-se numa carta de Winnicott a V. Smirnoff, de 1958 (1987, pp. 121-2). Smirnoff estava preparando a tradução francesa do famoso artigo de Winnicott "Objetos transicionais e fenômenos transicionais" (1951), em que se lê:

É geralmente reconhecido que um enunciado da natureza humana em termos de relacionamentos interpessoais não é suficientemente bom, mesmo quando são levadas em conta a elaboração imaginativa da função e a totalidade da fantasia. [...] (1971a, p. 2; tr. p. 14)

Smirnoff perguntou a Winnicott sobre o significado da expressão "elaboração imaginativa", que, obviamente, não faz parte do vocabulário da psicanálise tradicional.

Winnicott começa a sua resposta observando que, ao tratar do estabelecimento de relações com a realidade externa e com a realidade psíquica interna, a teoria psicanalítica da natureza humana recorreu ao conceito de fantasia, assumindo que "o ego é o ego corpóreo" e que "a estrutura da personalidade é construída em cima do funcionamento corpóreo e da fantasia que acompanha o funcionamento corpóreo". Dizendo-se inspirado nesse ponto de partida, Winnicott esclarece que passou a usar o termo "elaboração imaginativa da função" para "descrever" essa teoria da fantasia e da realidade psíquica "como sendo, na sua origem, uma elaboração da função". Para ser mais preciso, Winnicott poderia ter dito: "para redescrever" a teoria tradicional da elaboração das funções corpóreas, pois, de fato, o termo "fantasia" em Freud, em Klein e em kleinianos (Bion da primeira fase, entre outros) não tem o significado que lhe é atribuído por Winnicott. Na acepção tradicional, fantasia é uma operação mental, que se desdobra, desde o início, em introjeção e projeção. Em Winnicott, o mesmo termo recebe um outro significado, o de esquematização do que o corpo faz ou deixa de fazer. Em vários textos, Winnicott usa "esquema corpóreo" como sinônimo de "psique-soma" (cf. 1958a, p. 244). O primeiro termo é emprestado de Scott (1949) e designa as relações internas e externas do psique-soma, com ênfase nos aspectos temporais (memórias, expectativas, etc.) e espaciais (superfície-profundidade, dentro-fora, etc.). Temos aqui, bem entendido, mais um exemplo do que chamo de mudança de paradigma operada por Winnicott na disciplina psicanalítica.

Como tornar mais preciso o conceito winnicottiano de elaboração imaginativa? Para começar, há a necessidade de distinguir a elabo-ração imaginativa que trabalha próxima às funções corpóreas da que se relaciona com as mesmas, por mediações por vezes muito sofisticadas:

Pode-se dizer com segurança que a fantasia mais próxima do funcionamento corpóreo depende da função daquela parte do cérebro que, em termos evolutivos, é a menos recente, enquanto a consciência de si depende do funcionamento daquilo que é mais recente na evolução do animal humano. A psique, portanto, está fundamentalmente unida ao corpo através de sua relação tanto com os tecidos e órgãos quanto com o cérebro, bem como através do entrelaçamento que se estabelece entre ela e o corpo graças a novos relacionamentos produzidos pela fantasia e pela mente do indivíduo, consciente ou incons-cientemente. (1988, p. 52; tr. p. 70)

Segundo esse texto de forte sabor darwiniano, o mero funcionamento corpóreo e mesmo cerebral não define o surgimento de uma pessoa humana. Mas os começos desta tampouco são caracterizados pelo funcionamento meramente mental. Num texto de 1961, depois de ter afirmado que "uma fantasia reprimida pode reaparecer e causar distúrbios na forma de desordem psicossomática", Winnicott faz, numa nota de rodapé, o seguinte comentário sobre o emprego que faz do termo "fantasia":

Ocorre-me que eu possa estar usando a palavra "fantasia" de uma maneira que não é familiar a alguns de vocês. Não estou falando do fantasiar [fantasying] ou da fantasia propositada [contrived fantasy], mas sim pensando na totalidade da realidade psíquica ou pessoal da criança, certa parte dela consciente, mas, a maior parte, inconsciente, e, ainda, incluindo aquilo que não é verbalizado, afigurado [pictured] ou ouvido de maneira estruturada, por ser primitivo e próximo das raízes quase fisiológicas das quais brota. (1989a, p. 69n; tr. p. 56, itálicos meus)

Aqui temos um esclarecimento de importância capital: a fantasia ou a elaboração imaginativa de Winnicott não é o fantasying, o fantasiar que acompanha os distúrbios psíquicos relativos ao contato com a realidade, nem a fantasia exercida pela nossa engenhosidade, mas o todo da vida psíquica tal como existe antes da formação de imagens visuais ou auditivas e - esse ponto é particularmente importante - antes da verbalização. Num texto tardio, de 1970, Winnicott descreverá:

A integração no ser humano em desenvolvimento assume uma ampla variedade de formas, uma das quais é o desenvolvimento de um arranjo operacional satisfatório entre a psique e o soma. Isso começa anteriormente à época em que é necessário adicionar os conceitos de intelecto e verbalização. (1989a, p. 270; tr. p. 209)

Ao insistir sobre o caráter "quase fisiológico" da elaboração imaginativa, Winnicott atribui um sentido decididamente gestual ou comportamental ao modo originário de operar da psique humana, indo de encontro à tradição arraigada de fazer coincidir os inícios da existência humana com as operações de representação, de verbalização e de simbolização em geral.

A elaboração imaginativa dos bebês humanos não poderá ser bem-sucedida se estes não forem ajudados pelo ambiente, isto é, pelo "amor" das mães. É essencial que estas "no início fisicamente, e logo também imaginativamente" facilitem a integração psicossomática dos seus bebês e a integração deles no ambiente externo. Em Natureza humana, Winnicott escreve:

O mundo é criado de novo por cada ser humano, que começa o seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento e da primeira mamada teórica. Aquilo que o bebê cria depende em grande parte daquilo que é apresentado, no momento da criatividade, pela mãe que se adapta ativamente às necessidades do bebê. (1988, p. 110; tr. pp. 130-1)

Esse texto introduz na presente discussão um outro ponto importante: a dação do significado operada pela elaboração imaginativa é relacionada com a criatividade humana em geral. Esta não se restringe à elaboração imaginativa do esquema corpóreo, pois inclui, entre outras coisas, o contato com o real, a criação de vários mundos, a dação de sentidos às coisas em geral nos diferentes mundos, etc. A elaboração imaginativa das funções do corpo não pode, por si só, criar todos esses sentidos, em particular o da realidade externa (p. 114). Mas, mesmo nesse caso, ela desempenha um papel essencial, respondendo pelo "impulso efetivo de destruir", isto é, pelo desgaste efetivo do corpo da mãe sem o que esta não pode ser experienciada como externa.34 Aqui também (veja o que foi dito antes sobre o caráter "físico", isto é, somático do "amor" materno), a mãe precisa fornecer ajuda e ela o faz sobretudo de maneira somática, sobrevivendo aos ataques do bebê e dando-lhe a oportunidade, pela exterioridade do próprio corpo, de criar a distinção entre o interno e o externo, aquilo que existe em si e obedece às suas próprias leis. Essa distinção tem imediatamente também um sentido somático, o "eu sou" significando "eu sou o rei do castelo", em que o castelo é o meu corpo interpretado "imaginativamente" e, em parte, também, na atividade representacional e na mente incipientes.

