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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.2 São Paulo dez. 2000

 

TRADUÇÃO

 

O que existe de propriamente escandaloso na filosofia da técnica de Heidegger*

 

On what is truly scandalous in Heidegger’s Philosophy of Technique

 

 

Reinhart Maurer

Institut für Philosophie und Sozialwissenschaften I
Freie Universität Berlin

 

 

1. O que Heidegger aprendeu com o nazismo

Estimulante não é que Heidegger, principalmente em torno do ano de 1933, era nazista. Isso fica patente, no mais tardar, desde a documentação de Guido Schneeberger de 1962.1 De resto, como se encontra inequivocamente comprovado, Heidegger tinha uma concepção de nacio-nal-socialismo que, já de inicío e depois crescentemente, desviava-se da direção em que se desenvolveu o nazismo real. Ele era partidário de um nacional-socialismo próprio, utópico, o que só percebeu pouco a pouco.

Estimulante é, pelo contrário, o que Heidegger aprendeu com o nazismo, sob o ponto de vista de filosofia da técnica. Pode-se acompanhar, da melhor maneira, o processo de aprendizado em suas preleções sobre Nietzsche (de 1936 a 1946, publicadas em 1961).2 O resultado se encontra fixado, em forma concisa, num texto curto, explosivo, presumivelmente proveniente do ano de 1946. Nele se afirma, por exem plo: "A guerra se tornou uma variante do desgaste (Vernutzung) do ente, que prossegue na paz"3 - uma proposição que contrabalança bibliotecas inteiras de pesquisas sobre guerra e paz. O desgaste universal seria organizados pelos "dirigentes" (Führern), que supervisionam todos os setores dos grandes processos tecnológicos ou pensam supervisioná-los. Desse modo, "o" dirigente (Hitler) só pode ser compreendido juntamente com organizadores extraordinariamente competentes como Albert Speer4 e, dessa maneira, insere-se, para Heidegger, na série desses dirigentes ou managers dos setores de armamento, economia, política, cultura, ensino. Assim termina a fé "no" dirigente, à qual Heidegger (até para um nazista utópico, idealista, que acreditava poder conduzir filosoficamente o dirigente)5 esteve ligado por um tempo demasiado longo.

Heidegger havia discernido - em relação crítica com o livro de Ernst Juenger, Der Arbeiter6 - o sentido histórico-universal do movimento nacional-socialista como consistindo no seguinte: ele almejava uma harmonia entre o homem e a técnica. Uma nova humanidade, uma espécie de super-homem (Uebermensch) que correspondesse às modernas possibilidades técnicas e as reconciliasse com o enraizamento no solo pátrio (das Bodenständige). Em torno de 1933, Heidegger considerava o nazismo uma saída para o principal problema moderno, a saber: a técnica e suas conseqüências sobrepujam o homem.

Em 1935 (ou mais tarde, v. infra), contra as tendências do nazismo real, ele escreveu que "o encontro da técnica planetariamente determinada com o homem moderno" constituiria a "verdade e a grandeza" do movimento nacional-socialista.7 Jürgen Habermas se escandalizou de imediato, quando, em 1953, o texto de Heidegger apareceu no mercado editorial.8 Entretanto, o que aí havia de propriamente escandaloso, estimulando, assim, a reflexão, Habermas o viu apenas insuficientemente. Isso se relaciona com a tese mais tardia de Heidegger, de que com o nazismo irrompera uma vontade de poder que, de nenhum modo, estaria liquidada com ele. Em verdade, o tipo-alvo do super-homem nazista, (estabelecido) na correlação entre germanismo rassísticamente mal-entendido e dominação técnica do mundo, sucumbiu no crime; porém, segundo Heidegger, outras vontades de poder coletivas prosseguem, de modo intensificado, numa direção semelhante. Esse é seu diagnóstico do pós-guerra. Em 1946, o escritor francês Georges Bernanos estabeleceu diagnóstico semelhante:

É certo, com efeito, que, apesar de seu gigantesco esforço, a Alemanha não conseguiu se tornar [...] o embrião de uma humanidade que, sob sua direção, deveria pouco a pouco se tornar uma colônia de cruéis insetos operosos. Porém, as mesmas forças que detiveram o nazismo podem, já amanhã, assumir sua causa. Estas, em realida de, de modo algum, se sublevaram contra a barbárie politécnica, mas apenas contra a pretensão da Alemanha em ser a primeira a organizá-la.9

Em Heidegger, esse diagnóstico conduz a uma chocante identificação provocativa entre os crimes nazistas e aquele desgaste da terra (economia agrária como aspecto parcial) que consideramos legítimo e no qual cotidianamente fazemos progressos: "Agricultura é agora indústria alimentar motorizada; em essência, o mesmo que a fabricação de cadáveres em câmaras de gás [...] o mesmo que a fabricação de bombas de hidrogênio."10

Esta citação provém de uma conferência inédita, do ano 1949, que circula como manuscrito. Que Heidegger não tenha permitido que fosse publicada juntamente com outras conferências da mesma série tem, certamente, a ver com o modo algo crasso dessa formulação. Todavia, ela se encontra num contexto que, de modo menos crasso e com universalidade teórica, ele expôs com suficiente freqüência, de modo mais fundamental na crítica à metafísica de sua filosofia tardia.11 Porém, aquela formulação crassa se relaciona também com um peculiar alargamento da ética para além do domínio intra-humano, com sua extensão a tudo o que é - em correspondência com a apropriação técnica de todo ente. De acordo com isso, a moderna coisificação de tudo, inclusive do homem que, desse modo, pode se tornar matéria-prima para a técnica genética, ou para a produção de sabão, só pode ser superada por uma reabilitação da coisa, isto é, por uma profunda problematização do valor da objetivação técnico-científica de toda a natureza, inclusive da humana. "Amor e justiça para com as coisas seja vossa escola", já notava Nietzsche, abandonando a atitude homem contra mundo e o pretenso privilégio incondicional do homem perante as coisas.12

Em contrário, porém, foi dito que precisamente aí estaria a raiz da desumanidade. Ética seria e permaneceria intra-humana, humanística, não se voltaria para a natureza, porém para o humanum. Voltar-se para o segredo das coisas seria a origem de muitas infâmias contra o homem. Ao invés de buscar algo nessa direção, o homem existiria para preparar para outrem comida, bebida, e dar-lhe teto.13 Isso soa bem, é-nos familiar a todos, a partir da interpretação de nossa cosmovisão judaico-cristã até aqui dominante, em larga medida tornada antropocêntrica. Porém, isso ignora o problema que Hans Jonas14 recentemente expôs, traduzindo para o (âmbito) prático perspectivas heideggerianas para julgamento da emergente crise ecológica. Subsiste a legítima perspectiva (isto é, todo cidadão capaz tem o bom direito a essa perspectiva) de que, multiplicados em cinco bilhões e em breve ainda mais, assentamo-nos agora sobre a terra como sobre um amontoado de concreto, asfalto e dejetos, arruinado por irradiação ou por qualquer outro modo, edificando-nos até o fim com nossa moral antropocêntrico-altruísta, justamente porque nossos melhores propósitos a esse respeito são convertidos em seu contrário por seu modo de realização, como dominação da natureza. Desa maneira, o tratamento que damos à terra na economia agrário-industrial e outras disposições técnicas das coisas em larga escala podem redundar, de fato, a mais longo prazo, no mesmo que a destruição de homens a curto prazo por meio de gás e bombas atômicas.

Contudo, pode-se dizer que ainda não fomos tão longe, em escala global de medida, e provavelmente jamais iremos tão longe. Seria de se esperar novos progressos de uma tecnologia não hostil ao meio am-biente e, em geral, estaríamos progressivamente em condições de manter sob controle, jurídica, moral e tecnologicamente as aplicações ruinosas da técnica. Por isso, e a partir de motivos técnicos, poderíamos e deveríamos seguir adiante no caminho comprovado do humanismo técnico, com controle democrático. Para onde conduziriam os desvios desse caminho, poderíamos estudá-lo no nazismo.

Todavia, é questionável, precisamente nesse contexto ético-político-tecnológico, aquilo que seria de se aprender com o nazismo. De acordo com o segundo Heidegger (de modo parcialmente semelhante, de acordo com a teoria crítica da Escola de Frankfurt, na medida em que ela é Dialética do Esclarecimento), em um aspecto essencial, o nazismo não é propriamente nenhum desvio do justo caminho até aqui comprovado. Nazismo e liberalismo (socialismo oriental igualmente) têm um pressuposto comum em relação à técnica. Decerto, falta ao nazismo o controle democrático - e essa é, seguramente, uma diferença essencial. Todavia, todos esses sistemas pressupõem levianamente que a técnica é, em suma, um instrumento nas mãos do homem coletivo, que dela soberanamente dispõe, e se consideram (sistemas) adequados para o exercício dessa disposição. De acordo com Heidegger, esta é uma avaliação errônea,15 com a qual, como se diz, o fracasso "por falha humana" se acha pré-programado. E o nazismo se torna, para Heidegger, justamente um exemplo disso. Ele não seria acidental, ou um passo em falso, meramente alemão, nesse avanço para o acabamento do projeto da modernidade, mas uma possibilidade típica de seu acabamento.