 

7. A elaboração imaginativa como dação de sentido

Mesmo sem se inscrever na dimensão representacional ou simbólica da natureza humana, a elaboração imaginativa originária é essencialmente relacionada ao sentido. Na origem, a fantasia não é, de modo algum, a fantasia da origem, mas - essa é a tese que gostaria de propor - a dação do sentido (Sinngebung)35 aos movimentos do corpo. A maneira como Winnicott pensa a criação do sentido é indicada no seguinte trecho de Natureza humana:

Com o desenvolvimento do cérebro enquanto órgão em funcionamento, inicia-se a estocagem de experiências; as memórias corporais, que são pessoais, começam a juntar-se para formar um novo ser humano. Existem boas evidências de que os movimentos do corpo na vida intra-uterina são significativos [have significance], e é plausível que, de um modo silencioso, a quietude vivenciada naquele período também o seja. (1988, p. 21)

Sobre a significância, em particular do repouso e da quietude, tanto do corpo como do indivíduo como um todo, Winnicott dirá o seguinte:

Se a satisfação é encontrada no momento culminante da exigência, surge a recompensa do prazer e também o alívio temporário do instinto. A satisfação incompleta ou mal sincronizada resulta em alívio incompleto, em desconforto e na ausência de um período de descanso muito necessário entre duas ondas de exigências. (1988, p. 39; tr. p. 57)

Um dos resultados principais da elaboração imaginativa é a transfiguração do funcionamento corpóreo em comportamento humano:

Ao longo de todo esse trabalho, o estudioso do psique-soma preocupa-se com as fantasias conscientes e inconscientes, por assim dizer, com a histologia da psique, a elaboração imaginativa de todos os funcio-namentos somáticos que são específicos do indivíduo. Se duas pes-soas balançam o dedo, o anatomista e o filologista verão uma semelhança essencial nos dois eventos. Para o estudioso do psique-soma, no entanto, à anatomia e à fisiologia da ação deve ser acrescentado [added] o significado da ação [the meaning of the action] para o indivíduo, e, por isso, balançar o dedo é algo específico, em cada caso, ao indivíduo que o faz. (1988, p. 27; tr. p. 45; itálicos meus)36

Embora Winnicott fale em ação, o que ele tem em vista é o gesto, pois, salvo em situações muito especiais, balançar um dedo não é agir. Aqui convém lembrar que, em Winnicott, a primeira forma de relação do bebê com a mãe (o mundo externo) é precisamente o gesto (gesture) e não a ação. É o gesto, isto é, o "agrupamento sensório-motor" que "exprime o impulso espontâneo". Como o si-mesmo verdadeiro é ligado ao gesto espontâneo, este passa a poder "indicar a existência de um potencial si-mesmo verdadeiro" (1965a, p. 145; tr. p. 133).

Isso dito, como entender esse "acréscimo" do significado que transfigura a atividade fisiológica em gestualidade? Sendo excluído o recurso à simbolização e, de um modo geral, à representação, talvez seja possível pensar que Winnicott tem em mente algo semelhante ao que Heidegger chamava de compreensão (Verstehen). Compreender, em Heidegger, é possibilitar ou deixar ser algo como algo - por exemplo, este algo como martelo, como algo para martelar - ou este alguém como vizinho, como alguém para conviver. As relações do tipo "para martelar" e "para conviver", que possibilitam os encontros com as coisas e o estar com os outros, são baseadas no que Heidegger chama de esquemas do uso e da convivência. Esses esquemas são constitutivos do espaço de possibilidades que é o ambiente ou o mundo circundante - caracterizado por Heidegger como o "todo da significânica" - herdado pelo ser humano da tradição na qual nasceu ou livremente projetado "a partir dela, contra ela e, no entanto, de novo por ela".37 Do mesmo modo, compreender o seu próprio corpo significa possibilitar a sua presença como esse ou aquele modo fatual de se ocupar das coisas e de cuidar de outros seres humanos, com base em certos esquemas constitutivos do mundo. Tanto a compreensão do sentido das coisas quanto a do sentido do próprio corpo e, por extensão, do si-mesmo, admitem uma interpretação e uma articulação posteriores, sem que seja preciso, para tanto, recorrer a qualquer sistema de signos ou de símbolos. Interpretada em termos de Heidegger, a "fantasia" originária de Winnicott é essencialmente uma "auto-compreensão" do bebê, seguida de uma "auto-interpretação", ambas baseadas em esquemas herdados ou livremente projetados (esse é um equivalente heideggeriano possível à "elaboração imaginativa" de Winnicott) de um lugar e de um modo pessoal de se relacionar corporeamente com os outros e com as coisas encontrados nesse lugar.

Um bom exemplo de movimentos do corpo transubstanciados em gestos é a dança, uma atividade da qual o psicanalista inglês era aficio-nado. De importância especial reveste-se o uso que Winnicott fazia do próprio corpo na clínica. Ele escutava "com o corpo inteiro", conforme o relato sobre o modo de trabalhar de Winnicott feito por Masud Khan no Prefácio a Da pediatria à psicanálise. Na seqüência do seu relato, Khan acrescenta a seguinte observação, particularmente esclarecedora:

Iniciei, deliberadamente, definindo Winnicott na sua presença corpórea, porque não se pode começar a entender o seu talento como clínico, se não estivermos cientes de que, nele, psique e soma viviam em perfeito diálogo e debate, e que suas teorias são abstrações do constante happening que era Winnicott, a pessoa e o clínico. (1958a, p. XI; tr. p. 7)

Creio ser possível dizer, portanto, que, em Winnicott, a presença de um ser humano para o outro é essencialmente uma presença corpórea, pois além de respirar, tocar e manusear, existem inúmeros outros modos de estar junto com os outros, como crescer e envelhecer com os outros, comunicar-se com os outros, todos eles essencialmente "psicossomáticos".

 

8. As diferentes tarefas da elaboração imaginativa

Entre as tarefas da elaboração imaginativa ou psíquica estão incluídos todos os aspectos do "estar-vivo físico" (of physical aliveness) (1958a, p. 244), pois essa operação estabelece "relações dentro do corpo, com o corpo e com o mundo externo" (1988, p. 28). Essa atividade psíquica desenvolve-se juntamente com o indivíduo e o seu corpo, e passa a resolver tarefas cada vez mais complexas. Num texto de 1958, Winnicott oferece uma listagem dessas tarefas, que talvez seja a mais completa de todas, ainda que acompanhada da observação de que ainda se trata de uma "classificação artificial". Os grupos de tarefas são ordenados cronologicamente, de acordo com as sucessivas fases do amadurecimento:

1) Simples elaboração da função [corpórea].

2) Separação em antecipação, experiência e memória.

3) Experiência em termos de memória da experiência.

4) Localização da fantasia dentro ou fora do si-mesmo [self], com trocas e enriquecimento constante de um pelo outro.

5) Construção de um mundo pessoal ou interno, com senso de responsabilidade pelo que existe e se passa lá dentro.

6) Separação para fora da consciência daquilo que é inconsciente. O inconsciente inclui aspectos da psique tão primitivos que nunca se tornam conscientes, e também aspectos da psique ou do funcionamento mental que se tornam inacessíveis como defesa contra angústia (chamado de inconsciente reprimido). (1965b, p. 8; tr. pp. 18-9)

Como se vê, Winnicott atribui à fantasia, "reinterpretada como elaboração imaginativa", uma participação essencial nas principais conquistas realizadas durante todo o processo de amadurecimento, embora essas conquistas não possam ser atribuídas apenas a essa operação, pois dependem essencialmente de dois outros fatores, o crescimento corporal (físico) e a facilitação ou provisão ambiental.

Em diferentes ocasiões, Winnicott tentou explicitar a ordem temporal em que se dá a elaboração imaginativa das funções corpóreas. Ele concorda com John Davis, quando este afirma que, "no recém-nascido, a fisiologia e a psicologia são uma e a mesma coisa" (1986a, p. 36). Muito cedo, entretanto, ocorre a diferenciação entre o funcionamento físico e psíquico:

Se alguém está lá (poder-se-ia dizer) para coletar experiências, confrontá-las, sentir e estabelecer distinções entre os sentimentos, ficar apreensivo no momento adequado e começar a organizar defesas contra o sofrimento mental, então eu diria que o bebê É, e o estudo dele, a partir desse ponto, precisa incluir a psicologia. (1988, cap. 4, p. 39; tr. p. 33)

Já nesse grau de amadurecimento, a integração passa a significar "responsabilidade, que, sendo acompanhada de consciência, por um conjunto de memórias e pela junção do passado, presente e futuro, praticamente significa o começo da psicologia humana" (1988, pp. 119-20). Desde então, o indivíduo torna-se uma pessoa que pode ser "estudada psicologicamente", deixando de ser um animal humano acessível apenas à anatomia e à fisiologia (1988, p. 126). Nesse estágio, as tarefas da elaboração são precisamente aquelas relativas às funções corpóreas mais elementares, às partes anatômicas principais ou às sensações e excitações mais primitivas, mencionadas no primeiro item da lista citada anteriormente e identificadas por Winnicott já em 1949.

Winnicott estabelece não apenas a ordem temporal mas também a ordem de importância relativa entre tarefas ou partes de tarefas de elaboração. A principal delas é a constituição do tempo. A psique, escreve Winnicott, "tem como a sua tarefa mais importante a de interligar as experiências passadas, as potencialidades, a consciência do momento presente e a expectativa para o futuro" (ibid., p. 19; itálicos meus).38 Esse mesmo ponto é destacado por Winnicott quando diz que a psique, "surgindo a partir do que pode ser chamado de elaboração imaginativa do funcionamento do corpo de todos os tipos e do acúmulo de memórias", "junta o passado experienciado, o presente e o futuro esperado" (p. 28).39 Desenvolvendo-se dessa maneira, a psique

torna-se algo que possui uma posição a partir da qual é possível relacionar-se com a realidade externa, torna-se algo com a capacidade de criar e de perceber a realidade externa, torna-se um ser qualitativa mente enriquecido, em condições de ir além daquilo que se pode explicar pelas influências ambientais, e em condições não apenas de se adaptar, mas também de se recusar a se adaptar, e se transforma numa criatura que se sente apta a fazer escolhas. (1988, pp. 28-29)

É precisamente esse tipo de consideração que permite a Winnicott introduzir um segundo conceito de psique, derivado do primeiro e já mencionado anteriormente, o da psique como resultado do processo de amadurecimento, "forjado" a partir "do material fornecido pela elaboração imaginativa do funcionamento do corpo" e que, com o tempo, torna-se o si-mesmo,40 capaz de fantasiar, ter emoções e ter vida cultural, incluindo a arte, a religião e a filosofia.

 

9. A elaboração imaginativa inicial do funcionamento corpóreo

A primeira tarefa da psique é a "simples elaboração da função" corpórea. Trata-se, nas fases iniciais da vida humana, de tornar o corpo um "soma pessoal", personalizando suas funções, suas partes anatômicas, suas sensações, seus sentimentos e suas excitações mais primitivas. Mesmo nesse estágio precoce, a tarefa de elaboração é, inevitavelmente, uma tarefa de temporalização e de historiação, ou seja, de inserção do indivíduo numa história ao mesmo tempo pessoal e interpessoal.

Um exemplo de organização inicial historiante é a "experiência do nascimento". A melhor prova de que se trata de uma experiência real é dada, diz Winnicott, "pelo grande prazer que praticamente todas as crianças [...] extraem de atividades de jogos que envolvem o acting out de um ou de outro aspecto do processo de nascimento" (1988, p. 148; tr. p. 170). Nesses casos, tem-se o sentimento de que "o corpo da criança sabe do fato de ter nascido" (1958a, p. 180; tr. p. 321). No acting out manifestam-se "as memórias corpóreas pertencentes ao processo de nascimento" (ibid.).

Esse tipo de memória encontra-se também na clínica. Quando acontece atraso do nascimento, as sensações de aperto em volta da cabeça, por exemplo, são lembradas de forma somática. A dor de cabeça, descrita pelo paciente como "uma atadura à volta da cabeça", pode, em certos casos, ser "um derivado direto das sensações do parto". Essa atadura "pode revelar-se como estando relacionada à experiência de estar preso em uma intrusão ambiental que não tem fim previsível" e da qual resulta um quadro clínico que Winnicott chama de "paranóia congênita" (1958a, pp. 185; tr. p. 328). Nos partos anormais, o intelecto pode ser forçado a funcionar, prematuramente, como algo distinto da psique, "como se colecionasse as intrusões às quais foi necessário reagir e as guardasse detalhadamente e em seqüência, protegendo, desta forma, a psique até que haja retorno ao continuar-a-ser" (1989a, p. 191; tr. pp. 336-7). Ao organizar a defesa da psique, o intelecto desenvolve-se excessivamente e pode mesmo tornar-se aparentemente mais importante que a psique. Visto que, nesse caso, o bebê não experiencia, mas tão-somente "mentaliza" as funções e a história do corpo, o paciente com trauma de parto necessita "reviver" o parto como uma "coisa física", mas em primeira pessoa, por meio de uma "atuação", dispensando por completo a verbalização e a simbolização.

Os comportamentos regredidos em que são revividas, na clínica, as acontecências relacionadas às desordens psicossomáticas devem ser distinguidos das fantasias regressivas. O "acting out dos traços mnemônicos" originados de uma experiência traumática do nascimento é algo diferente de jogos que "contêm um simbolismo". A regressão, numa sessão clínica, de uma parte do si-mesmo a um estado intra-uterino, não deve ser confundida, insiste Winnicott, com o "movimento feito na fantasia, usualmente mais importante e mais comum, para dentro e para fora do corpo da mãe". Os pacientes psicóticos tendem a reviver tais fenômenos primitivos "passando ao largo da fantasia [bypassing fantasy] que emprega símbolos" (1958a, p. 189; tr. p. 334). Não obstante, tal como qualquer outro, esse tipo de acting out implica uma elaboração imaginativa que, não sendo representacional, é essencialmente esquematizante.

Essas observações ilustram bem a tese de Winnicott de que o ser humano, na origem, existe e acontece psicossomaticamente, como gesto, e não "simbolicamente", o que assegura à teoria winnicottiana da experiência do nascimento um lugar central no seu estudo da natureza e do amadurecer humanos.41 Essa teoria baseia-se no seguinte ponto de vista: "no momento do nascimento a termo, já existe um ser humano no útero, capaz de ter experiências e acumular memórias corpóreas, e até mesmo organizar defesas contra possíveis traumas" (1988, p. 143; tr. p. 165).

Desde o início da vida humana, a elaboração imaginativa trabalha também a anatomia do corpo, envolvida nas funções. Um dos principais problemas da elaboração das partes do corpo diz respeito à unidade do corpo: "O bebê é uma barriga unida a um dorso, tem membros soltos e, particularmente, uma cabeça solta: todas essas partes são reunidas pela mãe que segura a criança e, em suas mãos, elas se tornam uma só" (1989a, p. 568; itálicos meus). Winnicott poderia ter acrescentado: elas são elaboradas pelo bebê, assistido pelo manuseio da mãe, como uma só.

Junto com as funções e a anatomia, precisam ser elaboradas também as sensações e as excitações corpóreas que as acompanham. É possível conceber, escreve Winnicott, "a existência de todo tipo de sensações [sensations] não claramente delineadas, tais como ruídos, o sangue correndo para a cabeça, um sentimento [feeling] de congestão na parte de cima e o sentimento de que `alguma coisa está vazando, como se o sangue estivesse escapando'" (1958a, p. 187; itálicos meus). A esse material estão ligados os sentimentos de força e de estabilidade quando o nascimento acontece suavemente, sem que o bebê necessariamente tome nota desse acontecer. Num nascimento traumático, os sentimentos típicos com os quais o bebê tem que lidar são os de perda, mesmo temporária, da continuidade do ser, que levam, naturalmente, a sentimentos de raiva ou, então, de insegurança e mesmo de desesperança (ibid., pp. 184-5). Todos esses sentimentos podem estar ligados ao sentimento de pressão ou mesmo de asfixia, que surge por ocasião de um parto demorado.

O sentido de que são revestidas as sensações que acompanham a história corpórea do nascimento é determinado essencialmente pelo fator tempo. Durante o processo do nascimento, como reação à constrição dos tecidos, o bebê tem que fazer, observa Winnicott, "o que seria um movimento inspiratório (caso houvesse ar disponível)". Depois do nascimento, "o choro estabelece a expressão da vivacidade através da expiração", proporcionando ao bebê, dessa maneira, a oportunidade de experienciar a continuidade do ser, a força e a estabilidade pessoal. Se, entretanto, há atraso ou muita dificuldade durante o nascimento, a mudança para o choro normal pode não ser suficientemente definitiva e o bebê pode não saber se chora em reação à demora ou para exprimir, raivosamente, o seu estar-vivo. Ora, o bebê precisa saber por que chora, pois o choro reativo é deprimente, enquanto o choro raivoso ativo "pode ser ego-sintônico desde muito cedo, sendo uma função expulsiva com um objetivo claro, o de viver à sua própria maneira e não reativamente" (1958a, p. 188; tr. p. 332). Na fase inicial da vida, a diferença básica entre, por um lado, ser si-mesmo (viver espontanea-mente e ser capaz de fazer experiências pessoais) e, por outro, não ser si-mesmo (viver apenas reativamente e não ser capaz de fazer experiências em primeira pessoa) é estabelecida por meios essencialmente psicossomáticos, a saber, pela sincronia dos ritmos dos corpos do bebê e da mãe, ambos envolvidos num acontecer ao mesmo tempo corpóreo e psíquico do qual nenhum dos dois tem controle completo.