Isso pode ser avaliado como asserção defensiva de um nazista notório, que inverte a ponta da lança das censuras político-morais. No entanto, primeiro seria preciso demonstrar que, prosseguindo na direção até aqui seguida - portanto, sem a "virada" (Kehre) preconizada por Heidegger (isso significa, entre outras coisas, a disposição de pensar de outro modo e para a busca de soluções de outra espécie) -, podemos dominar os problemas que, a cada dia, tornam-se maiores. Portanto, a refutação de Heidegger não seria obtida por meio de sua condenação moral; ela seria uma tarefa do futuro, envolvendo toda a sociedade. Segundo Jonas e outros, não se pode discernir como as formas atuais do liberalismo ocidental e do socialismo oriental poderiam dominar essa tarefa. Concretizando Heidegger, Jonas defende uma revisão fundamental do "ideal baconiano", isto é, da representação segundo a qual todos os macroproblemas humanos seriam resolúveis por meio da dominação técnica da natureza e da reconstrução do astro Terra.16 Fica claro aqui que esse ideal não se encontra apenas no quiliasmo técnico de um marxista como Ernst Bloch, porém, outrora como hoje, é um componente essen-cial de uma cosmovisão que envolve Ocidente e Oriente numa concorrência ameaçadora para a humanidade.

Além disso, o quiliasmo tecnológico, que espera da técnica sabe Deus o quê, oscila atualmente, de maneira preocupante, entre duas representações bastante opostas: 1) a já mencionada, segundo a qual a técnica seria um instrumento forte, benéfico, em mãos do homem, que dela disporia autônoma, soberana e democraticamente; 2) uma nova, refinada, edição do sonho jünger-heideggeriano de uma nova humanidade, correspondente à técnica, ou à essência dela, sonho que ambos consideravam refutado pelo experimento nazista. De acordo com a nova variante do antigo sonho, os progressos ulteriores da técnica - principalmente da técnica computacional - abrem a perspectiva de uma crescente fusão entre o técnico e o orgânico-humano. Alguns até vêm o discurso do segundo Heidegger sobre "o acontecimento" (das Ereignis) como tendo sido suscitado por essa perspectiva. E, de fato, nele ressoam exaltadas esperanças de Heidegger, que ele não vincula à técnica como equipamento, mas a uma misteriosa essência onto-historial (seinsgeschichtliches) da técnica. Isso pode estimular fantasias de união místico-computacionais. Até o final, Heidegger jamais esteve completamente livre de expectativas tecnoquiliásticas, que contribuíram essencialmente para seu equívoco nazi-político.

Contrariamente a isso, bem que deveríamos nos ater ao que Heidegger - como também, de outro modo, Jünger - aprendeu com o nazismo: isto é, que se encontra por princípio fracassado o anseio por uma humanidade a ser recriada pela vontade de poder tecnologicamente mediada. A exortação à serenidade (Gelassenheit) na relação com os objetos técnicos, encontrada mais tardiamente em Heidegger,17 pode servir de refreamento a essas tentações técnico-quiliásticas. Ou será que não podemos aprender absolutamente nada com o aprendizado de Heidegger, porque tudo a esse respeito se move por suspeitosos caminhos peculiares, tipicamente alemães, de crítica à civilização, cuja periculosidade se encontra atestada, de uma vez por todas, com o nazismo.

Por outro lado: quão perigoso se torna um asqueroso conceito de crítica da cultura ou da civilização, hoje largamente difundido, se, a partir da negatividade do nazismo e de tudo o que com ele se relaciona, conclui pela positividade e racionalidade das práticas pós-nazistas. O triunfo atual do caminho ocidental e oriental para uma relação, pela primeira vez, mais humana com a técnica vale como prova histórico-universal, quase hegeliana, da correção desses caminhos; e isso já suscita grandes problemas, uma vez que, até segunda ordem, esses caminhos estão ameaçadoramente em confronto. E, nessa contraposição, a respectiva vontade de poder técnico-política das duas superpotências emergentes da Segunda Guerra Mundial sente-se, em larga medida, legitimada a progredir em seu caminho, principalmente do ponto de vista técnico-armamentista. Pois ambos representam, com efeito, a boa alternativa ao pretensamente único mal do nazismo. E todos aqueles que estão estabelecidos no partido do respectivo bem nada necessitam aprender com um nazista como Heidegger, porém podem e devem condená-lo moral e politicamente, a ele e sua filosofia. Tende para isso, pelo menos, a linha geral da opinião pública, em relação à qual existem, contudo, contracorrentes entre os que refletem.

 

2. A comprovação da tese na discussão com Victor Farias

Farias se coloca precisamente na linha geral. A confirmação que ele lhe fornece, num tempo em que esta se encontra exposta a crescentes dúvidas e autoquestionamentos, em conseqüência da emergente crise ecológica, esclarece bem o sucesso de seu livro.18 Dele pode-se depreender, uma vez mais, para onde nos conduzimos, com pretensa necessidade, quando nos desviamos da linha geral do ideal baconiano, que prevê a crescente dominação tecnológica da natureza para o bem do homem.

Ao dizer isso, é claro que recorro Hans Jonas para a defesa de Heidegger; é claro que nele vejo um pensador que prolonga Heidegger, que faz a passagem de Heidegger para a filosofia prática. Relampeja ocasionalmente em Farias o problema de que Heidegger, apesar de nazista, poderia ter razão, em seu diagnóstico da técnica como uma potência não instrumental, e com o prosseguimento do diagnóstico, de que o homem ainda não corresponde à essência da técnica ou esta àquele. Porém, ele soterra, de imediato, essa fecunda visão do problema, manifestamente de acordo com a divisa: o que não é permitido não pode ser, pois a um nazista não é permitido ter razão, em qualquer sentido.

Particularmente explosivo, nesse contexto, é a proposição, já brevemente mencionada no início, extraída da preleção de Heidegger, Introdução à Metafísica. A primeira parte afirma:

O que hoje, por todo lado, é oferecido à exaustão como filosofia do nacional socialismo, mas que não tem o mínimo a ver com a verdade interna e a grandeza desse movimento (a saber, com o encontro da técnica planetariamente determinada com o homem moderno)...19

A questão é conhecida, a saber, se a parte entre parênteses já provém do ano 1935, ou foi acrescentada só mais tarde, só por volta de 1953, como afirmou, por exemplo, Rainer Marten (v. infra). O adendo posterior poderia ter como sentido que Heidegger desejasse explicar de tal modo seu engajamento pelo nazismo que este fosse desculpável e apenas parcialmente equivocado - um erro, que o próprio Heidegger mais tarde admitiu. Na primeira parte de minhas considerações, também eu segui essa linha de auto-interpretação, justificação ou estratégia na argumentação heideggeriana; uma argumentação que redunda em passar da posição do acusado para o contra-ataque, ao afirmar que as forças que superaram o nazismo, pelo uso que fazem da técnica, ou talvez ainda mais por sua sujeição à técnica, não seriam melhores, porém, talvez, a longo prazo, até piores do que ele.

A esse respeito, escreve Marten, que Farias cita:

Contudo, de modo algum já havia para Heidegger, por volta de 1935, a perspectiva de um nacional-socialismo pervertido em desgaste técnico do ente. Nesse tempo, a essência ruim da técnica ainda é atri-buída apenas às potências significativamente não-alemãs.20

Isso é correto, em face das esperanças que, ainda em 1935, Heidegger depositava na Alemanha nazista; que ele, porém, já via colocadas em questão pelas reais tendências da efetividade ideológico-política.

Se, então, aquele comentário adicional sobre o "encontro da técnica planetariamente determinada com o homem moderno" já provém do ano 1935 ou foi acrescentado mais tarde por Heidegger, é irrelevante. Pois a mesma esperança transparece em várias passagens da preleção, sem dúvida provindo de 1935; a saber, que a Alemanha (portanto, naquele tempo, a Alemanha nazista), como centro da Europa, na situação de fronte que então se desenhava contra a Rússia e a América, defendia a posição de uma relação mais sensata com a técnica. De modo particularmente claro:

Essa Europa... encontra-se hoje na grande tenaz entre a Rússia, de um lado, e a América, do outro. Ambos, Rússia e América, são metafisicamente o mesmo: a desoladora fúria da técnica desencadeada e da imperscrutável (bodenlose) organização do homem comum.21

Pode-se considerar falso ou censurável esse julgamento da si-tuação; porém, nele se insere sem lacunas naquele adendo duvidoso. A agitação a respeito do exato tempo de seu surgimento é, no fundo, ociosa; ela mostra que não se entendeu o essencial. De resto, nessa passagem, a expressão "imperscrutável" (bodenlos) remete ao parênteses principal, que Heidegger vincula com a ideologia do solo (não com a ideologia nazista do sangue, isto é, ideologia da raça).22