Também no caso da elaboração de excitações, cabe prestar a devida atenção ao amadurecimento. Ao longo do acontecer maturacional,

algumas estruturas de excitação revelam-se dominantes, e a elaboração imaginativa de qualquer excitação tende a ocorrer nos termos do instinto dominante. Um fato óbvio: no bebê, é dominante o aparelho responsável pela ingestão, de modo que o erotismo oral colorido por idéias de natureza oral é amplamente aceito como característico da primeira fase do desenvolvimento instintivo. (1988, p. 40)

Em todos os casos analisados, as sensações e os sentimentos não são sense-data, meros dados subjetivos sem objeto, mas estados do indivíduo que interpretam aspectos da situação em que este se encontra. Há neles, desde o início, um "como se" hermenêutico que indica uma dação de sentido, simultânea ao surgimento do dado, uma dação que talvez deva ser entendida como condição de possibilidade da existência psíquica, isto é, da experiência de dados sensíveis.42

 

10. A elaboração imaginativa no desenvolvimento do ego e na constituição do si-mesmo

Cabe à elaboração imaginativa um papel todo especial no desenvolvimento do ego e na constituição do si-mesmo, em particular, do "Eu sou". Convém lembrar que Winnicott usou, por muito tempo, os termos "ego" e "self " como sinônimos ou, então, como conceitos de mesmo tipo semântico. Ainda em 1960, o si-mesmo central (central self) é descrito como "potencial herdado" que "experiencia uma continuidade do ser e que adquire, a seu próprio modo e em sua própria velocidade, uma realidade psíquica pessoal e um esquema corpóreo pessoal" (1965b, p. 46; tr. p. 46), experiência que, por seu turno, é "a base da força do ego" (p. 52; tr. p. 51). Em contextos como este, é muito difícil decidir o sentido exato de "ego" e de "si-mesmo".

A partir de 1962, Winnicott passa a diferenciar o significado dessas duas expressões. O "ego" é reconhecido como um empréstimo à psicologia do ego, que afirma haver um ego desde o início, anterior à experiência do id, e encaminha o estudo do processo de amadurecimento "em termos de evolução do ego, incluindo a tendência para integração e para uma capacidade de relações objetais e a parceria psicossomática" (1989a, p. 490; tr. p. 371). A palavra "self", por sua vez, é remetida a um outro contexto, o da psicologia individual de Jung, em que designa pessoa concreta, alguém dotado de sentimento de realidade e de identidade (ibid., p. 488; tr. p. 369).

Em "A integração do ego no desenvolvimento da criança" (1962), depois de afirmar que "o termo `ego' pode ser usado para designar aquela parte da personalidade humana em crescimento que tende, sob condições favoráveis, a se tornar uma unidade", Winnicott explicita o que quer dizer com essa proposta. No corpo do bebê ocorrem eventos funcionais de vários tipos, motores e sensoriais, incluindo os tradicionalmente atribuídos ao id. No caso normal, em que o cérebro - o nosso aparelho eletrônico - trabalha bem, essas funções corpóreas são organizadas pelo "funcionamento do ego". O resultado desse funcionamento é a "experiência do ego". É nesse sentido que se pode falar, em particular, de "experiências da função do id", graças às quais o funcionamento do id não é perdido, mas reunido em todos os seus aspectos. A organização de todas as funções corpóreas pelo funcionamento do ego é chamada por Winnicott de "organização do ego" ou "ego corpóreo". "O ego", diz Winnicott, "é baseado em ego corpóreo" (1965b, p. 59; tr. p. 58).

Dessa análise, Winnicott tira várias conclusões, todas enun-ciando teses essenciais do seu paradigma. Uma delas diz:

Não faz, portanto, sentido algum usar a palavra "id" para fenômenos que não são registrados, catalogados, experienciados e finalmente interpretados pelo funcionamento do ego. [...] O fato de que vida instintual possa existir sem conexão com o funcionamento do ego pode ser ignorado, porque a criança não é ainda uma entidade que tenha experiências. Não há id antes do ego. (1965a, p. 56; tr. p. 55; itálicos meus)

O rompimento com a metapsicologia freudiana está claro. Em Freud, o id (das Es) e o ego (das Ich) são instâncias do aparelho psíquico, cujo significado é determinado pela especulação metapsicológica, o ego sendo supostamente a parte do id modificada e separada deste pela in-fluência do mundo externo. Em Winnicott, o funcionamento do ego é pensado como fonte ativa de experiência pessoal que confere sentido experiencial às funções do id. Essa redefinição da semântica dos termos "ego" e "id" permite a Winnicott rejeitar o uso meramente especulativo da palavra "id", recusa que não faz mais do que aplicar, ao presente caso, a sua tese geral de que a linguagem da metapsicologia carece de sentido objetivo.

Convém notar, ainda, que o conceito de ego corpóreo de Winnicott é diferente do da psicanálise tradicional. Como é sabido, Freud concentra a sua atenção no fato de o corpo próprio, sobretudo a sua superfície, ser "o lugar de onde podem resultar as sensações tanto externas quanto internas". Com base nessa observação, ele pode dizer que "o ego é antes de tudo um ego corpóreo, sendo não apenas uma entidade de superfície, mas a projeção de uma superfície" (1923b, SA, III, p. 294; itálicos meus). Numa nota de Freud à tradução inglesa desse texto, de 1927, lê-se:

Isto é, o ego [ego] é, em última instância, derivado das sensações corpóreas, principalmente das que se originam na superfície do corpo. Ele pode, portanto, ser visto como uma projeção mental [mental projection] da superfície do corpo, além de representar [...] a superfície do aparelho mental.

Tal como o ego e o id, o ego corporal de Freud, entidade especulativa, relacionada à superfície do corpo, é essencialmente diferente do de Winnicott, baseado na elaboração imaginativa efetivamente experienciada do corpo inteiro.

Uma outra conseqüência conecta o conceito de ego com o da pessoa: "Portanto, nos estágios mais primitivos do desenvolvimento de uma criança humana, o funcionamento do ego deve ser considerado um conceito inseparável do da existência da criança como pessoa" (ibid.). Essa é uma afirmação de importância capital que nos põe a caminho da reflexão winnicottiana sobre a natureza do funcionamento do ego e a relação entre a experiência do ego e a constituição do si-mesmo. De início, ela sugere duas perguntas. Primeiro, qual é a natureza das operações egóicas de organização ou de integração das funções corpóreas? Segundo, qual é o papel dessas operações no surgimento de um si-mesmo? A resposta a ambas é indicada no seguinte trecho:

Outra linguagem pode ser usada para descrever essa parte obscura do processo de amadurecimento, mas os rudimentos de uma elaboração imaginativa do simples funcionamento corpóreo devem ser pressupostos se se pretende afirmar que esse novo ser humano começou a ser e começou a adquirir experiências que podem ser ditas pessoais. (1965b, p. 60; tr. p. 59; itálicos meus).

A primeira pergunta está respondida: o funcionamento do ego consiste em formas primitivas de elaboração imaginativa, tese que aproxima o conceito winnicottiano do ego, caraterizado pela tendência à integração, e o de psique, definida, conforme vimos, precisamente como elaboração imaginativa da experiência somática.43

Quanto à segunda pergunta, ficamos sabendo que o resultado das operações egóicas de integração das funções corpóreas desse funcionamento - o ego corpóreo winnicottiano - é uma condição de possibilidade da existência de um si-mesmo pessoal, constituído pelo que Winnicott chama de processo de personalização. É sobre o corpo e a partir do corpo que funciona, que se desenvolve uma personalidade que também funciona, que é completa, unificada, que possui defesas contra as angústias e é capaz de se relacionar com outras pessoas. Esse último aspecto de personalidade é destacado já no começo do artigo aqui comentado:

Como se pode ver, o ego [ego] se oferece para estudo muito antes da palavra "si-mesmo" [self] ter relevância. A palavra em questão apare ce depois que a criança começou a usar o intelecto para examinar o que os demais vêem, sentem ou ouvem e o que pensam quando se encontram com esse corpo infantil. (1965a, p. 56; tr. p. 55)

Em suma, o si-mesmo é uma formação do desenvolvimento do ego que começa estabelecendo-se como eu, em oposição ao não-eu, e se desenvolve como "Eu sou, eu existo, eu reúno as experiências e me enriqueço, eu tenho uma interação introjetiva e projetiva com o não-eu - o mundo efetivamente real da realidade compartilhada". Esse estágio, entretanto, só é alcançado nas circunstâncias favoráveis em que fica estabelecido o limite entre o eu e o não-eu, ou seja, acrescenta Winnicott, na medida em que "a psique começa a viver no soma e uma vida psicossomática de indivíduo teve início" (ibid., p. 61; tr. p. 60). Observação esclarecedora, mas que exigiria, por sua vez, um estudo, mais detido, que não pode ser empreendido aqui, das operações de elaboração imaginativa pelas quais a psique estabelece o limite mencionado.44