A questão de se saber a partir de quando, em relação com a "fúria da técnica", o nazismo ingressa, para Heidegger, na mesma linha com a Rússia e a América, é, por uma determinada razão, difícil de responder de modo preciso, e provavelmente nunca o seja. A dificuldade se relaciona com a recepção de Jünger por Heidegger. Pois esse contexto de problemas foi dado por Jünger, e Heidegger discutiu intensamente com esse autor. Seguramente, Heidegger tende a retrointerpretar suas concepções mais tardias já em suas manifestações de 1933, precisamente no sentido de uma racionalização retroativa de seu engajamento nazista, através de uma ênfase unilateral do aspecto técnico-filosófico. Isso seria uma certa falsificação. Tem-se, porém, que se tomar a favor de Heidegger que, em tais processos de aprendizado mediados pela realidade, só pouco a pouco se torna claro aquilo que importa: a saber, aquilo que é importante e grávido de futuro numa situação altamente complexa de mistura de experiências e interpretações possíveis. Dessa maneira, a problemática da técnica se tornou, pouco a pouco, predominante na relação de Heidegger com o nacional-socialismo. Foi esse o campo no qual as experiências com o nazismo se tornaram fecundas para ele.23 Em outro aspecto, ele pode ter aprendido muito pouco, porém, nesse aspecto, aprendeu muito, justamente por seu engajamento inicial, suscitado por falsas esperanças.24 E o que Heidegger aprendeu, decerto não é apenas problema dele.

Faz sentido perguntar se a lição da história que pode ser extraí-da do nazismo não diz respeito também e justamente à problemática da técnica. Pode ser fecundo o escândalo da tese heideggeriana, a saber, que em relação a essa problemática, o tempo pós-nazista seguiria pelos mesmos trilhos, em velocidade crescente. Todavia, esse impulso é desperdiçado quando, como é quase unanimamente habitual hoje, despacha-se o nazismo unicamente no campo moral-político. Em nossa civilização tecnológica, o âmbito técnico-político é pelo menos igualmente importante. Os moral-políticos puros não podem compreender isso. Partindo de reflexões de Heidegger, pode-se dizer a esse respeito: existe atualmente um facismo intensificado, global, em forma de um brutal desgaste da natureza, a despeito de todos os contra-esforços. Por meio do domínio universal de uma vontade de poder que abrange "comunismo, facismo e democracia mundial", encontra-se a natureza, por toda parte, por assim dizer, em campos de concentração.25

Isso Heidegger aprendeu com o nazismo e com o desenvolvimento pós-nazista. Ao ater-se dogmaticamente à linha geral neo-iluminista, supervalorizando-a como a única cosmovisão humana, autores como Farias e Habermas26 fecham-se a tal aprendizado, não discernindo, assim, os novos problemas da emergente crise ecológica. Dessa maneira, em conformidade com a autocompreensão que têm de si, eles nada têm que aprender tecnopoliticamente, pelo menos nada com Heidegger. Ao invés disso, Farias lhe atesta a incorrigibilidade do nazista crônico. Essa censura, ele a ampara principalmente naquela provocativa proposição a respeito da agricultura e das câmaras de gás, que já apareceu aqui de várias maneiras.27 Na conclusão, ingressaremos mais uma vez nesse assunto. Primeiramente, porém, retornemos à pergunta: a partir de quando Heidegger rejeita o nazismo por razões técnico-políticas e técnico-filosóficas, e, em verdade, tanto mais quanto, de início, sobre ele depositara esperanças a esse respeito - pelo que se viu, pois, frustrado?

Essa pergunta proporciona um ingresso oportuno na filosofia da técnica de Heidegger, porque ela tangencia necessariamente a recepção de Jünger, elucidativa desse tema. A pergunta só pode ser respondida quando se considera a discussão de Heidegger com os escritos de Jünger: Die totale Mobilmachung (1930) e Der Arbeiter (1932). Na medida em que Farias não faz isso, ou faz muito pouco, seu livro é insuficiente quanto a esse aspecto decisivo. Manifestamente, Heidegger, que era amigo de Jünger, leu esses textos logo em seguida à publicação. Ele mesmo diz que os teria discutido, "naquele tempo", em pequeno círculo, e em 1939-40 mais uma vez, com um círculo de colegas.28 Os apontamentos de Heidegger relativos a esse contexto (Komplex) não são acessíveis por ora (previsivelmente só em 10 anos, como a mim o disse F. W. von Hermann). Contudo, vestígios mais tardios da discussão com Jünger são claros.29

O que é que importa nisso? Manifestamente, Heidegger tanto se fascinou quanto se escandalizou com a tese de Jünger, de que o liberalismo burguês não seria capaz de levar ao acabamento30 sua relação com a técnica, e que uma nova humanidade teria de se desenvolver que, ao vincular-se com técnica, a uma vez, orgânica e artificialmente, seria adequada a ela. Somente assim poder-se-ia chegar a uma perfeição da técnica, à sua superação, a uma síntese entre humanidade e mundo-ambiente reconstruídos. Pode-se suspeitar aqui, em Jünger - quanto ao mais, aliás, um conservador -, de uma fuga para frente, em face das destrutivas possibilidades e efetividades da técnica moderna, principalmente da técnica bélica, que o soldado Jünger vivenciara na pele. As asserções de Heidegger, segundo as quais seria necessário corresponder à essência da técnica, parecem ter raízes semelhantes. Todavia, também em Bloch e Marx deparamos com as mesmas esperanças numa futura harmonia entre o homem e a técnica;31 e o american way of life vai nessa mesma direção, sem teorizar muito a respeito. Na teoria, esse é um complexo inusitado, "de esquerda" como "de direita". Der Arbeiter, de Jünger, é uma espécie de proletariado titânico - mitologizado, no papel de liderança histórico-universal, que lhe foi atribuído por Marx.

Ao tempo da publicação do livro de Jünger, ficava muito próximo compreender o nazismo como uma expressão nova, mais apropriada, da figura titânica "do Operário" ("der Arbeiter"). Esse é justamente aquele "encontro da técnica planetariamente determinada com o homem moderno", que Heidegger, naquele adendo à preleção sobre a metafísica de 1935, esperava do nazismo. Ernst Jünger logo manteve reservas para com o nazismo e, em verdade, por causa da violência primitivo-destrutiva a ele ligada, como mostra seu livro Marmorklippen (1939); e seu irmão Friedrich Georg publicou em 1946 o livro crítico-conservador A Perfeição da Técnica32, já escrito anteriormente, um direto contramovimento às tendências de acomodação a uma técnica que permanentemente se aperfeiçoava. Aparentemente, não era inquietante para Heidegger o tecno-quiliasmo quase-marxiano de Ernst Jünger, por razões igualmente conservadoras. Suas experiências concretas com a expressão nazista do "Der Arbeiter" e com a guerra total conduzida pelo nazismo dispuseram-no crescentemente àquelas amargas palavras sobre "os dirigentes", decisivos trabalhadores armamentistas que supervisionam todos os setores do desgaste do ente, e até àquela escandalosa proposição sobre a identidade entre agricultura motorizada e fabricação de cadáveres em câmaras de gás.

Farias, que não compreende o contexto em que se coloca a proposição de Heidegger, avalia-a como um testemunho particularmente chocante da obstinação, da incorrigibilidade nazista de Heidegger. Mas quando lemos prognósticos científicos atuais sobre as conseqüências do que fazemos hoje com a Terra, na economia agrário-industrial, como também em outros setores da indústria, então a proposição não parece, de modo algum, tão impossível. Se não for inventada uma arma técnica milagrosa para obtenção de energia que não cause problemas, e para fazer crescer um trigal sobre a palma da mão (a modo de Ernst Bloch33), então estamos hoje a ponto de preparar a destruição aos bilhões de uma humanidade até lá crescente. Desse modo, no que concerne ao destino da humanidade, já nos encontramos hoje numa situação semelhante à da Alemanha, por volta do final da guerra, quando também se espalhou a esperança numa arma milagrosa, enquanto a catástrofe já era inevitável.

Quanto àquilo que, nesse contexto, concerne à questão da culpa, gostaria de citar, em conclusão, uma carta do leitor ao jornal berlinense Der Tagesspiegel (de 27.11.88):

Somos todos hoje mais ou menos parceiros em um consumo massivo, cujo dispêndio de energia põe em perigo o clima mundial e, com isso, a nutrição e o espaço vital de muitos povos. Talvez, daqui a 50 anos, alegaremos que nada sabíamos das conseqüências de nossa relação com o meio ambiente e a atmosfera. Empurraremos, então, a culpa por esse "Holocausto" sobre os atuais políticos e experts, do mesmo modo como, outrora, sobre um par de meganazistas?

 

 