Numa carta de 1971 dirigida a J. Kalmanovitch, tradutora do seu artigo "Basis for Self in the Body" para o francês, Winnicott volta a esclarecer que, para ele, o si-mesmo "não é o ego", mas "a pessoa que é eu, que é somente eu e que possui uma totalidade baseada no processo de amadurecimento". E acrescenta:

Ao mesmo tempo, o si-mesmo tem partes e, na realidade, ele é constituído dessas partes. Essas se aglutinam na direção que vai do inte-rior ao exterior no curso do funcionamento do processo de amadurecimento, ajudado como deve ser (maximamente no começo) pelo ambiente humano que sustenta e maneja e, por uma maneira viva, facilita. O si-mesmo descobre-se localizado no corpo, mas pode, em certas circunstâncias, dissociar-se dele ou este de si. O si-mesmo se reconhece essencialmente nos olhos e na expressão facial da mãe. O si-mesmo acaba por chegar a um relacionamento significativo entre a criança e a soma das identificações que (após suficiente incorporação e introjeção de representações mentais) se organizam sob a forma de uma realidade psíquica interna viva. [...] São unicamente o si-mesmo e a vida do si-mesmo que dão sentido à ação ou à vida do ponto de vista do indivíduo que cresceu [...]".45

Quando falo de mim mesmo ou afirmo "Eu sou", eu não falo, portanto, do meu ego. Falo de mim mesmo, isto é, de um determinado tipo de identidade ou mesmidade concreta, fatual, caracterizada pela continuidade do ser, baseada no crescimento do psique-soma e que, com o tempo, assume pessoalmente (verdadeiro si-mesmo) ou deixa de assumir (falso si-mesmo) as funções mais avançadas de elaboração imaginativa. O núcleo central de todo "si-mesmo imaginativo" é o "corpo vivo, com seus limites e com o seu interior e exterior", constituído pela elaboração imaginativa numa fase anterior à constituição do si-mesmo (1965b, p. 244; tr. p. 334).

Compreende-se, assim, por que Winnicott diz, na carta mencio-nada, que a palavra "self" é usada num plano diferente da palavra "ego" ou da palavra "moi" em francês:

O primeiro plano tem a ver com a vida e o viver de uma maneira direta; no segundo, em que a palavra "le moi" é usada, quem fala ou quem escreve está mais distanciado, menos envolvido, talvez mais claro, por ser capaz de usar tudo o que faz como parte de uma abordagem intelectual.

Essa observação reafirma claramente que o "si-mesmo" é um termo descritivo, presente inclusive na linguagem cotidiana, enquanto o "ego" é um termo teórico. Winnicott acrescenta, ainda, que não conviria traduzir "self " por "le moi corporel", pois "há boas razões para que o termo `self' não seja sempre usado para enfatizar o corpo, excluindo um `self' mais abstrato que, entretanto, certamente está incluído no conceito de um cérebro que funciona de maneira sadia". Dito de outra maneira, o si-mesmo não é o ego corpóreo - o esquema corpóreo, no sentido de Scott -, mas a pessoa concreta que se vale desse esquema devidamente constituído.

Resumindo, nessa concepção mais tardia de Winnicott, o ego é aquela parte da personalidade em crescimento à qual é atribuída a tendência para a integração, parte que tende a se tornar uma unidade e que é encarregada, em particular, da constituição do ego corpóreo mediante uma elaboração imaginativa ainda rudimentar das funções corpóreas. O si-mesmo, por sua vez, é fruto do processo de personalização, forma posterior e bem mais sofisticada da tendência à integração. No início da vida humana, não há ainda um si-mesmo individual, este só se constitui aos poucos, ao longo do amadurecimento, a fim de poder, uma vez alojado no corpo e apoiado no ego corpóreo, assumir a responsabilidade pela coleção de lembranças, sentimentos e instintos que o habitam.46

 

11. Exemplos de modalidades avançadas da elaboração imaginativa

No decorrer do processo de amadurecimento psicossomático do indivíduo humano, a imaginação criativa assume tarefas muito distintas da simples elaboração das funções corpóreas, tais como a da criação do mundo externo e do mundo interno, a constituição da totalidade do si-mesmo e da mãe, a projeção do material interno para fora, a introjeção do material externo para dentro,47 a diferenciação entre o consciente e o inconsciente, o posicionamento relativamente a terceiros, etc., várias das quais figuram na lista de Winnicott apresentada anteriormente. Na solução dessas tarefas, essa elaboração toma várias formas novas, transformando-se, por exemplo, em "imaginação criativa, sonhar e brincar" (1989a, p. 154) ou mesmo em fantasia do tipo comumente atribuído aos artistas e aos religiosos. São essas as múltiplas operações, algumas delas tipicamente mentais e mesmo intelectuais, que são acrescentadas, em estágios mais avançados, ao trabalho específico da psique de produzir a elaboração imaginativa das funções corpóreas e que capacitam o indivíduo a passar a viver no mundo dos adultos sadios.48

Consideraremos agora alguns casos de dação de sentido interpessoal às funções corpóreas menos primitivas. A diferenciação entre o eu e o não-eu tem um componente devido à fantasia que tem a forma: "Eu sou o rei do castelo, você é o patife sujo". Conforme vimos anteriormente, essa distinção tem imediatamente também um sentido somático, o castelo sendo o meu corpo interpretado "imaginativamente". No estágio do concernimento (stage of concern), posterior à diferenciação entre o eu e o não-eu, o bebê humano é confrontado com a tarefa adicional de conciliar o uso excitado da mãe, já externa, com a dependência dessa mesma mãe, garantia dos seus estados tranqüilos. Esse problema leva ao seguinte desdobramento: o que devo fazer para poder aguardar os meus "instintos de amanhã", ou seja, o meu novo ataque à mãe, apenas com um "medo limitado", sem correr, por exemplo, o risco de despersonalização, isto é, da dissolução da unidade ou da parceria entre a psique e o soma? (1988, p. 72). A solução desse problema consiste na criação, pelo bebê - ajudado pela mãe que sobrevive psicossomaticamente aos seus usos excitados -, da capacidade de intercalar, no tempo, os momentos de uso excitado e os atos de emendar (reparar) os estragos feitos "no corpo cheio de riquezas"49 da mãe. Em outras palavras, o bebê deve constituir, pela elaboração imaginativa, o "ciclo benigno" de ações instintuais seguidas de ações emendadoras. Isso significa a criação da capacidade de brincar e de construir (trabalhar) - atividades que exigem uma determinada maneira de inserção das funções corpóreas no tempo, sendo a constituição do tempo, conforme vimos, a tarefa precípua da elaboração psíquica. Um bebê que progrida segundo essa linha de amadurecimento será alguém com capacidade de constituir valores e ter virtudes, numa pessoa sem culpa, embora capaz de "sentir" culpa caso os seus esforços fracassarem.

Um outro exemplo de novas tarefas para a elaboração imaginativa relativas à função corpórea é dado pela necessidade dos meninos de reconciliarem as suas fantasias fálicas com a sua genitalidade ainda imatura, situação propícia para dar origem à angústia de castração:

Sabemos que, na fase fálica, o desempenho da criança (o exibir-se) está de acordo com a fantasia, enquanto na fase genital sua performance é deficiente, tendo a criança que esperar (até a puberdade, como sabemos) pela capacidade de realizar seu sonho. Esta é uma diferença importante, pois ela implica que, na fase genital, o Ego infantil é capaz de lidar com uma quantidade tremenda de frustração. O medo de castração pelo genitor rival torna-se uma alternativa bem-vinda para a agonia [agony] da impotência. (1988, p. 44; tr.p.62)

Além de assinalar uma incumbência importante a ser assumida pela elaboração imaginativa mais sofisticada, esse texto enuncia uma tese capital da "redescrição" winnicottiana do complexo de Édipo: a de que o medo de castração não decorre da rivalidade com o pai mas das dificuldades ("agonias") internas próprias do processo de amadurecimento.