Tradução: Oswaldo Giacoia Junior (IFCH/Unicamp)
E-mail: giacoia@tsp.com.br

* Publicado em Margreiter, R./Leidlmair, K, Heidegger. Technik - Ethik - Politik. Würzburg, Königshausen & Neumann, 1991, pp. 25-35; N. T. A fim de não poluir o corpo do texto traduzido incluindo um grande número de referências, deixa-las-emos estas no rodapé, junto com as notas de comentários, desviando-nos do padrão editorial da revista. N.E.
1 G. Schneeberger, Nachlese zu Heidegger. Dokumente zu seinem Leben und Denken. Bern, 1962.
2 M. Heidegger, Nietzsche. Neske, Pfullingen, 1961.
3 M. Heidegger, Vorträge und Aufsätze. Pfullingen, 1954. Comparar, em geral, Überwindung der Metaphysik, p. 71s. Em particular número XXVI, p. 91s.
4 Comparar A. Speer, Erinnerungen. Frankfurt/M, 1969. Cita-se aqui o julgamento de um jornalista inglês sobre Speer, que vai na linha das considerações aqui apresentadas: "Em certa medida, Speer é hoje para a Alemanha mais importante que Hitler, Himmler, Goering (...) Todos eles se tornaram nada mais que colaboradores desse homem que, de fato, dirige a gigantesca máquina de força, e da qual extrai um máximo de rendimento. Nele vemos uma precisa efetivação da revolução dos manager (...) Ele é, na forma mais característica, o homem médio de sucesso. Muito menos que qualquer dos outros dirigentes alemães, ele se iguala a algo tipicamente alemão ou tipicamente nacional-socialista. Ele simboliza, antes, um tipo que se torna importante, em medida crescente, em todos os estados beligerantes: o puro técnico, homem brilhante, desvinculado de classe, sem tradição, sem outra meta que fazer seu caminho no mundo apenas por meio de suas aptidões técnicas e organizatórias (...) Podemos prescindir dos Hitlers e dos Himmlers, mas os Speers ficarão muito tempo conosco" (Observer, 9.4.1944).
5 Comparar Poeggeler, "Den Führer führen? Heidegger und kein Ende". Philosophische Rundschau 32, 1985, 26-67.
6 E. Jünger, Der Arbeiter. Herrschaft und Gestalt. Hamburg, 1932. Nova impressão, Stuttgart, 1982.
7 M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik. Tübingen, 1953, p. 152.
8 J. Habermas, Martin Heidegger. Zur Veröffentlichung von Vorlesungen aus dem Jahr 1935 (1953), reimpresso em Jürgen Habermas, Philosophisch-Politische Profile. Frankfurt/M, 1971, p. 67s.
9 G. Bernanos, Europaer, wenn Ihr wüsstet. Versão completa dos escritos polêmicos de 1945-1947, redigidos depois do exílio brasileiro. Essen, 1962 (tradução do francês), p. 170.
10 Citado por W. Schirmacher, Technik und Gelassenheit. Zeitkritik nach Heidegger. Freiburg/München, 1983, p. 25.
11 A esse respeito, R. Maurer, "Heideggers Metaphysik der Physis. Zur Hauptrichtung seines Denkwegs"; em Martin Heidegger - Unterwegs im Denken. Ed. R. Wisser. Freiburg/München, 1987, pp. 131-160. Do mesmo autor, "Metaphysik und Eschatologie. Zur politischen Bedeutung dieser Polarität", em Metaphysik und Politik. Ed. V. Gerhardt. Stuttgart, 1990.
12 F. Nietzsche, Kritische Studienausgabe. Ed. G. Colli/M. Montinari, v. 10, p. 225. Do mesmo autor, A gaia ciência, aforismo 346.
13 S.ª Peperzack, em relação com Levinas, "Einige Thesen zu Heidegger-Kritik von Emmanuel Levinas"; em Martin Heidegger und die praktische Philosophie. Ed. A. Gethmann-Siefert e O. Pöggeler, Frankfurt/M, 1988, p. 373s. Analogamente, W. Marx, Giebt es auf Erden ein Mass? Grundlinien einer nicht metaphysischen Ethik. Hamburg, 1983.
14 H. Jonas, Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation. Frankfurt/M, 1979.
15 M. Heidegger, Die Frage nach der Technik, em Vorträge und Aufsätze, op. cit. p. 13s. A mesma tese já se encontra num texto do ano de 1935: Einführung in die Metaphysik, op. cit.
16 H. Jonas, op. cit. p. 251s. Comparar: R. Maurer, Wie wirklich ist die ökologische Krise? em Wirklichkeit als Tabu. Ed. A. Mohler, München, 1986, pp. 117-138.
p. 148.
17 M. Heidegger, Gelassenheit. Neske, Pfullingen, 1959, particularmente p. 22s.
18 V. Farias, Heidegger und der Nationalsozialismos (traduzido do espanhol e do francês), com prefácio de Jürgen Habermas. Frankfurt/M, 1989. Testemunhos importantes dos ecos que suscitou em: Die Heidegger Kontroverse, ed. J. Altweg, Frankfurt/M, 1988. Neste, uma única contribuição se aproxima do que há de propriamente escandaloso na filosofia da técnica de Heidegger: M. Haller: Der Philosophen-Streit zwischen Nazi-Rechtfertigung und postmodernes Öko-Philosophie, p. 200s.