Nas fases posteriores, surgem igualmente novas tarefas de elaboração ligadas às partes internas do corpo, por exemplo, aos órgãos genitais. A sua resolução pode ser observada nos jogos das crianças pequenas:

O jogo "Sabe guardar o segredo?" pertence tipicamente ao lado feminino da natureza humana, assim como o lutar e o enfiar coisas em buracos pertencem ao lado masculino. A menina que não sabe guardar segredo não pode ficar grávida. O menino que não sabe lutar ou enfiar um trenzinho no túnel não pode deliberadamente engravidar uma mulher. Nos jogos das crianças pequenas podemos vislumbrar a elaboração imaginativa de suas funções corpóreas [...]. (1988, p. 46-7)50

Passando aos exemplos mais complicados, Winnicott reconhece, como todos nós, que escritores de gênio, tais como Shakespeare, formaram, pela sua poesia, o imaginário da modernidade.51 De modo semelhante, Winnicott sabe apreciar o tipo de elaboração imaginativa que se manifesta em diferentes formas de experiência religiosa. Por exemplo, ele verá a atuação da elaboração imaginativa na "necessidade de ser capaz de passar sem respirar, uma necessidade que pode ser encontrada nas práticas místicas de várias religiões orientais". Existem momentos elaborativos "englobados na negação mística da necessidade de respirar", em particular, a "tentativa de negar a diferença entre a realidade interna e a realidade externa" (1958a, p. 188; tr. p. 332). O estudo desses fenômenos não pode ser completo "a não ser que se leve em conta a memória corpórea que o indivíduo tem do seu nascimento" (ibid.) e, por conseguinte, a teoria winnicottiana da elaboração imaginativa das funções corpóreas. Tal como a arte, a religião e mesmo a filosofia trazem um material precioso para a psicanálise, mas o trabalho psicanalítico com esse material adicional é exatamente o mesmo que o trabalho com o material clínico: ele é feito à luz e de acordo com as perspectivas abertas pela teoria psicanalítica, no caso de Winnicott, à luz da sua teoria científica do amadurecimento emocional.

Com isso não quero negar o fato bem conhecido de que, ocasionalmente, Winnicott também escrevia poesias e se comprazia em diferentes formas de fantasia religiosa. Um exemplo notável do uso auto-referente dessas fantasias encontra-se na "elaboração" que Winnicott fez da sua própria morte. Na sua inacabada biografia, após fazer a prece: "Oh, Deus! Possa eu estar vivo quando morrer", ele ensaia uma "descrição imaginativa" de sua morte.52 Dá-se conta de que morreu e pergunta: O que houve? Prossegue "relatando" que o seu coração não podia dar conta do pulmão pesado, cheio d'água, de que resultou "tanto uma alimentação insuficiente de oxigênio quanto um afogamento". Mas isso não foi tudo o que estava acontecendo, pois Winnicott "constata": "A minha prece tinha sido atendida. Eu estava vivo quando morri". Nesse momento, a fantasia de Winnicott se abre para a recordação da morte de muitos dos seus amigos na Primeira Guerra Mundial e para o sentimento de que o seu "estar vivo é uma faceta de uma mesma coisa, da qual as mortes deles [seus amigos] podem ser vistas como outras facetas: algum imenso cristal, um corpo com inteireza e forma intrínsecas" (1989a, p. 4). Esse sentimento, que parece ser de inspiração budista, assinala o início de um fantasiar religioso propriamente dito.

Se, agora, perguntarmos: quem estava vivo quando Winnicott morreu?, vemos logo que a resposta não pode ser: o psique-soma de Winnicott, pois, neste caso, o indivíduo concreto Winnicott não teria morrido, ao contrário do que estabeleceu a "descrição" da sua morte física. Restaria a suposição que o eu que estava vivo era a mera tendência à integração. Mas essa resposta tampouco satisfaz, pois essa tendência não é o eu de Winnicott.

Então, quem estava vivo quando Winnicott morreu? O fato de a resposta fantasiada por Winnicott a essa pergunta ser auto-anuladora deve ser tomado como aquilo que ele é: como expressão do seu modo "pessoal" de tratar, no fim da vida, o seu problema mais imediato e urgente, o de poder morrer. O texto referido não faz parte da teoria winnicottiana, no sentido de incluir nela o conceito budista do todo de realidade como um cristal de infinitas facetas. Trata-se antes, parece-me, de uma tentativa de elaborar imaginativamente o não-elaborável. Isso não significa que a psicanálise de Winnicott abriu-se para a religião, indica apenas que, para ele, assim como para muitas outras pes-soas, nem o intelecto nem a imaginação têm respostas a todas as perguntas que fazem ou parecem fazer sentido ao ser humano.53

 

12. A mente como caso especial do funcionamento do psique-soma e como formação patológica

Entre as formas avançadas mais importantes do funcionamento do psique-soma estão as atividades mentais e intelectuais. Conforme vimos anteriormente, a natureza humana tem a estrutura de um psique-soma, com a mente "florescendo" na beira do funcionamento psicossomático. Que significa isso? Num artigo clássico sobre esse tema, "A mente e a sua relação com o psique-soma" (1949), Winnicott sustenta que, se o psique-soma ou o esquema corpóreo do indivíduo atravessa satisfatoriamente os estágios mais primitivos do desenvolvimento, então, 1) "a mente não existe como uma entidade" separada, 2) ela só existe como "um caso especial do funcionamento do psique-soma" e 3) ela se "especializa" a partir da "parte psíquica do psique-soma" (1958a, p. 244).

Como a psique ela própria não é uma entidade mas um modo de operar ou, melhor, de ser, a mente, tal como concebida por Winnicott, também só existirá como um modo especial de operar ou de existir. A função específica da mente ou do intelecto, que se observa tanto no desenvolvimento normal como no patológico, é pensar. Pensar significa muitas coisas, em primeiro lugar, "entender" ou "compreender" as deficiências relativas do ambiente facilitador. O pensamento é capaz, ainda, de "catalogar eventos, armazenar memórias e classificá-las" e "de fazer o uso do tempo como uma medida e também de medir espaço". Tudo isso lhe permite "relacionar causa e feito" e "fazer previsões".54 Entre as funções características do "pensamento abstrato"55, uma das mais significativas é a ciência, que é um "processo caracterizado pela observação de fatos, pela criação de teoria, pelos testes dessa teoria e pela modificação da teoria de acordo com a descoberta de novos fatos" (1996a, p. 5; tr. p. 32).56

Por outro lado, no caso do desenvolvimento patológico do psique-soma, "freqüentemente se descobre que a mente está desenvolvendo uma falsa entidade, e uma falsa localização". A "psique-mente", enquanto um caso patológico especial do funcionamento psíquico, é a psique que começa a funcionar precocemente, criando o intelecto separado do psique-soma (split off intellect), uma entidade localizada na cabeça;57 ela existe como uma coisa em si e funciona por si, não é um modo de funcionamento do psique-soma.58 O estudo desses desenvolvimentos anormais é extremamente útil não somente para a clínica, mas também para a compreensão da natureza humana, e deve preceder o exame mais direto da especialização da mente a partir da psique saudável e normal.

 

13. O significado do resgate winnicottiano da animalidade humana

A tentativa winnicottiana de humanização do corpo, descrita nas páginas anteriores, vai de encontro à tendência generalizada na psicanálise de negligenciar, e mesmo expurgar o corpo. Freud não estava preo-cupado com a existência psicossomática, mas com as lacunas na consciência, isto é, no psiquismo. A fim de poder tapar essas lacunas, ele inventou um inconsciente também psíquico e o tratou como se fosse consciente, embora obedecendo a leis em parte próprias (as dos processos primários). O corpo entrava no máximo como fonte física de pulsões, que eram vistas como seus representantes psíquicos. A tendência de tratar o inconsciente e, em geral, as doenças da alçada da psicanálise, em termos apenas mentais acentuou-se ao longo da história da psicanálise. Melanie Klein deu um passo decisivo nessa direção quando embutiu a "equação simbólica" que igualava o seio e o pênis na constituição da mente, esperando, por meio desse artifício, salvar a universalidade do complexo de Édipo como situação causadora de distúrbios psíquicos. Bion, enquanto ainda era kleiniano, só fez reforçar o mentalismo com o seu conceito de pré-concepção como elemento estruturante do sujeito psicanalítico, visto que as pré-concepções são formas vazias do pensamento, no sentido mentalista de Kant. Lacan inovou ao dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. O mental cedeu o lugar ao sígnico. Mas o signo lacaniano, tal como a representação mental de Freud, de Klein ou do primeiro Bion, permanece separado do corpo, obrigando os lacanianos a atribuir a este acrobacias abstratas inverossímeis para poder tornar-se signo, e, aos signos, uma concretude não menos implausível, a fim de parecerem corpóreos.

Enquanto, na psicanálise, o corpo cedia lugar à representação, ao signo e, in extremis, à máquina abstrata processadora de dados, na psiquiatria atual ele ressurgia como máquina fisiológica, segundo a boa velha tradução cartesiana que dizia ser o corpo um mecanismo. Depois da descoberta do DNA e, sobretudo, depois do escaneamento quase completo do genoma humano, não somente o corpo, mas, no limite, também a mente, passaram a ser vistos como efeitos que resultam de comandos emitidos por certas letrinhas, não da linguagem lacaniana, mas da linguagem da matéria, com a qual, segundo alguns popularizadores dessa idéia, Deus teria criado o homem. Ao mesmo tempo, o corpo, e não mais a mente ou a linguagem, vai se tornando o sujeito de todos os distúrbios do homem contemporâneo, e a cura médica almejada começa a ser reduzida à mera manipulação técnica. A nossa animalidade passou a ser a máquina fora do controle, ou enguiçada, e a nossa humanidade essa mesma máquina, só que submetida e retificada.

A obra de Winnicott oferece uma clara resistência tanto à redução do homem a um dispositivo representante ou falante, tal como preconizado pelo mentalismo e pelo lingüisticismo da psicanálise tradicional, quanto a um mecanismo físico-químico, como quer o fisicalismo da psiquiatria médica. Não sendo o homem nem um "aparelho psíquico" nem um "aparelho fisiológico", mas uma pessoa, a etiologia da doença humana não precisa ser atribuída a uma fantasia fora do controle ou a um corpo desembestado, nem a saúde e a cura a mecanismos recondicionáveis e recondicionados. Com Winnicott surge uma imagem do homem não mais baseada no dualismo cartesiano de mente e corpo - dualismo ininteligível e, por isso, fonte permanente de tentativas reducionistas, quer de cunho idealista, quer materialista, em busca de um monismo improvável -, mas na idéia de uma "existência psico-somática", existência hifenizada, o hífen sendo constituído pela e na existência ela própria. O homem winnicottiano, poder-se-ia dizer, existe como uma múltipla hifenização: entre o passado, o presente e o futuro, entre as partes do corpo, entre o indivíduo e o ambiente, entre a vida e a morte, entre o ser e o não-ser. O homem é homem-hífen, homem-ponte, homem-relação, interpelado por essas diferenças e, por isso, responsável por elas, tendo a sua unidade na articulação dos diferentes "sins" e "nãos" de que é feito. É desse homem que se trata, segundo Winnicott, tanto na saúde como na doença. Essa modificação da visão do mundo e do ser humano implica um novo conceito de cura, inclusive na psicanálise,59 e justifica, somada a vários outros momentos do pensamento winnicottiano, que se atribua à sua obra o título de "revolucionária".

 