19 V. supra, nota 7.
20 Farias, op. cit. p. 304. Analogamente, mas de maneira mais cuidadosa, A. Schwan, Politische Philosophie im Denken Heideggers, segunda edição, acrescida de um "Adendo 1988", Opladen, 1989, particularmente p. 138s., nota 35.
21 M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik, op. cit. p. 28s; comparar p. 32s e 38.
22 Comparar R. Maurer, Metaphysik und Eschatologie, op. cit., nota 11.
23 Esse é o lado forte de Heidegger, como o vê também Gadamer, ao enfatizar o estreito relacionamento entre a filosofia de Heidegger, seus erros políticos e sua clarividência em filosofia da técnica. A realidade e o homem são de tal modo contraditórios ou, antes, dialéticos, que Gadamer diz que o mesmo homem, que errou politicamente daquela maneira, "já nos anos 50 disse e viu coisas sobre a revolução industrial e sobre a técnica que hoje verdadeiramente espantam por sua previsão" (H. G. Gadamer, Oberflächlichkeit und Unkenntnis. Zur Veröffentlichung von Victor Farias; em: Antwort. Martin Heidegger im Gespräch. Ed. G. Neske und E. Kettering, Pfullingen, 1988, pp. 152-156; loc. cit. p. 153).
24 "Creio que, em seu erro, o engajamento de Heidegger em 1933 foi mais filosófico do que a correção inalteradamente distanciada e sobremodo digna de respeito na postura de Nikolai Hartmann"; assim E. Nolte, na conclusão de sua contribuição, Philosophie und Nationalsozialismus; em Heidegger und die praktische Philosophie, op. cit. (nota 13), pp. 338-358. Comparar a discussão de Nolte com Farias: Ein Hõhepunkt der Heidegger-Kritik? Victor Farias' Buch `Heidegger et le Nazisme'; em Historische Zeitschrift 247, 1988, p. 95-114.
25 Heidegger, a respeito dessa comum, ao mesmo tempo não vinculante vontade de poder: Die Selbstbehauptung der deutschen Universität. Das Rektorat 1933/34; ed. H. Heidegger, Frankfurt/M, 1983, p. 25; comparar o Interview em Der Spiegel, presentemente em Antwort, op. cit. (nota 23), p. 81s. A respeito disso, Schwann vê em Heidegger uma conexão esquemática e um nivelamento de todas as tendências do mundo moderno (Zeitkritik und Politik in Heideggers Spätphilosophie; em Heidegger und die praktische Philosophie, op. cit. p. 93s.). Todavia, não enfatiza Heidegger muito mais a concordância num único aspecto, é verdade que essencial: o aspecto metafísico, tornado tecnológico e tecno-político?
26 Comparar o prefácio de Habermas ao livro de Farias, op. cit. p. 11s., assim como o capítulo Die metakritische Unterwanderung des okzidentalen Rationalismus: Heidegger; em Der philosophische Diskurs der Moderne. 12 Vorlesungen. Frankfurt/M, 1985, p.158s. O dogmatismo neo-iluminista de Heidegger vai tão longe que ele, paralelamente à crítica de Heidegger, reinterpreta a Dialética do Esclarecimento, a contribuição autenticamente interessante da "Teoria Crítica" da Escola de Frankfurt, abranda-a, castra-a, no fundo, e rejeita-a (comparar o capítulo imediatamente anterior ao capítulo sobre Heidegger, Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung: Horkheimer und Adorno, no mesmo livro, p. 130s.). A irônica dialética da história obteve para si uma obra-prima, quando justamente o dogmático neo-iluminista Habermas se posiciona como herdeiro e ulterior desenvolvimento da Teoria Crítica.
27 Farias, op. cit. p. 376. De modo análogo, Habermas, em seu prefácio, p. 23.
28 M. Heidegger, Die Selbstbehauptung der deutschen Universität, op. cit. (nota 25), p. 24.
29 Por exemplo, M. Heidegger, Holzwege, Frankfurt/M, 1950, p. 89; Vortäge und Aufsätze, op. cit. p. 72; sobretudo o ensaio Zur Seinsfrage, contribuição de Heidegger para uma publicação comemorativa sobre Ernst Jünger; em M. W. Wegmarken, Frankfurt/M, 1967, p. 213s; particularmente p. 217s.
30 Dass der bürgerliche Liberalismus mit der Technik nicht fertig werde. A expressão "fertig werden" significa levar algo à conclusão, ao acabamento, encerrar, por vezes liquidar (N.T.).
31 A esse respeito, Max Müller relaciona E. Jünger, E. Bloch, Marx e Heidegger. M. M, Martin Heidegger - Ein Philosoph und die Politik. Ein Gespräch, em Antwort, op. cit. (nota 23), p. 190s; particularmente p. 196.
32 E. Jünger, Auf den Marmorklippen, nova impressão, Frankfurt/M/ Berlin, 1968; G. F. Jünger, Die Perfektion der Technik, nova impressão, Frankfurt/M, 1953.
33 E. Bloch, Das Prinzip Hoffnung. Frankfurt/M, 1959, p. 1055.