Referências bibliográficas

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1 Winnicott 1988, p. 7; tr. p. 25. Nota-se que, nesse quadro, a arte não está mencio-nada. Tentarei mostrar, em seguida, o que isso significa.
2 É interessante notar que bestia, termo latino para designar o animal feroz, também deriva de termos que significam respirar.
3 Cf. Heidegger 1994 [1943/44], GA 55, p. 95.
4 Cf. Winnicott 1988, p. 7; tr. p. 25.
5 Cf. Winnicott 1988, p. 34; tr. p. 51.
6 Ao longo de toda a sua obra, Winnicott enfatizará o fato de ter se formado médico e de ter exercido plenas responsabilidades médicas por muito tempo (de fato, até 1940). Freud parece ter sido muito menos identificado com a sua condição de médico, tendo sempre guardado algo do seu objetivo inicial de se tornar um filósofo (cf. carta a Fliess, n. 39).
7 Cf. Winnicott 1958a, p. 243; tr. p. 409.
8 Cf. Winnicott 1996a, cap. 29, pp. 236-37. A psicologia dinâmica ou a psicanálise de Winnicott é uma ciência constituída de um conjunto de teorias, do qual a principal é a teoria do amadurecimento. Assim como Freud, Winnicott nunca escreveu um livro em que apresentasse todas essas teorias de maneira ordenada, embora Natureza humana contenha os principais elementos do que pode ser chamado de teoria winnicottiana do animal humano (da natureza humana). Cabe observar, entretanto, que certos aspectos desse animal, em particular o distúrbio psicossomático, não podem ser abrangidos numa "teoria unificada" e exigem a colaboração de uma equipe de autores, com diferentes especialidades científicas (Winnicott 1989a, pp. 111, 114 e 561).
9 Cf. Winnicott 1988, p. 11; tr. p. 29.
10 Ibid., p. 1; tr. p. 21.
11 Cf. Winnicott 1965a, p. 93; tr. p. 88.
12 Já nos seus tempos de secundarista, Winnicott tinha uma grande admiração por Darwin. Foi só paulatinamente que ele entendeu as razões de seu entusiasmo com A origem das espécies: "Na época, eu não sabia por que ele [Darwin] era tão importante para mim, mas agora vejo que o principal foi ele ter mostrado que as coisas vivas podiam ser examinadas cientificamente, com o corolário de que as lacunas no conhecimento e no entendimento não precisavam me apavorar" (1996a, p. 7; tr. p. 34).
13 Cf., por exemplo, Winnicott 1988, p. 29; tr. p. 47.
14 Nós falamos em pessoa "amadurecida" e não em pessoa "maturada". Além disso, o inglês não possui termos para distinguir "amadurecimento" de "maturação".
15 Embora não dicionarizada, a palavra "acontecência" existe na literatura brasileira. Ele é usada, por exemplo, por Vilma Guimarães Rosa, no seu livro de contos intitulado Acontecências (Rio de Janeiro, José Olympio, 1968).
16 Em Ser e tempo, Heidegger reconhece ter tratado quase exclusivamente do ser-para-a-morte do ser humano e deixado de lado o seu ser-para-o-começo (1927, par. 72). Esse fato não deve nos fazer pensar que a Heidegger escapou a especificidade do problema da "nascencialidade" humana. Sobre esse ponto, cf. Heidegger 1996, GA 27, par. 15.
17 Cf. Winnicott 1988, p. 132; tr. p. 154. Note que a tradução brasileira omite a expressão "segunda morte".
18 A acontecencialidade humana não deve ser confundida com a transicionalidade, pois os "fenômenos" ou "processos" que caraterizam a segunda - e que se situam na fase em que acontece a passagem do mundo subjetivo para o mundo externo - são apenas uma parte da primeira, isto é, uma "amostra temporal da natureza humana" tomada no seu todo.
19 Todas as traduções das obras de Winnicott apresentadas aqui foram cotejadas com o original e não raramente refeitas, pois, salvo honrosas exceções, apresentam sérias deficiências, tornando-as impróprias para serem usadas num estudo científico.
20 Winnicott 1988, p. 11; tr. p. 29. A tradução brasileira verte o termo winnicottiano "psyche-soma" por "psicossoma". Creio que esse termo, sem o hífen, perde o poder de expressar o caráter propriamente relacional da "existência psicossomática", podendo inclusive induzir à conclusão errônea de que Winnicott esteja postulando a existência de uma entidade sui generis, o "psicossoma". É verdade que, em Winnicott, a mente e o corpo não são tratados como entidades separadas, de modo que o problema tradicional da relação mente-corpo não se coloca mais. Mas isso não implica que Winnicott caiu no monismo substancial. No pensamento winnicottiano, a diferença substancial entre a mente e o corpo, introduzida por Descartes, não é negada em prol do reducionismo, quer materialista, quer espiritualista; ela é substituída pela diferença operacional entre as funções corpóreas e as funções psíquicas. Analogamente, o problema da união entre a mente e o corpo é substituído pelo problema da integração das funções corpóreas pelas funções psíquicas, sendo cada um desses dois grupos de funções tratado como irredutível ao outro. Enquanto a psicanálise tradicional, seguindo uma linha de pensamento influente na filosofia moderna, fisicaliza o corpo e trabalha exclusivamente com o lado mental, mais precisamente representacional, da existência humana, a psicanálise winnicottiana coloca essa existência diante da tarefa primordial de "elaborar" o corpo, e "elaborar" não significa originariamente "simbolizar", mas "alojar-se" no corpo fazendo dele a nossa primeira morada neste mundo.
21 Ibid. p. 26; tr, p. 44. O leitor atento terá notado que, nesse ponto, as posições de Winnicott divergem fortemente das de Heidegger. De fato, o pensador alemão nunca conseguiu unificar a sua teoria da estrutura do Dasein com uma teoria razoável de corporeidade (para o reconhecimento desse fato por parte do próprio Heidegger, cf., por exemplo, Heidegger 1927, p. 388n; 1983, pp. 385-88 e 1987, p. 202). Nesse aspecto, a psicanálise winnicottiana está à frente da analítica existencial de Heidegger, o que pode ser tomado como estímulo e ponto de partida precioso para a elaboração, ainda pendente, de uma antropologia filosófica no estilo heideggeriano.
22 No distúrbio psicossomático, esse traço-de-união transforma-se em traço-de-separação.
23 Um outro uso do mesmo termo ocorre na seguinte frase, que implica a possibilidade de o animal humano ser livre e moralmente digno: "Também reivindicamos [nas guerras] que nossa esperança é mais do que lutar, pois tentamos praticar a liberdade - o que pode dar muita dignidade ao animal humano" (Winnicott 1986a, p. 219; tr. p. 172).
24 As respostas a essas questões são a base da teoria winnicottiana da natureza e da etiologia dos distúrbios psicossomáticos, bem como da sua clínica desses distúrbios. Gostaria de fazer notar que a especificidade do problema dos distúrbios psicossomáticos começou a chamar a atenção de Winnicott já nos anos 30, como testemunha o notável pequeno texto escrito em torno de 1931 e publicado como o capítulo 22 de Winnicott 1996a.
25 Emprego o termo "corpóreo", ao invés do "corporal", porque este último parece conotar mais claramente as propriedades meramente físicas do corpo humano, enquanto o primeiro parece estar mais ligado à corporeidade no sentido winnicottiano de "somaticidade".
26 No significado de muitos outros termos mentalistas (por exemplo, "percepção", "intuição", "desejo"), as operações que eles designam estão fundidas com os resultados que estas produzem.
27 A mentalização, em Winnicott, é um fenômeno patológico e não deve ser confundida com a sublimação de Freud, que é um processo normal.
28 Em Winnicott, o lugar da luxúria, por exemplo, não é o corpo, o soma, mas o psique-soma.
29 Essa opacidade manifesta-se exemplarmente no fenômeno do cansaço físico.
30 O termo "existência psicossomática" aparece ocasionalmente na obra de Winnicott (cf., por exemplo, 1965a, p. 44).
31 As doenças psicossomáticas e psíquicas devem ser distinguidas das meramente físicas. As malformações ou disfunções físicas, constitutivas ou adquiridas, não são inicialmente experienciadas como anormais e as pessoas com tais deficiências não são pessoas doentes. O idéia da anormalidade surge do olhar do ambiente - acompanhado, via de regra, pelo tratamento dispensado - e da comparação com outros seres humanos.
32 O mesmo pode ser dito para quase toda a literatura científica e filosófica sobre esse assunto.
33 A fantasia, assim entendida, deve ser cuidadosamente distinguida da capacidade de fantasiar adquirida na fase do uso do objeto, ou seja, do fantasying enquanto um fenômeno patológico.
34 A participação da motricidade na criação do "sentido do real" começa muito cedo, enquanto o bebê ainda está na barriga da mãe. Winnicott chama a atenção para o fato de o desejo, sendo propenso a entregar-se a ilusões, contribuir muito pouco, ou quase nada, para a experiência da realidade (cf. Winnicott 1958a, cap. 16, em particular, p. 213). Nesse ponto, a posição de Winnicott aproxima-se da de vários filósofos, entre eles Dilthey e Heidegger.
35 Entendo que o conceito winnicottiano de dação do sentido deve ser interpretado no contexto da obra de Heidegger e não na de Husserl, pois Husserl, tal como o primeiro Merleau-Ponty, ainda trabalha na esfera da representação.
36 Esse mesmo tipo de raciocínio é feito por Winnicott já em 1931 (cf. 1996a, cap. 22).
37 Heidegger 1927, par. 74. Heidegger mostra ainda que, em última análise, os esquemas do agir e do estar-com são de natureza temporal (Loparic 1982). Um estudo mais detalhado desse assunto sugeriria, naturalmente, uma comparação com os conceitos kantianos de esquema transcendental e de esquema simbólico.
38 A idéia de que a constituição do tempo é a tarefa "mais importante" da elaboração imaginativa sugere um óbvio paralelo com a tese central de Heidegger, enunciada em Ser e tempo, de que o ser humano "é" o tempo originário. Devido à importância e à dificuldade desse tema, deixarei o seu tratamento para uma oportunidade futura.
39 O tempo constituído inicialmente pela elaboração imaginativa não é o tempo mental, isto é, a representação do tempo linear, constituída pelo ego, tempo com o qual ainda trabalha Freud (1933). O tempo da continuidade do ser não é o tempo da intuição e dos objetos externos. É necessário concluir que existem, em Winnicott, vários conceitos de tempo, um tema de suma importância, já discutido por mim em outra ocasião (cf. Loparic 1996b).
40 Tal como a psique, o si-mesmo é constituído durante o processo de amadurecimento (1988, pp. 91, 123 e 131; 1989a, cap. 37, p. 271).
41 A natureza da relação do ser humano com a linguagem não pode ser discutida aqui. Sobre este ponto, cf. Loparic, 1999.
42 Deixarei aqui apenas assinalado que a teoria winnicottiana, quando examinada com cuidado, pode vir a exigir um horizonte de interpretação muito sofisticado, que, no meu entender, não é muito distante da maneira com a qual Heidegger, em Ser e tempo, interpreta o sentido dos dados sensíveis (cf. o parágrafo 34 dessa obra).
43 Essa unificação da teoria de ego com a da psique (e da psicossomática) é de importância central na teoria winnicottiana da natureza humana e mereceria ser objeto de um estudo mais aprofundado.
44 Esse estudo pode ser iniciado, por exemplo, pelas observações de Winnicott sobre os "limites da psique" em Natureza humana (1988, pp. 71 e 91; tr. pp. 91 e 112 ).
45 As citações da carta a J. Kalmanovitch encontram-se em Winnicott 1971b, p. 48. O texto da carta é parcialmente reproduzido em Winnicott 1989a, p. 271; tr. p. 210.
46 Esta síntese da psicologia do ego, de origem freudiana, com a psicologia individual, de inspiração jungiana, é mais um aspecto da teoria winnicottiana que permanece pouco estudado. Além de contribuir para o esclarecimento da distinção entre o ego e o si-mesmo, e entre o si-mesmo verdadeiro e o si-mesmo falso, seu estudo poderia revelar o tamanho da dívida de Winnicott para com Jung, assunto raramente abordado na literatura secundária. Uma luz adicional sobre esse tema poderia vir da tentativa de analisar o conceito winnicottiano do ego em termos da estrutura do Dasein tal como explicitada por Heidegger em Ser e tempo, e o do si-mesmo por meio do conceito heideggeriano do si-mesmo ou do "quem" do mundo cotidiano (ens realissimum), em oposicão ao si-mesmo autêntico, determinado pelo ser-para-a-morte.
47 Sobre a introjeção como processo mental, cf. 1987a, p. 122.
48 Seria muito esclarecedor comparar as posições de Winnicott, sobre as funções mentais normais, com as de Freud, sobre a função sintética do eu (cf. Freud 1933a, SA, I, p.513).
49 No original: "a full body of richness", Winnicott 1958a, p. 268.
50 O tratamento winnicottiano da homossexualidade está essencialmente ligado à operação da elaboração imaginativa; cf. 1988, p. 48.
51 Sobre Shakespeare, em particular, cf. Winnicott 1996a, cap. 1.
52 O termo "descrição imaginativa" é de Clare Winnicott; cf. Winnicott 1989a, Introdução, p. 4, na qual se encontra o fragmento da autobiografia de Winnicott aqui comentado.
53 Essa tese foi admitida mesmo pelos mais puros positivistas lógicos, entre eles Carnap (cf. Loparic 1996c). Sobre o "sentimento" de Freud de que a ciência é, por vezes, usada para encobrir "o peso da existência", cf. Freud 1920g, cap. 6.
54 Cf. 1965b, p. 8; 1989a, cap. 24, pp. 154-5, respectivamente. A lista mais completa das funções do pensamento distinguidas por Winnicott encontra-se em 1989a, cap. 24.
55 O termo é usado por Winnicott em 1958a, p. 185.
56 Sobre o uso, na produção da ciência, do pensamento lógico e dos lampejos da intuição, cf. Winnicott 1989a, cap. 24.
57 Essa falsa localização é, segundo Winnicott, uma das importantes fontes das dores de cabeça como sintoma (1958a, p. 247).
58 Partindo do conceito de mente separada, Winnicott elaborou uma teoria de distúrbios psicossomáticos altamente original, que ainda permanece, tal como várias outras das suas descobertas inovadoras, quase desapercebida e, por isso, muito pouco estudada. As principais referências sobre esse tema são Winnicott 1988a, caps. 20, 52.II. e 67.
59 Sobre a diferença que Winnicott faz entre a cura como cuidado, isto é, como extensão do conceito de holding e como aplicação de princípios "que aprendemos no início das nossas vidas", e a cura "degenerada" em "tratamento médico", cf. o capítulo "A cura", em 1986a, pp. 112-22.